Segunda parte do texto Prefácio dos Estudos Históricos de René Chateaubriand, agora focado nos escritores da história geral e história crítica da França, antes da Revolução de 1789; e a Escola Histórica moderna da França.
ESCRITORES DA HISTÓRIA GERAL E HISTÓRIA CRÍTICA DA FRANÇA, ANTES DA REVOLUÇÃO
Os julgamentos são muito duros hoje sobre os escritores que trabalharam em nossos anais antes da revolução. Suponhamos que nossa história geral estivesse para ser composta; que fosse preciso tirá-la de manuscritos ou mesmo de documentos impressos; que fosse preciso desenrolar a cronologia, discutir os fatos, estabelecer os reinos; eu sustento que, apesar de nossa ciência inata e todo nosso saber adquirido, não colocaríamos três volumes em pé. Quantos entre nós poderiam decifrar uma linha das cartas originais, quantos poderiam lê-las, mesmo com a ajuda dos alfabetos, dos specimen e fac-simile inseridos na Re diplomatica de Mabillon¹ e em outras obras? Somos muito impacientes de exibir nossos pensamentos; desdenhamos demais nossos antecessores para nos conformar com o modesto papel de leitores de cartulários. Se lêssemos, teríamos menos tempo para escrever, e que furto feito à posteridade! Qualquer que seja nosso justo orgulho, ousaria eu suplicar a nossa superioridade que não quebre muito depressa as muletas sobre as quais ela se arrasta de asas dobradas? Quando, com datas bem corretas, fatos bem exatos, impressos em belo francês num caractere bem legível, nós compomos à vontade histórias novas, saibamos ser gratos a esses espíritos obscuros, a esses trabalhos aos quais nos basta capturar os farrapos de nosso gênio para pasmar o universo maravilhado. [...]
A respeito das liberdades, uma observação análoga se apresenta. Os historiadores do século XVIII não podiam compreendê-la como nós; não lhes faltava nem imparcialidade, nem independência, nem coragem. Mas eles não tinham essas noções gerais das coisas que o tempo e a revolução desenvolveram. A história faz progressos dos quais são privadas algumas outras partes da inteligência letrada. A língua, quando atinge sua maturidade, permanece nesse estado ou se deteriora. Podem-se fazer versos diferentes dos de Racine, nunca melhores: a poesia tem suas fronteiras nos limites do idioma em que é escrita e cantada. Mas a história, sem se corromper, muda de caráter com os tempos, porque se compõe de fatos adquiridos e verdades encontradas, porque refaz seus julgamentos por suas experiências, porque, sendo o reflexo dos costumes e das opiniões do homem, é suscetível do aperfeiçoamento da espécie humana. Do ponto de vista físico, a sociedade, com as descobertas modernas, não é mais a sociedade sem essas descobertas; para a moral, esta sociedade, com as ideias engrandecidas tais como estão nos dias atuais, não é mais a sociedade sem estas ideias: o Nilo em sua nascente não é o Nilo de sua embocadura. Em uma palavra, os historiadores do século XIX nada criaram; somente têm um mundo novo sob os olhos, e esse mundo novo lhes serve de escala retificada para mensurar o antigo mundo.
Feita toda justiça aos homens de mérito que trataram de nossa história geral antes da revolução, eu diria com a mesma imparcialidade que não precisamos tomá-los por guias. Não podemos nos dispensar de recorrer aos originais, pois esses escritores os liam de modo diferente do nosso e com um outro espírito: eles não procuravam ali as coisas que nós procuramos, eles nem sequer as viam; rejeitavam precisamente o que recolhemos. Não escolhiam, por exemplo, nas obras dos padres da igreja senão o que concerne ao dogma e à doutrina do cristianismo: os costumes, os usos, as ideias não lhes pareciam ter nenhuma importância. Toda uma história nova está escondida nos escritos dos padres; esses estudos indicarão o caminho para ela. Não sabemos nada sobre a civilização grega e romana dos séculos V, VI e VII, nem sobre a barbárie dos destruidores do mundo romano, senão pelos escritores eclesiásticos dessa época.
Sobre nossos próprios monumentos, descobertas da mesma natureza estão por ser feitas. Antes da revolução, não se interrogavam os manuscritos apenas no tocante ao clero, aos nobres e aos reis. Nós não nos interrogamos senão sobre o que diz respeito aos povos e às transformações sociais/ ora, isto ficou sepultado nas cartas.
Os escritores pré-revolucionários da história crítica da França são tão numerosos que é impossível indicá-los todos: alguns somente devem ser assinalados como chefes de escola.
A Histoire de l' établissement de la monarchie française dans les Gaules é uma obra sólida, com frequência atacada, nunca derrubada, mesmo por Montesquieu, que aliás sabia poucas coisas sobre os francos. Rouba-se o abade Dubos sem admitir o pequeno furto: seria mais leal reconhecê-lo.
O mesmo ocorre com o abade de Gourcy: sua pequena Dissertation sur l' état des personnes en France sous la première et la seconde race, coroada pela Académie des Inscriptions, é de um método, de uma clareza e de um saber raros. O que se escreve hoje sobre o mesmo tema em parte é furtado do excelente trabalho de Gourcy: é acertado não refazer um trabalho árduo tão bem feito, mas seria necessário avisar, para deixar o elogio a quem direito. Existem, pois, homens que estão consagrados a servir de monitores a outros [...].
Desses detalhes resulta que duas escolas históricas se distinguem antes da época da revolução: a escola do século XVIII e a escola do século XIX; uma erudita e religiosa, a outra crítica e filosófica: na primeira, os beneditinos ajuntavam os fatos, e Bossuet os proclamava na Terra; na segunda, os enciclopedistas criticavam os fatos, e Voltaire os entregava aos debates da multidão. A Inglaterra fundou perto de nós sua escola exata, mais desembaraçada que a nossa dos preconceitos antirreligiosos. Nossa escola moderna do século XIX pode ser chamada de escola política: ela é filosófica também, mas de modo diferente que a do século XVIII. Falemos disso.
¹ Jean Mabillon (1632-1707), monge beneditino e historiador francês a quem se atribui o estatuto de fundador da paleografia e da diplomática como auxiliares importantes da pesquisa histórica, na medida em que pretendia construir instrumentos para discernir os documentos verdadeiros dos falsos (N. do T.)
ESCOLA HISTÓRICA MODERNA DA FRANÇA
A escola moderna se divide em dois sistemas principais: no primeiro, a história deve ser escrita sem reflexões; deve consistir na simples narrativa dos eventos, e na pintura dos costumes; deve apresentar um quadro ingênuo, variado, pleno dos episódios, deixando cada leitor, segundo a natureza de seu espírito, livre para tirar as consequências dos princípios e extrair as verdades gerais das verdades particulares. É o que se chama de história descritiva, por oposição à história filosófica do século passado.
No segundo sistema, é preciso narrar os fatos gerais, suprimindo neles uma parte dos detalhes; substituir a história da espécie pela do indivíduo; permanecer impassível diante do vício e da virtude assim como diante das catástrofes mais trágicas. É a história fatalista ou o fatalismo aplicado à história.
Vou expor minhas dúvidas sobre esses dois sistemas.
A história descritiva, levada a seus últimos limites, não entraria demais na natureza da memória? O pensamento filosófico, empregado com sobriedade, não seria necessário para dar à história sua gravidade, para fazê-la pronunciar sentenças que são da alçada de seu último e supremo tribunal? No grau de civilização a que chegamos, poderia a história da espécie desaparecer inteiramente da história do indivíduo? Deveriam as verdades eternas, bases da sociedade humana, se perder nos quadros que não representam senão costumes privados?
Existem no homem dois homens: o homem de seu século e o homem de todos os séculos: o grande pintor deve acima de tudo se fixar na semelhança deste último. Talvez hoje se valorizem demais a semelhança, e, pode-se dizer, a cópia da fisionomia de cada época. É possível que, na história como nas artes, representemos melhor do que faziam antigamente os costumes, os interiores, todo o material da sociedade; mas uma figura de Rafael, com o fundo negligenciado e flagrantes anacronismos, não apagaria as perfeições da segunda ordem? Quando se representavam os personagens de Racine com as perucas à moda de Luís XIV, os espectadores não ficavam nem menos maravilhados nem menos comovidos. Por quê? porque se via o homem no lugar de homens. [...]
Eis o que me parece verdadeiro no sistema da história descritiva: a história nunca é uma obra de filosofia; ela é um quadro; é preciso juntar à narração a representação do objeto, ou seja, é preciso ao mesmo tempo desenhar e pintar; é preciso dar aos personagens a linguagem e os sentimentos de seu tempo, não olhá-los através de nossas próprias opiniões, principal causa da alteração dos fatos. Se, tomando por regra aquilo que acreditamos da liberdade, da igualdade, da religião, de todos os princípios políticos, aplicamos essa regra à antiga ordem das coisas, nós falseamos a verdade, exigimos dos homens que vivem nessa ordem coisas das quais eles nem mesmo tinham ideia. Nada estava tão mal quanto pensávamos; o padre, o nobre, o burguês, o vassalo possuíam noções do justo e do injusto diferentes das nossas: era um outro mundo, um mundo sem dúvida menos próximo dos princípios gerais naturais do que o mundo presente, mas ao qual não faltavam nem grandeza, nem força, como testemunham seus atos e sua duração. Não nos apressemos em nos pronunciar muito desdenhosamente sobre o passado: quem sabe se a sociedade desse momento, que nos parecia superior (e que foi de fato em muitos pontos) à antiga sociedade, não parecerá a nossos sobrinhos, dentro de dois ou três séculos, aquilo que nos parece a sociedade de dois ou três séculos anteriores ao nosso? Nos alegraríamos no túmulo de sermos julgados pelas gerações futuras com o mesmo rigor com que julgamos nossos ancestrais? O que há de bom, de sincero na história descritiva é que ela narra os tempos tais como eles foram.
O outro sistema histórico moderno, o sistema fatalista, tem, acredito, inconvenientes bem menos graves, porque ele separa a moral da ação humana; sob esse aspecto terei daqui a pouco ocasião de combatê-lo, falando dos escritores de talento que o adotaram. Aqui direi somente que o sistema que baniu o indivíduo para se ocupar apenas da espécie caiu no excesso oposto ao sistema da história descritiva. Anular totalmente o indivíduo, não lhe dar senão a posição de uma cifra, a qual vem numa série de um número, é contestar-lhe o valor absoluto que ele possui, independentemente de seu valor relativo. Assim como um século influi sobre um homem, um homem influi sobre um século; e se um homem é o representante das ideias do tempo, muito mais ainda o tempo é o representante das ideias do homem.
O segundo sistema da história moderna tem seu lado verdadeiro, tal como o primeiro. É certo que não se pode hoje omitir a história da espécie; que há realmente revoluções inevitáveis porque elas não são realizadas nos espíritos antes de serem realizadas no exterior; que a história da humanidade, da sociedade geral, da civilização universal, não deve ser mascarada pela história da individualidade social, pelos eventos particulares a um século e a um país. A perfeição seria o manejo dos três sistemas: a história filosófica, a história particular, a história geral; admitir as reflexões, os quadros, os grandes resultados da civilização, rejeitando dos três sistemas aquilo que possuem de exclusivo e de sofístico.
Ademais, se é bom possuir alguns princípios fixados ao tomar da pena, é, parece-me, uma questão ociosa perguntar como a história deve ser escrita: cada historiador a escreve segundo seu próprio gênio; um a conta bem, outro a pinta melhor; este aqui é sentencioso, aquele outro, indiferente ou patético, incrédulo ou religioso: toda matéria é boa, desde que verdadeira. Juntar a gravidade da história ao interesse da memória, ser ao mesmo tempo Tucídides e Plutarco, Tácito e Suetônio, Bossuet e Froissard, e assentar os fundamentos de seu trabalho sobre os princípios gerais da escola moderna, que maravilha! Mas e aqueles aos quais o céu não atribuiu esse conjunto de talentos, dos quais um apenas serie suficiente para a glória de muitos homens? Cada um escreverá como vê, como sente; não se pode exigir do historiador senão o conhecimento dos fatos, a imparcialidade do julgamento e o estilo, se puder.
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