quarta-feira, 18 de maio de 2016

A Historiografia Norte-Americana: da Colonização à Independência

Os passageiros do Mayflower assinam o "Pacto de Mayflower", 1620. Jean Leon Jerome Ferris, século XIX.

Quando os primeiros colonizadores chegaram à América do Norte, vindos da Inglaterra e da França (século XVII), se depararam com povos nativos que se distinguiam por suas práticas religiosas, línguas, formas de subsistência e de se vestir. O continente e seus habitantes trouxeram grande impacto para esses europeus, que primeiramente passaram a estudá-los como um ramo da história natural, filosófica e conjectural. Já vimos como se desenvolveu a escrita da História na América Espanhola (ver A Historiografia da Conquista I), com um pano de fundo clerical, ligado ao catolicismo. Agora, vamos ter a influência religiosa protestante na América do Norte; e, mais tarde, a construção de uma história secular.

Os escritos do espanhol José de Acosta influenciaram a produção historiográfica na América do Norte. Sua concepção de que os nativos não poderiam ter uma “história oficial” fez com que os americanos estudassem esses povos como um ramo da História Natural, Filosófica e Conjectural. Bebendo direto de fontes clássicas como Tácito, Heródoto, César, Plínio e Estrabão, o jesuíta francês Jean-François Lafitau (1681-1746), que viveu na Nova França e entrou em contato com os iroqueses, escreveu Costumes dos selvagens americanos comparados aos costumes dos primeiros tempos (1724), onde os nativos americanos eram comparados a tribos da Antiguidade. Lafitau, jesuíta, via nos nativos exemplos de combate ao ateísmo, mostrando que até os “selvagens” acreditavam no divino. Em sua obra também são abordadas guerras, instrumentos musicais, práticas religiosas e linguagem. Costumes dos selvagens é uma mistura de tradição medieval e clássica; relatos de viagens do século XVI; e comparativismo iluminista. Lafitau via nos indígenas costumes asiáticos e uma influência destes, o que, atualmente, é uma das teorias de povoação da América:

“Como era o costume entre os antigos comer deitado sobre sofás, o mesmo é ainda o costume entre os índios sul-americanos que, embora tenham pequenos assentos com três pés como bancos de sapateiros sobre os quais eles comem ordinariamente, com muita frequência também fazem seus repastos deitados em redes como o fazem os índios norte-americanos que comem sentados nas mesmas esteiras em que dormem”.1

O período colonial foi marcado por conflitos internos entre ingleses e franceses, que aliavam-se, cada um, a tribos antagônicas. A Guerra do Rei Felipe (1675-1678); a Guerra dos Sete Anos (1756-1763); e outros conflitos serviram de tema para a história militar em obras como História de New Hampshire (1784), de Jeremy Belknap, crítico da escravidão e da ação dos colonizadores contra os índios. Cadwallader Colden descreveu os iroqueses em História das cinco nações indígenas dependentes da Província de Nova York na América, e defendia a tese de que os eles deveriam ser guardados como aliados contra a investida francesa a partir do Canadá. O que se escrevia na América anglo-saxônica sobre história era mais um relato sobre a flora, a fauna e os costumes dos nativos do que uma narrativa do passado propriamente dita. O primeiro historiador a escrever realmente uma narrativa sobre passado colonial foi o explorador John Smith (1579-1631) em Uma verdadeira relação (1608) e História geral da Virgínia, da Nova Inglaterra, e das Ilhas de Verão (1624).

O fervor religioso protestante dominará por muito tempo a historiografia dessa parte da América. Autores como John Foxe e Sir Walter Ralegh serão lidos e utilizados como base intelectual por diversos historiadores. A América era uma versão distante da terra prometida; os sobreviventes do naufrágio do Mayflower eram os escolhidos para assentar uma sociedade próspera; e a domesticação da natureza e do elemento nativo eram provas de que essa era a vontade de Deus. Existe uma lista extensa desses trabalhos históricos providencialistas, e dela podemos citar: A providência milagrosa do Salvador de Sion na Nova Inglaterra (1654), de Edward Johnson (1599-1672); História do assentamento de Plymouth (1856), de William Bradford (1590-1657); e História Geral da Nova Inglaterra até 1630 (1815), de William Hubbard (1621-1704). Increase Mather (1639-1723) escreveu Breve história da guerra com os índios da Nova Inglaterra, história de cunho militar e providencialista.

A região da Nova Inglaterra era o polo irradiador de obras históricas, com destaque para a Baía de Massachusetts, de onde saiam análises históricas a partir da perspectiva local, como em Visão sumária, histórica e política dos assentamentos na América do Norte (1747-1750), do médico bostoniano William Douglass (1691-1752). O filho de Increase, Cotton Mather, produziu uma grandiosa História eclesiástica da Nova Inglaterra (1693-1702), dividida em sete livros: No primeiro livro, são abordados os assentamentos coloniais da Nova Inglaterra; O segundo e terceiro livros são dedicados a biografias de figuras públicas importantes; o IV trata da história da Universidade de Harvard; e os três últimos são a história eclesiástica propriamente dita.

O último historiador do período colonial foi o governador civil de Massachusetts, Thomas Hutchinson (1711-1780), político moderado que tentou, em vão, conciliar os colonos revolucionários e o governo britânico. Publicou em 1764 o primeiro volume de História da Colônia da Baía de Massachusetts, produzido através de farta documentação da biblioteca de Samuel Mather, filho de Cotton. A narrativa abrange os primórdios de Massachusetts, como um simples assentamento puritano, até sua transformação em rica região comercial. Em 1765, durante os tumultos ocasionados pela Lei do Selo, Hutchinson teve sua biblioteca invadida e viu seus documentos serem destruídos, sendo assim interrompida a publicação de um novo volume. Conseguindo recuperar um rascunho do II volume, o governador o publica em 1767. Com o aumento das tensões entre colônia e metrópole, Hutchinson deixa a colônia e a América em 1774, terminando sua obra no exterior.

Declaração da Independência dos Estados Unidos, 1776. John Trumbull, 1819.

Entre tantos historiadores, uma mulher iria se destacar por produzir uma das principais e mais respeitadas obras sobre a Revolução Americana. Mercy Otis Warren (1728-1814), revolucionária da causa republicana, concluiu em 1791 e publicou em 1805 a História do surgimento, progresso e término da Revolução Americana. Em sua obra, Mercy combinou os testemunhos de figuras políticas com um rico material documental, coroados por sua narrativa vigorosa e bem estruturada. No extrato abaixo, vamos perceber que, para Warren, a História deve ser estudada através de um trabalho mútuo entre investigação, reflexão e precisão de linguagem:

A história, o depósito de crimes e o registro de tudo o que é infame ou honorífico à humanidade, requer um conhecimento justo do caráter, para investigar as fontes de ação; uma clara compreensão, para revisar a combinação de causas; e precisão de linguagem, para detalhar os eventos que produziram as mais notáveis revoluções.

Analisar as fontes secretas que efetuaram as mudanças progressivas na sociedade; para traçar a origem das várias formas de governo, as consequentes melhorias na ciência, na moralidade, ou a tintura nacional que marca a condução do povo sob formas despóticas ou mais liberais, é um trabalho audacioso e ousado…

O amor pela dominação e uma luxúria descontrolada de poder arbitrário prevaleceram entre todas as nações, e talvez proporcionalmente aos graus de civilização. Elas foram igualmente conspícuas no declínio da virtude romana, e nas páginas negras da história britânica. Foram esses princípios que arruinaram essa antiga república. Foram esses princípios que frequentemente envolveram a Inglaterra em conflitos civis. Foi a resistência a eles que levou um de seus monarcas à barricada e retirou outro de seu trono. Foi a prevalência deles que conduziu os primeiros colonizadores da América, de suas elegantes habitações e afluentes circunstâncias, a buscarem um asilo nas regiões frias e incultas do mundo ocidental. Oprimidos na Grã-Bretanha por reis despóticos, e perseguidos pela fúria do prelado, fugiram para um país distante, onde os desejos humanos fossem limitados pelas carências da natureza; onde a civilização não havia criado aqueles anseios artificiais que tão frequentemente rompem todo laço moral e religioso para sua gratificação2.

Terminada a revolução, a historiografia norte-americana seria orientada para a reflexão filosófica e política, em busca de respostas para questões como qual tipo de república estabelecer, quais posições tomar em relação a escravidão, como se daria a expansão rumo ao Oeste e como o elemento nativo deveria ser tratado de agora em diante. O médico David Ramsay sintetizou essas questões nas obras A História da Revolução da Carolina do Sul (1785); História da Revolução Americana (1789); e História dos Estados Unidos. Sua História da Revolução Americana começa com a história dos assentamentos coloniais, no século XVII, e passa para os conflitos entre colônia e metrópole, iniciados em 1764. Era um autor moderado, antiescravagista, primeiramente republicano e, mais tarde, federalista. Em 1817, dois anos após a morte de Ramsay, aparece História dos Estados Unidos, obra que marca sua transição de autor moderado para conservador. Sua visão mais amigável aos índios mudou para uma feroz defesa do expansionismo contra esse elemento; e suas críticas à escravidão praticamente desapareceram.

Neste último texto da série Historiografia da Conquista, podemos perceber como a escrita da História nos Estados Unidos, assim como na América Espanhola, passou por diferentes estágios de evolução: Num primeiro momento, vamos ter uma narrativa que foca mais na comparação cultural, na descrição da fauna e da flora do que no passado; depois, o protestantismo se tornaria o ponto de partida para uma história providencialista, na qual o novo continente seria uma versão da terra prometida; por último, no final do século XVIII, surgem narrativas sobre o passado americano, já com traços de uma identidade nacional que se estabeleceria após a Revolução, e histórias filosóficas sobre os novos rumos do país após a independência em relação à Grã-Bretanha.



1LAFITAU, J.F. Customs of the American Indians. Vol. I. Wisconsin, Champlain Society, 1974, p. 225.

2WARREN, M. O. “Introductory Observations”. In: COHEN, L. H. (org.). History of the Rise, Progress, and Termination of the American Revolution. 2Vols. Indianápolis: Liberty Classics, 1988, vol I. p. 3-5.


FONTES:

WOOLF, Daniel. Uma história global da história. Tradução de Caesar Souza. Petrópolis, RJ, Vozes, 2014.

Library of Congress

CRÉDITO DAS IMAGENS:

Library of Congress
commons.wikimedia.org

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