quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Antigas fotopinturas de família: Análise Histórica e Social

Fotopintura da família Rodrigues Vieira, 1969. FONTE: Coleção pessoal.

O presente texto faz parte de um futuro artigo sobre objetos, costumes e crendices antigas de Manaus, temas estes inseridos nos campos da História Cultural, Micro-História e História Social.

Antigas fotopinturas de família

Em nossas vidas adquirimos dois tipos de objetos: aqueles de valor sentimental, insubstituíveis, que ganham com o passar do tempo nosso carinho, cuidado e respeito; e os meramente supérfluos, facilmente substituíveis dada suas curtas vidas úteis, adquiridos na maioria das vezes por impulsos consumistas, em uma tentativa de ganhar com eles um status passageiro ou se satisfazer pessoalmente. Violette Morin (1969), conforme citado por Bosi (2005, p. 3), define os primeiros como “objetos biográficos, pois envelhecem com o possuidor e se incorporam à sua vida”. Uma moeda antiga, um desenho, as primeiras roupas dos filhos etc, quando guardados, nos dão a sensação de continuidade, de fazer parte de algo.

A posição, o local onde é posto um objeto na casa, revela as relações que os moradores têm com este. O quadro dos genitores, geralmente postos em destaque na sala de estar, representa a importância destes como os idealizadores e mantenedores de uma família, bem como o respeito em vida e depois dela. As imagens de santos e santas principais, N. S. de Aparecida, Sagrada Família, podem ficar em um pequeno altar, na sala ou na entrada da casa, enquanto aqueles menores, de culto particular, casamenteiros, protetores de lar e de empregos, ficam guardados no quarto, numa relação íntima com a pessoa que necessita de tal intercessão.

A técnica da fotopintura, de famílias inteiras, marido e mulher, de casamento, batizados etc, se faz presente no Brasil desde a segunda metade do século XIX, quando aqui chegou quase duas décadas após a invenção de Daguerre, sendo uma técnica que ainda resiste no Sul e no Nordeste. O inventor desse processo é o fotógrafo francês André Adolphe Eugène Disdéri (1819-1889), que em 1863 começou a produzir fotos em baixo contraste e usar tintas para dar cores às imagens. Esses registros em baixo contraste passaram a servir de esboço para os retratistas, que deixaram de fazer um desenho a lápis dos retratados, diminuindo o tempo de trabalho. Apesar de ser um processo bastante antigo, parece ter começado a se popularizar no país apenas no século XX, entre as décadas de 1940 e 1980. Esse sucesso se explica pelo fato de que, primeiramente, as fotos se tornaram mais realistas ao ganhar cores, deixando o preto e o branco de lado; segundo, os registros familiares, antes executados por pintores de renome e com alto custo, adquiridos apenas por famílias de posse, passaram a fazer parte das classes mais baixas, que pagavam esses trabalhos em suaves prestações.

Na região Nordeste a fotopintura se desenvolveu nos campos econômico e religioso: Nas praças, feiras, circos e romarias, existiam os fotógrafos fixos, com barracas ou lonas devidamente montadas e decoradas, que utilizavam a câmera “lambe-lambe”, em madeira e apoiada em um tripé; e os fotógrafos ambulantes, que passavam de casa em casa oferecendo o serviço, que podia ser feito a partir de uma foto já existente escolhida pela família, ou de uma feita na hora. No Sul e Sudeste predominavam os grandes estúdios de artistas profissionais.

A análise de uma fotopintura de Manaus

Nas casas manauaras era comum ter os quadros dos pais, filhos, avós e bisavôs, pintados a óleo ou com tinta à base de água e com molduras em madeira ou gesso, com desenhos florais, simples e em tonalidades douradas, verdes e escuras, pendurados na sala de estar. As origens dessa prática em Manaus, bem como os primeiros artistas que se dedicavam a ela, ainda estão encobertas de incertezas. Antônio José Souto Loureiro¹ (76), historiador, nos informa ao ver uma fotopintura:

Lembro-me que eram feitas sob encomenda, no Ceará. Também para esmaltados de cemitério (…) Eram feitas mais pelas famílias de bairros. Os desse tipo são mais recentes, mas existem os mais antigos, geralmente individuais, a guache, feitos por artistas de Manaus. Acho que essas informações sobre os pintores se perderam, a não ser que se achem referências no quadro. Nós tínhamos quadros pintados da família muito antigos. Da minha bisavó Liberalina Acioly de Menezes, que morreu aos 96 anos, em 1945, nascida na década de 1850, na Guaiúba, no Ceará, com um belo penteado e vestido negro do início do século.

As origens dos retratistas da capital, seus nomes e locais de trabalho continuam um mistério, pois é extremante raro encontrar um desses quadros assinados. Para a análise histórico-social foi escolhida uma fotopintura de 1969, que retrata duas gerações da família Rodrigues Vieira, natural de Boca do Acre (AM), à época residente no bairro São Lázaro em Manaus. Maria Hortência Rodrigues de Carvalho² (65), uma das personagens retratadas, nos diz o seguinte sobre o dia da contratação do serviço, o trabalho dos retratistas e a importância de ter o retrato:

(…) Eles vinham na casa e perguntavam se não queríamos fazer um quadro, aí a gente dava uma foto, eles faziam o quadro e tal dia vinham entregar. Foi minha mãe que contratou. Ela tinha 41 anos e o meu pai 47. Eu não estava em casa, estava na escola. Quando eu cheguei da escola ela me falou. Os retratistas falaram que iam diminuir a careca do meu pai (risos) e, como eu era muito nova, me fizeram com a aparência mais velha. Meu filho tinha 3 anos de idade, e era muito amado por meus pais. Eles que escolheram as roupas da pintura, suas cores e desenharam penteados para mim e minha mãe. Para mim é muito importante ter o quadro, pois sinto muitas saudades dos meus pais o vendo.

O depoimento de Maria revela algumas características da técnica e do trabalho do retratista. Ele era um trabalhador informal, que passava de casa em casa oferecendo seu serviço. Ao entregar a foto para ele, que poderia ser o único registro familiar existente, mostra-se uma relação de confiança entre o comprador e o vendedor. A pedido dos retratados, eram corrigidas imperfeições físicas como a calvície, cicatrizes, se dava uma aparência mais jovem ou mais velha; e também eram adicionados elementos que não existiam na foto, como roupas formais, joias e até paisagens. Os retratistas tinham certa autonomia ao escolher as roupas e fazer os penteados, possivelmente um padrão que levava em conta a moda da época.

A incorporação de objetos e roupas de valor revela um desejo de se projetar para as futuras gerações, em forma de registro, aparentando certa distinção social. A moldura trabalhada em tons dourados com desenhos de inspiração clássica, e a proteção da pintura por uma tela de vidro temperado, reforçam a ideia de distinção e enobrecimento de uma família de classe média de um subúrbio de Manaus. Para uma família, um grupo de posses, os objetos biográficos podem ter significados que vão além do campo sentimental, tornando-se objetos de status. Sobre esse significado, Bosi (2005, p. 8) faz algumas considerações sobre os usos destes objetos por parte de pessoas de classes mais altas:

A foto daquele mesmo parente poderia ter sido colocada com o espírito de quem faz uma exposição que interessa o olhar do outro – o olhar social. Por essa visada a foto sobre o móvel carece de uma aura afetiva própria e ganha outra aura, a do status, onde estão embutidos valores de distinção, superioridade, competição, na medida em que o morto foi uma pessoa importante, logo dotada de valor de troca.

Percebe-se que, para um burguês, ou, no contexto da análise da fotopintura, um grupo da classe média urbana do final dos anos 1960, o objeto biográfico não se fecha na esfera da afetividade, do sentimento de intimidade familiar, mas torna-se um mecanismo de reprodução de sua posição na sociedade. Mas essa era uma família simples e, para a entrevistada, a única filha do casal, o quadro tem um valor que pende apenas para o sentimento de saudade, pois é um dos poucos registros dos pais já falecidos. A ideia de reprodução de status pode ter se perdido com o tempo, ficando apenas o respeito e a memória dos que já partiram. A memória pode ser entendida, segundo Suzzari (1986, p. 27) como “uma representação do passado ou uma continuidade dele”, sendo que nós somos seletivos com ela, escolhendo o que deve ser esquecido e o que deve ser lembrado, partindo sempre de nossas necessidades do presente.

O Retrato e os retratados

Os retratados na fotopintura de 1969 são: Do lado direito, Zacarias Rodrigues Vieira (1922-1995); no centro, Leomar Rodrigues (n. 1966); do lado esquerdo, Maria Raimunda Rodrigues Vieira (1928-2008); e no topo, Maria Hortência Rodrigues Vieira (n. 1951). O retrato tem formato oval, para caber todas as figuras, com a moldura, já desgastada com o tempo, em cor dourada e feita em gesso, com desenhos florais e detalhes de inspiração clássica. As figuras dominantes são Zacarias e Maria Raimunda, pai e mãe de Maria Hortência e avós de Leomar.

A frontalidade das personagens, que parece ser recorrente em todos os quadros, passa a sensação de respeito e imponência. Todos estão sérios. Era comum, no passado, tornar especial o ato de tirar fotos. A família não poderia desperdiçar essa oportunidade, um ato simbólico de registrar um momento, com inúmeras tentativas. Na fotopintura o artista mantinha os semblantes de seus clientes dessa forma. Quanto às figuras femininas, os pintores lhes representavam com penteados elegantes e roupas simples em tonalidades claras, dando-lhes um ar de recato, exigência de épocas passadas. Maria, que teve um filho aos 15 anos, foi retratada com uma aparência mais velha, o que, apenas em nível de especulação, pode ter sido feito para caracterizá-la como uma mãe experiente, zelosa pelo filho. Zacarias e Leomar usam terno e gravata, padrão para os homens. O pintor escolheu como cor de fundo o verde-claro, cor leve.

A fotografia original que foi entregue para o pintor reproduzi-la em cores já não existe mais. A pintura é apenas uma vaga representação do que ela foi um dia. O filho de Maria, pintando do lado dos avós, reforça o depoimento desta, que disse que ele era bastante amado pelos dois. Esses retratos de época também revelam a composição étnica de determinada época: Zacarias tinha origem portuguesa, Maria Raimunda descendia de indígenas e cearenses. Maria e Leomar herdaram os traços de uma típica família cabocla. Futuras pesquisas elucidarão as origens dos pintores, de seus locais de trabalho e a influência que exerceram na cidade.

1 Entrevista concedida a Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa em 12/12/2016.
2 Entrevista concedida a Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa em 14/12/2016

BIBLIOGRAFIA:

BOSI, Ecléa. Tempos Vivos e Tempos Mortos. São Paulo: SEDUC - SP, 2005.
SUZZARI, François. A Memória. Lisboa: Verbo, 2006.

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