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domingo, 28 de abril de 2019

O mundo às vésperas das Revoluções Industrial e Francesa

Paisagem interiorana da Holanda. Pintura de Cornelis de Bruin (1652-1726).



Em a Era das Revoluções (1789-1848), o historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) analisa a derrocada do mundo feudal, do Antigo Regime, e a transição, marcada por conflitos e profundas transformações sociais, deste para uma nova realidade, a industrial e das democracias liberais. O século XVIII foi um período marcado por duas revoluções, a Industrial e a Francesa. Da primeira têm-se a constituição da estrutura econômica que dominará o mundo Ocidental. Da segunda, o arcabouço político teórico que sustentará a economia e os governos.

O mundo em 1780, às vésperas dessas revoluções, era ao mesmo tempo menor e maior que o nosso. Menor no sentido de que, na época, se conhecia pouco sobre os territórios, principalmente as regiões interioranas. Além do mais, a densidade demográfica era consideravelmente menor que a da atualidade. Epidemias, guerras, fatores climáticos e terras improdutivas eram barreiras para o estabelecimento e crescimento de colônia em regiões afastadas das áreas mais desenvolvidas. Os seres humanos também eram menores. Fatores biológicos ligados a alimentação produziam pessoas de estatura mais baixa que as atuais.

Ele tornava-se maior dadas as dificuldades em locomoção e comunicação com outras regiões, o que abria diversas possibilidades. Existiam dois meios de transporte, o marítimo e o terrestre. O primeiro era mais eficiente que o segundo, mas ainda assim passava por alguns problemas, principalmente a variação dos ventos e dos mares. As viagens terrestres, apesar da construção de estradas e a existência de charretes e carruagens, eram perigosas, onerosas e lentas. Uma cidade portuária da América do Norte estava mais perto de Paris do que uma cidade interiorana francesa. Em uma realidade majoritariamente rural, com mobilidade por terra problemática e navegação variável, as pessoas costumavam morrer no mesmo local em que nasciam sem nunca terem conhecido outras realidades. Jornais e cartas já eram uma realidade, mas o grosso da população era analfabeta, existindo uma certa mobilidade apenas entre viajantes, mercadores e membros da burocracia estatal, que tinham a necessidade de deslocar-se para realizar suas funções, fossem elas nas colônias além-mar ou no interior das cidades provinciais.

Poucas eram as cidades densamente habitadas. Da Rússia à Itália, entre 70 e 90% da população era rural. Apenas Londres e Paris eram cidades cujas populações eram, respectivamente, de 1 milhão e 500 mil habitantes. No mais, existiam cidades com pouco mais de 20 mil habitantes, cujas vidas estavam centradas na Igreja, na Praça e na atividade agrícola. Uma cidade desse tipo era dividida do mundo rural pelos seguintes aspectos: a presença de um aparato arquitetônico e estatal mínimos (igreja, praça, cobrança de impostos) e as vestes e estatura de seus habitantes, geralmente melhores e maiores que os trabalhadores rurais.

Esse mundo estava dividido em zonas de trabalho. Nas colônias da América predominava a escravidão indígena e africana voltada para o cultivo de gêneros primários que abasteciam a Europa. A leste da Europa Ocidental ficavam as propriedades de trabalho agrário servil. Na região Oriental o sistema de trabalho beirava a escravidão. Os trabalhadores eram ‘tecnicamente’ livres, mas ainda assim estavam presos a obrigações como o pagamento de dízimos as paróquias das quais faziam parte e a utilização de mecanismos, como o moinho, por exemplo, geralmente pertencentes a grandes proprietários. Com exceção da Inglaterra, em que a agricultura já estava sendo direcionada a um mercado mais amplo, um dos fatores para o seu pioneirismo industrial, toda a produção das outras localidades sustentava a necessidade e consumo regionais.

Predominava o modelo político das Monarquias Absolutistas, característico do Antigo Regime. Essa organização política estava assentada em privilégios monárquicos que se refletiam em todos os níveis da sociedade, principalmente na terra, defendida pelos fisiocratas franceses como a única fonte de riqueza. Os nobres alugavam suas terras aos camponeses, cobrando uma parte da produção ou um aluguel em dinheiro. Quando esse sistema econômico tornou-se obsoleto, desgastado, os membros da corte passaram a utilizar seus títulos de nobreza para se apropriarem dos cargos burocráticos, para dessa forma manterem seu estilo de vida aristocrático. Esses privilégios sobre a terra terão um peso decisivo na Revolução Francesa, em 1789. O status monárquico e a posse de grandes propriedades de terra eram as bases dos estados europeus.

Em síntese, o mundo, mais especificamente a realidade europeia, as vésperas das revoluções industrial e francesa, era predominantemente rural e menor por suas características limitadas de conhecimento e mobilidade, mas esta última característica o tornava maior dadas as possibilidades ainda não plenamente exploradas.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 20º ed., 2006.



CRÉDITO DA IMAGEM

Cornelis de Bruin Gallery.

sábado, 28 de maio de 2016

Prefácio dos Estudos Históricos de René Chateaubriand (II)


Segunda parte do texto Prefácio dos Estudos Históricos de René Chateaubriand, agora focado nos escritores da história geral e história crítica da França, antes da Revolução de 1789; e a Escola Histórica moderna da França.


ESCRITORES DA HISTÓRIA GERAL E HISTÓRIA CRÍTICA DA FRANÇA, ANTES DA REVOLUÇÃO

Os julgamentos são muito duros hoje sobre os escritores que trabalharam em nossos anais antes da revolução. Suponhamos que nossa história geral estivesse para ser composta; que fosse preciso tirá-la de manuscritos ou mesmo de documentos impressos; que fosse preciso desenrolar a cronologia, discutir os fatos, estabelecer os reinos; eu sustento que, apesar de nossa ciência inata e todo nosso saber adquirido, não colocaríamos três volumes em pé. Quantos entre nós poderiam decifrar uma linha das cartas originais, quantos poderiam lê-las, mesmo com a ajuda dos alfabetos, dos specimen e fac-simile inseridos na Re diplomatica de Mabillon¹ e em outras obras? Somos muito impacientes de exibir nossos pensamentos; desdenhamos demais nossos antecessores para nos conformar com o modesto papel de leitores de cartulários. Se lêssemos, teríamos menos tempo para escrever, e que furto feito à posteridade! Qualquer que seja nosso justo orgulho, ousaria eu suplicar a nossa superioridade que não quebre muito depressa as muletas sobre as quais ela se arrasta de asas dobradas? Quando, com datas bem corretas, fatos bem exatos, impressos em belo francês num caractere bem legível, nós compomos à vontade histórias novas, saibamos ser gratos a esses espíritos obscuros, a esses trabalhos aos quais nos basta capturar os farrapos de nosso gênio para pasmar o universo maravilhado. [...]

A respeito das liberdades, uma observação análoga se apresenta. Os historiadores do século XVIII não podiam compreendê-la como nós; não lhes faltava nem imparcialidade, nem independência, nem coragem. Mas eles não tinham essas noções gerais das coisas que o tempo e a revolução desenvolveram. A história faz progressos dos quais são privadas algumas outras partes da inteligência letrada. A língua, quando atinge sua maturidade, permanece nesse estado ou se deteriora. Podem-se fazer versos diferentes dos de Racine, nunca melhores: a poesia tem suas fronteiras nos limites do idioma em que é escrita e cantada. Mas a história, sem se corromper, muda de caráter com os tempos, porque se compõe de fatos adquiridos e verdades encontradas, porque refaz seus julgamentos por suas experiências, porque, sendo o reflexo dos costumes e das opiniões do homem, é suscetível do aperfeiçoamento da espécie humana. Do ponto de vista físico, a sociedade, com as descobertas modernas, não é mais a sociedade sem essas descobertas; para a moral, esta sociedade, com as ideias engrandecidas tais como estão nos dias atuais, não é mais a sociedade sem estas ideias: o Nilo em sua nascente não é o Nilo de sua embocadura. Em uma palavra, os historiadores do século XIX nada criaram; somente têm um mundo novo sob os olhos, e esse mundo novo lhes serve de escala retificada para mensurar o antigo mundo.

Feita toda justiça aos homens de mérito que trataram de nossa história geral antes da revolução, eu diria com a mesma imparcialidade que não precisamos tomá-los por guias. Não podemos nos dispensar de recorrer aos originais, pois esses escritores os liam de modo diferente do nosso e com um outro espírito: eles não procuravam ali as coisas que nós procuramos, eles nem sequer as viam; rejeitavam precisamente o que recolhemos. Não escolhiam, por exemplo, nas obras dos padres da igreja senão o que concerne ao dogma e à doutrina do cristianismo: os costumes, os usos, as ideias não lhes pareciam ter nenhuma importância. Toda uma história nova está escondida nos escritos dos padres; esses estudos indicarão o caminho para ela. Não sabemos nada sobre a civilização grega e romana dos séculos V, VI e VII, nem sobre a barbárie dos destruidores do mundo romano, senão pelos escritores eclesiásticos dessa época.

Sobre nossos próprios monumentos, descobertas da mesma natureza estão por ser feitas. Antes da revolução, não se interrogavam os manuscritos apenas no tocante ao clero, aos nobres e aos reis. Nós não nos interrogamos senão sobre o que diz respeito aos povos e às transformações sociais/ ora, isto ficou sepultado nas cartas.

Os escritores pré-revolucionários da história crítica da França são tão numerosos que é impossível indicá-los todos: alguns somente devem ser assinalados como chefes de escola.

A Histoire de l' établissement de la monarchie française dans les Gaules é uma obra sólida, com frequência atacada, nunca derrubada, mesmo por Montesquieu, que aliás sabia poucas coisas sobre os francos. Rouba-se o abade Dubos sem admitir o pequeno furto: seria mais leal reconhecê-lo.

O mesmo ocorre com o abade de Gourcy: sua pequena Dissertation sur l' état des personnes en France sous la première et la seconde race, coroada pela Académie des Inscriptions, é de um método, de uma clareza e de um saber raros. O que se escreve hoje sobre o mesmo tema em parte é furtado do excelente trabalho de Gourcy: é acertado não refazer um trabalho árduo tão bem feito, mas seria necessário avisar, para deixar o elogio a quem direito. Existem, pois, homens que estão consagrados a servir de monitores a outros [...].

Desses detalhes resulta que duas escolas históricas se distinguem antes da época da revolução: a escola do século XVIII e a escola do século XIX; uma erudita e religiosa, a outra crítica e filosófica: na primeira, os beneditinos ajuntavam os fatos, e Bossuet os proclamava na Terra; na segunda, os enciclopedistas criticavam os fatos, e Voltaire os entregava aos debates da multidão. A Inglaterra fundou perto de nós sua escola exata, mais desembaraçada que a nossa dos preconceitos antirreligiosos. Nossa escola moderna do século XIX pode ser chamada de escola política: ela é filosófica também, mas de modo diferente que a do século XVIII. Falemos disso.

¹ Jean Mabillon (1632-1707), monge beneditino e historiador francês a quem se atribui o estatuto de fundador da paleografia e da diplomática como auxiliares importantes da pesquisa histórica, na medida em que pretendia construir instrumentos para discernir os documentos verdadeiros dos falsos (N. do T.)


ESCOLA HISTÓRICA MODERNA DA FRANÇA

A escola moderna se divide em dois sistemas principais: no primeiro, a história deve ser escrita sem reflexões; deve consistir na simples narrativa dos eventos, e na pintura dos costumes; deve apresentar um quadro ingênuo, variado, pleno dos episódios, deixando cada leitor, segundo a natureza de seu espírito, livre para tirar as consequências dos princípios e extrair as verdades gerais das verdades particulares. É o que se chama de história descritiva, por oposição à história filosófica do século passado.

No segundo sistema, é preciso narrar os fatos gerais, suprimindo neles uma parte dos detalhes; substituir a história da espécie pela do indivíduo; permanecer impassível diante do vício e da virtude assim como diante das catástrofes mais trágicas. É a história fatalista ou o fatalismo aplicado à história.

Vou expor minhas dúvidas sobre esses dois sistemas.

A história descritiva, levada a seus últimos limites, não entraria demais na natureza da memória? O pensamento filosófico, empregado com sobriedade, não seria necessário para dar à história sua gravidade, para fazê-la pronunciar sentenças que são da alçada de seu último e supremo tribunal? No grau de civilização a que chegamos, poderia a história da espécie desaparecer inteiramente da história do indivíduo? Deveriam as verdades eternas, bases da sociedade humana, se perder nos quadros que não representam senão costumes privados?

Existem no homem dois homens: o homem de seu século e o homem de todos os séculos: o grande pintor deve acima de tudo se fixar na semelhança deste último. Talvez hoje se valorizem demais a semelhança, e, pode-se dizer, a cópia da fisionomia de cada época. É possível que, na história como nas artes, representemos melhor do que faziam antigamente os costumes, os interiores, todo o material da sociedade; mas uma figura de Rafael, com o fundo negligenciado e flagrantes anacronismos, não apagaria as perfeições da segunda ordem? Quando se representavam os personagens de Racine com as perucas à moda de Luís XIV, os espectadores não ficavam nem menos maravilhados nem menos comovidos. Por quê? porque se via o homem no lugar de homens. [...]

Eis o que me parece verdadeiro no sistema da história descritiva: a história nunca é uma obra de filosofia; ela é um quadro; é preciso juntar à narração a representação do objeto, ou seja, é preciso ao mesmo tempo desenhar e pintar; é preciso dar aos personagens a linguagem e os sentimentos de seu tempo, não olhá-los através de nossas próprias opiniões, principal causa da alteração dos fatos. Se, tomando por regra aquilo que acreditamos da liberdade, da igualdade, da religião, de todos os princípios políticos, aplicamos essa regra à antiga ordem das coisas, nós falseamos a verdade, exigimos dos homens que vivem nessa ordem coisas das quais eles nem mesmo tinham ideia. Nada estava tão mal quanto pensávamos; o padre, o nobre, o burguês, o vassalo possuíam noções do justo e do injusto diferentes das nossas: era um outro mundo, um mundo sem dúvida menos próximo dos princípios gerais naturais do que o mundo presente, mas ao qual não faltavam nem grandeza, nem força, como testemunham seus atos e sua duração. Não nos apressemos em nos pronunciar muito desdenhosamente sobre o passado: quem sabe se a sociedade desse momento, que nos parecia superior (e que foi de fato em muitos pontos) à antiga sociedade, não parecerá a nossos sobrinhos, dentro de dois ou três séculos, aquilo que nos parece a sociedade de dois ou três séculos anteriores ao nosso? Nos alegraríamos no túmulo de sermos julgados pelas gerações futuras com o mesmo rigor com que julgamos nossos ancestrais? O que há de bom, de sincero na história descritiva é que ela narra os tempos tais como eles foram.

O outro sistema histórico moderno, o sistema fatalista, tem, acredito, inconvenientes bem menos graves, porque ele separa a moral da ação humana; sob esse aspecto terei daqui a pouco ocasião de combatê-lo, falando dos escritores de talento que o adotaram. Aqui direi somente que o sistema que baniu o indivíduo para se ocupar apenas da espécie caiu no excesso oposto ao sistema da história descritiva. Anular totalmente o indivíduo, não lhe dar senão a posição de uma cifra, a qual vem numa série de um número, é contestar-lhe o valor absoluto que ele possui, independentemente de seu valor relativo. Assim como um século influi sobre um homem, um homem influi sobre um século; e se um homem é o representante das ideias do tempo, muito mais ainda o tempo é o representante das ideias do homem.

O segundo sistema da história moderna tem seu lado verdadeiro, tal como o primeiro. É certo que não se pode hoje omitir a história da espécie; que há realmente revoluções inevitáveis porque elas não são realizadas nos espíritos antes de serem realizadas no exterior; que a história da humanidade, da sociedade geral, da civilização universal, não deve ser mascarada pela história da individualidade social, pelos eventos particulares a um século e a um país. A perfeição seria o manejo dos três sistemas: a história filosófica, a história particular, a história geral; admitir as reflexões, os quadros, os grandes resultados da civilização, rejeitando dos três sistemas aquilo que possuem de exclusivo e de sofístico.

Ademais, se é bom possuir alguns princípios fixados ao tomar da pena, é, parece-me, uma questão ociosa perguntar como a história deve ser escrita: cada historiador a escreve segundo seu próprio gênio; um a conta bem, outro a pinta melhor; este aqui é sentencioso, aquele outro, indiferente ou patético, incrédulo ou religioso: toda matéria é boa, desde que verdadeira. Juntar a gravidade da história ao interesse da memória, ser ao mesmo tempo Tucídides e Plutarco, Tácito e Suetônio, Bossuet e Froissard, e assentar os fundamentos de seu trabalho sobre os princípios gerais da escola moderna, que maravilha! Mas e aqueles aos quais o céu não atribuiu esse conjunto de talentos, dos quais um apenas serie suficiente para a glória de muitos homens? Cada um escreverá como vê, como sente; não se pode exigir do historiador senão o conhecimento dos fatos, a imparcialidade do julgamento e o estilo, se puder.


CRÉDITO DA IMAGEM:

commons.wikimedia.org



sábado, 21 de maio de 2016

Prefácio dos Estudos Históricos de René Chateaubriand (I)



François-René Auguste, visconde de Chateaubriand (1768-1848) foi escritor, ensaísta, diplomata, político e historiador francês, considerado um dos principais nomes do pré-romantismo. De família nobre, caracterizou-se pela defesa da religião católica e da Monarquia francesa, em obras como Ensaio histórico, político e moral sobre as revoluções antigas e modernas (1794-1797) e O gênio do Cristianismo (1802). Não via com bons olhos Napoleão Bonaparte, para ele um estrangeiro (Napoleão nascera na Itália) que usurpou o trono francês. Isso lhe rendeu perseguições e censura. Com o fim da Era Napoleônica, em 1815, voltou ao prestígio e liberdade de produção literária. Como pré-romântico, valorizava as emoções, a imaginação e a religiosidade na história, em oposição a super valorização da razão e do anticlericalismo que dominara a Europa durante a Revolução de 1789. Também escreveu os romances AtalaOs natchesesRené e o relato Viagem à América

No prefácio de seus Estudos Históricos, Chateaubriand empreende um trabalho metódico sobre a História, pautado pela erudição documental de decretos reais, leis, cartas e dicionários. Essas fontes passavam por uma análise minuciosa, estabelecida no século XVII por Jean Mabillon, em De re diplomatica (1681), a fim de garantir uma narrativa segura. Da escola histórica alemã, a qual tinha um conhecimento escasso, valorizava os contos populares, as lendas, as poesias medievais e gestas escandinavas como fontes históricas, não se limitando à história política. Também expressa suas dúvidas sobre os rumos da História em seu tempo; discorre sobre os historiadores franceses e a história crítica da França antes da revolução; analisa a escola histórica moderna da França, a escola história da Alemanha, a Filosofia da História e a história na Inglaterra e na Itália. Por ser um prefácio extenso, irei dividir o texto em três partes.


ÉTUDES HISTORIQUES (1843)

Heródoto começou sua história declarando os motivos que o fizeram empreendê-la; Tácito explicou as razões que lhe colocaram a pena na mão. Sem ter os talentos desses historiadores, posso imitar seu exemplo; posso dizer, como Heródoto, que escrevo para a glória de minha pátria, e porque vi os males dos homens. Mais livre que Tácito, não amo nem temo os tiranos. Agora isolado sobre a Terra, não esperando nada de meus trabalhos, encontro-me na posição mais favorável para a independência do escritor, pois já convivo com as gerações das quais evoquei as sombras.

As sociedades antigas perecem; de suas ruínas saem sociedades novas: leis, costumes, usos, hábitos, opiniões, princípios mesmo, tudo mudou. Uma grande revolução aconteceu, uma grande revolução se prepara: a França deve recompor seus anais, para colocá-los em contato com os progressos da inteligência. Nessa necessidade de uma reconstrução sobre um novo, onde buscar materiais? Quais foram os trabalhos executados antes do nosso tempo? Que existe a louvar ou a lamentar nos escritores da antiga escola histórica? Deve a nova escola ser inteiramente seguida, quais são os autores mais notáveis dessa escola? Seria tudo verdadeiro nas teorias religiosas, filosóficas e políticas do momento? Eis o que me proponho examinar neste prefácio. Eu trabalhava havia anos em uma história da França, da qual estes estudos não representam senão a exposição, as visões gerais e os destroços. Falta minha vida à minha obra: no caminho onde o tempo me retém, eu aponto com a mão aos jovens viajantes as pedras que eu havia acumulado, o solo e o lugar onde eu queria construir meu edifício.

Os antigos haviam concebido a história de modo muito diferente do nosso; eles a consideravam um simples ensinamento, e, sob esse aspecto, Aristóteles a colocou num patamar inferior ao da poesia; eles concediam pouca importância à verdade material; e isso lhes bastava, ainda que houvesse nela um fato verdadeiro ou falso a relatar, que esse fato oferecesse um grande espetáculo ou uma lição de moral e de política. Liberados dessas imensas leituras sob as quais a imaginação e a memória são igualmente esmagadas, eles tinham poucos documentos para consultar; suas citações são quase nada, e quando eles remetem a uma autoridade, é quase sempre sem indicação precisa. Heródoto contentou-se em dizer em seu primeiro livro, Clio, que escrevia conforme os historiadores da Pérsia e da Fenícia; em seu segundo livro, Euterpe, ele falava conforme os sacerdotes egípcios que lhe leram seus anais. Ele reproduziu um verso da Ilíada, uma passagem da Odisseia, um fragmento de Ésquilo: não fizeram falta a Heródoto outras autoridades, nem aos seus ouvintes nos Jogos Olímpicos. Tucídides não fez uma única citação: mencionou somente alguns cantos populares.

Tito Lívio nunca se apoiou sobre um texto: autores, os historiadores relatam; é sua maneira de proceder. Em sua terceira Década, ele lembrou os dizeres de Cintius Alimentus, prisioneiro de Aníbal, e de Coelius e Valerius sobre a guerra púnica.

Em Tácito as autoridades são menos raras, ainda que bem pouco numerosas; não se podem contar senão 13 referências: são elas, no primeiro livro dos Annales, Plínio, historiador das guerras da Germânia; no quarto livro, as Memórias de Agripina, mãe de Nero, obra cuja perda nunca será suficientemente lamentada; no terceiro livro, Fábio Rústico, o historiador Plínio e Cluvius; no 14° livro, Cluvius; no 15°, Plínio. No terceiro livro de Histórias, Tácito mencionou Massala e Plínio, e remeteu às Memórias que tinha em mãos; no quarto livro, ele se referiu aos sacerdotes egípcios; nos Costumes dos germânicos, escreveu um verso de Virgílio modificado. Com frequência ele dizia: "os historiadores destes tempos relatam": temporum illorum scriptores prodiderint; ele explicou seu sistema declarando que não mencionava os nomes dos autores a não ser quando divergiam entre si. Assim, duas citações vagas em Heródoto, nenhuma em Tucídides, duas ou três em Tito Lívio e 13 em Tácito formam todo o corpo de autoridades desses historiadores. Alguns biógrafos como Suetônio e Plutarco, sobretudo, leram um pouco mais das Memórias; mas as numerosas citações são deixadas aos compiladores, como Plínio, o naturalista, Ateneu, Macróbio e São Clemente de Alexandria, em seus Stromateis.

Os analistas da Antiguidade não faziam entrar em seus relatos o quadro dos diferentes ramos da administração; as ciências, as artes, a educação pública eram rejeitas do domínio da história; Clio caminhava agilmente, desembaraçada da bagagem pesada que arrasta hoje atrás de si. Com frequência o historiador era apenas um viajante relatando o que havia visto. Agora a história é uma enciclopédia; é preciso tudo incluir nela, da astronomia à química; da arte das finanças à da manufatura; do conhecimento do pintor, do escultor e do arquiteto até a ciência do economista; do estudo das leis eclesiásticas, civis e criminais até o das leis políticas. O historiador moderno abandona-se ao relato de uma cena de costumes e de paixões, a gabela sucede o belo ambiente; um outro imposto exige; a guerra, a navegação, o comércio acorrem. Como as armas era feitas então? De onde se tirava a madeira de construção? Quanto valia a libra de pimenta? Tudo estará perdido se o autor não observar que o ano começava na Páscoa e ele o datou do 1° de janeiro. Como pretender que sua palavra seja confiável, se ele se enganou sobre a página de uma citação, ou se ele referiu mal a edição? A sociedade permanece desconhecida, se forem ignorados a cor dos calções do rei e o preço do marco de prata. Esse historiador deve saber não apenas o que se passou em sua pátria, mas também nas terras vizinhas; e entre esses detalhes é preciso que uma ideia filosófica esteja presente em seu pensamento e lhe sirva de guia. Eis os inconvenientes da história moderna: eles são tais que nos impediram talvez de ter um dia historiadores como Tucídides, Tito Lívio e Tácito; mas não se pode evitar esses inconvenientes é preciso submeter-se a eles.

O escritor chamado a pintar um dia um grande quadro de nossa história não se limitará à procura das fontes de onde saíram imediatamente os francos e os franceses; ele estudará os primeiros séculos das sociedades vizinhas da França, porque os jovens povos de diversos lugares, como as crianças de diversos países, possuem entre si a semelhança comum que lhes dá a natureza, e porque esses povos, nascidos de um pequeno número de famílias aliadas, conservam em sua adolescência a marca dos cuidados maternos.

Quatro espécies de documentos contêm a história inteira das nações na ordem sucessiva de sua idade: as poesias, as leis, as crônicas de fatos gerais, as memórias que pintam os costumes e a vida privada. Primeiro os homens cantam; depois escrevem.

Nós não temos mais os bardits¹ que Carlos Magno fez recolher; não nos resta senão uma onde em honra da vitória que Luís, filho de Luís, o Gago, alcançou em 881 sobre os normandos; mas o monge de Saint-Gall e Ermold, o Negro, escreveram inteiramente ao gosto da canção germânica.

A mitologia e as poesias escandinavas; os edda² e as sagas; os cantos dos scaldes, que Snorron, Saxão, o Gramático, Adam de Bremen e as crônicas anglo-saxônicas nos conservaram; os nibelungos, ainda que de data mais recente, suprem nossas perdas: veremos o uso que faço deles procurando a história dos costumes bárbaros. Quanto ao que concerne às línguas, os evangelhos godos de Ulfilas são um tesouro.

Para o sul da França, Raynouard reabilitou a antiga língua românica e, publicando as poesias escritas ou cantadas nessa língua, prestou um importante serviço.

Fauriel, a quem devemos a bela tradução de cantos populares da Grécia, deve mostrar, na formação da língua românica, os traços de línguas antigas da Gália ainda faladas hoje: uma na Escócia, outra no país de Gales e na Baixa Bretanha, a terceira entre os bascos. Ele anotou um poema sobre as guerras dos árabes da Espanha e dos cristãos da Occitânia, cujo herói é um príncipe aquitano chamado Walther: não seria ele Waiffre? Muitos cantos rememoram as rebeliões de diversos chefes do sul da França contra os monarcas carolíngios: isto serve cada vez mais para provar que as hostilidades de Carlos Martel, Pepino e Carlos Magno, contra os príncipes da Aquitânia, tiveram por causa uma inimizade de raça, os descendentes dos merovíngios reinando do outro lado do Loire. Fizeram-nos esperar que Fauriel se ocupasse de uma história dos bárbaros nas províncias meridionais da França: o objeto seria digno de seu raro saber e de seus talentos.

Não é preciso se ater às leis sálica, ripuária e burgúndia para o estudo das leis bárbaras; devem-se considerar como capítulos de um mesmo código nacional as leis lombardas, alemãs, bávaras, russas (estas não senão o direito sueco), algo-saxãs e gálicas; com as últimas pode-se reconstruir muitas partes do primitivo edifício gaulês. Todas essas leis foram impressas separadamente ou em diferentes coletâneas dos historiadores da França, da Itália, da Alemanha e da Inglaterra. [...]

Entretanto, não abusemos, como estamos demasiado inclinados a fazer, das origens escandinavas, eslavas e tudescas. Parece hoje que toda nossa história esteja na Alemanha, que não se encontram senão lá nossas antiguidades e os homens que as conheceram. Os 40 anos de nossa revolução interromperam os estudos na França, enquanto eles continuaram nas universidades germânicas. Os alemães conquistaram sobre nós uma parte do tempo que havíamos ganhado deles. Mas se, pelo direito, pela filologia e pela filosofia, eles nos superam atualmente, eles estão ainda longe de chegar em história ao ponto em que estávamos quando nossos tumultos explodiram.

Rendamos justiça aos sábios da Alemanha, mas saibamos que os povos setentrionais são, como povos, muitos séculos mais jovens do que nós; que nossas cartas remontam muito mais no tempo que as deles; que os imensos trabalhos beneditinos de Saint-Maur e Saint-Vannes começaram bem antes que os trabalhos históricos dos professores de Gottinguer, Iena, Bonn, Dresden, Weimar, Brunswick, Berlim, Viena, Bresgurg etc.; que os eruditos franceses, superiores pela clareza e precisão aos eruditos de além-Reno, os ultrapassam ainda pela solidez e universalidade das pesquisas. Os alemães não nos superam verdadeiramente senão na codificação; ainda os grandes legistas, Cujas, Domat, Dumoulin, Pothier, sejam franceses. Nossos vizinhos têm sobre as origens das nações bárbaras algumas noções particulares, que eles devem às línguas faladas na Dalmácia, Hungria, Sérvia, Boêmia, Polônia etc.; mas um espírito sadio não deve dar muita importância a tais estudos que terminam por degenerar em uma metafísica da gramática, que parece tanto mais maravilhosa quanto está afogada na obscuridade.[...] Falemos do que nos pertence e indiquemos nossas próprias riquezas. Rendamos de início uma brilhante homenagem a essa escola dos beneditinos que nada jamais substituirá. Se eu não fosse agora um estrangeiro no solo que me viu nascer; se eu tivesse o direito de propor alguma coisa, eu ousaria solicitar o restabelecimento de uma ordem que tem tantos méritos nas letras. Eu queria ver reviver a congregação de Saint-Maur e Saint-Vannes na abadia de Saint-Denis, à sombra da igreja de Dagoberto, junto desses túmulos cujas cinzas foram jogadas ao vento no momento em que se dispersava a poeira do Trésor de Chartes: não eram necessárias às crianças³ de uma liberdade sem lei e, consequentemente, se mãe senão bibliotecas e sepulcros vazios. [...]

E, no entanto, posto que não somos tocados senão pelos fatos, nós deveríamos reconhecer que o passado é um fato, um fato que nada pode destruir, enquanto o futuro, tão caro a nós, não existe. Existem para um povo milhões de milhões de futuros possíveis. De todos esses futuros um só acontecerá, e talvez o menos previsto. Se o passado não é nada, que é o futuro senão uma sombra à beira do Letes, que não aparecerá talvez nunca neste mundo? Nós vivemos entre um nada e uma quimera [...].


¹Canto dos bardos. (N. do T.)
²Coleção de poemas escritos em norueguês antigo e recolhidos no manuscrito islandês Codex Regius. Constitui a principal fonte sobre a mitologia nórdica e os heróis lendários germânicos. (N. do T.)
³No original, enfants de la liberté, referência ao verso da Marselha. (N. do T.)


CRÉDITO DA IMAGEM:

Editora Bartillat