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domingo, 28 de abril de 2019

O mundo às vésperas das Revoluções Industrial e Francesa

Paisagem interiorana da Holanda. Pintura de Cornelis de Bruin (1652-1726).



Em a Era das Revoluções (1789-1848), o historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) analisa a derrocada do mundo feudal, do Antigo Regime, e a transição, marcada por conflitos e profundas transformações sociais, deste para uma nova realidade, a industrial e das democracias liberais. O século XVIII foi um período marcado por duas revoluções, a Industrial e a Francesa. Da primeira têm-se a constituição da estrutura econômica que dominará o mundo Ocidental. Da segunda, o arcabouço político teórico que sustentará a economia e os governos.

O mundo em 1780, às vésperas dessas revoluções, era ao mesmo tempo menor e maior que o nosso. Menor no sentido de que, na época, se conhecia pouco sobre os territórios, principalmente as regiões interioranas. Além do mais, a densidade demográfica era consideravelmente menor que a da atualidade. Epidemias, guerras, fatores climáticos e terras improdutivas eram barreiras para o estabelecimento e crescimento de colônia em regiões afastadas das áreas mais desenvolvidas. Os seres humanos também eram menores. Fatores biológicos ligados a alimentação produziam pessoas de estatura mais baixa que as atuais.

Ele tornava-se maior dadas as dificuldades em locomoção e comunicação com outras regiões, o que abria diversas possibilidades. Existiam dois meios de transporte, o marítimo e o terrestre. O primeiro era mais eficiente que o segundo, mas ainda assim passava por alguns problemas, principalmente a variação dos ventos e dos mares. As viagens terrestres, apesar da construção de estradas e a existência de charretes e carruagens, eram perigosas, onerosas e lentas. Uma cidade portuária da América do Norte estava mais perto de Paris do que uma cidade interiorana francesa. Em uma realidade majoritariamente rural, com mobilidade por terra problemática e navegação variável, as pessoas costumavam morrer no mesmo local em que nasciam sem nunca terem conhecido outras realidades. Jornais e cartas já eram uma realidade, mas o grosso da população era analfabeta, existindo uma certa mobilidade apenas entre viajantes, mercadores e membros da burocracia estatal, que tinham a necessidade de deslocar-se para realizar suas funções, fossem elas nas colônias além-mar ou no interior das cidades provinciais.

Poucas eram as cidades densamente habitadas. Da Rússia à Itália, entre 70 e 90% da população era rural. Apenas Londres e Paris eram cidades cujas populações eram, respectivamente, de 1 milhão e 500 mil habitantes. No mais, existiam cidades com pouco mais de 20 mil habitantes, cujas vidas estavam centradas na Igreja, na Praça e na atividade agrícola. Uma cidade desse tipo era dividida do mundo rural pelos seguintes aspectos: a presença de um aparato arquitetônico e estatal mínimos (igreja, praça, cobrança de impostos) e as vestes e estatura de seus habitantes, geralmente melhores e maiores que os trabalhadores rurais.

Esse mundo estava dividido em zonas de trabalho. Nas colônias da América predominava a escravidão indígena e africana voltada para o cultivo de gêneros primários que abasteciam a Europa. A leste da Europa Ocidental ficavam as propriedades de trabalho agrário servil. Na região Oriental o sistema de trabalho beirava a escravidão. Os trabalhadores eram ‘tecnicamente’ livres, mas ainda assim estavam presos a obrigações como o pagamento de dízimos as paróquias das quais faziam parte e a utilização de mecanismos, como o moinho, por exemplo, geralmente pertencentes a grandes proprietários. Com exceção da Inglaterra, em que a agricultura já estava sendo direcionada a um mercado mais amplo, um dos fatores para o seu pioneirismo industrial, toda a produção das outras localidades sustentava a necessidade e consumo regionais.

Predominava o modelo político das Monarquias Absolutistas, característico do Antigo Regime. Essa organização política estava assentada em privilégios monárquicos que se refletiam em todos os níveis da sociedade, principalmente na terra, defendida pelos fisiocratas franceses como a única fonte de riqueza. Os nobres alugavam suas terras aos camponeses, cobrando uma parte da produção ou um aluguel em dinheiro. Quando esse sistema econômico tornou-se obsoleto, desgastado, os membros da corte passaram a utilizar seus títulos de nobreza para se apropriarem dos cargos burocráticos, para dessa forma manterem seu estilo de vida aristocrático. Esses privilégios sobre a terra terão um peso decisivo na Revolução Francesa, em 1789. O status monárquico e a posse de grandes propriedades de terra eram as bases dos estados europeus.

Em síntese, o mundo, mais especificamente a realidade europeia, as vésperas das revoluções industrial e francesa, era predominantemente rural e menor por suas características limitadas de conhecimento e mobilidade, mas esta última característica o tornava maior dadas as possibilidades ainda não plenamente exploradas.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 20º ed., 2006.



CRÉDITO DA IMAGEM

Cornelis de Bruin Gallery.

domingo, 18 de março de 2018

Francesco Guicciardini: Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Francesco Guicciardini (1483-1540).

O historiador e estadista florentino Francesco Guicciardini (1483-1540), contemporâneo de Nicolau Maquiavel (1469-1527), dedicou-se aos escritos políticos, produzindo História da Itália, obra de publicação póstuma que versa sobre a história contemporânea e recente das cidades-Estado italianas. Na introdução, o autor deixa claro quais foram as suas motivações e o ponto de partida para escrevê-la:

Eu decidi escrever sobre os eventos que ocorreram na Itália dentro de nossa memória, desde as tropas francesas, convocadas por nossos próprios príncipes, começaram a suscitar aqui grandes dissensões: um assunto mais memorável, tendo em vista seu alcance e variedade, e cheio dos acontecimentos mais terríveis; já que, durante anos, a Itália sofreu todas aquelas calamidades com as quais os miseráveis mortais costumam ser afligidos, às vezes por causa da justa ira de Deus e às vezes por causa da impiedade e maldade de outros homens. A partir de um conhecimento de tais ocorrências, tão variadas e tão graves, todos podem tirar muitos precedentes saudáveis tanto para si quanto para o bem público (1984, p. 3).

O livro de Guicciardini, que cobre um período que vai de 1490 a 1534, surge em um contexto de ebulição política marcada por conflitos militares entre os principais Estados da Europa e as cidades-Estado italianas, gestados pelas disputas de soberanos franceses interessados em garantir seus direitos hereditários sobre o Reino de Nápoles e o Ducado de Milão. Essa é a essência do trabalho de Guicciardini: a política, a relação entre os Estados europeus. De acordo com John Burrow, “ele entendia que a política era formada por configurações e circunstâncias únicas, e a história era o instrumento ideal para avaliá-las” (2007, p. 322).

Ainda conforme Burrow, Guicciardini era comprometido com o esmiuçamento dos fatos históricos, buscando explicações múltiplas para os acontecimentos. “Ele raramente oferece um único motivo para uma ação se puder pensar e três os mais” (2007, p. 322). Analisando a Itália e seu bom aspecto político e social no final do século XV, o autor escreveu:

Muitos fatores a mantiveram nesse estado de felicidade, que foi a consequência de várias causas. Mas foi mais comum concordar que, entre estes, nenhum pequeno louvor deve ser atribuído à indústria e habilidade de Lorenzo de Medici, tão eminente entre as classes ordinárias de cidadãos na cidade de Florença, que os assuntos dessa República foram governados de acordo com seus conselhos (1984, p. 4).

Esse interesse pelos detalhes, pelo íntimo das causas, segundo John Burrow, tem duas consequências importantes. “A primeira, da qual ele tem total consciência, é a advertência contra o excesso de confiança de comentadores e, mais importante, de estadistas: arrogância é insensatez. A segunda, que permeia toda a sua obra, é o comprometimento com a explicação através da narrativa, contando a densa particularidade de cada momento histórico relevante” (2007, p. 328).

No contexto cultural e historiográfico desse período de transição do mundo medieval para o moderno, Guicciardini, embora menos conhecido que outros humanistas italianos, possui um lugar de destaque. Com sua História da Itália, rompe com a tradição do estudo localizado, da escrita individual sobre as diferentes cidades-Estado, abordando a Itália de uma forma geral, além de fazer digressões sobre as outras nações beligerantes. Vale lembrar que Guicciardini, entre 1508 e 1509, publicou História de Florença, obra de estudo local sobre sua terra natal, que vai de 1378, com a Revolta dos Ciompi, até 1509, com a Batalha de Agnadello, uma das maiores das Guerras Italianas.

O professor Maurício Parada, autor de Os historiadores clássicos da História, em um capítulo dedicado a Guicciardini, recupera alguns estudos historiográficos que servem de norte para compreender o pensamento histórico e a prática historiográfica desse historiador italiano. Eduard Fueter (1876-1928) afirma que Guicciardini não se interessava pela filosofia da história, prendendo-se à realidade, mas era extremamente preciso em suas análises empíricas, penetrando-as psicologicamente. Soma-se a isso a sua independência quase absoluta do juízo e o “egoísmo político”, que serve para apresentar as personagens como elas são, não de forma idealizada. Para Fueter História da Itália tem duas importantes inovações, a já citada abordagem geral (a Itália não é vista como uma unidade, mas um conjunto de diferentes povos que possuem certos elementos que garantem um certo grau de “união”) e o pessimismo político; e a pesquisa em arquivos públicos e familiares.

Felix Gilbert (1905-1991) segue a mesma trilha de Fueter, destacando o exame psicológico da história e a metodologia da pesquisa em arquivos públicos e familiares. Para ele essa é a última produção histórica escrita segundos os padrões clássicos e a primeira da historiografia moderna. Peter Bondanella (1943-2017) destaca a pesquisa documental feita por Guicciardini, chegando a afirmar que História da Itália foi precursora das histórias filosóficas de Voltaire, Gibbon, Montesquieu e Heggel. Para Mark Salber Phillips (1946) o diferencial de Guicciardini estaria na psicologia e no auto-interesse que guiavam os eventos de sua História. Eric Cochrane (1928-1985) considera que Guicciardini não era um anti-humanista, mas um herdeiro da escola historiográfica surgida no século XIV. A novidade de seu livro estaria na passagem da história das cidades para a história da nação, na conexão entre as narrativas das histórias das diferentes entidades políticas italianas.

Em síntese, ainda que com leves diferenças entre as análises de Fueter, Bondanella, Mark Salber e Eric Cochrane, Francesco Guicciardini realizou pesquisas empíricas em arquivos públicos e familiares, buscando nas fontes elementos das ações humanas que desencadearam os processos políticos da história recente das cidades-Estado italianas no período em que vivia. Guicciardini pode não ter rompido totalmente com a tradição humanista dos séculos XIII, XIV e XV, mas procurou inovar no que tange a abrangência temporal, ainda que em um intervalo curto de tempo se comparado, por exemplo, com a Nuova Crônica de Giovanni Villani, que vai da fundação da cidade de Florença até a segunda metade do século XIV.

O elemento que permeia a sua obra é a Fortuna (a boa ou má sorte). A Fortuna, para ele, é de grande importância na vida dos homens, no caso, dos políticos italianos e de outras nações, pois por mais que estes façam diferentes tipos de planos, projetos, são sempre atingidos por eventos favoráveis ou catastróficos que escapam de suas idealizações, restando a Fortuna, que lembra os homens de estes não podem controlar o destino. Como escreve em um período marcado por conflitos, também faz descrições das batalhas, das táticas de combate e dos materiais bélicos empregados; além de análises diplomáticas.

Em uma última análise, John Burrow afirma que a história de Guicciardini não foi uma imitação dos modelos humanistas. Ela, em parte, traz elementos que os lembram, como a produção de discursos para análises políticas, mas é original nas descrições das “complexas redes de relações diplomáticas”, e a “mudança de um centro de poder para outro é excepcionalmente rápida e por vezes, há de se admitir, confusa” (2007, p. 330). Os humanistas, em contrapartida, prezavam por modelos bem estruturados. Francesco Guicciardini, estadista, foi um historiador político, interessado nos eventos que sacudiam a Península Itálica desde fins do século XV e, mais ainda, no comportamento humano, guiado por interesses pessoais, com a Fortuna sempre a modificá-los.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BURROW, John. Uma história das histórias: de Heródoto e Tucídides ao século XX. Rio de Janeiro: Record, 2013. Tradução Nana Vaz de Castro.

GUICCIARDINI, Francesco. The History of Italy. Princeton University Press; New Edition, 1984. Translated by Sidney Alexander.

PARADA, Maurício. Os historiadores clássicos da História, Vol. I - de Heródoto a Humboldt. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.


CRÉDITO DA IMAGEM:

http://omneslitterae.it


sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Giovanni Villani: Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Estátua de Giovanni Villani na Loggia del Mercato Nuovo, em Florença, na Itália.

Giovanni Villani (1276-1348) foi banqueiro, diplomata e cronista florentino, autor da densa obra Nuova Crônica, escrita na primeira metade do século XIV, que narra a história da cidade de Florença desde sua fundação até o período em que escreve.

Inspirado pela grandeza da cidade de Roma, na época capital dos Estados Papais, e pelas transformações pelas quais passavam as cidades Estados italianas, prosperando cultural e comercialmente, Giovanni buscou as origens de Florença no passado romano, de sua fundação por Júlio César enquanto uma colônia. Ao escrever, tinha como objetivos preservar as memórias da cidade e dar exemplos para as gerações futuras do que deveria ou não ser seguido. A história como exemplo das ações humanas é uma tônica da historiografia romana clássica, podendo ser citados autores como Tito Lívio e Cornélio Tácito, mantida na crônica medieval. Aliás, os exemplos, em alguns casos, chegam a ser mais importantes que os fatos narrados, importando antes os efeitos morais que estes produzirão nos leitores que suas veracidades. A cidade, em oposição ao mundo rural, é o objeto de estudo do cronista medieval, que assemelha suas instituições às da antiga República de Roma.

As crônicas que se proliferaram pela Europa desde o século XII passaram a ser escritas em línguas vernáculas, isto é, na língua de cada país, contribuindo para a formação de identidades nacionais. Villani escreve sua crônica em toscano, em dialeto vulgar. De acordo com Vânia Vidal Luiz, a escolha da língua vulgar tinha como propósito "[...] oferecer aos cidadãos de Florença uma obra que preservasse a memória da cidade, por um lado, e que tornasse os exemplos que dela pudessem advir, acessíveis a um público amplo, por outro, já que seria igualmente aproveitada por todos" (2014, p. 105-6). O latim é a língua erudita, refinada, dos humanistas, que vai de encontro com seus escritos que são mais separados de perspectivas religiosas e místicas do que as crônicas medievais.

A exemplo das duas perspectivas anteriormente citadas, Villani utiliza uma estrutura de história providencial emprestada de Paulo Orósio (385-420), historiador e apologista cristão romano. Uma narrativa providencial implica uma perspectiva em que Deus é a base e a causa dos eventos históricos. No entanto, Giovanni não deixa a figura divina interferir nas ações dos homens, mas ela ainda "[...] opera no sentido de puni-los em suas más ações, e em recompensá-los pelas boas, fazendo com que haja uma relação no devir humano entre causa e consequência, que pode ser interrompida mediante o exemplum" (LUIZ, 2014, p. 110). Pendendo para um aspecto mais místico estão suas citações sobre o alinhamento de corpos celestes ou situações astrais favoráveis, bem como o registro de adivinhações e maus agouros.

Sobre o desenvolvimento de sua narrativa, são abordadas na primeira parte a Torre de Babel e sua destruição, que dispersou a população na terra. Após a destruição, a humanidade é dividida em três porções de terra, cada uma correspondente à descendência dos filhos de Noé, com a Europa sendo habitada pelos descendentes de Jafé, a Ásia pelos descendentes de Sem e a África pelos descendentes de Cam. Posteriormente, faz uma digressão sobre a cidade de Fiesole, rival de sua cidade natal e destruída pelos florentinos no início do século XI. Os troianos se fazem presentes na cidade através de príncipes emigrados. Os romanos ganham destaque ao construírem um templo dedicado a Marte e, em uma perseguição imperial em 270, martirizam São Miniato. No bojo das transformações do Império, que aos poucos se torna cristão, o templo de Marte é consagrado a São João, tornando-se a Catedral de Florença. Três capítulos são dedicados à presença dos francos na região, com Villani afirmando que Carlos Magno reconstruiu Florença após mais de dois séculos de domínio lombardo. Quanto mais próxima da época do autor, mais densa se torna a crônica. Ganham destaque no século XI as disputas entre o Império e o Papado. A partir do século XII, escreve John Burrow, 

as rixas e os arranjos constitucionais florentinos, e a defesa de suas liberdades em face das ameaças externas, são agora o centro da narrativa - embora ainda haja excursões a outra partes, além de um relato sobre as origens da briga entre as facções políticas rivais dos guelfos e guibelinos em Florença, informando quais importantes famílias apoiavam qual lado (BURROW, 2007, p. 315)

Nos últimos livros são descritas as facções de grandes famílias e de classes, e os tumultos que surgiam com suas disputas. Villani dá atenção aos emblemas dos estandartes das corporações de ofícios, que representavam as ocupações dos grupos (uma ovelha branca para os comerciantes de lã, um alicate para os ferreiros etc).

Quanto aos referenciais, além da Bíblia e da estrutura de Paulo Orósio, Villani cita que, quando estava em Roma durante o Jubileu do ano de 1300, ocasião que o inspirou a escrever, leu a história e os grandes feitos dos romanos escritos por Virgílio, Salústio, Lucano, Orósio, Valério e Tito Lívio (LUIZ, 2014, p. 113). A influência de Virgílio se encontra nos escritos sobre os troianos, podendo o autor ter lido a Eneida. Mesmo gostando do estado de prosperidade de Florença, o autor adverte que a tranquilidade e prosperidade excessivas anestesiam os homens e fazem emergir o orgulho e a corrupção, estando aí a influência de Salústio, que evidencia os vícios dos homens nas obras A Conspiração de Catilina A Vida dos Doze Césares. Villani utiliza o segundo livro de Farsália, obra de Lucano, como fonte sobre as ações de Júlio César. Em Valério e Tito Lívio o autor busca as origens remotas da República Romana, dos tempos de Júnio Bruto e dos Tarquínios. Outra influência de Tito Lívio, identificada por Burrow, é a visão crítica que Villani tem da mistura entre romanos nobres e fiesolanos cruéis e violentos, migrados para Florença, "que faz lembrar as assimilações na história de Roma, como descrita por Tito Lívio" (BURROW, 2007, p. 315).

Analisando a transição da escrita cronista para a historiografia humanista, John Burrow afirma que as opiniões de Villani "[...] eram teológicas, astrológicas e apocalípticas, e não abrangentemente políticas e historiográficas" (BURROW, 2014, p. 318). Por outro lado, Vânia Vidal insere a crônica de Villani na tempora moderna (tempos modernos), na prosperidade vivida e percebida pelos habitantes de Florença. A crônica é nuova porque é a expressão de seu tempo, o tempo de existência lendária e histórica da cidade. "É o tempo que ultrapassará o próprio tempo, de uma Florença tornada eterna através da monumentalização de seu passado, e de seus feitos" (LUIZ, 2014, p. 107). Os feitos, os exemplos, conferem identidade à cidade dessa crônica urbana do século XIV.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LUIZ, Vânia Vidal. Fórum de verdade e ficção: a Crônica de Giovanni Villani na Florença medieval. Rio de Janeiro, UNIRIO, 2014. Dissertação (Mestrado em História Social).

BURROW, John. Uma história das histórias: de Heródoto e Tucídides ao século XX. Tradução de Nana Vaz de Castro. Rio de Janeiro, Record, 2013.

PORTA, G. (curia). Nuova Cronica, di Giovanni Villani. Parma, Fondazione Pietro Bembo/Ugo Guanda Editore, 1991. Disponível em Letteratura italiana Einaudi - http://www.letteraturaitaliana.net/pdf/Volume_2/t48.pdf

CRÉDITO DA IMAGEM:

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quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Apropriações e conquistas simbólicas do Cristianismo

Neste mosaico, da cidade de Ravena, Jesus é retratado como um Imperador Romano, utilizando vestes militares. Em uma mão carrega um báculo, na outra, as Sagradas Escrituras.

O Cristianismo é hoje a religião com o maior número de adeptos no mundo. Dos praticantes aos não praticantes, ele se encontra presente desde as pequenas vilas nos Andes até as grandes metrópoles da Europa. Foi um longo trajeto, desde a Antiguidade, até que essa religião com raízes no Oriente chegasse a essa posição, com seus agentes encontrando diferentes formas para sua expansão. Uma das mais conhecidas foi a apropriação de certos elementos do mundo pagão de forma a subvertê-los à nova realidade cristã, para atingir o maior número possível de pessoas, o que acarretou em verdadeiras conquistas simbólicas. O inverso também ocorreu, com o Estado Romano procurando formas de se associar ao novo culto para garantir uma ínfima sobrevida de suas já desgastadas estruturas. Nesse texto, destaco alguns exemplos, da Antiguidade, da Idade Média e da Idade Contemporânea, de apropriações e conquistas simbólicas do Cristianismo.

O Cristianismo se tornou, em 392, a única religião legalmente praticável no Império Romano. Os imperadores depois de Constantino, com exceção de Juliano, que tentou reavivar os cultos pagãos, realizavam doações em dinheiro, terras e financiavam a construção de basílicas em Roma e outras cidades importantes do Império. Essas medidas visavam a incorporação da população cristã ao Império, evitando assim qualquer tumulto desta, tendo em vista a delicada situação interna pela qual Roma passava pelo menos desde o início do século III. O Cristianismo tinha, agora, um terreno favorável para se expandir pelo Império Romano e outras áreas fronteiriças.

Para atingir ideologicamente a população e, como ocorrera antes com o paganismo, legitimar o poder, os imperadores passaram a associar suas imagens com a de Jesus Cristo. Dessa época existe uma rica iconografia que atesta essa associação. Na primeira imagem, um mosaico da cidade de Ravena, temos Jesus Cristo retratado como um imperador, usando vestes militares ao gosto romano. Segurando um báculo, insígnia dos bispos, traz na outra mão as sagradas escrituras, com os dizeres latinos Ego sum via, veritas et vita, que significam Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Em outras ocasiões, em painéis de marfim ou em mosaicos, esses mesmos imperadores eram representados sendo arrebatados por Deus, em famosas representações de apoteoses. Os romanos mais abastados tinham gravados em seus mausoléus cenas bíblicas como a expulsão do Éden, o martírio dos apóstolos e a ressurreição de Cristo.

Detalhe do Sarcófago de Júnio Basso, senador romano do século IV d.C., mostrando Jó e Adão e Eva no Paraíso.

Um pouco distante da vida política do Império, figuras do antigo panteão greco-romano também eram incorporadas e associadas aos simbolismos e práticas cristãs. Orfeu, personagem da mitologia grega que era médico e poeta, foi inúmeras vezes associado à figura de Jesus, do Bom Pastor e do Rei Davi. Orfeu desafiou a morte indo ao submundo e ficando diante de Hades, Deus do submundo e dos mortos. Jesus, na Bíblia, ressuscitou após três dias de sua morte. A passagem nas escrituras que melhor explica esse momento é: "E ele pôs sobre mim a sua destra, dizendo-me: Não temas; eu sou o Primeiro e o Último; e o que vive; fui morto, mas eis que aqui estou vivo para todo o sempre. Amém! E tenho as chaves da morte e do inferno." (Apocalipse 3.18). Orfeu e Jesus Cristo, duas personagens que escaparam da morte.

A lira de Orfeu tinha o poder de apaziguar a mais selvagem das feras, o que fazia os cristãos lhe associarem a Jesus e seu poder sobre a natureza e ao Bom Pastor que cuida de seu rebanho. O Rei Davi […] “quando o espírito maligno vinha sobre Saul, tomava a harpa, e a tocava com a sua mão; então Saul sentia alívio, e se achava melhor, e o espírito maligno se retirava dele” (1Sm 16.23). A harpa de Davi tinha as mesmas propriedades da lira de Orfeu. O mosaico abaixo, datado do século V, encontra-se no interior de uma igreja cristã de Jerusalém. Nele vemos, no centro, Orfeu tocando sua lira enquanto acalma algumas feras ao seu redor, incluindo o Deus Pã e um sátiro.

Mosaico do século V d.C. localizado no interior de uma igreja cristã de Jerusalém. No centro, Orfeu toca sua lira para apaziguar as feras ao seu redor, incluindo o Deus Pã e um sátiro.

Mais afastado do centro do antigo Império Romano no Ocidente, já na Idade Média, no Norte da Europa, o Cristianismo já não tinha mais como ameaça os romanos. O inimigo agora era outro: Os bárbaros germânicos que começavam a atravessar as fronteiras e a entrar em contato com outros povos, eram em sua maioria pagãos ou cristãos arianos. Esses povos eram, de acordo com os escritos de Orósio, genuinamente pagãos, pois viviam nos campos onde realizavam seus cultos rurais.

Tornou-se necessária a dessacralização da natureza e a valorização do elemento humano. O culto dos santos cumpre a função de substituir os antigos elementos pagãos presentes na natureza. O culto dos santos se mostra uma arma poderosa na luta contra o paganismo, pois torna o processo de conversão mais maleável, dessacralizando antigos símbolos pagãos e substituindo-os por imagens cristãs. São frequentes as iconografias de santos abatendo bestas como dragões, serpentes etc. O ato mais simbólico foi a derrubada, por São Bonifácio, no ano de 723, do Carvalho de Thunor (Thor), o Deus nórdico dos trovões e das batalhas. Da madeira da árvore Bonifácio construiu uma capela consagrada a São Pedro, o que marca o início da conversão da Germânia ao Cristianismo.

Gravura do século XVIII representando São Bonifácio derrubando o Carvalho de Thunor (Thor).

Na Idade Moderna, inúmeros territórios foram conquistados em nome da Coroa e da Igreja, ou de la espada e la cruz, como bem escreveu Ruggiero Romano, destacando a aliança militar e espiritual da conquista da América. Os ídolos maias, incas e astecas foram substituídos por imagens sacras de Santiago Apóstolo, Virgem Maria e Jesus Cristo. Boa parte das cidades coloniais foram erguidas sobre antigos templos nativos e cemitérios indígenas. A Catedral Metropolitana da Cidade do México, símbolo do poder espiritual cristão no continente, foi erguida sobre os escombros de um templo asteca.

Esse processo de apropriação, que leva à conquista simbólica, também ocorre entre diferentes vertentes do Cristianismo. Curiosamente, caminhando por meu bairro, me deparo com um arraial sendo realizado em uma Igreja mórmon de nome Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Era final de julho, fora da época dos festejos. Nenhuma menção a São Pedro, Santo Antônio e São João, nem de frases como anarriê, alavantú, balancê. O arraial foi apropriado do Catolicismo, este tendo apropriado a festa do paganismo, com a exclusão de vários elementos, preservando apenas o caráter popular da festa, que sempre atrai grande público. Essas apropriações parecem ser válidas a partir do momento em que são dados novos significados para antigos elementos e estes passam a contribuir para o fortalecimento e crescimento da religião.


FONTES:

_____Bíblia Sagrada. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/

_____Impérios sitiados (200-600) - O declínio romano, Renovação no Oriente Médio, Reinos chineses em tumulto e um vigoroso Novo Mundo. Tradução de Pedro Maia Soares. Rio de Janeiro, Editora Cidade Cultural, 1990. (Coleção História em Revista).

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo Editora, 2006.

ROMANO, Ruggiero. Os Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo, Editora Perspectiva, 1972. (Coleção Kronos).

CRÉDITO DAS IMAGENS:

commons.wikimedia.org
Rijksmuseum van Oudheden - Museu Real de Antiguidades dos Países Baixos

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Entre a riqueza e a pobreza na Idade Média: As análises de Jacques Le Goff, Fernand Braudel e Maurice Dobb sobre as desigualdades no mundo medieval

Paisagem medieval. Pintura dos irmãos Limbourg (século XV).

Na medida em que a sociedade muda seu trabalho, ou seja, o modo de produção, desde a queda do Império Romano do Ocidente no século V, temos a migração das populações das cidades para o campo. O mundo antigo está em declínio, politicamente descentralizado e com uma rede urbana decadente. As massas trabalhadoras e as elites urbanas se transferem para as suas pequenas e médias propriedades campestres. A partir do século XIII, ocorre o inverso. A Europa medieval está em pleno desenvolvimento, seja na política ou na economia. Surgem novas técnicas e instrumentos agrícolas, os índices demográficos aumentam e os transportes se desenvolvem, apenas para ficarmos em alguns exemplos. Ao mesmo tempo em que o Velho Continente caminhava rumo a novos tempos, acentuavam-se problemas sociais. Três autores analisam essa contradição de riqueza e pobreza: Jacques Le Goff (2007), Fernand Braudel (1996) e Maurice Dobb (1977).

Os livros utilizados foram As raízes medievais da Europa; Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII: O jogo das trocas; e A transição do feudalismo para capitalismo.

Para Jacques Le Goff, o enriquecimento, ao mesmo tempo em que beneficia as cidades, regiões e determinados grupos sociais, “empobrecia as vítimas das trocas” (p. 254). Dentro de uma perspectiva não só econômica, mas política e cultural, compartilhada de Braudel, o enriquecimento, alicerçado na economia-mundo, espaço de trocas econômicas onde várias regiões se comunicam, agrava as desigualdades sociais e políticas. Cresce, nas sociedades, o desejo pela diferenciação social, dividindo grupos por classes. As grandes cidades comerciais como Flandres e Gênova, centros de racionalização da produção e da divisão do trabalho, sedimentam o antigo modo de produção. Somam-se a esses problemas as mudanças climáticas, que levaram ao resfriamento e com isso o prejuízo na agricultura; As guerras perpetradas pelos Estados Nacionais, que agora formavam exércitos permanentes; As grandes epidemias como a Peste Negra; E as perseguições às minorias de judeus e muçulmanos, resultados da limpieza del sangre (limpeza de sangue), cujo resultado mais conhecido é a expulsão dos judeus da Península Ibérica em 1492. A Europa é um lugar rico e violento entre os séculos XIV e XV.

Sobre o dinheiro, essa unidade utilizada nas trocas, Fernand Braudel afirma que, no campo, este é utilizado na compra de terras e, “através dessas comprar visa à promoção social” (p. 43). No entanto, a introdução de valores monetários no campo destruiu valores sociais e equilíbrios antigos. O camponês assalariado, antes da introdução do dinheiro, recebia seus pagamentos in natura, em bens materiais como a terra. Com a monetarização do campo, este passou a contar seus pagamentos em valores monetários, valores esses nem sempre favoráveis. Essa é, segundo Braudel, uma mudança da mentalidade, “que ajuda nas adaptações da sociedade Moderna mas que não se reverte em favor dos mais pobres” (p. 43). A economia, nesse caso, influencia na mentalidade e nas relações de trabalho. Braudel cita como exemplo a comercialização de terras, no século XVIII, no país Basco. Essas propriedades se concentraram nas mãos de poucas pessoas, corroborando para a péssima situação dos camponeses, obrigados agora a procurar oportunidades de trabalho no campo, com dificuldade, ou na cidade, que nem sempre absorvia toda a mão de obra.

Por último, Maurice Dobb afirma que o crescimento das cidades mercantis e do comércio refletiu no aumento de conflitos internos. O valor de troca “como um fato econômico de vulto tende a transformar a atitude dos produtores” (p. 42). Essa é “uma transformação psicológica que afeta os envolvidos e os que entravam em contato com a economia de troca” (p. 42). As cidades mercantis, na medida em eram polos de atividades comerciais variadas, também representavam para os camponeses novas oportunidades de vida e trabalho. Por exemplo, como cita Dobb, o crescimento do comércio "acelerou o processo de diferenciação social no pequeno modo de produção" (p. 60). Ao que tudo indica, a acumulação primitiva de capital permitia aos seus agentes possibilidades de ascenderem socialmente, se diferenciando do resto da população.

Em síntese, Le Goff evoca uma Europa política, mas globalizada em termos econômicos e culturais, em um processo que enriquece mas também marginaliza parte da população, agora estratificada socialmente. Fernand Braudel vê na introdução de um valor monetário a mudança nas mentalidades e nas relações de trabalho. Maurice Dobb vê o crescimento da economia de troca como potencializador das diferenciações sociais. Um elemento que parece unir as análises desses autores é a mentalidade, que sofre alterações de curto e longo prazo no decorrer das mudanças econômicas e sociais.


FONTES:

LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 2007.

BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII: O jogo das trocas. Tradução de Telma Costa. 2° ed. São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2009.

PAUL, Sweezy.  A transição do feudalismo para capitalismo. Tradução de Isabel Didonnet. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.


CRÉDITO DA IMAGEM:

http://www.historyandpedagogy.org

terça-feira, 30 de maio de 2017

500 anos da Reforma Protestante: Discursos sobre o movimento

Estátua de Martinho Lutero, em Washington (EUA). Obra do escultor alemão Ernst Friedrich August Rietschel (1884).

O presente texto, simples e livre de qualquer formalidade, não se pretende ser mais uma explicação sobre os processos que culminaram na Reforma Protestante, mas sim uma discussão sobre os reflexos desse evento em discursos contemporâneos, estando inserido no campo das mentalidades formadas sobre a Reforma, que completa 500 anos em 2017.

Sábado, 20 horas. Mudando aleatoriamente de canais, paro em um programa de uma emissora Protestante. Na pauta, dirigida pelo apresentador na companhia de dois teólogos, os 500 anos de um dos eventos mais importantes da Era Moderna: A Reforma Protestante. São cinco séculos de um movimento que moldou de forma significativa o panorama político e religioso do Ocidente e, dadas as influências posteriores, o mundo de forma geral.

No horário, o programa já estava bastante adiantado, mas o que foi assistido serviu de fonte para a produção desse artigo. Os dois teólogos afirmavam, com alegria, que “Lutero libertou a Europa da tirania da Igreja Católica” e que o “movimento renovou o Cristianismo”. Afirmações essas feitas com uma vivacidade que poderia fazer pensar se esses convidados não estiveram em Wittenberg, na Alemanha, em 1517, ajudando o monge agostiniano na propagação de suas ideias.

Uma semana depois, na universidade, ouvi nos corredores uma conversa entre dois estudantes. Ao que tudo indica, católicos praticantes, tanto pelo tom da conversa quanto pelos adereços, bótons de santos e terços. Um dizia que Lutero era um “herege” que dividiu o Cristianismo. Outro, no mesmo tom, via naquele monge agostiniano a figura que contribuiu para a proliferação de inúmeras “seitas sem unidade” que se arrastam até os dias de hoje. Bem que esses dois poderiam estar, em 1517, do alto do Castelo de Wittenberg vendo, sob protestos, Lutero pregar as 95 teses na porta da Igreja.

São comentários interessantes, um mais caloroso que o outro, mostrando como um evento de 500 anos permanece “vivo” na mente e no discurso de seus favoráveis e opositores do século XXI. A História é o campo de combate da memória. Ganha, geralmente, aquele que está atrelado ao Estado e às mais altas posições. No entanto, não estamos falando de grupos pequenos que lutam por suas memórias, mas sim de duas grandes e poderosas ramificações do Cristianismo, com milhões de adeptos ao redor do mundo. É uma disputa que parte do alto, disputa essa com reações imediatas ao evento.

Em fevereiro de 1518, o Papa Leão X, a pedido da Ordem dos Agostinianos, pediu para que as ideias de Lutero parassem de ser difundidas. O teólogo italiano Silvestro Mazzolini da Priero redigiu Um Diálogo contra as Teses Presuntivas de Martinho Lutero sobre o Poder do Papa. João Maier, amigo de Lutero, escreveu teses contra suas ideias, o considerando um herege estúpido, o que terminou por iniciar uma disputa teológica, o famoso Debate de Leipzig, que terminou sem vencedores. Por último, Martinho Lutero foi excomungado da Igreja Católica em 1521, quando queimou a Bula que oferecia ou a retratação ou a excomunhão.

Vejamos o que diz o padre Paulo Ricardo, figura famosa no meio religioso católico, no texto Por que não sou Protestante? Sobre a Reforma Protestante e seus agentes: “Os reformadores protestantes, como Martinho Lutero, João Calvino e Ulrich Zwinglio, vendo a triste situação em que se encontravam os homens da Igreja, quiseram empreender uma mudança, mas, no fim, acabaram mutilando a Igreja”. Conclusões semelhantes às dos dois estudantes anteriormente citados.

Para o pastor Paulo Júnior, em O que foi a Reforma Protestante? Afirma que “em uma época que o povo comum era privado da leitura das Escrituras e o papa liderava a cristandade com mãos de ferro, Lutero foi uma voz levantada por Deus para dar início a uma completa revolução espiritual na Alemanha. Lutero combateu os vários desvios doutrinários de sua época praticados pela Igreja Católica Romana, condenou veementemente a venda de indulgências, traduziu a Bíblia para o alemão e a colocou nas mãos do povo comum. Enfim, inflamou o coração de seus irmãos a uma busca sincera por Deus e o Cristianismo autêntico”.

Diferentes discursos, alguns do século XVI, outros do século XXI. Mesmo com inúmeros séculos de diferença entre uns e outros, eles possuem o mesmo objetivo: defender determinada visão de mundo. Os teólogos não estavam ao lado de Lutero na hora de fixar as 95 teses na porta da Igreja, nem os estudantes estavam do alto do castelo protestando contra a ação desse monge. Essas pessoas apenas defendem aquilo que lhes foi transmitido de determinada forma, oral ou escrita, dentro de uma visão religiosa de mundo. O curioso é observar como 500 anos depois o evento permanece vivo por meio da mentalidade e dos discursos sobre ele formados e propagados. É como se a qualquer momento Lutero ou o Papa Leão X fossem ressurgir e fazer uma observação: “não foi assim, pois eu estava lá”…


FONTES:

RICARDO, Paulo Pe. Por que não sou protestante? Disponível em: https://padrepauloricardo.org/episodios/por-que-nao-sou-protestante. Acesso em 28/05/2017.

JÚNIOR, Paulo Pr. O que foi a Reforma Protestante? Disponível em: https://defesadoevangelho.com.br/videos/o-que-foi-reforma-protestante/. Acesso em 28/05/2017.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

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terça-feira, 27 de setembro de 2016

Império Carolíngio: Renascimento e ascensão da Igreja (II)

Segunda e última parte do texto Império Carolíngio: Renascimento e ascensão da Igreja.

Iluminura representando a construção do Palácio Imperial de Carlos Magno. Grande Crônica da França (1455), Jean de Fouquet.

O renascimento carolíngio está pautado em três elementos: o pensamento, o livro e a liturgia. A corte de Carlos Magno e depois a de seu filho Luís, o Piedoso, cerca-se de homens letrados de vários cantos da Europa. Esses letrados carolíngios tem o objetivo de difundir os principais textos do Cristianismo: em primeiro lugar, as Sagradas Escrituras; depois, os textos litúrgicos utilizados para a celebração do culto e, por último, clássicos da literatura cristã. Carlos Magno desejava criar "uma nova Atenas enriquecida pela plenitude sétupla do Espírito Santo" (1). Para realizar essa missão, no entanto, foi necessária uma mudança nas técnicas literárias utilizadas até então.

Os clérigos carolíngios passaram a utilizar a 'minúscula carolíngia', uma letra menor e mais elegante, que tornava os livros mais manuseáveis e legíveis. Além disso, os escritores carolíngios começam a separar, graças a um sistema de pontuação, as palavras umas das outras, assim como as frases. A partir dessas mudanças, a produção de livros aumenta de forma considerável, pois os monges copistas passam a trabalhar, em seus escritórios, de forma mais organizada. A maior parte dessas cópias era destinada ao culto cristão, outras, menos numerosas, eram sobre literatura latina. Preservar a literatura dos antigos permitia o conhecimento do paganismo, uma forma de conhecer o inimigo, e o aprendizado de regras de latim.

Aliás, o domínio das regras do latim é essencial para difusão dos textos antigos. O latim evoluía e variava de região para região. Para tentar garantir uma unidade, os clérigos restauram o latim, não da forma clássica, mas simplificado, para garantir uma transmissão correta do texto bíblico e dos fundamentos do pensamento cristão. Porém, eles reconhecem que as línguas faladas em outras regiões se distanciam cada vez mais do latim, e recomendam que os sermões sejam proferidos em línguas distintas. Instala-se um dualidade linguística na Europa: De um lado, o latim, uma língua erudita voltada para a leitura dos textos sagrados e da liturgia da Igreja; do outro, línguas vernáculas faladas por populações diversas.

O Império Carolíngio fez grande esforço para reformar a liturgia. Na Europa do século VIII existiam diferentes tradições litúrgicas, com características particulares para celebrar as festas e ritos cristãos. Além das liturgias romana, galicana e visigótica, existia uma infinidade dessas práticas em regiões menores do continente. Para o Império, que possui um projeto unificador, essa diversidade litúrgica é um empecilho para suas pretensões. Os monarcas carolíngios, então, voltam-se para Roma, com o objetivo de estender a liturgia que já era praticada nessa cidade. 

A base dessa reforma litúrgica é o sacramentário, livro essencial para a celebração da missa, que contém todas as fórmulas e regras que devem ser pronunciadas pelo sacerdote. O sacramentário enviado a Carlos Magno pelo papa, e revisado por Bento de Aniana, se torna o principal pilar do Ocidente cristão e garante a unificação desejada pelo imperador. A reforma litúrgica expressa bem a aliança entre esses dois poderes, Aix (capital imperial) e Roma (cidade papal).

Iniciado pela corte de Carlos Magno e continuado por seu filho, o renascimento artístico é inseparável do poder eclesiástico e imperial, e se espalha todos os domínios do imperador. São construídas igrejas imponentes, com um maciço voltado para a adoração aos santos e outro dedicado a Jesus Cristo; palácios e monastérios. 

O Monastério foi o embrião da universidade Ocidental. Localizados fora da malha urbana, esses locais tinham seu ensino dividido entre as Artes Mecânicas e as Artes Liberais. Em síntese, trabalho manual e trabalho intelectual. As primeiras artes eram dedicadas às camadas mais baixas da população, sendo as Artes Liberais destinadas para um pequeno número de aristocratas. As disciplinas Liberais eram divididas em: Quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia) e Trivium (lógica, gramática e retórica). O culto dos santos se tornou um sucesso no século VIII, fazendo com que as igrejas de peregrinação fossem ampliadas e que se realizassem reformas para facilitar o acesso dos fiéis às relíquias. 

A experiência de renascimento e restauração carolíngia foi de curta duração. Ela dura, em certos aspectos, até o reinado de Luís, o Piedoso (814-840). No entanto, com sua morte, o Império é repartido em 843 entre seus três filhos. Uma das características marcantes dos carolíngios e que contribuiu para a ruína do projeto imperial, foi o costume de repartir as posses imperiais entre os descendentes, o que cada vez mais fragmentava a Europa, dando origem ao atual mapa geopolítico do continente. Soma-se a esses fatores internos as incursões normandas e a pressão sobre a fronteira oriental. Os condes e outros aristocratas, que controlam as províncias, se mostram cada vez mais infiéis ao monarca, criando poderes autônomos.


NOTAS:

(1) A face cambiante da Europa. In: História em Revista 600 - 800: A Marcha do Islã. Time-Life, Rio de Janeiro: Editora Cidade Cultural. p. 82.

FONTES:

O Renascimento Carolíngio (séculos VIII e IX). In: BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução de Marcelo Rede. São Paulo: Editora Globo, 2006.

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