sexta-feira, 12 de julho de 2024

O Dicionário Amazonense de Biografias e a consagração da elite amazonense


Em 1973 o Professor Agnello Bittencourt (1876-1975) publicou no Rio de Janeiro, pela Editora Conquista, o livro Dicionário Amazonense de Biografias: Vultos do Passado. Trata-se de um alentado trabalho de mais de 500 páginas contendo verbetes dos nomes, naturais da terra ou oriundos de outras paragens, que construíram o Amazonas. Mais que uma obra fundamental aos estudiosos de temáticas amazônicas, ele pode ser entendido como um instrumento de consagração da elite amazonense (DAOU, 2014; DANTAS, 2024).

Essa constatação vêm de longa data. As primeiras impressões surgiram simultaneamente à publicação. Genesino Braga, historiador dos mais renomados, publicou no Jornal do Commercio uma resenha com o sugestivo título Os varões assinalados. Os 270 verbetes privilegiaram os homens cujos nomes, por si só, em nossa sociedade, eram importantes elementos de distinção social, capazes de garantir importantes vantagens:

"Nelas se ostentam, como numa galeria de nossos varões insignes, quantos, aqui nascidos ou não, finados aqui ou alhures, deram a sua gota de suor, a sua gota de sangue, ou a sua gota de lágrima, para que esta terra alcançasse o fastígio de civilização dos dias de hoje e para que este povo se robustecesse na consciência de sua própria madureza social e política e de seu potencial de riqueza" (BRAGA, 1973, p. 03).

Não muito diferente, o escritor Moacyr Rosas definiu o Dicionário como o "[...] verdadeiro PANTEON amazonense" (CID, 1973, p. 11). Um panteão de homens responsáveis pelo progresso do Estado e que deveriam ser conhecidos e cultuados pela sociedade. Estirpes como as de Lobo d'Almada, Tenreiro Aranha, Manoel de Miranda Leão, Barão de Manaus, Jorge de Moraes, Comendador J. G. de Araújo, Heliodoro Balbi e Álvaro Maia.

Como se formou a elite amazonense? O Amazonas não possuía nobreza da terra com raízes na colonização da região no século XVII. O grupo dominante, formado por comerciantes portugueses e brasileiros, profissionais liberais e funcionários públicos, começou a ser organizar e ganhar destaque apenas a partir da segunda metade do século XIX com a instalação da Província do Amazonas e sua máquina burocrática. Na passagem do século XIX para o XX, com o advento da economia gomífera, a elite se modificou. Surgiram seringalistas, aviadores, grandes comerciantes, grandes burocratas, políticos, médicos, farmacêuticos, engenheiros, advogados, juízes e desembargadores, brasileiros e estrangeiros, formados no país ou no exterior.

A elite que recebeu o Dicionário nem de longe lembrava seus antepassados. Uma parte migrara para o Sudeste com a crise da borracha nos anos 1920. Não consigo não associar sua publicação e ampla aceitação às mudanças que estavam ocorrendo no seio desse grupo seleto que desde priscas eras comandava os rumos políticos, econômicos e culturais do Estado. A tradicional elite amazonense, dado o impacto da Zona Franca, estava perdendo sua influência e seus locais de referência. Novos agentes econômicos surgiram, impondo suas lógicas de produção (SOUZA, 1978). Ela Precisava, dessa forma, de uma âncora para se agarrar à sua referência mais cara: os nomes carregados de glórias do passado. O autor deixa isso claro na introdução:

"Se uma civilização é resultante dos homens, aí estão alinhados os nomes e os feitos de vários estadistas, professores, jornalistas, sacerdotes e tantos expoentes das mais variadas profissões que no Amazonas ajudaram a fazer uma capital moderna em plena selva e se distinguiram em cargos políticos ou administrativos, ou em colunas da imprensa, ou no púlpito, ou na cátedra - todos esses instrumentos e sinais da civilização" (BITTENCOURT, 1973, p. 15).

Ainda na introdução, Agnello afirma que buscou "[...] adotar uma atitude de isenção e imparcialidade, despido das emoções que a perspectiva do tempo diluiu e deve ter apagado" (BITTENCOURT, 1973, p. 14). Apesar da tentativa, na leitura das biografias apreendemos diferentes aspectos da sociabilidade da elite amazonense, elite essa da qual o autor fazia parte e conviveu pessoalmente por mais de seis décadas até sua mudança para o Rio de Janeiro: influências, alianças, disputas, tensões, ataques e mágoas.

Escrito por alguém que conviveu pessoalmente com boa parte dos biografados, o Dicionário de Agnello Bittencourt "transcreve o julgamento social de uma época" (CHARLE Apud DAOU, 2014, p. 33). E não existia ninguém melhor para realizar esse julgamento, pois Bittencourt, à época decano dos intelectuais amazonenses, reunia as qualidades de "autoridade" e "intelectual ideal", como bem definiu o historiador Hélio Dantas (DANTAS, 2024). Dessa forma, ele seria "[...] uma manifestação da própria elite em questão" (DAOU, 2014, p. 55).

Atualmente, quem melhor analisou o impacto do Dicionário foi a antropóloga Ana Maria Daou, autora de um importante estudo sobre a formação e transformação da elite amazonense na virada do século XIX para o XX. Ao entrevistar membros e descendentes da elite amazonense que viviam no Rio de Janeiro, alguns recomendaram a leitura do livro e demonstraram concordância com seu conteúdo "no sentido da autoconsagração ou de seu oposto, quando da exclusão de um familiar não contemplado nos verbetes" (DAOU, 2014, p. 35). 

Dicionários biográficos dessa natureza são de extrema importância para a realização de estudos históricos, antropológicos e sociológicos, pois, de acordo com a historiadora Alzira Alves de Abreu, eles possibilitam "[...] identificar a composição social das elites políticas, intelectuais, operárias, empresariais, militares, jornalísticas e outras, e o grau de participação dessas elites na esfera pública do poder" (ABREU, 1998, p. 03)

O Dicionário Amazonense de Biografias não foi publicado apenas para preencher uma lacuna em nossa historiografia, como menciona Agnello Bittencourt (BITTENCOURT, 1973, p. 13), mas também, e principalmente, para legitimar e consagrar a elite amazonense, responsável por "desenvolver" e "civilizar" uma sociedade tão diversa e peculiar como a do Amazonas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Alzira Alves de. Dicionário biográfico: a organização de um saber. XXII Encontro Anual da ANPOCS, 1998.

BRAGA, Genesino. Os varões assinalados. Jornal do Commercio, 29/09/1973.

BITTENCOURT, Agnello. Dicionário Amazonense de Biografias: Vultos do Passado. Rio de Janeiro: Conquista, 1973.

CID, Pablo. Palavras... Jornal do Commercio, 09/09/1973.

DAOU, Ana Maria. A Cidade, o Teatro e o "Paiz das Seringueiras": práticas e representações da sociedade amazonense na passagem do século XIX-XX. Rio de Janeiro: Rio Book's, 2014.

DANTAS, Hélio da Silva. O adeus ao "mestre Agnello": Análise da consagração de um intelectual amazonense (parte I). Blog do Francisco Gomes, 07/07/2024.

SOUZA, Márcio. A Expressão Amazonense. Do colonialismo ao neocolonialismo. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1978.

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