sexta-feira, 24 de outubro de 2025

O aniversário de Manaus e a invenção das tradições

Foto: Jornal do Commercio.

Manaus, 356 ou 177 anos? Esse é um dos debates mais interessantes do mês de outubro. As discussões sobre a fundação da cidade remetem às reflexões teóricas sobre a construção das nações e seus mitos fundadores, muito bem analisados por Eric Hobsbawm e Terence Ranger no clássico "A Invenção das Tradições" (1984).

Tradicionalmente, desde o século XIX, autores como Lourenço da Silva Araújo Amazonas (1852), Aprígio Martins de Menezes (1884), Bertino de Miranda Lima (1908) e Agnello Bittencourt (1925) afirmam que Manaus surgiu ao redor da Fortaleza de São José da Barra do Rio Negro, erguida/concluída em 1669. Destaco que, apesar das referências, não vieram à luz, até hoje, documentos que comprovem a construção/conclusão da fortificação em 1669. Vejamos brevemente (ou não) as transformações operadas entre os séculos XVII e XIX.

O povoado, denominado Lugar da Barra, era composto por indígenas descidos de diferentes nações, destinados ao mercado de escravizados em Belém, e soldados portugueses, com sua economia centrada na captura de nativos e na extração das Drogas do Sertão. Nos dão nota sobre esse período Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio (1775), Alexandre Rodrigues Ferreira (1787), Martius e Spix (1819), entre outros. Ferreira computa nessa altura uma população estimada em 301 pessoas.

Entre 1791 e 1799 foi capital da Capitania de São José do Rio Negro, embrião do atual estado do Amazonas e subordinada ao Grão-Pará, retornando de forma definitiva em 1808. Em 1833, em meio a mudanças administrativas operadas pela Regência, ocorre a elevação do Lugar da Barra à categoria de Vila de Manáos, capital da Comarca do Alto Amazonas. Nessa época a vila contava, de acordo com Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha (1897), com 11 ruas e uma praça com pelourinho. Existia uma pequena lavoura e a manufatura de produtos como a tartaruga e o pirarucu.

A Assembleia Provincial do Grão-Pará, após estudos, decidiu que a então Vila de Manáos, capital da Comarca do Alto Amazonas, já possuía as devidas condições de ser elevada à categoria de cidade. A elevação foi levada a efeito através da Lei N° 145 de 24 de outubro de 1848. A Vila de Manáos passou a se chamar Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro, homenageando a geografia e a padroeira do Amazonas.

A partir do exposto, fica evidente que Manaus não foi fundada como cidade, não sendo expedida pela Coroa Portuguesa qualquer ordem para tal, tendo surgido de forma improvisada como um povoado que só ganhou o status oficial de cidade em 24 de outubro de 1848.

Em 1969 foi efusivamente comemorado o Tricentenário de Manaus, com direito a cunhagem de moedas, medalhas e publicações especializadas de historiadores e memorialistas em jornais, revistas e livros. Dúvidas sobre a data já pairavam naquela ocasião. O professor Mário Ypiranga Monteiro (1969) e o Padre Raimundo Nonato Pinheiro (1969) digladiaram-se pelas páginas dos jornais em torno das "dúvidas e vacilações" sobre as comemorações. No entanto, para o espanto dos que comemoraram os 300 anos em 1969, em 1998 foram comemorados no dia 24 de outubro os 150 anos da cidade. Estávamos diante, como registra o historiador Francisco Jorge dos Santos (2005), de um imbróglio sobre o aniversário de Manaus. Como proceder?

Buscando solucionar a questão, um grupo de historiadores do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA) criou a seguinte data: uniram o provável ano de construção/conclusão da Fortaleza de São José da Barra do Rio Negro, 1669, um fato sem documentação comprobatória, ao dia 24 de outubro, dia em que a Vila de Manáos foi elevada à categoria de cidade, fato amplamente documentado, criando a data de 24 de outubro de 1669. Nesse sentido, conforme Hobsbawm e Ranger (1984), o aniversário de Manaus é uma tradição inventada, uma criação que visa criar uma continuidade com um passado remoto, nobre e heroico.

Manaus é oficialmente cidade desde 1848, não restam dúvidas. Isso posto, devemos desconsiderar tudo que é anterior a essa data? De forma alguma. Apesar do status de cidade datar da segunda metade do século XIX, os fundamentos de Manaus estão no século XVII: a Fortaleza de São José da Barra do Rio Negro, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição e seu cemitério, os primitivos largos do Lugar da Barra, suas primeiras ruas e duas das residências mais antigas, datadas de 1819 e até hoje existentes. Some-se a isso o vasto acervo arqueológico composto por louças, garrafas e imagens sacras que atestam a antiguidade Colonial de Manaus.

E se mudarmos a abordagem, deixando de lado o viés eurocêntrico e adotando uma perspectiva decolonial, recuamos ainda mais no tempo, para mais ou menos cerca de 1.500 a 2000 anos antes de Cristo, quando a região era habitada por milhares de indígenas que utilizavam de forma sustentável a natureza e que sepultavam e cultuavam seus mortos em cemitérios onde foram, mais tarde, erguidas praças e monumentos em homenagem aos colonizadores.

O povoado que deu origem a Manaus foi fundado no século XVII. Virou lugar, vila e, finalmente, cidade em 24 de outubro de 1848. Desconsiderar o que veio antes desse ato oficial é uma decisão precipitada que desconsidera múltiplas abordagens. Como toda urbe, é um tecido vivo que carrega em suas origens dúvidas, contradições e mitos.

Feliz Aniversário, Manaus.