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sábado, 18 de novembro de 2017

Canções da Guerra Civil


Reproduzo a seguir, de forma integral, o capítulo Canções da Guerra Civil, do livro História da Música Popular Americana (1963), de David Ewen, onde são abordadas as canções criadas durante esse conflito, canções essas que expressavam os diferentes sentimentos que surgiam nos campos de batalha do Sul e do Norte:

Origina-se da Guerra Civil uma rica literatura de canções que refletem os vários graus de emoção despertados em ambos os campos de luta - o fervor e as amarguras, a exaltação e o desespero, as esperanças e as frustrações, a nostalgia e a solidão.

As primeiras canções da Guerra Civil destinavam-se a inflamar o patriotismo dos beligerantes, a insuflá-los para a luta. O Sul apropriou-se da melodia da canção de "minstrel show" de Dan Emmett, "Dixie", paramentou-a com nova letra marcial, e adotou-a como sua canção de guerra. O fato de ser nortista o autor de "Dixie" foi convenientemente esquecido, tendo sido admitido que circulasse uma notícia segundo a qual a música era em verdade da autoria de um negro, que falava de seus laços indissolúveis com o seu senhor e as terras do Sul. Durante toda a guerra, "Dixie" foi a canção favorita do Sul. Momentos antes de o General Pickett atacar Gettysburg, ordenou que a executassem, para levantar o moral das tropas. Depois de Appomattox, Abraham Lincoln observou que, uma vez que o Norte conquistara o Sul, também conquistara "Dixie", como presa de guerra. Como prova de seu próprio entusiasmo por "Dixie", pediu à banda que se achava nas proximidades da Casa Branca que a tocasse para ele.

Considerando a íntima identificação de "Dixie" com o Sul, seu autor - Dan Emmett - tornou-se alvo dos ataques de diversos jornais do Norte, apesar de ter sido apenas vítima inocente de uma confiscação. Para contrabalançar a influência de sua canção no Sul, Emmett escreveu uma nova letra para sua melodia, exortando o Norte a recordar-se de Bunker Hill e a "receber aqueles traidores do Sul com firmeza". Mas, embora com esses novos versos, "Dixie" nunca se tornou popular no Norte.

"Maryland, My Maryland" foi outra canção de guerra grandemente querida no Sul. A letra era da autoria de James Ryder Randall, professor de Literatura Inglesa no Colégio Poydras, em Louisiana. Tendo lido, num noticiário de jornal, a maneira como, ao passarem por Baltimore, tinham sido atacadas as tropas do Norte, Randall de logo percebeu nesse episódio uma fonte preciosa de propaganda para ajudar a fazer com que Maryland aderisse ao Sul. Numa noite de vigília de 1861, escreveu um inflamado poema, "Maryland, My Maryland", e conseguiu publicá-lo num jornal de Baltimore. Pouco depois, num comício destinado a incitar o povo de Baltimore a aderir à causa do Sul, o poema foi cantado por Jennie Cary, com a conhecida melodia alemã, "O Tannenbaum". Provocou tal explosão de entusiasmo, que os que se achavam fora do auditório afluíram às janelas para saber o que ocorria. Jennie Cary voltaria a interpretar a canção, com igual sucesso, num concerto para os homens das forças de Beauregard. Em 1862, a canção foi publicada, letra e música, alcançando imediata e ampla popularidade.

"The Bonnie Blue Flag" foi uma terceira canção a tornar-se popular no Sul, cabendo a honra dessa popularidade a Henry Macarthy, artista de teatro. Sua letra descrevia os acontecimentos que conduziram à secessão; a melodia era a de uma cantiga popular irlandesa, "The Jaunting Car". Macarthy lançou "The Bonnie Blue Flag" num ato por ele apresentado em Nova Orleans, em 1861, o qual depois seria repetido através de todo o Sul, onde a canção foi ouvida e adotada pelos soldados Confederados.

Mas, como no campo de batalha, foi ao Norte que coube a primazia na competição entre canções de guerra. Porque foi o Norte, e não o Sul, que produziu os dois principais compositores desse gênero de música: George Frederick Root e Henry Work.

George Frederick Root (1820-1895) nasceu em Sheffield, Massachusetts, e recebeu uma perfeita educação musical em Boston e Paris. Depois de haver-se dedicado ao ensino da música em Boston e Nova Iorque, propendeu para a composição de música popular - aparentemente com uma certa dose de condescendência, tanto assim que a edição de seus trabalhos foi feita sob pseudônimo - Wurzel (Wurzel é a tradução alemã da palavra Root, raiz). Várias de suas canções publicadas entre 1853 e 1855 obtiveram sucesso: "The Hazel Dell", "Rosalie, the Prairie Flower", "There's Music in the Air" (que mais tarde gozaria de popularidade em diversos colégios) e o hino evangélico "The Shining Shore".

Em 1859, Root transferiu-se para Chicago, onde se faria sócio da casa editora Root and Cady, que seu irmão mais velho ajudara a fundar um ano antes. Ao irromper a Guerra Civil, Root, como compositor de canções, orientou sua atividade para o esforço de guerra, escrevendo tanto a letra como a música de suas composições. Sua primeira canção de guerra, "The First Gun Is Fired", estimulada pela segunda convocação de Lincoln dirigida aos voluntários, em 1863, não passou de um fracasso, mas a segunda canção, "The Battle Cry of Freedom", publicada naquele mesmo ano pela firma Root and Cady, foi sua obra prima. O "duo" de cantores, Frank e Jules Lombard, apresentou a canção de maneira tão impressionante, num comício realizado na Chicago Court House Square, que o auditório, em conjunto, começou a cantar espontaneamente um dos refrões. A canção tornou-se particularmente popular entre os soldados da União. Escrevia um deles na época: "Uma sociedade de canto, que veio ao campo de batalha, de Chicago, trouxe consigo essa canção recém-lançada, que cruzou o campo como um relâmpago. O efeito foi quase milagroso. Comunicou uma alegria e um entusiasmo imenso às tropas, como se se tratasse de uma esplêndida vitória. Era ouvida noite e dia, em torno de cada fogueira e em todas as barracas. Jamais me esquecerei de como aqueles homens estrondeavam a frase - 'E embora possa ser pobre, jamais será escravo'".

Root continuou a produzir canções de guerra - algumas marciais, outras sentimentais - até o fim do conflito. As melhores foram: "Just Before the Battle, Mother", em 1863; "Tramp! Tramp! Tramp!", em 1864; e, em 1865, "On, On, the Boys Came Marching" e "The Vacant Chair", esta última inspirada na morte de um tenente do 15° Regimento de Infantaria de Massachusetts.

Henry Clay Work (1832-1884), levado por seus profundos sentimentos abolicionistas e unionistas, escreveu algumas das mais eloquentes canções de Guerra do Norte. Como Root, compunha letra e música. Era filho de um ativo abolicionista, cujo lar era uma estação no Caminho de Ferro Subterrâneo¹ por onde mais de 4.000 escravos escaparam.

Work nasceu em Middletown, Connecticut. Quando trabalhava como aprendiz de tipógrafo em Hartford, descobriu um acordeão num quarto sobre a oficina e em breve estava a usá-lo para compor canções. Sua primeira canção foi "We Are Coming, Sister Mary", que, segundo dizem, foi comprada pelos "Ed Christy Minstrels" por 25 dólares, e cantada com sucesso durante os dez anos que se seguiram à sua primeira publicação. Em 1854, Work mudou-se para Chicago, para trabalhar como tipógrafo. Fez aí amizade com George Root, por cuja insistência começou a escrever canções de guerra, tão logo teve início a Guerra Civil. A primeira foi "Kingdom Coming", animada melodia popular para versos em dialeto negro. Alcançou tal sucesso, imediatamente após sua publicação pela firma Root and Cady, que Work se sentiu encorajado a abandonar a tipografia e dedicar-se à composição de canções. Depois da invasão da Pennsylvannia pelo General Lee, Work compôs "The Song Of Thousand Years", e, em consequência de sua apreensão ante o destino do Norte, compôs "God Save the Nation". Escreveu também agradáveis canções humorísticas: "Grafted into the Army", em 1862; "Babylon Is Fallen!", em 1863; e "Wake Nicodemus!", em 1864. A canção a que seu nome estará sempre associado apareceu em 1865, nos últimos meses da guerra. Trata-se de "Marching through Georgia", inspirada no histórico avanço do General Sherman para o mar. (Muitos anos depois, a Universidade de Princeton utilizou-se de sua melodia para uma canção de futebol).

Depois que o primeiro tiro foi desferido, também Stephen Foster começou a dirigir sua energia musical no sentido de compor canções de guerra. Ao contrário de Work e Root, não obstante, o que produziu foi muito fraco - entre as peças mais fracas de toda a sua obra. Nenhuma de suas canções de guerra gozou de particular popularidade, e nenhuma sobreviveu. Eis algumas das canções da Guerra Civil, de autoria de Foster: "We Are Coming, Father Abraham", com letra de James Sloan Gibbons, a qual já havia sido musicada por Luther Orlando Emerson, entre outros; "We, ve a Million in the Field" e "Was My Brother in the Battle?", todas de 1862; e, em 1863, "When This Dreadful War Is Ended", "My Boy is Coming from the War", "Nothing but a Plain Old Soldier" e "For the Dear Old Flag I Die".

Oriundas do Norte, mais três outras canções da Guerra Civil são ainda hoje relembradas. "The Battle Hymm of the Republic" era um poema da famosa sufragista e poetisa Julia Ward Howe, composto para uma melodia de William Steffe, muito difundida nos camp meetings² de congregações negras, e conhecidas como "Say Brothers, Will You Meet Us?". No começo da Guerra Civil, essa mesma melodia fora utilizada para a canção "John Brown's Body", que pretendia satirizar um ingênuo e infeliz soldado do 12° Regimento de Massachusetts. Quando os soldados do Norte marchavam para a luta, costumavam acertar o passo cantando essa vibrante canção. Julia Ward Howe ouviu-os cantá-la um dia, em dezembro de 1861, e nessa mesma noite, em seu quarto de hotel, escreveu para ela um eloquente poema, "The Battle Hymm of the Republic". Foi publicada pela primeira vez em The Atlantic Monthly, em fevereiro de 1862, e pouco depois republicada em vários jornais, revistas e em livros de hinos do exército. A canção foi publicada por três diferentes casas editoras. O capelão do 122° Regimento de Voluntários de Ohio ensinou-a a seus soldados. Diz-se que quando Lincoln a ouviu pela primeira vez ficou tão comovido que pediu que a cantassem novamente.

"Tenting on the Old Camp Ground", na qual a solidão terrível do soldado encontra pungente expressão, foi escrita por Walter Kittredge, em 1862. Na véspera de seu recrutamento, Kittredge compôs a letra e a música dessa triste canção, para traduzir seu próprio sofrimento por ter de abandonar o lar e a esposa. Tendo sido vítima, no entanto, de um ataque de febre reumática, o exército o dispensou. Tentaria, depois, vender a canção, mas sem exito, de vez que os editores, onde quer que os procurasse, consideravam-na por demais depressiva para que o público a apreciasse. Agradou, todavia, à Família Hutchinson, que repetidas vezes a apresentou em seus concertos, tendo sido por sua influência que afinal foi publicada por Oliver Ditson, em 1864, com resultados compensadores. Continuou sendo cantada muito tempo depois de terminada a guerra, como peça preferida em acampamentos de soldados, comícios e outros gêneros de reuniões marciais.

"When Johnny Comes Marching Home", de Patrick S. Gilmore, em verdade tornou-se famosa mais tarde, outra guerra, no que pese ter sido composta para a Guerra Civil, quando obteve o sucesso inicial, convém frisar. Patrick S. Gilmore (1829-1892) tornou-se famoso depois da Guerra Civil, como regente da célebre "Gilmore Band", que se exibiu em concertos através de toda a América e ajudou a popularizar a moda dos concertos de orquestras no país. Foi também organizador de grandiosos festivais e festas comemorativas, em que se utilizava de conjuntos musicais imensos. Gilmore fundou sua primeira orquestra exatamente um ano antes da Guerra Civil. Em 1860 incorporou esse conjunto ao 24° Regimento de Voluntários de Massachusetts, conquistando, em consequência, o título de Regente-Geral, com o posto de Coronel. Em 1863 escreveu a letra e a música de "When Johnny Comes Marching Home" e publicou-a sob o pseudônimo de Louis Lambert. Sua orquestra lançou a canção e ajudou a torná-la conhecida entre os soldados da União. Mesmo no Sul, a melodia era tão apreciada que foi usada como música de "For Bales!", canção de versos humorísticos. Mas a grande popularidade de "When Johnny Comes Marching Home" pertence a um período posterior. Revivida com êxito durante a Guerra Hispano-Americana, tornou-se uma de suas principais canções; é hoje em dia habitualmente associada apenas a esta última guerra. Desde o início deste século, "When Johnny Comes Marching Home" tem aparecido em variadas versões - como foxtrote - durante a I Guerra Mundial e como composição sinfônica em ambiciosas adaptações de Roy Harris e Morton Gould.

NOTAS:

¹ O Caminho de Ferro Subterrâneo "era simplesmente um caminho ao logo do qual os negros fugitivos eram auxiliados por filantropos brancos e por aqueles da sua própria raça que viviam nos estados não escravagistas". (Rex Harris - Jazz - p. 53 - Editora Ulisseia - Lisboa - Rio de Janeiro). Eram as "famosas rotas de evasão dos escravos através da fronteira para os estados do Norte". (Id.) (N. do T.)

² Camp meetings - Reuniões religiosas ao ar livre. (N. do T.)


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

EWEN, David. História da Música Popular Americana - As canções populares, o teatro musicado e o jazz na América, dos tempos coloniais aos dias de hoje. Tradução de Miécio Teti. Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes, 1963, p. 42-49.



CRÉDITO DA IMAGEM:

www.theamericanmirror.com

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Neocolonialismo e Guerra como "esperanças" de crescimento da Amazônia no pós-crise da borracha

Vila Operária de Fordlândia, às margens do rio Tapajós, no Pará, em 1933.

Na década de 20 do século passado, Europa e Estados Unidos controlavam boa parte dos países da África, Ásia, Oceania, Oriente Médio e América. A Amazônia foi economicamente controlada, por 30 anos, por agentes do capital estrangeiro. No entanto, uma dominação completa, característica do neocolonialismo (dominação política e econômica), surgiria na região, mais especificamente no Tapajós (PA) a partir do final dos anos 20.

Henry Ford, grande empresário da indústria automobilística do início do século XX, buscava a autossuficiência de matérias-primas para suas indústrias. Não só Henry, mas um grande número de empresários americanos voltariam a depender da borracha brasileira. Durante a Primeira Guerra, o comércio europeu se tornou instável, agravado que fora pelo bloqueio marítimo alemão. A Inglaterra, que detinha o monopólio da borracha, viu os estoques acumularem e os preços caírem. Visando garantir preços estáveis e impedir a acumulação do produto durante o pós-guerra, o país adotou, a partir de 1923, o Plano Stevenson, que, basicamente, passa a limitar a cota de cada produtor inglês.

Com menos matéria-prima no mercado e os preços novamente favoráveis aos ingleses, os grandes fabricantes americanos de pneus foram os mais prejudicados. Como reação, as grandes companhias da época (Goodyear, Firestone e Ford) passaram a buscar diferentes locais, da América à África, para implantar seus próprios seringais.

José Custódio Alves de Lima, cônsul geral do Brasil nos Estados Unidos, depois de saber do interesse do empresário em criar um seringal em Everglades, na Flórida, lhe sugeriu a Amazônia como local de implantação para seu projeto. José Custódio, em contato com Dionísio Bentes, governador do Pará, facilitou para Ford a aquisição de um milhão de hectares no Tapajós. A Companhia Ford, através de contrato firmado com o governo do Estado do Pará em 03/01/1927, tinha o direito à exploração das terras, dos minerais e de outras matérias-primas nela encontradas; de realizar a navegação nos rios Tapajós e Amazonas; construir estradas, armazéns, fábricas, criar núcleos de povoação, escolas, linhas de comunicação etc, sem necessidade do aval de qualquer autoridade. Poderia criar sua própria relação política, sem intervenção do governo. Estava, também, isenta de qualquer imposto pelo prazo de 50 anos. Surgiu um território americano na Amazônia, independente do Brasil, gerido por uma empresa privada.

Antigos trabalhadores das cidades do interior, dos seringais e de outras atividades atingidas pela grande crise, passaram a se dirigir à região que ficou conhecida como Fordlândia. Xingu, Madeira, Purus, Acre, Solimões, Guaporé e Jutaí foram os maiores “fornecedores” de mão de obra. Essas pessoas, acostumadas com um tradicional sistema de trabalho comandado pelo aviamento e pela rigidez do seringalista, pela primeira vez venderiam suas forças de trabalho através de um sistema de contrato. O funcionário recebia da Companhia uma chapa de alumínio, com seu número de identificação e tipo de serviço, pelo valor de dez mil réis. Através dessa chapa eram controladas as faltas, as licenças para tratamentos médicos, pagamentos de férias e transferências.

O regime de trabalho era pesado, indo de 7 da manhã à 17 da tarde, com direito a uma hora de intervalo. Relógios e sirenes ditavam o início e o fim do dia. Nos Estados Unidos vigorava a Lei Seca, que proibia o consumo de bebidas alcoólicas em todo o território. Henry Ford, com apoio do governo paraense, implantou a medida em Fordlândia, onde já existia um considerável número de bares e casas de diversão. Para escapar da rigidez da fiscalização, à mesma maneira que nos Estados Unidos, surgiu um intenso movimento de contrabando de bebidas. Nos barracões onde eram feitas as refeições dos funcionários de patentes mais baixas, peixe e farinha eram substituídos por pão e espinafre, e servidos em bandejas padronizadas. A imposição dessas mudanças, nos anos 1930, fez surgir movimentos de greve radicais, com a destruição de galpões, tomada de usinas e refeitórios.

Os funcionários americanos abandonaram Fordlândia. Foi preciso a intervenção de forças policiais para o fim do movimento. Mas, antes mesmo de qualquer revolta, essa concessão já não mostrava os resultados esperados:

A grande distância do porto de Santarém, dificultando a comunicação e o abastecimento comercial, a reduzida força de trabalho, a não seletividade das mudas e sementes de seringueiras e a topografia do local, bastante acidentada, representavam um entrave para a lucratividade da empresa¹.

Soma-se ao fracasso técnico a doença do mal das folhas, que atacava a árvore da seringueira e reduzia a produção do látex. Com o fracasso da primeira concessão de terra, a Ford permutou com o governo uma parte de Fordlândia por outra, dessa vez Belterra, distante 30 milhas de Santarém. Da mesma forma que na primeira, Belterra recebeu todos os aparatos necessários para seu funcionamento: escolas, hospitais, vilas, instalações industriais, um porto e estradas. Os antigos trabalhadores de Fordlândia foram transferidos para Belterra, e também foram realizadas novas contratações. Esse, que parecia ser o emprego dos sonhos, mostrava sua face mais cruel com a política da empresa para com os funcionários. Um anúncio da companhia em 1943, publicado em O Jornal de Santarém², oferecia 9 cruzeiros por dia para homens e 6 para mulheres. As crianças, que já eram aceitas a partir dos 7 anos, ganhava 0, 50 por hora de serviço. Os fiscais estavam sempre atentos aos afazeres dos funcionários. Por menor que fosse o erro, o trabalhador era expulso da companhia sem o direito de tentar se explicar. Esses problemas, a baixa produtividade das plantações e a invenção da borracha sintética buna, mais barata que a natural, deram fim ao projeto, que durou de 1927 até 1945.

Entre 1942 e 1945, o Amazonas se viu inserido no conflito mundial. Em 1941, o Japão atacou bases Aliadas americanas e britânicas no Pacífico, dominando logo depois as colônias asiáticas produtoras de borracha. Sem acesso a essa matéria-prima, útil à indústria bélica e manufatureira, os Aliados voltaram suas atenções para o Amazonas. Em 1942, navios brasileiros foram torpedeados pelos alemães, o que fez o país declarar guerra ao Eixo.

O Amazonas, através de acordos firmados entre o Brasil e os Aliados, entrou no conflito como fornecedor de borracha. Mais uma vez ocorreria um surto de imigração nordestina para a Amazônia. Através dos “Acordos de Washington”, ficou estabelecido que os Estados Unidos investiriam no financiamento da produção de borracha na Amazônia, enquanto que o governo brasileiro se encarregaria de recrutar o maior contingente possível de trabalhadores. Estima-se que, entre 1942 e 1945, o governo conseguiu enviar do Nordeste, que passaram por uma terrível seca, cerca de 60.000 retirantes para a região Norte. O sistema de trabalho dos seringueiros continuava sendo o mesmo do início do século: em situação de semi escravidão, preso ao aviamento como devedor de um sistema cíclico. O governo norte-americano ficou de pagar 100$ por trabalhador instalado nos seringais. Manaus se tornou uma das subsedes da Rubber Development Company, órgão criado para administrar os serviços no Estado. A exportação da borracha, a circulação monetária, a construção de um aeroporto, os investimentos na capital e a especulação imobiliária criaram um momento de recuperação.

Enquanto o conflito ia se encaminhando e delineando o mapa político do mundo, os amazonenses e paraenses, inflados pelas propagandas do governo de Getúlio Vargas, mergulhavam, às de vezes de forma violenta, em um sentimento patriótico. Há registros, em Manaus, da malhação de bonecos de Judas como o nome ‘Xitler’, uma paródia com o nome do ditador alemão Adolf Hitler. Na Vila de Tomé-Açú, no Pará, foi construído um campo de concentração que chegou a receber 480 famílias japonesas, 32 alemãs e algumas italianas, tanto do próprio Estado quanto do Amazonas. Essas famílias, em Manaus e Belém, sofriam perseguição, tinham seus estabelecimentos e residências depredados pelo simples fato de virem dos países que formavam o Eixo.

Esse pequeno surto de desenvolvimento, de patriotismo, teve fim com a Segunda Guerra. O antigo mercado asiático estava novamente aberto, novas técnicas aperfeiçoaram o uso de borracha sintética. Já não existia mais a necessidade da borracha amazônica. O conflito acabara e, com ele

as esperanças de tirar a região do abismo sem fim do subdesenvolvimento. Os planos de desenvolvimento concebidos nos “Acordos” foram abandonados, as verbas indenizatórias dos trabalhadores foram descaminhadas, as estruturas do atraso não foram rompidas e tudo voltou como dantes. As atenções do governo federal agora são para as regiões Sul-Sudeste, por estas apresentarem mais condições de dinamismo econômico. A Amazônia vai ser mesmo esquecida do resto da nação por muito tempo³.

A Amazônia se viu novamente abandonada. O capital estrangeiro, depois de mais de 40 décadas conseguindo alguns resultados satisfatórios, foi direcionado para mercados mais estáveis. Em socorro à região, a nova Constituição de 1946, no artigo 199, de autoria do deputado federal Leopoldo Péres, instituiu que a União destinaria 3% de sua arrecadação para financiar o Plano de Valorização Econômica da Amazônia. Em 1953 foi criada a Superintendência de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), que visava o desenvolvimento da agricultura, da extração mineral e da pecuária. Por falta de estrutura, principalmente de estradas, o plano não vingou. A construção da estrada Belém-Brasília, em 1958, atraiu o capital de grandes indústrias que passaram a funcionar no Pará. Em 1966 foi criada a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), que criou incentivos fiscais para empresas nacionais e estrangeiras se instalarem na região. O resultado desse programa foi a criação da Zona Franca de Manaus, zona de livre comércio.


NOTAS:

¹ AMORIM, Antônia Terezinha dos Santos. A Dominação norte-americana no Tapajós – A Companhia FORD Industrial do Brasil. Câmara Municipal de Santarém, Santarém (PA), 1995, p. 44.
² Ibidem, p. 108.
³ FIGUEIREDO, Aguinaldo Nascimento. Manaus nos anos 40 (II): A Segunda Guerra Mundial. 24/10/2015. Disponível em: http://historiainte.blogspot.com.br/2015/10/manaus-nos-anos-40-ii-segunda-guerra.html Acesso em 17/03/2017.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Colin Mcphearson/Corbis/Latinstock - Rede Brasil Atual

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Nota para uma eleição Norte-Americana


Já faz um bom tempo que a grande mídia, que esse ano fez, não podemos negar, uma grande campanha a favor de Hillary e oposição à Trump, não possui mais poder. Inúmeras pesquisas que davam uma vantagem de 90% para a candidata foram por água abaixo. Hillary tinha um projeto que, guardadas as devidas diferenças, era uma continuidade do modelo de Obama: mais intervenção estatal, cobrança de impostos de grandes fortunas e estímulos econômicos. A fórmula não parece ter funcionado: O presidente deixou o cargo com 54% de rejeição, crescimento da economia abaixo do esperado e, com inúmeros estímulos financeiros, agravamento da dívida pública, que ultrapassa a assustadora casa de 19 trilhões de dólares. Mais grave ainda foi o fato de não ter dado uma resposta ao Terrorismo, algo esperado tanto interna como externamente. Trump, mesmo com toda sua acidez crítica, pintou um cenário realista dos EUA, com mais de 7,5-8 milhões de desempregados e geração de empregos insuficiente. Os Democratas, artistas apoiadores e militantes que migraram da campanha do ex-candidato Bernie Sanders pintaram um outro quadro, fantasioso: Os Estados Unidos das oportunidades, do pleno crescimento, guiado com “maestria” pelo Estado. O estadunidense sempre foi desconfiado, talvez pelos séculos de desmandos como súdito do Reino Unido. Lhe prometeram o céu e a terra em condições duvidosas. O cenário mudou, com uma esquerda mundial retraída e a ascensão da direita, que sempre esteve aí, mas acuada por falta de apoio. Trump é um marinheiro de primeira viagem na política, e deve ser, ao bom modo americano conservador, observado com prudência pois, agora, é o 45° presidente de uma nação que anseia por reparos em sua estrutura.

Fábio Augusto

quarta-feira, 18 de maio de 2016

A Historiografia Norte-Americana: da Colonização à Independência

Os passageiros do Mayflower assinam o "Pacto de Mayflower", 1620. Jean Leon Jerome Ferris, século XIX.

Quando os primeiros colonizadores chegaram à América do Norte, vindos da Inglaterra e da França (século XVII), se depararam com povos nativos que se distinguiam por suas práticas religiosas, línguas, formas de subsistência e de se vestir. O continente e seus habitantes trouxeram grande impacto para esses europeus, que primeiramente passaram a estudá-los como um ramo da história natural, filosófica e conjectural. Já vimos como se desenvolveu a escrita da História na América Espanhola (ver A Historiografia da Conquista I), com um pano de fundo clerical, ligado ao catolicismo. Agora, vamos ter a influência religiosa protestante na América do Norte; e, mais tarde, a construção de uma história secular.

Os escritos do espanhol José de Acosta influenciaram a produção historiográfica na América do Norte. Sua concepção de que os nativos não poderiam ter uma “história oficial” fez com que os americanos estudassem esses povos como um ramo da História Natural, Filosófica e Conjectural. Bebendo direto de fontes clássicas como Tácito, Heródoto, César, Plínio e Estrabão, o jesuíta francês Jean-François Lafitau (1681-1746), que viveu na Nova França e entrou em contato com os iroqueses, escreveu Costumes dos selvagens americanos comparados aos costumes dos primeiros tempos (1724), onde os nativos americanos eram comparados a tribos da Antiguidade. Lafitau, jesuíta, via nos nativos exemplos de combate ao ateísmo, mostrando que até os “selvagens” acreditavam no divino. Em sua obra também são abordadas guerras, instrumentos musicais, práticas religiosas e linguagem. Costumes dos selvagens é uma mistura de tradição medieval e clássica; relatos de viagens do século XVI; e comparativismo iluminista. Lafitau via nos indígenas costumes asiáticos e uma influência destes, o que, atualmente, é uma das teorias de povoação da América:

“Como era o costume entre os antigos comer deitado sobre sofás, o mesmo é ainda o costume entre os índios sul-americanos que, embora tenham pequenos assentos com três pés como bancos de sapateiros sobre os quais eles comem ordinariamente, com muita frequência também fazem seus repastos deitados em redes como o fazem os índios norte-americanos que comem sentados nas mesmas esteiras em que dormem”.1

O período colonial foi marcado por conflitos internos entre ingleses e franceses, que aliavam-se, cada um, a tribos antagônicas. A Guerra do Rei Felipe (1675-1678); a Guerra dos Sete Anos (1756-1763); e outros conflitos serviram de tema para a história militar em obras como História de New Hampshire (1784), de Jeremy Belknap, crítico da escravidão e da ação dos colonizadores contra os índios. Cadwallader Colden descreveu os iroqueses em História das cinco nações indígenas dependentes da Província de Nova York na América, e defendia a tese de que os eles deveriam ser guardados como aliados contra a investida francesa a partir do Canadá. O que se escrevia na América anglo-saxônica sobre história era mais um relato sobre a flora, a fauna e os costumes dos nativos do que uma narrativa do passado propriamente dita. O primeiro historiador a escrever realmente uma narrativa sobre passado colonial foi o explorador John Smith (1579-1631) em Uma verdadeira relação (1608) e História geral da Virgínia, da Nova Inglaterra, e das Ilhas de Verão (1624).

O fervor religioso protestante dominará por muito tempo a historiografia dessa parte da América. Autores como John Foxe e Sir Walter Ralegh serão lidos e utilizados como base intelectual por diversos historiadores. A América era uma versão distante da terra prometida; os sobreviventes do naufrágio do Mayflower eram os escolhidos para assentar uma sociedade próspera; e a domesticação da natureza e do elemento nativo eram provas de que essa era a vontade de Deus. Existe uma lista extensa desses trabalhos históricos providencialistas, e dela podemos citar: A providência milagrosa do Salvador de Sion na Nova Inglaterra (1654), de Edward Johnson (1599-1672); História do assentamento de Plymouth (1856), de William Bradford (1590-1657); e História Geral da Nova Inglaterra até 1630 (1815), de William Hubbard (1621-1704). Increase Mather (1639-1723) escreveu Breve história da guerra com os índios da Nova Inglaterra, história de cunho militar e providencialista.

A região da Nova Inglaterra era o polo irradiador de obras históricas, com destaque para a Baía de Massachusetts, de onde saiam análises históricas a partir da perspectiva local, como em Visão sumária, histórica e política dos assentamentos na América do Norte (1747-1750), do médico bostoniano William Douglass (1691-1752). O filho de Increase, Cotton Mather, produziu uma grandiosa História eclesiástica da Nova Inglaterra (1693-1702), dividida em sete livros: No primeiro livro, são abordados os assentamentos coloniais da Nova Inglaterra; O segundo e terceiro livros são dedicados a biografias de figuras públicas importantes; o IV trata da história da Universidade de Harvard; e os três últimos são a história eclesiástica propriamente dita.

O último historiador do período colonial foi o governador civil de Massachusetts, Thomas Hutchinson (1711-1780), político moderado que tentou, em vão, conciliar os colonos revolucionários e o governo britânico. Publicou em 1764 o primeiro volume de História da Colônia da Baía de Massachusetts, produzido através de farta documentação da biblioteca de Samuel Mather, filho de Cotton. A narrativa abrange os primórdios de Massachusetts, como um simples assentamento puritano, até sua transformação em rica região comercial. Em 1765, durante os tumultos ocasionados pela Lei do Selo, Hutchinson teve sua biblioteca invadida e viu seus documentos serem destruídos, sendo assim interrompida a publicação de um novo volume. Conseguindo recuperar um rascunho do II volume, o governador o publica em 1767. Com o aumento das tensões entre colônia e metrópole, Hutchinson deixa a colônia e a América em 1774, terminando sua obra no exterior.

Declaração da Independência dos Estados Unidos, 1776. John Trumbull, 1819.

Entre tantos historiadores, uma mulher iria se destacar por produzir uma das principais e mais respeitadas obras sobre a Revolução Americana. Mercy Otis Warren (1728-1814), revolucionária da causa republicana, concluiu em 1791 e publicou em 1805 a História do surgimento, progresso e término da Revolução Americana. Em sua obra, Mercy combinou os testemunhos de figuras políticas com um rico material documental, coroados por sua narrativa vigorosa e bem estruturada. No extrato abaixo, vamos perceber que, para Warren, a História deve ser estudada através de um trabalho mútuo entre investigação, reflexão e precisão de linguagem:

A história, o depósito de crimes e o registro de tudo o que é infame ou honorífico à humanidade, requer um conhecimento justo do caráter, para investigar as fontes de ação; uma clara compreensão, para revisar a combinação de causas; e precisão de linguagem, para detalhar os eventos que produziram as mais notáveis revoluções.

Analisar as fontes secretas que efetuaram as mudanças progressivas na sociedade; para traçar a origem das várias formas de governo, as consequentes melhorias na ciência, na moralidade, ou a tintura nacional que marca a condução do povo sob formas despóticas ou mais liberais, é um trabalho audacioso e ousado…

O amor pela dominação e uma luxúria descontrolada de poder arbitrário prevaleceram entre todas as nações, e talvez proporcionalmente aos graus de civilização. Elas foram igualmente conspícuas no declínio da virtude romana, e nas páginas negras da história britânica. Foram esses princípios que arruinaram essa antiga república. Foram esses princípios que frequentemente envolveram a Inglaterra em conflitos civis. Foi a resistência a eles que levou um de seus monarcas à barricada e retirou outro de seu trono. Foi a prevalência deles que conduziu os primeiros colonizadores da América, de suas elegantes habitações e afluentes circunstâncias, a buscarem um asilo nas regiões frias e incultas do mundo ocidental. Oprimidos na Grã-Bretanha por reis despóticos, e perseguidos pela fúria do prelado, fugiram para um país distante, onde os desejos humanos fossem limitados pelas carências da natureza; onde a civilização não havia criado aqueles anseios artificiais que tão frequentemente rompem todo laço moral e religioso para sua gratificação2.

Terminada a revolução, a historiografia norte-americana seria orientada para a reflexão filosófica e política, em busca de respostas para questões como qual tipo de república estabelecer, quais posições tomar em relação a escravidão, como se daria a expansão rumo ao Oeste e como o elemento nativo deveria ser tratado de agora em diante. O médico David Ramsay sintetizou essas questões nas obras A História da Revolução da Carolina do Sul (1785); História da Revolução Americana (1789); e História dos Estados Unidos. Sua História da Revolução Americana começa com a história dos assentamentos coloniais, no século XVII, e passa para os conflitos entre colônia e metrópole, iniciados em 1764. Era um autor moderado, antiescravagista, primeiramente republicano e, mais tarde, federalista. Em 1817, dois anos após a morte de Ramsay, aparece História dos Estados Unidos, obra que marca sua transição de autor moderado para conservador. Sua visão mais amigável aos índios mudou para uma feroz defesa do expansionismo contra esse elemento; e suas críticas à escravidão praticamente desapareceram.

Neste último texto da série Historiografia da Conquista, podemos perceber como a escrita da História nos Estados Unidos, assim como na América Espanhola, passou por diferentes estágios de evolução: Num primeiro momento, vamos ter uma narrativa que foca mais na comparação cultural, na descrição da fauna e da flora do que no passado; depois, o protestantismo se tornaria o ponto de partida para uma história providencialista, na qual o novo continente seria uma versão da terra prometida; por último, no final do século XVIII, surgem narrativas sobre o passado americano, já com traços de uma identidade nacional que se estabeleceria após a Revolução, e histórias filosóficas sobre os novos rumos do país após a independência em relação à Grã-Bretanha.



1LAFITAU, J.F. Customs of the American Indians. Vol. I. Wisconsin, Champlain Society, 1974, p. 225.

2WARREN, M. O. “Introductory Observations”. In: COHEN, L. H. (org.). History of the Rise, Progress, and Termination of the American Revolution. 2Vols. Indianápolis: Liberty Classics, 1988, vol I. p. 3-5.


FONTES:

WOOLF, Daniel. Uma história global da história. Tradução de Caesar Souza. Petrópolis, RJ, Vozes, 2014.

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