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sexta-feira, 12 de julho de 2024

O Dicionário Amazonense de Biografias e a consagração da elite amazonense


Em 1973 o Professor Agnello Bittencourt (1876-1975) publicou no Rio de Janeiro, pela Editora Conquista, o livro Dicionário Amazonense de Biografias: Vultos do Passado. Trata-se de um alentado trabalho de mais de 500 páginas contendo verbetes dos nomes, naturais da terra ou oriundos de outras paragens, que construíram o Amazonas. Mais que uma obra fundamental aos estudiosos de temáticas amazônicas, ele pode ser entendido como um instrumento de consagração da elite amazonense (DAOU, 2014; DANTAS, 2024).

Essa constatação vêm de longa data. As primeiras impressões surgiram simultaneamente à publicação. Genesino Braga, historiador dos mais renomados, publicou no Jornal do Commercio uma resenha com o sugestivo título Os varões assinalados. Os 270 verbetes privilegiaram os homens cujos nomes, por si só, em nossa sociedade, eram importantes elementos de distinção social, capazes de garantir importantes vantagens:

"Nelas se ostentam, como numa galeria de nossos varões insignes, quantos, aqui nascidos ou não, finados aqui ou alhures, deram a sua gota de suor, a sua gota de sangue, ou a sua gota de lágrima, para que esta terra alcançasse o fastígio de civilização dos dias de hoje e para que este povo se robustecesse na consciência de sua própria madureza social e política e de seu potencial de riqueza" (BRAGA, 1973, p. 03).

Não muito diferente, o escritor Moacyr Rosas definiu o Dicionário como o "[...] verdadeiro PANTEON amazonense" (CID, 1973, p. 11). Um panteão de homens responsáveis pelo progresso do Estado e que deveriam ser conhecidos e cultuados pela sociedade. Estirpes como as de Lobo d'Almada, Tenreiro Aranha, Manoel de Miranda Leão, Barão de Manaus, Jorge de Moraes, Comendador J. G. de Araújo, Heliodoro Balbi e Álvaro Maia.

Como se formou a elite amazonense? O Amazonas não possuía nobreza da terra com raízes na colonização da região no século XVII. O grupo dominante, formado por comerciantes portugueses e brasileiros, profissionais liberais e funcionários públicos, começou a ser organizar e ganhar destaque apenas a partir da segunda metade do século XIX com a instalação da Província do Amazonas e sua máquina burocrática. Na passagem do século XIX para o XX, com o advento da economia gomífera, a elite se modificou. Surgiram seringalistas, aviadores, grandes comerciantes, grandes burocratas, políticos, médicos, farmacêuticos, engenheiros, advogados, juízes e desembargadores, brasileiros e estrangeiros, formados no país ou no exterior.

A elite que recebeu o Dicionário nem de longe lembrava seus antepassados. Uma parte migrara para o Sudeste com a crise da borracha nos anos 1920. Não consigo não associar sua publicação e ampla aceitação às mudanças que estavam ocorrendo no seio desse grupo seleto que desde priscas eras comandava os rumos políticos, econômicos e culturais do Estado. A tradicional elite amazonense, dado o impacto da Zona Franca, estava perdendo sua influência e seus locais de referência. Novos agentes econômicos surgiram, impondo suas lógicas de produção (SOUZA, 1978). Ela Precisava, dessa forma, de uma âncora para se agarrar à sua referência mais cara: os nomes carregados de glórias do passado. O autor deixa isso claro na introdução:

"Se uma civilização é resultante dos homens, aí estão alinhados os nomes e os feitos de vários estadistas, professores, jornalistas, sacerdotes e tantos expoentes das mais variadas profissões que no Amazonas ajudaram a fazer uma capital moderna em plena selva e se distinguiram em cargos políticos ou administrativos, ou em colunas da imprensa, ou no púlpito, ou na cátedra - todos esses instrumentos e sinais da civilização" (BITTENCOURT, 1973, p. 15).

Ainda na introdução, Agnello afirma que buscou "[...] adotar uma atitude de isenção e imparcialidade, despido das emoções que a perspectiva do tempo diluiu e deve ter apagado" (BITTENCOURT, 1973, p. 14). Apesar da tentativa, na leitura das biografias apreendemos diferentes aspectos da sociabilidade da elite amazonense, elite essa da qual o autor fazia parte e conviveu pessoalmente por mais de seis décadas até sua mudança para o Rio de Janeiro: influências, alianças, disputas, tensões, ataques e mágoas.

Escrito por alguém que conviveu pessoalmente com boa parte dos biografados, o Dicionário de Agnello Bittencourt "transcreve o julgamento social de uma época" (CHARLE Apud DAOU, 2014, p. 33). E não existia ninguém melhor para realizar esse julgamento, pois Bittencourt, à época decano dos intelectuais amazonenses, reunia as qualidades de "autoridade" e "intelectual ideal", como bem definiu o historiador Hélio Dantas (DANTAS, 2024). Dessa forma, ele seria "[...] uma manifestação da própria elite em questão" (DAOU, 2014, p. 55).

Atualmente, quem melhor analisou o impacto do Dicionário foi a antropóloga Ana Maria Daou, autora de um importante estudo sobre a formação e transformação da elite amazonense na virada do século XIX para o XX. Ao entrevistar membros e descendentes da elite amazonense que viviam no Rio de Janeiro, alguns recomendaram a leitura do livro e demonstraram concordância com seu conteúdo "no sentido da autoconsagração ou de seu oposto, quando da exclusão de um familiar não contemplado nos verbetes" (DAOU, 2014, p. 35). 

Dicionários biográficos dessa natureza são de extrema importância para a realização de estudos históricos, antropológicos e sociológicos, pois, de acordo com a historiadora Alzira Alves de Abreu, eles possibilitam "[...] identificar a composição social das elites políticas, intelectuais, operárias, empresariais, militares, jornalísticas e outras, e o grau de participação dessas elites na esfera pública do poder" (ABREU, 1998, p. 03)

O Dicionário Amazonense de Biografias não foi publicado apenas para preencher uma lacuna em nossa historiografia, como menciona Agnello Bittencourt (BITTENCOURT, 1973, p. 13), mas também, e principalmente, para legitimar e consagrar a elite amazonense, responsável por "desenvolver" e "civilizar" uma sociedade tão diversa e peculiar como a do Amazonas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Alzira Alves de. Dicionário biográfico: a organização de um saber. XXII Encontro Anual da ANPOCS, 1998.

BRAGA, Genesino. Os varões assinalados. Jornal do Commercio, 29/09/1973.

BITTENCOURT, Agnello. Dicionário Amazonense de Biografias: Vultos do Passado. Rio de Janeiro: Conquista, 1973.

CID, Pablo. Palavras... Jornal do Commercio, 09/09/1973.

DAOU, Ana Maria. A Cidade, o Teatro e o "Paiz das Seringueiras": práticas e representações da sociedade amazonense na passagem do século XIX-XX. Rio de Janeiro: Rio Book's, 2014.

DANTAS, Hélio da Silva. O adeus ao "mestre Agnello": Análise da consagração de um intelectual amazonense (parte I). Blog do Francisco Gomes, 07/07/2024.

SOUZA, Márcio. A Expressão Amazonense. Do colonialismo ao neocolonialismo. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1978.

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Políbio de Megalópolis: Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Políbio de Megalópolis (200 a. C. - 118 a. C.). Estátua localizada no Parlamento de Viena, na Áustria.

Políbio de Megalópolis (200 a. C. - 118 a. C.) foi um historiador grego nascido na cidade de Megalópolis, na região da Arcádia. O período em que viveu, de derrocada do mundo helenístico e hegemonia do Império Romano, influenciou grandemente sua produção historiográfica, representada pela obra Histórias, formada por 40 volumes (cobre o período que vai de 220 a. C até 167 a. C.) e cuja análise central recai sobre diferentes aspectos da dominação romana e suas instituições políticas.

Feito prisioneiro pelos romanos, conheceu diretamente suas instituições políticas e como estas funcionavam. O principal elemento do pensamento histórico desse historiador grego diz respeito à história pragmática. A produção de uma narrativa histórica deveria ter uma utilidade, e para Políbio a utilidade da história seria a de que esta possibilitaria a compreensão do tempo presente das sociedades auxiliando nas formas de agir sobre estas. Por formas de agir, entende-se a prática política. Políbio trazia algumas concepções anteriormente vistas em historiadores como Heródoto e Tucídides, da história com um sentido pedagógico para as futuras gerações, mas inovava em certos aspectos:

"[...] Resolvi escrever uma História do gênero pragmático, primeiro porque há sempre uma novidade digna de tratamento novo - não seria possível aos antigos narrar eventos posteriores à sua própria época - e, em segundo lugar por ser considerável a utilidade prática de tal gênero de História, tanto no passado quanto - e principalmente - no presente, numa época em que o progresso das artes e das ciências tem sido tão rápido que as pessoas desejosas de aprender são capazes - digamos assim - de submeter a uma análise metódica quaisquer circunstâncias passíveis de exame. Sendo então o meu objetivo não tanto entreter os leitores quanto beneficiar os espíritos afeitos à reflexão [...], me dediquei a escrever este gênero de História" (POLÍBIO, Histórias, 9, 2).

Nessa passagem, fica claro que a história pragmática, para Políbio, era um gênero à parte de outras formas de trabalho histórico. O historiador grego não pretende entreter seus leitores. Isso está relacionado à prática de antigos historiadores que escreviam genealogias de famílias nobres e realizavam estudos sobre a origem de cidades, gêneros que, para Políbio, estavam voltados mais para o entretenimento do que para a reflexão. Tendo experiência em assuntos militares, interessava-se pela descrição das campanhas, aderindo ao militarismo cívico em oposição ao militarismo tirânico. Políbio realizou um trabalho metódico, pautado no exame crítico das fontes, no conhecimento dos lugares que cita em seu trabalho (o que evidencia a relação entre história e geografia) e na experiência com a política (em sua terra natal, foi eleito hiparco, comandante da cavalaria).

Também relaciona-se à sua história pragmática a ideia de que a história do mundo até então habitado e conhecido, o ecoumene, estava conectada a partir da Segunda Guerra Púnica:

"Até essa época os eventos mundiais tinham sido por assim dizer dispersos, pois não eram interligados por uma unidade de iniciativa, de resultados ou de localização; desde essa época, porém, a História passou a ser um todo orgânico, e os eventos na Itália e na Líbia interligaram-se com os da Hélade e da Ásia, todos convergindo para um único fim. Por isso a nossa História pragmática inicia-se nessa época" (POLÍBIO, Histórias, 1, 3).

As ações humanas, para o historiador, possuem início, causa e pretexto. Os dois últimos elementos de causalidade (causa e pretexto), seriam o fio condutor do primeiro (início). Sobre a Fortuna ou a intervenção divina, Políbio tem uma concepção interessante: Só se devem atribuir as causas aos desígnios divinos quando estas não podem ser explicadas dadas suas complexidades. Caso sejam naturalmente compreensíveis e alcançáveis pela razão, devem ser entendidas como eventos decorrentes da ação humana.

Sobre a concepção de história de Políbio, cujo cerne é a política, diz o professor de História Antiga da Unb, Henrique Modanez de Sant' Anna:

"Há, no tempo do nosso autor, uma versão estoica acerca da sucessão cíclica das formas de governo, a qual Políbio incorpora numa sequência curiosa de mudanças políticas vistas na história: da monarquia, a primeira forma de organização conhecida (para Políbio, ao menos), passando pelas revoluções e etapas intermediárias do processo (tirania, aristocracia, oligarquia e democracia), à democracia anárquica ou eclocracia, que conduz toda a sociedade novamente ao ponto de sua teoria cíclica, vale dizer, ad infinitum"(SANT' ANNA, 2012, p. 147).

João Emiliano Fortaleza de Aquino, professor de filosofia da Uece, em contrapartida, afirma que deve-se distinguir a noção de história cíclica das instituições políticas da concepção da prática historiográfica de Políbio, o que seria contraditório, tendo em vista ser ela uma "história pragmática, contemporânea e útil" (AQUINO, 2006, p. 66).

Para Políbio, o sucesso de Roma na dominação de vastas áreas do mundo conhecido explicava-se pela característica de sua constituição política, mista, constituída por monarquia (cônsules), aristocracia (senadores) e democracia (povo), o que evitaria que o sistema político se degenerasse em apenas uma forma de governo, com a união dos melhores elementos dessas formas de governar.

Políbio escreveu em dialeto ático, em prosa, sem recorrer a elementos estilísticos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AQUINO, João Emiliano Fortaleza. Memória e consciência histórica. Fortaleza: Editora Uece, 2006.

SANT' ANNA, Henrique Modanez. Políbio e os princípios de sua investigação histórica: algumas considerações. UFF: Revista Mundo Antigo, ano I, V. 01, N. 02 - dezembro de 2012.


CRÉDITO DA IMAGEM:

http://mototurismo.alidays.it

terça-feira, 24 de abril de 2018

Críticas ao conceito de ciclo econômico: Os estudos de João Pacheco de Oliveira

Mucambos de Santo Amaro (Pernambuco).

O nascimento do Brasil e outros ensaios: "pacificação", regime tutelar e formação de alteridades (2016), de João Pacheco de Oliveira, é uma espécie de relançamento de seu texto clássico O caboclo e o brabo (1979), célebre na explicação dos processos históricos da Amazônia a partir de uma visão não economicista e cíclica, fazendo uma crítica a essa abordagem, crítica essa que continua ecoando na atualidade.

Cristalizou-se, a partir dos estudos de autores tanto locais quanto de outras regiões, e de diferentes áreas das ciências humanas, o conceito de 'ciclo econômico' como base das análises referentes à História da Amazônia. Em 1979 e, mais recentemente, em 2016, guardadas as diferenças temporais, João Pacheco frisa a necessidade de que seja superada essa visão determinista da História.

De acordo com João Pacheco de Oliveira, a noção de ciclo econômico já está a um bom tempo ultrapassada, ainda que permaneça seu uso. O ciclo é generalizante, sintetizador, fechado em si mesmo. Estudar a região a partir desse modelo fechado faz com que não se dê conta de uma gama de relações sociais, de trabalho, de outros modos de produção que não o gomífero, mas paralelos e de certa forma a ele relacionados, pois além do produto rei, no topo da pauta de exportação, existem outros que demandam diferentes trabalhadores e formas de trabalho.

Como consequência, esse modelo obscurece tipos sociais, mascara conflitos e realidades distintas, servindo satisfatoriamente como forma de explicação para os que formam o topo das relações de poder econômicas. Pode-se pensar, teoricamente, na divisão feita pelo economista e cientista político liberal austríaco Joseph Schumpeter, segundo a qual o ciclo econômico está dividido da seguinte forma: boom, recessão, depressão e recuperação. Ou ainda no marxismo estruturalista, dogmático, aquele criticado por Edward Palmer Tompson, no qual seus teóricos dão mais atenção ao economicismo e não aos fatores humanos, culturais, como propulsores da luta de classes.

Com influências tanto do liberalismo quanto do marxismo economicista, o modelo cíclico não dá conta da complexidade, da heterogeneidade, das relações, dos modos de produção e da configuração histórico-social da região.

Formuladas e apresentadas as críticas, o autor sugere os estudos a partir do conceito de 'fronteira', aqui entendido não do ponto de vista geográfico, material, mas como uma categoria, um ponto de análise abstrato, representado pelas relações sociais, pelos conflitos, pela formação identitária.

O seringal, tomado como exemplo, entre o final do século XIX e o início do século XX, é o local da fronteira amazônica, palco de conflitos, de punição, de resistência, de articulação de diferentes modos de produção. Outro exemplo são os mucambos, onde a fronteira é marcada pela unicidade e pela heterogeneidade. Nesses agrupamentos existem tipos sociais marginalizados diversos, como escravos fugidos, ex-escravos, indígenas e brancos pobres. Essa é a heterogeneidade. No entanto, esses tipos sociais se unificam, tornam-se homogêneos, quando precisam resistir às agressões de particulares ou do Estado. No seringal e nos mocambos está representada a fronteira de relações sociais.

O estudo da região amazônica a partir da (s) fronteira (s) abarca um número variado de tipos sociais, de modos de produção interligados, de peculiaridades locais, mostrando-se mais abrangente que o modelo determinista e fechado de ciclo econômico.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

OLIVEIRA, João Pacheco. O 'caboclo' e o 'brabo': notas sobre duas modalidades de incorporação da força de trabalho na expansão da borracha no vale amazônico no século XIX. Encontros com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, v.11, p.101-140, 1979.

_____________________. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016.

CRÉDITO DA IMAGEM:

FREYRE, Gilberto. Mucambos do Nordeste: Algumas notas sobre o typo de casa popular mais primitivo do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, s. d.

segunda-feira, 26 de março de 2018

Amiano Marcelino: Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Escultura entalhada em madeira representando o historiador Amiano Marcelino (330 - 395/400 d. C.). Alfeld, Alemanha, século XVII.

Amiano Marcelino (330 - 395/400 d. C.) foi um militar e historiador nascido na cidade de Antioquia, atual Antáquia, na Turquia. Considerado um dos últimos grandes historiadores romanos (embora fosse grego de nascimento) e o último historiador pagão, escreveu em um período de profundas transformações do Império Romano, com destaque para a ascensão e oficialização do Cristianismo como religião de Estado através do Édito de Tessalônica, decretado pelo imperador Teodósio I em 380 d. C.

Tendo vivido nessa época, século IV, nos oferece, através de sua principal obra, Res Gestae (Os Feitos), que acredita-se ser uma tentativa de continuar a obra de Tácito, um panorama, ainda que de forma fragmentada (dos 31 livros que compunham a obra apenas 17 foram preservados), do processo de conturbação e decadência do Império. De acordo com Bruna Campos Gonçalves, "seu relato começa em 96 d. C. com o reinado do imperador Nerva (96 - 98 d. C.) e perpassa por todos os imperadores terminando sua narrativa com o governo de Valentiniano II (378 - 383 d. C.)" (GONÇALVES, 2008, p. 97). O grosso que sobreviveu de Os Feitos cobre os reinados de Constâncio II, Juliano, o Apóstata, e Valentiniano II.

O primeiro livro sobrevivente, de número 14, é dedicado, em um primeiro momento, às ações de César Galo, primo de Constâncio II. Galo foi um César extremamente cruel e violento, assim como seu primo, sobre quem recaem as atenções do historiador posteriormente. Além das descrições sobre Galo e Constâncio II, também é feita uma digressão sobre os costumes dos sarracenos. Roma, para Amiano, era uma cidade que atravessara todos os estágios da vida, passando do estado pueril para a maturidade, chegando à velhice com grande sabedoria. Os romanos do passado eram simples, desprendidos da ganância. A partir dessa imagem da cidade é apresentada uma outra, a da luxúria e ostentação de alguns habitantes, elementos já criticados por poetas e historiadores de tempos mais remotos. Alguns tem apelidos como "Barril", "Linguiça" e "Barriga de Porco". Esse é, de acordo com John Burrow, 

"o velho tema da luxúria contrastada com a virtude e a venerabilidade romanas antigas, mas apresentado aqui com vivacidade e riqueza de detalhes excepcionais, e uma forte sugestão de lembranças de desfeitas pessoais; é decerto particularmente penoso que, por ocasião de uma ameaça de escassez de alimentos, quando os estrangeiros foram expulsos da cidade, não tenha sido feita exceção aos professores de artes, mas sim a dançarinos e professores de dança" (BURROW, 2013, p. 190).

Ainda falando sobre Galo, Amiano utiliza metáforas animais para descrever esse César, que ora era como "uma cobra ferida por uma lança ou pedra" ou "um leão que experimentou o gosto da carne humana". São feitas algumas digressões sobre as Províncias do oriente. Por último, Galo teve um destino semelhante ao de muitos príncipes e imperadores predecessores: foi executado. Amiano invoca a justiça divina, Adrastia (Nêmesis), "que pune a maldade e recompensa as boas ações [...] Rainha das causas, árbitra e juíza de todas as coisas, ela controla a urna de onde se retira a sorte dos homens e regula suas vicissitudes de fortuna" (BURROW, 2013, p. 191). 

Boa parte dos elementos do pensamento histórico e prática historiográfica vistos no livro 14, segundo John Burrow, voltarão a aparecer nos fragmentos posteriores: 

"desconfiança e crueldade imperiais; digressões etnográficas e geográficas; veneração pelo passado de Roma e pela própria cidade, apesar das descrições satíricas da população; devoção aos deuses antigos; autoconsciência literária e alusão a exemplos históricos; excessos metafóricos na escrita e o acréscimo de imagens de bestas selvagens" (BURROW, 2013, p. 192).

Outro elemento marcante é a crença de Amiano em presságios e adivinhações, para ele conhecimentos inexatos e muitas vezes utilizados de forma indevida ou exagerada. Os deuses, a exemplo dos sinais dados por pássaros, controlavam esses animais para revelar aos homens diferentes tipos de acontecimentos. Na condição de militar, ficou ligado ao exército até 363 d. C., tendo sido testemunha ocular de inúmeras batalhas, acompanhando as campanhas dos imperadores no Oriente, na Gália e na Germânia. Nas campanhas de Juliano, observa e descreve as cenas dos campos de combate.

O interesse de Amiano pelo reinado de Juliano diz respeito a sua tentativa de reviver os cultos pagãos, abandonando o Cristianismo, tentativa essa que lhe reservou a alcunha de Juliano, o Apóstata. As ações de Juliano são violentas, com a proibição aos cristãos de ministrarem aulas, destruição de igrejas e inúmeros sacrifícios. Esses atos eram criticados por Amiano, pois seu paganismo era "[...] de um tipo mais contido e genial" (BURROW, 2013, p. 195). Amiano, ao contrário de outros historiadores como Tácito, que tinha uma visão depreciativa dos cristãos, demonstrava certa tolerância com os praticantes dessa religião.

Após a morte de Juliano, os governos seguintes são marcados por dois acontecimentos considerados críticos: a permissão da entrada de godos via Danúbio em territórios romanos (376) e a derrota e morte do imperador Valente na batalha de Adrianópolis (378). Roma era assediada, mas não estava em declínio. Era, antes disso, o centro do mundo, a Cidade Eterna. Amiano, grego, escreve em latim. Bruna Campos, citando o professor Ronald Mellor, apresenta duas prováveis causas para essa escolha:

"A óbvia razão literária era continuar a obra de Tácito, enquanto que a razão política era escrever, como chamou o retórico grego Temístio την διαλεκτον κρατουσαν (‘a língua dos nossos governantes’). Diferentemente do cortesão Temístio, Amiano não estava tentando alcançar os favores imperiais, mas estava profundamente comprometido com Roma e com sua herança politica. Seu orgulho de sua cidadania romana é evidente em toda sua obra". (MELLOR, 1999, p.126). 

Amiano Marcelino, considerado um  dos últimos grandes historiadores romanos (de origem grega) da Antiguidade Tardia e o último historiador pagão, escreveu sua obra em latim, obra essa cujos principais elementos são a desconfiança e crueldade imperiais; digressões etnográficas e geográficas; veneração pelo passado de Roma e pela própria cidade, apesar das descrições satíricas da população; devoção aos deuses antigos; autoconsciência literária e alusão a exemplos históricos; excessos metafóricos na escrita; o acréscimo de imagens de bestas selvagens; e a crença em presságios e adivinhações. Res Gestae é mais uma obra do último século de existência do Império Romano, que oferece, ainda que de forma incompleta, um panorama da desestruturação da unidade imperial.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BURROW, John. Uma História das Histórias. De Heródoto e Tucídides ao século XX. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, tradução de Nana Vaz de Castro, 2013.

GONÇALVES, B. C. . Amiano Marcelino e sua obra Res Gestae: tratamento documental e os livros XXV, XXVI e XXVII. In: XXIII Semana de Estudos Clássicos / V Encontro de Iniciação Científica em Estudos Clássicos Cultura Clássica: Inter-relações e permanência, 2008, Araraquara. Anais da XXIII Semana de Estudos Clássicos V Encontro de Iniciação Científica em Estudos Clássicos. Cultura Clássica: inter-relações e permanência, 2008. p. 95-102.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Falkensteinfoto/Alamy Stock Photo

domingo, 18 de março de 2018

Francesco Guicciardini: Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Francesco Guicciardini (1483-1540).

O historiador e estadista florentino Francesco Guicciardini (1483-1540), contemporâneo de Nicolau Maquiavel (1469-1527), dedicou-se aos escritos políticos, produzindo História da Itália, obra de publicação póstuma que versa sobre a história contemporânea e recente das cidades-Estado italianas. Na introdução, o autor deixa claro quais foram as suas motivações e o ponto de partida para escrevê-la:

Eu decidi escrever sobre os eventos que ocorreram na Itália dentro de nossa memória, desde as tropas francesas, convocadas por nossos próprios príncipes, começaram a suscitar aqui grandes dissensões: um assunto mais memorável, tendo em vista seu alcance e variedade, e cheio dos acontecimentos mais terríveis; já que, durante anos, a Itália sofreu todas aquelas calamidades com as quais os miseráveis mortais costumam ser afligidos, às vezes por causa da justa ira de Deus e às vezes por causa da impiedade e maldade de outros homens. A partir de um conhecimento de tais ocorrências, tão variadas e tão graves, todos podem tirar muitos precedentes saudáveis tanto para si quanto para o bem público (1984, p. 3).

O livro de Guicciardini, que cobre um período que vai de 1490 a 1534, surge em um contexto de ebulição política marcada por conflitos militares entre os principais Estados da Europa e as cidades-Estado italianas, gestados pelas disputas de soberanos franceses interessados em garantir seus direitos hereditários sobre o Reino de Nápoles e o Ducado de Milão. Essa é a essência do trabalho de Guicciardini: a política, a relação entre os Estados europeus. De acordo com John Burrow, “ele entendia que a política era formada por configurações e circunstâncias únicas, e a história era o instrumento ideal para avaliá-las” (2007, p. 322).

Ainda conforme Burrow, Guicciardini era comprometido com o esmiuçamento dos fatos históricos, buscando explicações múltiplas para os acontecimentos. “Ele raramente oferece um único motivo para uma ação se puder pensar e três os mais” (2007, p. 322). Analisando a Itália e seu bom aspecto político e social no final do século XV, o autor escreveu:

Muitos fatores a mantiveram nesse estado de felicidade, que foi a consequência de várias causas. Mas foi mais comum concordar que, entre estes, nenhum pequeno louvor deve ser atribuído à indústria e habilidade de Lorenzo de Medici, tão eminente entre as classes ordinárias de cidadãos na cidade de Florença, que os assuntos dessa República foram governados de acordo com seus conselhos (1984, p. 4).

Esse interesse pelos detalhes, pelo íntimo das causas, segundo John Burrow, tem duas consequências importantes. “A primeira, da qual ele tem total consciência, é a advertência contra o excesso de confiança de comentadores e, mais importante, de estadistas: arrogância é insensatez. A segunda, que permeia toda a sua obra, é o comprometimento com a explicação através da narrativa, contando a densa particularidade de cada momento histórico relevante” (2007, p. 328).

No contexto cultural e historiográfico desse período de transição do mundo medieval para o moderno, Guicciardini, embora menos conhecido que outros humanistas italianos, possui um lugar de destaque. Com sua História da Itália, rompe com a tradição do estudo localizado, da escrita individual sobre as diferentes cidades-Estado, abordando a Itália de uma forma geral, além de fazer digressões sobre as outras nações beligerantes. Vale lembrar que Guicciardini, entre 1508 e 1509, publicou História de Florença, obra de estudo local sobre sua terra natal, que vai de 1378, com a Revolta dos Ciompi, até 1509, com a Batalha de Agnadello, uma das maiores das Guerras Italianas.

O professor Maurício Parada, autor de Os historiadores clássicos da História, em um capítulo dedicado a Guicciardini, recupera alguns estudos historiográficos que servem de norte para compreender o pensamento histórico e a prática historiográfica desse historiador italiano. Eduard Fueter (1876-1928) afirma que Guicciardini não se interessava pela filosofia da história, prendendo-se à realidade, mas era extremamente preciso em suas análises empíricas, penetrando-as psicologicamente. Soma-se a isso a sua independência quase absoluta do juízo e o “egoísmo político”, que serve para apresentar as personagens como elas são, não de forma idealizada. Para Fueter História da Itália tem duas importantes inovações, a já citada abordagem geral (a Itália não é vista como uma unidade, mas um conjunto de diferentes povos que possuem certos elementos que garantem um certo grau de “união”) e o pessimismo político; e a pesquisa em arquivos públicos e familiares.

Felix Gilbert (1905-1991) segue a mesma trilha de Fueter, destacando o exame psicológico da história e a metodologia da pesquisa em arquivos públicos e familiares. Para ele essa é a última produção histórica escrita segundos os padrões clássicos e a primeira da historiografia moderna. Peter Bondanella (1943-2017) destaca a pesquisa documental feita por Guicciardini, chegando a afirmar que História da Itália foi precursora das histórias filosóficas de Voltaire, Gibbon, Montesquieu e Heggel. Para Mark Salber Phillips (1946) o diferencial de Guicciardini estaria na psicologia e no auto-interesse que guiavam os eventos de sua História. Eric Cochrane (1928-1985) considera que Guicciardini não era um anti-humanista, mas um herdeiro da escola historiográfica surgida no século XIV. A novidade de seu livro estaria na passagem da história das cidades para a história da nação, na conexão entre as narrativas das histórias das diferentes entidades políticas italianas.

Em síntese, ainda que com leves diferenças entre as análises de Fueter, Bondanella, Mark Salber e Eric Cochrane, Francesco Guicciardini realizou pesquisas empíricas em arquivos públicos e familiares, buscando nas fontes elementos das ações humanas que desencadearam os processos políticos da história recente das cidades-Estado italianas no período em que vivia. Guicciardini pode não ter rompido totalmente com a tradição humanista dos séculos XIII, XIV e XV, mas procurou inovar no que tange a abrangência temporal, ainda que em um intervalo curto de tempo se comparado, por exemplo, com a Nuova Crônica de Giovanni Villani, que vai da fundação da cidade de Florença até a segunda metade do século XIV.

O elemento que permeia a sua obra é a Fortuna (a boa ou má sorte). A Fortuna, para ele, é de grande importância na vida dos homens, no caso, dos políticos italianos e de outras nações, pois por mais que estes façam diferentes tipos de planos, projetos, são sempre atingidos por eventos favoráveis ou catastróficos que escapam de suas idealizações, restando a Fortuna, que lembra os homens de estes não podem controlar o destino. Como escreve em um período marcado por conflitos, também faz descrições das batalhas, das táticas de combate e dos materiais bélicos empregados; além de análises diplomáticas.

Em uma última análise, John Burrow afirma que a história de Guicciardini não foi uma imitação dos modelos humanistas. Ela, em parte, traz elementos que os lembram, como a produção de discursos para análises políticas, mas é original nas descrições das “complexas redes de relações diplomáticas”, e a “mudança de um centro de poder para outro é excepcionalmente rápida e por vezes, há de se admitir, confusa” (2007, p. 330). Os humanistas, em contrapartida, prezavam por modelos bem estruturados. Francesco Guicciardini, estadista, foi um historiador político, interessado nos eventos que sacudiam a Península Itálica desde fins do século XV e, mais ainda, no comportamento humano, guiado por interesses pessoais, com a Fortuna sempre a modificá-los.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BURROW, John. Uma história das histórias: de Heródoto e Tucídides ao século XX. Rio de Janeiro: Record, 2013. Tradução Nana Vaz de Castro.

GUICCIARDINI, Francesco. The History of Italy. Princeton University Press; New Edition, 1984. Translated by Sidney Alexander.

PARADA, Maurício. Os historiadores clássicos da História, Vol. I - de Heródoto a Humboldt. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.


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quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Resenha: História do Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon


Os homens letrados do século XVIII tinham um enorme talento na arte da escrita, talento esse por nós conhecido através das obras de Montesquieu, Voltaire, Rosseau e Diderot. O inglês Edward Gibbon (1737-1794) faz parte desse hall de iluministas, posição alcançada pela produção da monumental História do Declínio e Queda do Império Romano.

Poucas são as obras que fazem sucesso imediato ao ser publicadas. Em 1776 o primeiro volume de Declínio e Queda foi recebido de forma ambígua, entre a crítica dos conservadores e o entusiasmo dos mais liberais, mas tornou-se um sucesso de vendas. O advogado e biógrafo escocês James Boswell (1740-1795) acusou Gibbon de ser um “fantoche incrédulo”. O motivo? Gibbon inovou a História moderna ao analisar o declínio do Império Romano do Ocidente sob o ponto de vista da ascensão do Cristianismo. O historiador inglês não era ateu (foi calvinista, converteu-se ao catolicismo e reconverteu-se ao calvinismo), mas, assim como outros escritores do período das Luzes, era crítico da superstição, da intolerância que gerava o fanatismo e cerceava a liberdade, condição altamente necessária aos burgueses liberais do setecentos.

Foi em Roma, em 1764, durante uma viagem, que surgiu a ideia de investigar as causas do declínio e queda do Império Romano: “[…] enquanto eu estava sentado a cismar entre as ruínas do Capitólio e os monges descalços cantavam as vésperas no Templo de Júpiter; que a ideia de relatar o declínio e a queda da cidade pela primeira vez me veio à mente” (p. 19). Da cidade, ampliou a investigação para o Império. A junção de diferentes elementos históricos vistos (monges, ruínas romanas e a cidade moderna) foi o norte de Edward Gibbon.

Durante a juventude ele teve contato com as obras de Heródoto, Tucídides, Xenofonte, Horácio, Virgílio, Terêncio, Ovídio e outros gregos e latinos; assim como leu obras de autores contemporâneos, no caso Considerações sobre as causas da grandeza e decadência dos romanos, de Montesquieu; e outros do final do século XVII, como Grotius, Pascal, Putendorf, Locke e Bayle. Foram 12 longos anos de leituras de fontes primárias, de grande erudição, até que a obra fosse concluída entre 1788-89, totalizando seis densos volumes.

Nós, leitores brasileiros, temos acesso às edições abreviadas, que giram em torno de 504-607 páginas (só o primeiro volume do original possui 628 páginas). A que tenho em mãos é a mais recente, de 2005, em formato de bolso, organizada em 1952 pelo jornalista e erudito norte-americano Dero A. Saunders e traduzida pelo poeta, crítico literário e ensaísta brasileiro José Paulo Paes, que também traduziu a mais antiga, de 1989. O compêndio de Saunders nos permite, mesmo que o texto não seja integral, ter uma noção da grandiosidade da obra do historiador inglês. Gibbon analisa mais de mil anos de história, indo do século II d.C. até o século XV. Sua pena é como um manto que cobre todos os acontecimentos desse período.

O gênio do autor não reside apenas em sua erudição, no manuseio de inúmeras fontes, mas em seu estilo literário. Ele penetra no íntimo das instituições, dos cultos, das administrações imperiais, do caráter dos imperadores, das guerras e dos conflitos internos. A impressão que passa é a de ter sido testemunha ocular da desestruturação do Império, de ter entrado pessoalmente nas catacumbas cristãs primitivas, de ter visto de perto as invasões de godos, francos, vândalos, saxões, hunos e outros povos bárbaros. A economia não é o seu ponto forte, sendo todas as atenções voltadas para aspectos políticos, sociais e culturais. Toda essa vivacidade e acuidade são acompanhadas por críticas, polêmicas e ironias que transitam entre o irreverente e a acidez. Na introdução de sua obra, sobre a extensão e o poderio militar do Império na época dos Antoninos, Gibbon pinta o seguinte quadro do Império Romano no século II d.C.:

No segundo século da Era Cristã, o império de Roma abrangia a mais bela parte da terra e o segmento mais civilizado da humanidade. As fronteiras daquela vasta monarquia eram guardadas por antigo renome e disciplinada bravura. A influência branda mas eficaz das leis e dos costumes havia gradualmente cimentado a união das províncias. Seus pacíficos habitantes desfrutavam até o ponto de abuso os privilégios da opulência e do luxo (p. 31).

Gibbon, em um tom moralizante, que pode ser visto em outras passagens de sua obra, critica a opulência e luxo desmedidos, elementos que em excesso podem ser nocivos ao homem. Superstições, milagres e outros eventos explicados de forma sobrenatural são criticados, buscando-se explicações naturais, físicas e racionais. Em nível de exemplo, quando o autor aborda o Imperador Constantino, a primeira coisa que faz é desmistificar as visões divinas sobre sua conversão ao Cristianismo, apontando os motivos políticos, e não religiosos, desse fato. Fé cega e espírito crítico, natureza humana e religião, são para ele termos opostos.

Uma religião que até então vivia na clandestinidade, na periferia do Estado Romano, sendo por diversas vezes perseguida, foi aos poucos penetrando em suas estruturas, se expandindo até as mais distantes províncias, sendo apropriada por imperadores, nobres e servos. Em poucos séculos, de religião periférica e perseguida passou a religião oficial e perseguidora de seus opositores. O Cristianismo triunfou, o antigo mundo romano tornou-se cristão. Para Gibbon, essa vitória desestabilizou a antiga hegemonia ideológica imperial, que tinha seus alicerces, no Paganismo, na imagem e semelhança da figura do imperador à figura da divindade, contribuindo para a sua crise. O Cristianismo, pelo menos em tese, permitiria que todos ficassem em pé de igualdade.

Além de História, Declínio e Queda está impregnado de filosofia, de reflexões, e possui uma ponte entre o passado e o tempo em que o autor escrevia. Como foi dito no início, Gibbon era calvinista, converteu-se ao catolicismo e, posteriormente, retornou ao calvinismo. Ao abordar o Imperador Flávio Cláudio Juliano, mais conhecido como Juliano, o Apóstata, único imperador romano que abandonou o Cristianismo e retornou ao Paganismo, Gibbon parece exprimir nele suas experiências pessoais: a insubmissão, o gosto pela liberdade, a denúncia da hipocrisia religiosa e o interesse por disputas religiosas. O período em que o livro é gestado é marcado por conflitos entre católicos e protestantes, pela transformação política, econômica, social e cultural das nações europeias, que despontavam como potências mundiais, e por revoluções. O pensamento humano estava mudando. Roma atingiu o ápice do crescimento civilizatório, mas, conquista após conquista, ficou imobilizada em seus próprios domínios, ruindo por fatores internos e externos. O mesmo poderia acontecer com a Inglaterra, a França e a Espanha. Não por acaso, mais de um século e meio depois a obra foi lida por vários políticos durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Ocidente e outras áreas do globo novamente entraram em um colapso político-social.

O que é o Império Romano para o historiador inglês? Me pergunto toda vez que o leio, mas sei que não é uma simples unidade política. Sua célebre frase ‘a história, esse quadro terrível dos crimes, das perversidades e das desgraças do gênero humano’ pode nos dar uma pista. O Império Romano surgiu por mãos humanas e ruiu por mãos humanas, é produto da força inventiva e destruidora do homem. Essa é a natureza humana. Segundo ele não devemos nos perguntar porque o Império caiu, mas sim porque durou tanto tempo. História do Declínio e Queda do Império Romano é um monumento da literatura e historiografia modernas, inovador em sua época pelo exame crítico das fontes primárias, pela leitura do Cristianismo como elemento influenciador da queda do Império Romano do Ocidente, pela contextualização e visão abrangente dos eventos históricos. Em um futuro não muito distante o livro de Edward Gibbon voltará ao topo das vendas, preenchendo estantes em todo o mundo, alavancado por nossa crescente necessidade de compreender o atual cenário político e seus possíveis desdobramentos. Sua leitura não é uma dica, mas uma agradável obrigação.


Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa.


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quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

A condição do negro após a Abolição: cenário político-social e mecanismos de exclusão

Família de negros no Morro da Babilônia, no Rio de Janeiro. Foto do início do século XX.

A recente produção acadêmica na área das Ciências Humanas sobre o Brasil no período do Segundo Reinado abriu novos horizontes de possibilidades de pesquisa e de questionamentos. A partir de indagações, críticas e a inserção de novos elementos na investigação, passou-se a desmistificar antigas concepções até então enraizadas na historiografia. A escravidão, o processo de abolição e a condição do negro após sua concretização foram alguns dos temas que passaram a ser analisados a partir de novas perspectivas. A figura de "redentores" de certos agentes do Império e a "bondade" dos proprietários de escravos são exemplos do que foi repensado.

A historiador Wlamyra Albuquerque, em O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil, afirma que, mesmo com a dissolução das relações jurídicas entre senhores e escravos, do fim de uma legislação que sustentava a relação de domínio sobre o outro por sua condição, surgiram, paralelamente às "mudanças", novos mecanismos que impediam o acesso dos homens de cor ao cenário político-social que se firmava com a nova conjuntura política.

Dentro de uma linha da História social e cultural, também compartilhada do campo das representações, a socióloga Angela Alonso e a historiadora Lilia Moritz Schwarcz analisam o período, o processo de abolição e os projetos que foram pensados para a posteridade. 

Angela Alonso e Lilia Moritz compartilham de um recorte cronológico que, à exceção de alguns momentos, vai da década de 1870 até 1880, podendo, em alguns casos, ser perpassado. Verifica-se nesse período o aumento das discussões e dos embates entre setores da Monarquia e dos Republicanos abolicionistas, entre conservadores e progressistas.

Aliás, falando em embates, o título do livro de Angela Alonso, Flores, Votos e Balas: O movimento abolicionista brasileiro (1868-88), é bastante sugestivo, sendo uma exemplificação das principais etapas desse período. As 'flores' se referem aos debates, no seio de alguns setores políticos da Monarquia, sobre as possibilidades de se abolir a escravidão, que já era vista como uma forma de trabalho que não se adequava mais às nações que tinham o anseio de se modernizar. No caso dos 'votos', o que está em jogo é o enfraquecimento dos saquaremas, os políticos conservadores, e a ascensão dos liberais e progressistas, o que acabou por abrir o caminho para o fim da escravidão. As 'balas' são a fase mais turbulenta, marcada por ações armadas, pela repressão, pelo uso de força e pela violência de contrários e favoráveis.

Angela, de uma perspectiva sociológica, identifica como fator íntimo das discussões sobre a abolição a introdução de ideias positivistas no Império e a urbanização e desenvolvimento do capitalismo industrial. Monarquia, Catolicismo e Escravidão formavam um tripé rudimentar e um obstáculo para a introdução de um novo modo de produção econômica.

Lilia Moritz Schwarcz, em Dos males da dádiva: sobre as ambiguidades no processo da abolição brasileira, analisa, em um primeiro momento, as formas como a abolição foi apropriada pela Monarquia, que criou para si a imagem de sistema popular redentor das pessoas de cor, acreditando que tal ação traria a recuperação de um modelo político já bastante desgastado. Com o fim da escravidão e a não indenização dos proprietários, a Monarquia ruiu, sendo extinguido o Império de Dom Pedro II. As apropriações e projeções não partiram apenas do Estado Imperial. Schwarcz identifica proprietários, homens brancos da elite, se apresentando ou sendo apresentados em jornais da época como "bons samaritanos" ao alforriar seus escravos. As libertações, destaca, tornavam-se motivo de festas onde imperava a passividade do escravo e a suposta bondade de seu dono.

Diferente de outras partes da América, o Império e as elites passaram a imagem de que a emancipação dos escravos foi pacífica, sem maiores tumultos que perturbassem a ordem. As supostas relações de apadrinhamento, de proximidade e cordialidade eram utilizadas para manter os libertos nas propriedades de seus antigos senhores. Paga-se, agora, um salário, um baixo salário, prendendo assim o negro à terra, o que, de certa forma, compensava o antigo dono de suas perdas com o fim do sistema escravista.

Nos anos finais do Império e com o advento da República, ganharam terreno ideias de determinismo racial e de paternalismo. As pessoas de cor, mesmo libertas, continuavam em um plano inferiorizado. Como inserir tão grande contingente na sociedade? O ex-escravo precisava ser civilizado, se libertando de seus costumes, em um processo lento mas necessário para os dirigentes e agentes econômicos do capital. O Estado e os novos proprietários assumem a posição de paternalistas nesse processo. Para endossar os novos mecanismos de diferenciação social, surgem distinções linguísticas: Preto e Negro. O preto é o tipo ideal, submisso, indiferente, fácil de controlar, dócil e disposto ao trabalho. O negro é rebelde, violento, o fugitivo que forma quilombos na mata. Uma matéria publicada no Correio Paulistano, em 13/05/1895, mostra a visão que se tinha dos ex-escravos:

"O que eles dizem e o que eles fazem

(...) e a boa raça africana, tão dócil, tão afetiva, tão amiga, fator de riqueza nacional, a velha raça de Caim, em cujas tetas submissas bebemos, grande parte de nossa vida nacional está aí a nosso lado, humilde e sempre boa, honesta, moderada, serviçal, proliferando em paz, entregue a si mesma, sem incomodar os brancos. Que simpatia por essa velha pária da existência! Que beleza no seu fetichismo, na sua aflição primitiva, no amor que tem aos filhos dos brancos! Incorporada ao povo brasileiro, ela que não nos incomoda vive conosco à parte, sentindo conosco as coisas que sentimos...." (CUNHA E GOMES, 2007, p. 31)

Juridicamente o negro não era mais escravo, mas, por outros meios, continuava em uma posição que lembrava os tempos não tão antigos do Império. Ele não era mais um incômodo, a lembrar do medo das elites de uma rebelião nos moldes da que ocorreu no Haiti, mas vivia à parte da sociedade. Portanto, mesmo após o fim da escravidão, surgiram novos mecanismos que dificultaram a inserção dos ex-escravos, dos negros, na sociedade. Pode-se pensar, como afirma Angela Alonso, que a Abolição foi um movimento plenamente arquitetado pelas elites que buscavam espaço, agora, em um novo sistema político, econômico e social.


BIBLIOGRAFIA:

ALONSO, Angela. Flores, Votos e Balas: O movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Dos males da dádiva: sobre as ambiguidades no processo da abolição brasileira. In: GOMES, Flávio dos S; CUNHA, Olívia Maria da. (organizadores). Quase cidadão. Histórias e antropologias da pós-emancipação. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.



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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Giovanni Villani: Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Estátua de Giovanni Villani na Loggia del Mercato Nuovo, em Florença, na Itália.

Giovanni Villani (1276-1348) foi banqueiro, diplomata e cronista florentino, autor da densa obra Nuova Crônica, escrita na primeira metade do século XIV, que narra a história da cidade de Florença desde sua fundação até o período em que escreve.

Inspirado pela grandeza da cidade de Roma, na época capital dos Estados Papais, e pelas transformações pelas quais passavam as cidades Estados italianas, prosperando cultural e comercialmente, Giovanni buscou as origens de Florença no passado romano, de sua fundação por Júlio César enquanto uma colônia. Ao escrever, tinha como objetivos preservar as memórias da cidade e dar exemplos para as gerações futuras do que deveria ou não ser seguido. A história como exemplo das ações humanas é uma tônica da historiografia romana clássica, podendo ser citados autores como Tito Lívio e Cornélio Tácito, mantida na crônica medieval. Aliás, os exemplos, em alguns casos, chegam a ser mais importantes que os fatos narrados, importando antes os efeitos morais que estes produzirão nos leitores que suas veracidades. A cidade, em oposição ao mundo rural, é o objeto de estudo do cronista medieval, que assemelha suas instituições às da antiga República de Roma.

As crônicas que se proliferaram pela Europa desde o século XII passaram a ser escritas em línguas vernáculas, isto é, na língua de cada país, contribuindo para a formação de identidades nacionais. Villani escreve sua crônica em toscano, em dialeto vulgar. De acordo com Vânia Vidal Luiz, a escolha da língua vulgar tinha como propósito "[...] oferecer aos cidadãos de Florença uma obra que preservasse a memória da cidade, por um lado, e que tornasse os exemplos que dela pudessem advir, acessíveis a um público amplo, por outro, já que seria igualmente aproveitada por todos" (2014, p. 105-6). O latim é a língua erudita, refinada, dos humanistas, que vai de encontro com seus escritos que são mais separados de perspectivas religiosas e místicas do que as crônicas medievais.

A exemplo das duas perspectivas anteriormente citadas, Villani utiliza uma estrutura de história providencial emprestada de Paulo Orósio (385-420), historiador e apologista cristão romano. Uma narrativa providencial implica uma perspectiva em que Deus é a base e a causa dos eventos históricos. No entanto, Giovanni não deixa a figura divina interferir nas ações dos homens, mas ela ainda "[...] opera no sentido de puni-los em suas más ações, e em recompensá-los pelas boas, fazendo com que haja uma relação no devir humano entre causa e consequência, que pode ser interrompida mediante o exemplum" (LUIZ, 2014, p. 110). Pendendo para um aspecto mais místico estão suas citações sobre o alinhamento de corpos celestes ou situações astrais favoráveis, bem como o registro de adivinhações e maus agouros.

Sobre o desenvolvimento de sua narrativa, são abordadas na primeira parte a Torre de Babel e sua destruição, que dispersou a população na terra. Após a destruição, a humanidade é dividida em três porções de terra, cada uma correspondente à descendência dos filhos de Noé, com a Europa sendo habitada pelos descendentes de Jafé, a Ásia pelos descendentes de Sem e a África pelos descendentes de Cam. Posteriormente, faz uma digressão sobre a cidade de Fiesole, rival de sua cidade natal e destruída pelos florentinos no início do século XI. Os troianos se fazem presentes na cidade através de príncipes emigrados. Os romanos ganham destaque ao construírem um templo dedicado a Marte e, em uma perseguição imperial em 270, martirizam São Miniato. No bojo das transformações do Império, que aos poucos se torna cristão, o templo de Marte é consagrado a São João, tornando-se a Catedral de Florença. Três capítulos são dedicados à presença dos francos na região, com Villani afirmando que Carlos Magno reconstruiu Florença após mais de dois séculos de domínio lombardo. Quanto mais próxima da época do autor, mais densa se torna a crônica. Ganham destaque no século XI as disputas entre o Império e o Papado. A partir do século XII, escreve John Burrow, 

as rixas e os arranjos constitucionais florentinos, e a defesa de suas liberdades em face das ameaças externas, são agora o centro da narrativa - embora ainda haja excursões a outra partes, além de um relato sobre as origens da briga entre as facções políticas rivais dos guelfos e guibelinos em Florença, informando quais importantes famílias apoiavam qual lado (BURROW, 2007, p. 315)

Nos últimos livros são descritas as facções de grandes famílias e de classes, e os tumultos que surgiam com suas disputas. Villani dá atenção aos emblemas dos estandartes das corporações de ofícios, que representavam as ocupações dos grupos (uma ovelha branca para os comerciantes de lã, um alicate para os ferreiros etc).

Quanto aos referenciais, além da Bíblia e da estrutura de Paulo Orósio, Villani cita que, quando estava em Roma durante o Jubileu do ano de 1300, ocasião que o inspirou a escrever, leu a história e os grandes feitos dos romanos escritos por Virgílio, Salústio, Lucano, Orósio, Valério e Tito Lívio (LUIZ, 2014, p. 113). A influência de Virgílio se encontra nos escritos sobre os troianos, podendo o autor ter lido a Eneida. Mesmo gostando do estado de prosperidade de Florença, o autor adverte que a tranquilidade e prosperidade excessivas anestesiam os homens e fazem emergir o orgulho e a corrupção, estando aí a influência de Salústio, que evidencia os vícios dos homens nas obras A Conspiração de Catilina A Vida dos Doze Césares. Villani utiliza o segundo livro de Farsália, obra de Lucano, como fonte sobre as ações de Júlio César. Em Valério e Tito Lívio o autor busca as origens remotas da República Romana, dos tempos de Júnio Bruto e dos Tarquínios. Outra influência de Tito Lívio, identificada por Burrow, é a visão crítica que Villani tem da mistura entre romanos nobres e fiesolanos cruéis e violentos, migrados para Florença, "que faz lembrar as assimilações na história de Roma, como descrita por Tito Lívio" (BURROW, 2007, p. 315).

Analisando a transição da escrita cronista para a historiografia humanista, John Burrow afirma que as opiniões de Villani "[...] eram teológicas, astrológicas e apocalípticas, e não abrangentemente políticas e historiográficas" (BURROW, 2014, p. 318). Por outro lado, Vânia Vidal insere a crônica de Villani na tempora moderna (tempos modernos), na prosperidade vivida e percebida pelos habitantes de Florença. A crônica é nuova porque é a expressão de seu tempo, o tempo de existência lendária e histórica da cidade. "É o tempo que ultrapassará o próprio tempo, de uma Florença tornada eterna através da monumentalização de seu passado, e de seus feitos" (LUIZ, 2014, p. 107). Os feitos, os exemplos, conferem identidade à cidade dessa crônica urbana do século XIV.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LUIZ, Vânia Vidal. Fórum de verdade e ficção: a Crônica de Giovanni Villani na Florença medieval. Rio de Janeiro, UNIRIO, 2014. Dissertação (Mestrado em História Social).

BURROW, John. Uma história das histórias: de Heródoto e Tucídides ao século XX. Tradução de Nana Vaz de Castro. Rio de Janeiro, Record, 2013.

PORTA, G. (curia). Nuova Cronica, di Giovanni Villani. Parma, Fondazione Pietro Bembo/Ugo Guanda Editore, 1991. Disponível em Letteratura italiana Einaudi - http://www.letteraturaitaliana.net/pdf/Volume_2/t48.pdf

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