Os passageiros do Mayflower assinam o "Pacto de Mayflower", 1620. Jean Leon Jerome Ferris, século XIX.
Quando
os primeiros colonizadores chegaram à América do Norte, vindos da
Inglaterra e da França (século XVII), se depararam com povos
nativos que se distinguiam por suas práticas religiosas, línguas,
formas de subsistência e de se vestir. O continente e seus
habitantes trouxeram grande impacto para esses europeus, que
primeiramente passaram a estudá-los como um ramo da história
natural, filosófica e conjectural. Já vimos como se desenvolveu a
escrita da História na América Espanhola (ver A Historiografia da Conquista I), com um pano de fundo clerical, ligado ao
catolicismo. Agora, vamos ter a influência religiosa protestante na
América do Norte; e, mais tarde, a construção de uma história
secular.
Os
escritos do espanhol José de Acosta influenciaram a produção
historiográfica na América do Norte. Sua concepção de que os
nativos não poderiam ter uma “história oficial” fez com que os
americanos estudassem esses povos como um ramo da História Natural,
Filosófica e Conjectural. Bebendo direto de fontes clássicas como
Tácito, Heródoto, César, Plínio e Estrabão, o jesuíta francês
Jean-François Lafitau (1681-1746), que viveu na Nova França e
entrou em contato com os iroqueses, escreveu Costumes dos
selvagens americanos comparados aos costumes dos primeiros tempos
(1724), onde os nativos americanos eram comparados a
tribos da Antiguidade. Lafitau,
jesuíta, via nos nativos exemplos de combate ao ateísmo, mostrando
que até os “selvagens” acreditavam no divino. Em sua obra também
são
abordadas guerras, instrumentos musicais, práticas religiosas e
linguagem. Costumes dos selvagens
é uma mistura de tradição medieval e clássica; relatos de viagens
do século XVI; e comparativismo iluminista. Lafitau
via nos indígenas costumes asiáticos e
uma influência destes, o
que, atualmente, é uma das teorias de povoação da América:
“Como
era o costume entre os antigos comer deitado sobre sofás, o mesmo é
ainda o costume entre os índios sul-americanos que, embora tenham
pequenos assentos com três pés como bancos de sapateiros sobre os
quais eles comem ordinariamente, com muita frequência também fazem
seus repastos deitados em redes como o fazem os índios
norte-americanos que comem sentados nas mesmas esteiras em que
dormem”.1
O
período colonial foi marcado por conflitos internos entre ingleses e
franceses, que aliavam-se, cada um, a tribos antagônicas.
A Guerra do Rei Felipe
(1675-1678); a Guerra dos Sete Anos (1756-1763); e outros conflitos
serviram de tema para a história militar em obras como História
de New Hampshire (1784), de
Jeremy Belknap, crítico da escravidão e da ação dos colonizadores
contra os índios. Cadwallader
Colden descreveu os iroqueses em História das cinco nações
indígenas dependentes da Província de Nova York na América,
e defendia a tese de que os
eles
deveriam ser guardados
como aliados contra a investida francesa a partir do Canadá. O
que se escrevia na América anglo-saxônica sobre história era mais
um relato sobre a flora, a fauna e os costumes dos nativos do que uma
narrativa do passado propriamente dita. O primeiro historiador a
escrever realmente uma narrativa
sobre passado colonial foi o
explorador John Smith (1579-1631) em Uma verdadeira relação
(1608) e História
geral da Virgínia, da Nova Inglaterra, e das Ilhas de Verão (1624).
O
fervor religioso protestante dominará por muito tempo a
historiografia dessa parte da América. Autores como John Foxe e Sir
Walter Ralegh serão lidos e utilizados como base intelectual por
diversos historiadores. A América era uma versão distante da terra
prometida; os sobreviventes
do naufrágio do Mayflower eram os escolhidos para assentar uma
sociedade próspera; e a domesticação da natureza e do elemento
nativo eram provas de que essa era a vontade de Deus. Existe
uma lista extensa desses trabalhos históricos providencialistas, e
dela podemos citar: A providência milagrosa do Salvador de
Sion na Nova Inglaterra (1654),
de Edward Johnson (1599-1672); História do assentamento de
Plymouth (1856), de William
Bradford (1590-1657); e
História Geral da Nova Inglaterra até 1630 (1815),
de William Hubbard (1621-1704). Increase Mather (1639-1723) escreveu
Breve história da guerra com os índios da Nova
Inglaterra, história de cunho
militar e providencialista.
A
região da Nova Inglaterra era o polo irradiador de obras históricas,
com destaque para a Baía de Massachusetts, de
onde saiam análises históricas a partir da perspectiva local, como
em Visão sumária, histórica e política dos
assentamentos na América do Norte (1747-1750),
do médico bostoniano William Douglass (1691-1752). O
filho de Increase, Cotton Mather, produziu uma grandiosa História
eclesiástica da Nova Inglaterra (1693-1702),
dividida em sete livros: No
primeiro livro, são abordados os assentamentos coloniais da Nova
Inglaterra; O segundo e terceiro livros são dedicados a
biografias de figuras públicas importantes; o IV trata da história
da Universidade de Harvard; e os três últimos são a história
eclesiástica propriamente dita.
O
último historiador do período colonial foi o governador civil de
Massachusetts, Thomas Hutchinson (1711-1780), político moderado que
tentou, em vão, conciliar os colonos revolucionários e o governo
britânico. Publicou em 1764 o primeiro volume de História
da Colônia da Baía de Massachusetts, produzido
através de farta documentação da biblioteca de Samuel Mather,
filho de Cotton. A narrativa
abrange os primórdios de Massachusetts, como um simples assentamento
puritano, até sua transformação em rica região comercial. Em
1765, durante os tumultos ocasionados pela Lei do Selo, Hutchinson
teve sua biblioteca
invadida e viu seus documentos serem destruídos, sendo assim
interrompida a publicação de um novo volume. Conseguindo
recuperar um rascunho do II volume, o governador o publica em 1767.
Com o aumento das tensões entre colônia e metrópole, Hutchinson
deixa a colônia e a América em 1774, terminando sua obra no
exterior.
Declaração da Independência dos Estados Unidos, 1776. John Trumbull, 1819.
Entre
tantos historiadores, uma mulher iria se destacar por produzir uma
das principais e mais respeitadas obras sobre a Revolução
Americana. Mercy Otis Warren (1728-1814), revolucionária da causa
republicana, concluiu em 1791 e publicou em 1805 a História
do surgimento, progresso e término da Revolução Americana.
Em sua obra, Mercy combinou
os testemunhos de figuras políticas com um rico material documental,
coroados por sua narrativa vigorosa e bem estruturada. No
extrato abaixo, vamos perceber que, para Warren, a História deve ser
estudada através de um trabalho mútuo entre investigação,
reflexão e precisão de linguagem:
A
história, o depósito de crimes e o registro de tudo o que é infame
ou honorífico à humanidade, requer um conhecimento justo do
caráter, para investigar as fontes de ação; uma clara compreensão,
para revisar a combinação de causas; e precisão de linguagem, para
detalhar os eventos que produziram as mais notáveis revoluções.
Analisar
as fontes secretas que efetuaram as mudanças progressivas na
sociedade; para traçar a origem das várias formas de governo, as
consequentes melhorias na ciência, na moralidade, ou a tintura
nacional que marca a condução do povo sob formas despóticas ou
mais liberais, é um trabalho audacioso e ousado…
O
amor pela dominação e uma luxúria descontrolada de poder
arbitrário prevaleceram entre todas as nações, e talvez
proporcionalmente aos graus de civilização. Elas foram igualmente
conspícuas no declínio da virtude romana, e nas páginas negras da
história britânica. Foram esses princípios que arruinaram essa
antiga república. Foram esses princípios que frequentemente
envolveram a Inglaterra em conflitos civis. Foi
a resistência a eles que levou um de seus monarcas à barricada e
retirou outro de seu trono. Foi a prevalência deles que conduziu os
primeiros colonizadores da América, de suas elegantes habitações e
afluentes circunstâncias, a buscarem um asilo nas regiões frias e
incultas do mundo ocidental. Oprimidos na Grã-Bretanha por reis
despóticos, e perseguidos pela fúria do prelado, fugiram para um
país distante, onde os desejos humanos fossem limitados pelas
carências da natureza; onde a civilização não havia criado
aqueles anseios artificiais que tão frequentemente rompem todo laço
moral e religioso para sua gratificação2.
Terminada
a revolução, a
historiografia norte-americana seria orientada para a reflexão
filosófica e política, em busca de respostas para questões como
qual tipo de república estabelecer, quais posições tomar em
relação a escravidão, como se daria a expansão rumo ao Oeste e
como
o elemento nativo deveria ser tratado de agora em diante. O médico
David Ramsay sintetizou essas questões nas obras A
História da Revolução da Carolina do Sul (1785);
História da Revolução Americana (1789);
e História dos Estados Unidos.
Sua História da Revolução
Americana começa com a história dos assentamentos coloniais, no
século XVII, e passa para os conflitos entre colônia e metrópole,
iniciados em 1764. Era um autor moderado, antiescravagista,
primeiramente republicano e, mais tarde, federalista. Em
1817, dois anos após a morte de Ramsay, aparece História
dos Estados Unidos, obra que
marca sua transição de autor moderado para conservador. Sua visão
mais amigável aos índios mudou para uma feroz defesa do
expansionismo contra esse elemento; e suas críticas à escravidão
praticamente desapareceram.
Neste
último texto da série Historiografia da Conquista,
podemos perceber como a escrita da História nos Estados Unidos,
assim como na América Espanhola, passou por diferentes estágios de
evolução: Num primeiro momento, vamos ter uma narrativa que foca
mais na comparação cultural, na descrição da fauna e da flora do
que no passado; depois, o protestantismo se tornaria o ponto de
partida para uma história providencialista, na qual o novo
continente seria uma versão da terra prometida; por último, no
final do século XVIII, surgem narrativas sobre o passado americano,
já com traços de uma identidade nacional que se estabeleceria após
a Revolução, e histórias filosóficas sobre os novos rumos do país
após a independência em relação à Grã-Bretanha.
1LAFITAU,
J.F. Customs of the American Indians. Vol.
I. Wisconsin, Champlain Society, 1974, p.
225.
2WARREN,
M. O. “Introductory Observations”. In: COHEN, L. H. (org.).
History of the Rise, Progress, and Termination of the
American Revolution. 2Vols.
Indianápolis: Liberty Classics, 1988, vol I. p. 3-5.
FONTES:
WOOLF, Daniel. Uma história global da história. Tradução de Caesar Souza. Petrópolis, RJ, Vozes, 2014.
Library of Congress
CRÉDITO DAS IMAGENS:
Library of Congress
commons.wikimedia.org
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