Fotopintura da família Rodrigues Vieira, 1969. FONTE: Coleção pessoal.
O presente texto faz parte de um futuro artigo sobre objetos, costumes e crendices antigas de Manaus, temas estes inseridos nos campos da História Cultural, Micro-História e História Social.
Antigas
fotopinturas de família
Em
nossas vidas adquirimos dois tipos de objetos: aqueles de valor
sentimental, insubstituíveis, que ganham com o passar do tempo nosso
carinho, cuidado e respeito; e os meramente supérfluos, facilmente
substituíveis dada suas curtas vidas úteis, adquiridos na maioria
das vezes por impulsos consumistas, em uma tentativa de ganhar com
eles um status passageiro ou se satisfazer pessoalmente. Violette
Morin (1969), conforme citado por Bosi (2005, p. 3), define os
primeiros como “objetos biográficos, pois envelhecem com o
possuidor e se incorporam à sua vida”. Uma moeda antiga, um
desenho, as primeiras roupas dos filhos etc, quando guardados, nos
dão a sensação de continuidade, de fazer parte de algo.
A
posição, o local onde é posto um objeto na casa, revela as
relações que os moradores têm com este. O quadro dos genitores,
geralmente postos em destaque na sala de estar, representa a
importância destes como os idealizadores e mantenedores de uma
família, bem como o respeito em vida e depois dela. As imagens de
santos e santas principais, N. S. de Aparecida, Sagrada Família,
podem ficar em um pequeno altar, na sala ou na entrada da casa,
enquanto aqueles menores, de culto particular, casamenteiros,
protetores de lar e de empregos, ficam guardados no quarto, numa
relação íntima com a pessoa que necessita de tal intercessão.
A
técnica
da
fotopintura, de famílias inteiras, marido e mulher, de casamento,
batizados etc, se
faz presente no
Brasil desde a segunda metade do século XIX, quando aqui chegou
quase
duas
décadas
após
a invenção de Daguerre, sendo uma técnica que ainda resiste no Sul
e no Nordeste. O inventor desse processo é o
fotógrafo francês André
Adolphe Eugène Disdéri (1819-1889),
que em 1863 começou a produzir fotos
em baixo contraste e usar tintas para dar cores às imagens. Esses
registros em baixo contraste passaram a servir de esboço para os
retratistas, que deixaram
de
fazer um desenho a
lápis
dos retratados, diminuindo o tempo de trabalho. Apesar
de ser um processo bastante antigo, parece ter começado a se
popularizar
no
país apenas
no século XX, entre as décadas de 1940 e 1980. Esse
sucesso se explica pelo fato de que, primeiramente, as fotos se
tornaram mais realistas ao ganhar cores, deixando o preto e o branco
de lado; segundo, os
registros
familiares,
antes executados
por pintores de renome e com
alto custo, adquiridos
apenas por famílias de posse, passaram
a fazer parte das classes mais baixas, que pagavam esses trabalhos em
suaves
prestações.
Na
região Nordeste a fotopintura se desenvolveu nos campos econômico e
religioso: Nas praças, feiras, circos e romarias, existiam os
fotógrafos fixos, com barracas ou lonas devidamente montadas e
decoradas, que utilizavam a câmera “lambe-lambe”, em
madeira e apoiada em um tripé;
e os fotógrafos ambulantes, que passavam de casa em casa oferecendo
o serviço, que podia ser feito a partir de uma foto já existente
escolhida
pela família,
ou de
uma feita
na hora. No
Sul e Sudeste predominavam os grandes estúdios de artistas
profissionais.
A
análise
de uma fotopintura de Manaus
Nas
casas manauaras era comum ter os quadros dos pais, filhos, avós e
bisavôs, pintados a óleo ou com tinta à base de água e com
molduras em madeira ou gesso, com desenhos florais, simples e em
tonalidades douradas, verdes e escuras, pendurados na sala de estar.
As origens dessa prática em Manaus, bem como os primeiros artistas
que se dedicavam a ela, ainda estão encobertas de incertezas.
Antônio José Souto Loureiro¹ (76), historiador, nos informa ao ver uma fotopintura:
Lembro-me
que eram feitas sob encomenda, no Ceará. Também para esmaltados de
cemitério (…) Eram feitas mais pelas famílias de bairros. Os
desse tipo são mais recentes, mas existem os mais antigos,
geralmente individuais, a guache, feitos por artistas de Manaus. Acho
que essas informações sobre os pintores se perderam, a não ser que
se achem referências no quadro. Nós tínhamos quadros pintados da
família muito antigos. Da minha bisavó Liberalina Acioly de
Menezes, que morreu aos 96 anos, em 1945, nascida na década de 1850,
na Guaiúba, no Ceará, com um belo penteado e vestido negro do
início do século.
As
origens dos retratistas da capital, seus nomes e locais de trabalho
continuam um mistério, pois é extremante raro encontrar um desses
quadros assinados. Para a análise histórico-social foi escolhida
uma fotopintura de 1969, que retrata duas gerações da família
Rodrigues Vieira, natural de Boca do Acre (AM), à época residente
no bairro São Lázaro em Manaus. Maria Hortência Rodrigues de
Carvalho² (65), uma das personagens retratadas, nos diz o seguinte sobre o dia
da contratação do serviço, o trabalho dos retratistas e a
importância de ter o retrato:
(…)
Eles vinham na casa e perguntavam se não queríamos fazer um quadro,
aí a gente dava uma foto, eles faziam o quadro e tal dia vinham
entregar. Foi minha mãe que contratou. Ela tinha 41 anos e o meu pai
47. Eu não estava em casa, estava na escola. Quando eu cheguei da
escola ela me falou. Os retratistas falaram que iam diminuir a careca
do meu pai (risos) e, como eu era muito nova, me fizeram com a
aparência mais velha. Meu filho tinha 3 anos de idade, e era muito
amado por meus pais. Eles que escolheram as roupas da pintura, suas
cores e desenharam penteados para mim e minha mãe. Para mim é muito
importante ter o quadro, pois sinto muitas saudades dos meus pais o
vendo.
O
depoimento de Maria revela algumas características da técnica e do
trabalho do retratista. Ele era um trabalhador informal, que passava
de casa em casa oferecendo seu serviço. Ao entregar a foto para ele,
que poderia ser o único registro familiar existente, mostra-se uma
relação de confiança entre o comprador e o vendedor. A pedido dos
retratados, eram corrigidas imperfeições físicas como a calvície,
cicatrizes, se dava uma aparência mais jovem ou mais velha; e também
eram adicionados elementos que não existiam na foto, como roupas
formais, joias e até paisagens. Os retratistas tinham certa
autonomia ao escolher as roupas e fazer os penteados, possivelmente
um padrão que levava em conta a moda da época.
A
incorporação de objetos e roupas de valor revela um desejo de se
projetar para as futuras gerações, em forma de registro,
aparentando certa distinção social. A moldura trabalhada em tons
dourados com desenhos de inspiração clássica, e a proteção da
pintura por uma tela de vidro temperado, reforçam a ideia de
distinção e enobrecimento de uma família de classe média de um
subúrbio de Manaus. Para uma família, um grupo de posses, os
objetos biográficos podem ter significados que vão além do campo
sentimental, tornando-se objetos de status. Sobre esse significado,
Bosi (2005, p. 8) faz algumas considerações sobre os usos destes
objetos por parte de pessoas de classes mais altas:
A
foto daquele mesmo parente poderia ter sido colocada com o espírito
de quem faz uma exposição que interessa o olhar do outro – o
olhar social. Por essa visada a foto sobre o móvel carece de uma
aura afetiva própria e ganha outra aura, a do status, onde estão
embutidos valores de distinção, superioridade, competição, na
medida em que o morto foi uma pessoa importante, logo dotada de valor
de troca.
Percebe-se
que, para um burguês, ou, no contexto da análise da fotopintura, um
grupo da classe média urbana do final dos anos 1960, o objeto
biográfico não se fecha na esfera da afetividade, do sentimento de
intimidade familiar, mas torna-se um mecanismo de reprodução de sua
posição na sociedade. Mas essa era uma família simples e, para a
entrevistada, a única filha do casal, o quadro tem um valor que
pende apenas para o sentimento de saudade, pois é um dos poucos
registros dos pais já falecidos. A ideia de reprodução de status
pode ter se perdido com o tempo, ficando apenas o respeito e a
memória dos que já partiram. A memória pode ser entendida, segundo
Suzzari (1986, p. 27) como “uma representação do passado ou uma
continuidade dele”, sendo que nós somos seletivos com ela,
escolhendo o que deve ser esquecido e o que deve ser lembrado,
partindo sempre de nossas necessidades do presente.
O
Retrato e os retratados
Os
retratados na fotopintura de 1969 são: Do lado direito, Zacarias
Rodrigues Vieira (1922-1995); no centro, Leomar Rodrigues (n. 1966);
do lado esquerdo, Maria Raimunda Rodrigues Vieira (1928-2008); e no
topo, Maria Hortência Rodrigues Vieira (n. 1951). O retrato tem
formato oval, para caber todas as figuras, com a moldura, já
desgastada com o tempo, em cor dourada e feita em gesso, com desenhos
florais e detalhes de inspiração clássica. As figuras dominantes
são Zacarias e Maria Raimunda, pai e mãe de Maria Hortência e avós
de Leomar.
A
frontalidade das personagens, que parece ser recorrente em todos os
quadros, passa a sensação de respeito e imponência. Todos estão
sérios. Era comum, no passado, tornar especial o ato de tirar fotos.
A família não poderia desperdiçar essa oportunidade, um ato
simbólico de registrar um momento, com inúmeras tentativas. Na
fotopintura o artista mantinha os semblantes de seus clientes dessa
forma. Quanto às figuras femininas, os pintores lhes representavam
com penteados elegantes e roupas simples em tonalidades claras,
dando-lhes um ar de recato, exigência de épocas passadas. Maria,
que teve um filho aos 15 anos, foi retratada com uma aparência mais
velha, o que, apenas em nível de especulação, pode ter sido feito
para caracterizá-la como uma mãe experiente, zelosa pelo filho.
Zacarias e Leomar usam terno e gravata, padrão para os homens. O
pintor escolheu como cor de fundo o verde-claro, cor leve.
A
fotografia original que foi entregue para o pintor reproduzi-la em
cores já não existe mais. A pintura é apenas uma vaga
representação do que ela foi um dia. O filho de Maria, pintando do
lado dos avós, reforça o depoimento desta, que disse que ele era
bastante amado pelos dois. Esses retratos de época também revelam a
composição étnica de determinada época: Zacarias tinha origem
portuguesa, Maria Raimunda descendia de indígenas e cearenses. Maria
e Leomar herdaram os traços de uma típica família cabocla.
Futuras pesquisas elucidarão as origens dos pintores, de seus locais
de trabalho e a influência que exerceram na cidade.
1 Entrevista concedida a Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa em 12/12/2016.
2 Entrevista concedida a Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa em 14/12/2016
BIBLIOGRAFIA:
BOSI, Ecléa. Tempos Vivos e Tempos Mortos. São Paulo: SEDUC - SP, 2005.
SUZZARI, François. A Memória. Lisboa: Verbo, 2006.
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