Cadáveres de paraguaios após a Batalha de Boquerón, em julho de 1866.
Os necrológios, elogios fúnebres publicados em periódicos locais ou nacionais, são interessantes fontes para a pesquisa histórica, ainda que não tenham sido plenamente explorados em trabalhos acadêmicos na região. Neles é possível encontrar informações de grupos ou de indivíduos, dados biográficos, de escolaridade, religião, carreira, causa mortis e local de sepultamento. A quantidade das informações, o número de páginas e as homenagens dependem da importância que a pessoa teve em vida. Esse tipo de material é utilizado em estudos prosopográficos, podendo ser citados os trabalhos de Andrius Estevam Noronha (1), que utiliza os necrológios para analisar as trajetórias dos membros da elite de Santa Cruz do Sul (RS); e de Juarez José Tuchinski dos Anjos (2), que investigou os modelos de educação familiar contidos nos elogios fúnebres da Província do Paraná (1853-1889).
Como
todas as fontes históricas, os necrológios possuem suas
possibilidades e limites, devendo ser analisados criticamente. A
utilização destes pela história social, cultural e das
mentalidades permite aos pesquisadores a identificação de elementos
socioculturais de determinadas épocas, os modos de viver e os
comportamentos da sociedade ou parte dela diante da morte. No
entanto, como salienta Andrius Estevam Noronha, não se deve esgotar
os necrológios, “pois esses textos além de omitir várias
informações individuais são carregados de um discurso narrativo de
estilo romantizado” (NORONHA, 2012, p. 73). Os necrológios
publicados em jornais trazem informações resumidas sobre o
falecido, em um tom bastante romântico, o que torna necessária a
utilização de outras documentações para confrontar esses textos.
O historiador deve estar ciente, como citou Noronha, de que esses
elogios estão carregados de discursos, pois possuem o objetivo de
preservar e distinguir a memória do falecido e de sua família.
Escolhi
dois necrológios da segunda metade do século XIX para fazer a
análise de seus conteúdos: O do alferes Joaquim Benjamin da Silva,
amazonense, e do tenente Frederico Albano Cardoso Pinto, paraense,
ambos combatentes na Guerra do Paraguai (1864-1870) e mortos em
batalha.
Morte
de um bravo (I)
Mais
um bravo da nobre família amazonense sacrificado no altar da patria!
Mais
uma victima dos horrores da guerra desaparecida para sempre do numero
dos vivos!
O
alferes Joaquim Benjamin da Silva, que, por seu valor e denodo, havia
merecido do governo as honras de uma condecoração, e um posto de
accesso, não chegou siquer a receber a noticia desse premio tao bem
merecido; porque na sanguinolenta batalha de 16 de julho, avançando
contra o inimigo, recebeo no peito uma granada, que o fez voar á
mansao dos justos.
O
Amazonas deve orgulhar-se de ter tal filho, que, morrendo, legou a
sua patria e família um nome gloriozo.
Joaquim
Benjamin da Silva foi um heróe, que nos campos do Paraguay, soube
honrar o nome brasileiro; e, embora morresse, elle vive e viverá
eternamente, porque os heròes residem na historia, e a historia não
risca, nem jamais pode riscar seu nome.
O
bravo amazonense, quatro dias antes de o matarem, escrevendo a um seu
amigo, predisse o triste fim que o aguardava: no dia 12 lançava elle
no papel as seguintes expressões:
<<Prefiro
uma morte glorioza nestes campos, à voltar para o meu paiz sem ver
arrazado o covil da féra>>.
E
morreu com effeito antes de ser arrazado o covil da féra!
Oh!
Que valor, e que santo patriotismo lhe ardia n’aquelle craneo de
mancebo!
Amazonenses!
Já não existe Joaquim Benjamin da Silva; resta-nos portanto
pranteal-o e orar por sua alma: choremos e oremos, pois, pela alma
desse bravo martyr da patria. - A terra lhe seja leve.
Amazonas,
26/09/1866
O
necrológio de Joaquim Benjamin da Silva é bastante resumido, não
sendo indicado o local de nascimento, a vida em família e a educação
que recebeu. Arthur Cézar Ferreira Reis (1989, p. 231), baseado em
uma monografia escrita em 1920 por João Batista de Faria e Souza,
cita o alferes Benjamin da Silva como natural de Parintins, tendo
servido no batalhão de engenheiros. Seria condecorado por suas ações
no campo de batalha, o que não ocorreu devido seu falecimento. O
autor se confunde apenas quanto a data , citando
a batalha do Capão Pires em 16 de julho de 1868 (ocorrida em 16 de julho de 1866), enquanto seu
necrológio foi publicado no jornal Amazonas em 26 de setembro
de 1866, dois meses após sua morte.
Ainda
de acordo com Arthur Cézar Ferreira Reis, até o final do conflito
contra o Paraguai o Amazonas contribuiu com mais de mil e quinhentos
soldados, os Voluntários da Pátria, tendo regressado, em 25
de julho de 1870, apenas 55 soldados desse total (REIS, 1989, p.
232).
Foi
“sacrificado no altar da patria”, legando a sua “patria
e família um nome gloriozo”. Preferiu uma morte gloriosa nos
campos de batalha do que voltar a ser país sem ver a queda do
inimigo. Ardia naquele “crâneo mancebo” um santo
patriotismo. No necrológio não fica indicado seu número de posses,
sendo seu legado ao Estado e à família sua bravura durante a
guerra, que ganha um tom dramático quanto este, quatro dias antes,
chegou a prever que pereceria em ação.
“Elle
vive e viverá eternamente, porque os heròes residem na historia, e
a historia não risca, nem jamais pode riscar seu nome”. Essa
passagem exemplifica uma noção clássica de história, de que esta
era feita pelos grandes homens e centradas em suas ações, que
serviriam de exemplo para a posteridade. Joaquim Benjamin da Silva
entrou para a história onde residiam os heróis, tornando-se um
deles, um “martyr da patria”. Mais que uma homenagem, o
necrológio é um instrumento de construção da memória biográfica.
Morte
de um bravo (II)
Lê-se
no Supplemento do Jornal
do Commercio de
27 de novembro:
O
inimigo jogou sua artilheria por meia hora, e por meia hora
respondemos com fogos crusados de nossos morteiros admiravelmente. A
nossa fortificação do Potrero Piris fez tambem excellentes tiros,
as da esquerda e frente do mesmo modo.
Parece
incrivel que tantas granadas e balas somente nos roubassem uma vida
não ferindo a mais ninguém: mas é verdade. Verdade seja que a vida
que nos roubou foi por demais apreciavel, por que nada menos foi que
a morte de um jovem tenente tão brioso, quanto corajoso: fallamos do
tenente de commissão Frederico Albano Cardoso Pinto, natural do
Pará, cadete do 9° batalhão de infantaria, ajudante do brioso 6°
corpo de voluntarios da patria, em cujas fileiras mereceu a commissão
de alferes, e depois de tenente, por assignalados serviços prestados
com a dedicação e zelo do bom soldado.
Dotado
de maneiras polidas e bastante intelligente o tenente Cardoso Pinto
era geralmente estimado. Sua morte foi produzida pelo choque de uma
bomba, que, dando-lhe sobre as costellas do lado direito,
determinou-lhe a morte instantaneamente. Conduzido
na tarde desse dia para o hospital da 2° divisão, seu cadaver foi
depozitado na capella do mesmo hospital, e guardadas as ceremonias
que se fazem em casos taes; foi na manhã de 31 sepultado no
cemiterio deste hospital, sendo seu corpo conduzido pelos drs Macedo
Soares, Firmino Doria e pharmaceutico Doria, e De Bertue.
Mais
tarde, depois de mudado da guarnição dos morteiros o 6° corpo de
volumtarios, compareceram com a banda de muzica do mesmo corpo alguns
srs. Officiaes, capitão Machado, tenente Barrilho, alferes Almeida
Castro, e alferes Rego Barros que foi encarregado pelo commandante de
dirigir a muzica para o seu funeral, sendo que o finado era inspector
da mesma muzica.
Receba
a família do finado os nossos sentimentos, e com tanta maior dôr
quando eramos amigo do tenente Frederico Albano Cardoso Pinto.
A
terra lhe seja leve.
A
Voz do Amazonas, 12/01/1867
Esse
necrológio é mais detalhado, tendo
além da causa mortis o
local para onde o corpo foi enviado, o local de sepultamento, as
pessoas que o conduziram e os militares que dirigiram a música do
funeral, já que se tratava
de um militar de patente mais alta, um
tenente. Ele
foi publicado no suplemento do Jornal
do Commercio em 27 de
novembro de 1866 e
republicado no jornal A Voz do Amazonas em 12 de janeiro de 1867. Em
um tom bastante dramático, o autor do texto nos transporta para o
campo de batalha, descrevendo as investidas do inimigo e a defesa da
fortificação brasileira em Potrero Piris.
No
dia desse ataque, entre tantos tiros e granadas, apenas um militar
faleceu: tenente Frederico Albano Cardoso Pinto, natural do Pará,
cadete do 9° batalhão de infantaria, ajudante do 6° corpo de
voluntários da pátria, onde ascendeu às patentes de alferes e,
depois, tenente. Também foi
inspetor da banda de música. Morreu instantaneamente ao ser atingido
nas costelas pelo choque de uma bomba. Não
é informada a data exata de sua morte.
O morto tinha qualidades:
era brioso, tinha maneiras polidas e era bastante inteligente.
Seu
corpo foi levado para o hospital da 2° divisão, sendo depositado na
capela dessa instituição, onde
foram realizadas “ceremonias
que se fazem em casos taes”,
possivelmente uma missa de
corpo presente. Na
manhã do dia 31 foi sepultado no cemitério do hospital, tendo seu
corpo sido conduzido pelos drs. Macedo Soares, Firmino Doria,
farmacêutico Doria e De Bertue.
Mais
tarde, após o enterro, quando
o 6° corpo de voluntários foi mudado da guarnição de morteiros,
compareceram com a banda de
música alguns oficiais, capitão Machado, tenente Barrilho, alferes
Almeida Castro e alferes Rego Barros, encarregado pelo comandante de
dirigir a música do funeral. Isso evidencia a importância do
tenente Frederico Albano Cardoso, seu capital social para com os
colegas militares.
Quanto
a família, assim como no
necrológio de Joaquim Benjamin da Silva, não são citados nomes. No
Decreto N° 1.408, de 10 de agosto de 1867 (3),
em que são aprovadas as pensões concedidas ao Major Henrique José
Lazary e outros dependentes de militares falecidos, foi possível
encontrar o nome da mãe do tenente Frederico Albano Cardoso Pinto,
D. Maria Izabel Prestes Cardoso Pinto, que passaria a receber uma
pensão de 42$000 réis.
NOTAS:
(1) NORONHA,
Andrius Estevam. 'Dados
biographicos do extincto': análise das fontes para o estudo
prosopográfico de elites locais (os necrológios).
In: XI Encontro Estadual de História, 2012, Rio Grande. História
de famílias nos confins meridionais: pesquisas, fontes e métodos
(1600-1900). Porto Alegre: Pluscom editora, 2012. v. 1. p. 151-151.
(2) ANJOS,
J. J. T. . Os
necrológios e a educação da criança pela família na província
do Paraná (1853-1889).
Pro-Posições (Unicamp), v. 28, p. 81-102, 2017.
(3) Decreto
Nº 1.408, de
10 de
Agosto de 1867. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1408-10-agosto-1867-553582-publicacaooriginal-71707-pl.html
Acesso em 14/02/2018.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
NORONHA, Andrius Estevam. 'Dados biographicos do extincto': análise das fontes para o estudo prosopográfico de elites locais (os necrológios). In: XI Encontro Estadual de História, 2012, Rio Grande. História de famílias nos confins meridionais: pesquisas, fontes e métodos (1600-1900). Porto Alegre: Pluscom editora, 2012. v. 1. p. 151-151.
REIS, Arthur Cézar Ferreira. História do Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia/Manaus: Superintendência Cultural do Amazonas, 2° ed, 1989.
FONTES:
Amazonas, 26/09/1866.
A Voz do Amazonas, 12/01/1867.
CRÉDITO DA IMAGEM:
commons.wikimedia.org