sexta-feira, 29 de março de 2024

Amazônia em textos: seca em Manaus faz reaparecer gravuras rupestres milenares (2023)

Gravuras rupestres. Foto: Valter Calheiros.

A seca de 2023 trouxe algumas surpresas. Com a vazante do Rio Negro, ficaram novamente visíveis petróglifos (representações gravadas em rochas) milenares do Sítio Arqueológico de Lajes, localizado no bairro Colônia Antônio Aleixo, zona Leste de Manaus. Estima-se que tenham entre 1 e 2 mil anos. No texto abaixo a jornalista Elaíze Farias fala sobre a redescoberta dessas marcas de outrora carregadas de simbolismos:

"As gravuras em forma de rostos humanos submersas nas paredes rochosas do sítio arqueológico e geológico das Lajes, à margem do rio Negro, em Manaus, voltaram a aparecer. Localizadas na região do Encontro das Águas, a última vez em que elas ficaram visíveis foi na seca de 2010. Nesta quinta-feira (12), a Amazônia Real visitou o pedral do sítio das Lajes, no bairro Colônia Antônio Aleixo, na zona leste, e visualizou algumas das “carinhas”. Uma delas, uma feição quadrada, estava a 80 centímetros e um metro do nível do rio. A seca de 2023 no Amazonas já é considerada a maior em mais de 100 anos, com o agravante das altas temperaturas, degradação ambiental e fumaça.

Especialistas ouvidos pela Amazônia Real estimam que os petróglifos, como também são chamadas por arqueólogos essas gravuras, têm entre 1.000 a 2.000 anos. O sítio das Lajes foi o primeiro de Manaus a ser registrado no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA) do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e é um dos mais degradados. Ele abrange uma área que inclui encostas de terra preta, fragmentos cerâmicos e urnas funerárias, além das gravuras. Grande parte, porém, desapareceu por ações humanas e obras sem salvaguarda suficiente.

Outro bloco rochoso destas gravuras ainda está debaixo d´água, mas deve aparecer nos próximos dias, caso o rio Negro continue baixando. Em 2010, as que estão localizadas mais abaixo foram avistadas em apenas um dia e logo depois, quando o rio começou a subir, voltaram a ficar submersas. Além das gravuras que reproduzem rostos humanos, também são encontrados, na parte de cima do pedral, imagens de animais e representações das águas, além de cortes nas rochas que mostram resultados de oficinas líticas – significando que as ferramentas para as gravuras eram confeccionadas ali mesmo.

Embora as gravuras do sítio das Lajes nunca tenham sido estudadas, a avaliação cronológica pode ser estimada com estudos comparativos feitos no sítio arqueológico Caretas, no rio Urubu, no município de Itacoatiara (a 175 quilômetros de Manaus), por semelhanças que existem em comum. A arqueóloga Marta Sara Cavallini estudou este sítio, que tem as mesmas características às do sítio das Lajes, documentando as centenas de figuras gravadas nas rochas e procurando entender a antiguidade dos vestígios.

No sítio Caretas a hipótese do nosso trabalho é que essas gravuras podem ter sido produzidas entre 1.000 e 2.000 anos atrás. As ‘caretas’ das Lajes não foram estudadas, então se trata de dizer que sendo que o estilo é semelhante poderiam fazer parte do mesmo código de comunicação”, disse à Amazônia Real.

O arqueólogo Filippo Stampanoni Bassi, que pesquisou o sítio Caretas junto com Marta, afirma que datar as gravuras rupestres é um desafio particularmente complexo, mas sabe-se que nessa época havia populações indígenas que moravam em grandes aldeias em frente ao Encontro das Águas.

Esses locais, hoje sítios arqueológicos com terra preta, grandes quantidades de fragmentos de cerâmica e gravuras rupestres, contam a história indígena antiga da região e precisam ser considerados com respeito por todos nós que moramos hoje em Manaus”, disse o arqueólogo.

Marta e Felippo afirmam que os petróglifos do afloramento rochoso Lajes apresentam fortes semelhanças estilísticas com outras figuras em formato de cabeça que se encontram gravadas ao longo de numerosos pedrais ribeirinhos da Amazônia central. Os dois dizem que outras características compartilhadas entre esses sítios de arte rupestre são o fato de serem visíveis somente nas épocas de seca dos rios e de normalmente localizarem-se próximos de antigos assentamentos indígenas pré-coloniais.

Diferente do sítio Caretas, as gravuras do sítio das Lajes estão em paredes extensas e debaixo da água, o que torna seus estudos complexos, mas ao mesmo tempo lhes dão uma mística enigmática. Não se pode afirmar nem mesmo como as gravuras foram feitas ou se foi em uma época de grande seca ou se o rio, há mais de mil anos, tinha um nível mais baixo do que atualmente.

Essas coisas só aparecem de vez em quando. Tem duas hipóteses. Ou elas foram feitas numa época de grande seca ou houve alguns episódios de seca no passado. Só que as secas atuais acontecem num contexto de mudança climática, acompanhada de impactos das ações humanas”, diz o arqueólogo Eduardo Goes Neves, relatando os processos de degradação florestal causados por ação humana na região.

Segundo Neves, o sítio das Lajes é um patrimônio “super importante”, mas mal estudado. Para agravar a situação, o sítio é impactado e ameaçado por empreendimentos, como é o caso do projeto Porto da Lajes.

Quando as gravuras apareceram em 2010, Neves lembra que ele e outros especialistas chegaram a estimar que elas tinham 4 mil anos ou mais. “A gente achava que era bem antigo. Que devia ter uma época que era mais seca na Amazônia. Só que a Marta Cavallini encontrou umas coisas parecidas no rio Urubu e conseguiu fazer umas datações e a idade era de pouco mais de mil anos ou dois”, conta".

FARIAS, Elaíze. Seca em Manaus faz reaparecer gravuras rupestres milenares. Amazônia Real, 13/10/2023, Adaptado.

segunda-feira, 25 de março de 2024

Amazônia em textos: Quatro gêneros de coisas que há neste rio (1641)

Cacaueiro, 1806. Desenho de Charles Landseer. Fonte: Brasiliana Iconográfica.

O padre jesuíta espanhol Cristóbal de Acuña (1597-1675) foi o cronista da viagem de Pedro Teixeira ao Rio Amazonas, tendo nos legado a obra Nuevo Descubrimento Del Gran Río de Las Amazonas. No trecho abaixo ele fala sobre quatro gêneros da região com potencialidade econômica: madeiras, cacau, tabaco e cana-de-açúcar:

"Há neste grande Rio das Amazonas quatro gêneros que, cultivados, serão sem dúvida suficientes para enriquecer não a um mas a muitos Reinos. O primeiro são as madeiras, que além de haver muitas de tanta curiosidade e estima como o melhor ébano, há tantas das comuns para embarcações, que se poderiam mandar para outras regiões, certos sempre de que, por muito que se tirem, nunca se poderão esgotar. O segundo gênero é o cacau, de que suas margens estão tão cheias que algumas vezes as madeiras que se cortavam para o alojamento de todo o exército eram quasi exclusivamente as das árvores que produzem este tão estimado fruto da Nova Espanha, e de todos os lugares onde sabem o que seja o chocolate. Esse fruto beneficiado é de tanto proveito, que a cada pé de árvore correspondem de renda todos os anos, fora todos os gastos, oito reais de prata ; e bem se vê com que pouco trabalho se cultivam estas árvores neste Rio, pois sem nenhum benefício da arte, só a natureza as enche de abundantes frutos.

O terceiro é o tabaco, que se encontra em grande quantidade e muito crescido entre os moradores ribeirinhos; e se se cultivasse com o cuidado que pede esta semente, seria cios melhores do mundo, porque na opinião dos entendidos, a terra e clima formam tudo o que se pode desejar para grandiosa colheita. As maiores, que a meu ver, se deveriam empreender neste Rio, são as de açúcar, que é o quarto gênero que, como. o mais nobre, mais proveitoso, mais seguro e de maiores rendimentos para a Coroa Real, e do qual há tempos tanto diminuiu o tráfico no Brasil, mais se deveria tomar a peito, e procurar desde logo instalar muitos engenhos, que em breve tempo restaurassem as perdas daquela costa. Para o que não seria mister nem muito tempo nem muito trabalho, nem, o que hoje se receia, muita costa; pois a terra para cana doce é a mais famosa que há em todo o Brasil, como podemos testemunhar, os que percorremos aquelas regiões: porque é toda: ela um massapê contínuo, que é o que os lavradores desta planta tanto estimam e com as inundações do Rio, que nunca duram senão poucos dias, ficam tão fertilizadas que antes seria para temer o demasiado viço.

E não será novidade naquela terra levar cana doce, pois por todo este dilatado Rio, desde as suas nascentes, sempre a fomos encontrando, que parece dava desde logo mostras do muito que depois se multiplicará, quando se queiram fazer engenhos para tratá-la. Estes serão de mui pequeno custo, por haver, como disse, as madeiras à mão e a água em abundância, e só se precise de cobre, o que com muita facilidade fornecerá nossa Espanha, certa do bom pagamento que por ele havia de receber.

Não só estes gêneros podia prometer este novo mundo descoberto, com que enriquecer a todo o Orbe, mas também outros muitos, que, embora em menor quantidade, não deixariam de auxiliar com o seu quinhão para o enriquecimento da Coroa Real, como são o algodão, que se colhe em abundância, o urucú, com que se obtém um vermelho perfeito, que os estrangeiros estimam grandemente; a canafístula, a salsaparrilha, os óleos que competem com os melhores bálsamos para curar feridas, as gomas e resinas perfumadas, a pita, de que se tira o mais estimado fio, e da qual há grande abundância , e outras muitas coisas que cada dia a necessidade e a ambição virão trazendo à luz".

ACUÑA, Cristóbal de. Descobrimentos do Rio das Amazonas. São Paulo: Companhia das Letras, 1941, 193-195.