Old People, pintura de George Siaba. 2011.
Ele
já não estava mais lá, sentado e lendo o jornal, nem ela
descansando em sua rede. Ninguém mais sentiu o aroma que exalava de
seus frangos assados aos sábados e domingos, ou dos pastéis fritos
na hora nos dias de semana. A caminhada diária com vidros nas costas
já tinha cessado. Histórias facetas não foram mais inventadas,
contadas ou aumentadas. Primeiro foi a Dona Maria Raimunda, minha
bisavó, com sua bengala improvisada, depois o ‘Seu Amazonas’,
senhor de poucas palavras. O tempo, o tempo implacável, anos depois
passou para o seu Aristolino, o ‘Bilico’, vidraceiro; e para a
dona Néia, companheira do seu Amazonas. Meses depois era a vez do
‘Seu João’, meu pai e avô. Cinco personagens, cinco diferentes
trajetórias, algo em comum: Eram os antigos do bairro, do bairro São
Lázaro, na zona Sul de Manaus, aqueles que o viram surgir em meio ao
improviso gestado pela necessidade de moradia entre as décadas de
1950 e 1960.
As
construções também apresentam as marcas do tempo. A casa da D.
Maria Raimunda, já com cinco décadas de existência, está com
alguns azulejos rachados e, dessas fendas imperfeitas, crescem
plantas diversas; com as grades desgastadas, perdendo a cor azul, mas
continua com os jardins sempre floridos, com diferentes animais,
borboletas, joaninhas, pássaros de diferentes espécies e, vez ou
outra, uma iguana. Do lado esquerdo, desde a década de 1970,
continua de pé o antigo muro de concreto que demarcava o limite da
rua Nova, no bairro de São Lázaro. No pátio ainda brincam
crianças, suas bisnetas, as quais a maioria não conheceu. Na sala,
renovada, uma máquina de costura singer de 1960, hoje um objeto de
decoração. Lembro de suas palavras “mágicas” para afastar os
temporais: “levanta, levanta, levanta. Espalha, espalha”; ou da
vez que colocou, na testa da única bisneta que conheceu, um pedaço
de pano vermelho umedecido para que esta parasse de soluçar.
A
alguns passos da casa de D. Maria Raimunda moravam D. Néia e o Seu
Amazonas. Tenho gravado em minhas memórias o bom humor de Dona Néia,
marcado por sua risada contagiante. Era muito amiga de minha bisavó,
visitando-a inúmeras vezes para colocar os assuntos em dia. Quando
conheci o Seu Amazonas ele já estava debilitado pelo Mal de
Parkinson. Quase não falava, mas esboçava reações como risos
quando ouvia ou via algo engraçado. Foi colega de trabalho do marido
de dona Raimunda, Zacarias Rodrigues Vieira, na COMARA (Comissão de
Aeroportos da Região Amazônica).
Ainda
é estranho passar na Travessa Maria Andrade (antiga São Vicente) e
não dar bom dia ou boa tarde para o seu Aristolino Pereira, Bilico
para os mais conhecidos, amigo de longa data do meu avô, sempre
sentado ao lado de sua esposa em uma cadeira de embalo. Foi um dos
primeiros moradores do bairro, um dos guardiões da Paróquia de São
Lázaro, a qual sempre esteve de prontidão para ajudar quando
necessário, seja para fazer seus vitrais, para atuar como
catequista, coordenador do movimento do terço dos homens e ser
agente da Pastoral do Batismo. Ele se interessou por meu projeto de
escrever a História do bairro, marcamos um dia para eu
entrevistá-lo, mas esse dia nunca chegava por causa de imprevistos
acadêmicos. Quando tive a chance, já tinha chegado a hora desse
entusiasta da História do Barro Vermelho partir, sem deixar que eu o
visse uma última vez.
João
Augusto de Carvalho, meu pai e avô. Foi comerciante, capitão e
funcionário da Alfândega de Manaus. Terminou seus dias sem aceitar
a aposentadoria, sempre fazendo algo para se manter na ativa. Vendeu
por alguns anos pastéis e frangos assados na frente de casa, da
antiga casa da sogra Maria Raimunda, na rua Nova. Partiu em um 14 de
dezembro de 2016, deixando aquele final de ano marcado na família.
Conversas não foram muitas, mas as que existiram estão bem
guardadas, sobre as raízes familiares em Óbidos, no Pará, sobre os
bisavós Alberto de Carvalho e Zeneide Buenano que não conheci,
sobre os primeiros empregos e o dia em que chegou em Manaus.
Materialmente restam algumas fotos, uma rara de 1943 quando tinha
apenas um ano, com seus pais; ferramentas como um esquadro alemão do
final da década de 1960, uma balança manual inglesa da marca
Hughes, da mesma época, uma plaina de madeira; e uma pintura do dia
do casamento, em 1970. Ficaram marcados os momentos em que chegava em
casa trazendo pirarucus, tambaquis, tracajás, pacas, porcos do mato
e outros animais de sabor inigualável.
Ambos
viram o bairro nascer e crescer. Andaram por caminhos tortuosos, de
barro, mas puderam ver o asfalto e a energia chegar; viram e
utilizaram as carroças utilizadas no transporte de madeira e palha,
assim como os ônibus que mais tarde surgiram. Eles partiram sem
avisar. Atravessaram o Rio Negro deixando fragmentos de épocas
diversas em quem os pode escutar. Fui um dos atingidos por esses
estilhaços temporais, brevemente registrados nesse texto.
CRÉDITO DA IMAGEM:
Fine Art America
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