Lucílio de Albuquerque (1877-1939): Mãe Preta, 1912. FONTE: commons.wikimedia.org.
As amas de leite eram mulheres que tinham como ocupação a amamentação dos filhos das classes mais abastadas da sociedade. No Brasil as escravas eram forçadas a amamentar e cuidar dos filhos de seus senhores, também sendo alugadas por estes e obrigadas a deixar seus rebentos sem esse contato maternal, o que gerava uma alta taxa de mortalidade entre os recém nascidos escravos (SILVA, 2016, p. 302).
De acordo com o sociólogo e historiador Gilberto de Mello Freyre, esse costume tinha raízes portuguesas: "De Portugal transmitira-se ao Brasil o costume das mães ricas não amamentarem os filhos, confiando-os ao peito de saloias ou escravas" (FREYRE, 2003, p. 443). Tal costume não se reproduzia apenas por puro modismo ou indiferença . Imperavam questões de saúde. As sinhás, ainda muito jovens, tinham vários filhos em um curto intervalo de tempo, ficando esgotadas e impossibilitadas de lhes dar os devidos cuidados. Dessa forma, as escravas, "adaptadas" aos trópicos e consideradas mais resistentes, eram ideais para o aleitamento. "A tradição brasileira", escreve Freyre, "não admite dúvida: para ama-de-leite não há como a negra" (FREYRE, 2003, p. 444).
O historiador Luiz Felipe de Alencastro cita o aluguel de amas de leite como uma importante atividade econômica das cidades brasileiras do Império. "Pequenos senhores de escravos exploravam esse mercado, alugando a terceiros suas cativas em período pós-natal" (ALENCASTRO, 1997, p. 63). Ainda conforme Alencastro, a partir 1850 a presença de mulheres imigrantes de origem portuguesa "traz para a corte uma oferta de amas-de-leite brancas que passam a competir com as mucamas de aluguel, tornando complicado o debate sobre a amamentação" (ALENCASTRO, 1997, p. 64).
As libertas e as imigrantes citadas por Alencastro, para se sustentarem, também ofereciam esse serviço, que não se restringiu ao período do Império. As amas de leite continuaram a atuar ao longo do século XX, tanto no Brasil rural, profundo, quanto no urbano. Nos jornais publicados em Manaus entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX foram encontrados anúncios desse serviço, bem como registros em leis e decretos. Ainda que em menor quantidade quando comparados aos do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, são fontes importantes para a compreensão dessa prática na região.
Uma das referências mais antigas à atuação das amas de leite em Manaus surge no Código de Posturas Municipais de 1848. No artigo 137 do capítulo 16, sobre a economia municipal, ficou estabelecido que "As Câmaras marcarão salários às amas dos expostos pelo trabalho da criação, e educação, e prestarão enxoval preciso aos mesmos" (SAMPAIO, 2016, p. 35). Os expostos citados no artigo, de acordo com o historiador Renato Franco, eram
"[...] as crianças recém-nascidas, anonimamente abandonadas pelos pais, que, assim, abriam mão da tutela e da criação dos filhos. Diferentemente dos órfãos, para quem a morte dos progenitores era uma referência incontornável, a criança exposta era considerada em seu grau zero de ascendência, portanto, por definição, livre" (FRANCO, 2018, s. p.).
O Capitão Clementino José Pereira Guimarães, Barão de Manaus, foi autorizado em 1865 "[...] a alugar escravas sadias e proprias para o serviço de casa de familia" (O Catechista, 28/01/1865, p. 04). De acordo com a Mestre em Educação Damiana Valente Guimarães Gutierres, "uma das principais características mais recorrentemente abordadas nos discursos dos anúncios é da ama de leite ser sadia, saudável e sem vício" (GUTIERRES, 2013, p. 113).
Em 1880, o jornal Amazonas, de propriedade do Coronel José Carneiro dos Santos, anunciava que em sua tipografia existia uma pessoa que precisava dos serviços de uma ama de leite, podendo ser livre ou escrava, e que esta oferecia um bom pagamento (Amazonas, 21/11/1880, p. 04).
As amas de leite poderiam ser escravas ou livres. FONTE: Amazonas, 21/11/1880, p. 04.
O trabalho dessas mulheres não ficava restrito ao ambiente familiar, também sendo sendo solicitado em instituições governamentais. Em 1888 o Instituto dos Educandos Artífices, instituição de ensino em regime de internato para meninos órfãos e carentes, fez publicar no Jornal do Amazonas que precisava de uma ama de leite, pagando bem a quem estivesse disponível (Jornal do Amazonas, 10/05/1888, p. 04).
Instituições como o Instituto dos Educandos Artífices solicitavam o serviço das amas de leite. FONTE: Jornal do Amazonas, 10/05/1888, p. 04.
Os anúncios do final do século XIX e início do século XX tornam-se mais detalhados, possibilitando conhecer os requisitos e as condições de trabalho dessas mulheres. Em 1898 o jornal Commercio do Amazonas publicou uma série de anúncios de um morador da rua Lima Bacury, no Centro, que precisava de uma ama de leite: "AMA DE LEITE. - Precisa-se de uma, a tratar na rua Lima Bacury, casa n. 44. Garante-se bom ordenado" (Commercio do Amazonas, 22/06/1898, p. 02, 01/07/1898, p. 02, 03/07/1898, p. 04 e 06/07/1898, p. 03). Em anúncio de 1906 veiculado no Correio do Norte solicitava-se uma ama de leite para trabalhar no interior: "Ama de leite. Precisa-se de uma, para o interior, logar sadio, paga-se bem. Quem estiver nas condições, dirija-se a Estrada Epaminondas n. 140 (Avenida Dr. Constantino Nery)" (Correio do Norte, 23/02/1906, p. 03). Em alguns casos amas da capital passaram a viver no interior do Estado com as famílias contratantes, em um verdadeiro movimento de migração interna.
Não raro amas de leite da capital mudavam-se com as famílias contratantes para o interior do Estado. FONTE: Jornal do Commercio, 24/06/1907, p. 02.
São raros os anúncios que informam a idade da criança que seria amamentada. Foi encontrado apenas um, de 1917, no qual a criança, filha de um casal morador da Praça da Constituição (Heliodoro Balbi, da Polícia), teria 8 meses (Jornal do Commercio, 26/08/1917, p. 01).
As amas de leite estrangeiras, portuguesas e espanholas, surgem nos anúncios de jornais nesse período. É possível que já atuassem na cidade há mais tempo. Na rua Mundurucus, por volta de 1905, uma portuguesa tinha "[...] leite abundando e novo" (Jornal do Commercio, 27/12/1905, p. 03), o que sugere que acabara de ter filho (s), estando apta para o trabalho de ama. Em outro anúncio publicado no Jornal do Commercio podemos observar que as amas de leite deveriam ser jovens, na casa dos 20 anos:
Anúncio de uma ama de leite espanhola, com idade entre 26 e 27 anos. As amas europeias passaram a rivalizar com as amas locais. FONTE: Jornal do Commercio, 17/12/1907, p. 03.
Além da boa saúde e ausência de vícios, uma das preferências dos usuários de seus serviços era que não tivessem filhos, já que toda a atenção deveria ser dada à (s) criança (s) do (s) contratante (s). Como no Império, não deveriam existir vínculos maternais mais profundos entre as amas e seus próprios filhos no século XX. Na ausência da mãe a criança deveria ser cuidada por terceiros, geralmente os avós. Essas mulheres acabavam criando sentimentos pelas crianças que amamentavam, e vice-versa, como deixou registrado o poeta Agesilao Jorge no poema Ao passado, escrito em 1908 e publicado em 1911, no qual lembra de sua antiga ama de leite negra:
"Minha velha ama preta, alvinha de bonança,
conta, inda outra vêz, as lucidas historias
repletas de dragões e cheias de victorias,
como naquelle tempo em que eu inda era criança...
Conta-m'as, novamente, agora ao homem feito;
minh' alma aspira, olhando o teu rosto enrugado
e ouvindo o teu fallar dolorido e pausado
reviver o bom tempo em que me deste o peito!...
Que importa sejas preta e, talvêz mesmo, feia,
si no teu coração nevado de pureza
estão sempre a sorrir a Bondade, a Belleza
e o Amôr, a refulgir como uma lua cheia!...
Já nem conheces tu o rosto que beijavas
(agora tão mudado); o mesmo rosto anjo,
dormindo no teu collo, ó Santa, ó nobre Archanjo
que em minha doce Infancia, á noite, me emballavas!...
Quanto lastimo a ver-te hoje nessa velhice,
vivendo do Passado e esquecendo o Presente,
no cruel abatemente insano dessa mente
que se desfaz no occaso atro da caduquice!...
Pudesse eu despender um pouco de vigor
de minha mocidade e l' o insufflar á vida
que desffallce e morre, ora rão succumbida...
Provar-te ia assim esse meu grande amor!...
1908.
Agesilão Jorge" (Correio do Norte, 21/05/1911, p. 01).
Uma família da rua Municipal (Avenida Sete de Setembro) precisava de uma ama de leite que tivesse boa saúde e que não tivesse filho. FONTE: Jornal do Commercio, 07/01/1914, p. 01.
As agências de aluguel entram em cena nesse período. Têm-se o registro, em 1907, da Agência 'Locadora', localizada na então Avenida Silvério Nery (Joaquim Nabuco), alugando diversos serviços, dentre eles o de ama de leite:
"Agencia "Locadora"
Aluga-se cosinheiras, cosinheiros, copeiras, lavadeiras, criados, caixeiros e uma ama de leite.
Na mesma agencia trata-se de qualquer negocio.
Avenida Silverio Nery n. 88.
A. Araújo & Cia" (Jornal do Commercio, 31/01/1907, p. 04).
Os anúncios nos informam uma série de requisitos para o trabalho, sendo a boa saúde o mais frequentemente citado. FONTE: Jornal do Commercio, 19/03/1912, p. 01.
Desde fins do século XIX o trabalho das amas de leite passou a ser alvo de regulamentações, frutos da difusão de políticas sanitaristas há muito reclamadas por médicos e administradores públicos. No inciso 5 do capítulo 2 do Regulamento para o serviço sanitário do Estado do Amazonas (1894), sobre a atribuição dos empregados, determinou-se que estes tinham de "incumbir-se dos exames das amas de leite" (Diário Oficial, 14/01/1894, p. 01).
Existiam no mercado produtos utilizados para "otimizar" o trabalho das amas, isto é, fortificar o leite e deixá-lo livre de impurezas. Os jornais recomendavam o Vinho Iodo-Phosphatado de V. Werneck, o Vinho Toni-Nutritivo do dr. Lima Guimarães, "[...] empregado com vantagens nos casos de anemia, chlorose, enfraquecimento nas mulheres paridas e nas amas de leite" (Commercio do Amazonas, 28/09/1899, p, 04).
Essas questões higiênicas andavam de mãos dadas com o evolucionismo científico e as teorias raciais. O historiador Robson Roberto Silva registra que "a mentalidade cientificista do final do século XIX, fundamentada no racismo, justificava os cuidados que deveriam ter com o leite materno das escravas, pois havia a crença que esse leite transmitiria padrões de imoralidade para as crianças" (SILVA, 2016, p. 312). As escravas e as negras libertas eram acusadas de degenerar as crianças e o ambiente familiar. Não é de se estranhar que, em 1913, uma família da rua dos Andradas anunciasse que precisava de "[...] uma ama de leite séria e de bons costumes" (Jornal do Commercio, 20/03/1913, p. 01) ou que um agenciador informasse ter uma "[...] ama de leite portugueza com bom comportamento e de bôa familia" (Jornal do Commercio, 07/04/1913, p. 01).
As amas de leite, assim como os negociantes de gêneros alimentícios, seus empregados, vendedores ambulantes (peixeiros, leiteiros, garapeiros, doceiros, padeiros, merceeiros, confeiteiros), donos e empregados de restaurantes, hotéis, pensões, botequins, refinações, torrefações, açougueiros, magarefes, cozinheiros, copeiros, carregadores e condutores, deveriam comparecer na sede da Prefeitura, durante todo o mês, das 9 às 11 e das 13 às 16, para serem inspecionadas e receber a licença de atividade, sob a pena de multa (Inspecção Sanitaria. In: A Capital, 07/12/1917, p. 03).
Na década de 1930 as inspeções sanitárias obrigatórias para as categorias anteriormente citadas, estando aí incluídas as amas de leite, passaram a ocorrer duas vezes por ano. Ficou estabelecido no parágrafo único do artigo 321 do capítulo 8 do Código de Posturas de 1938, sobre a saúde pública, que caso a pessoa não comparecesse e fosse encontrada exercendo seu ofício sem a carteira sanitária seria multada em 20 mil réis e, no artigo 322, "caso o portador da carteira sanitária venha a contrair qualquer moléstia contagiosa, não poderá continuar a exercer sua atividade, enquanto não ficar curado, sob pena de multa de cinquenta mil réis" (SAMPAIO, 2016, p. 328).
É perceptível a importância que as amas de leite tiveram como trabalhadoras urbanas na cidade de Manaus, atuando em instituições de caridade, educacionais e, principalmente, casas particulares. Toleradas no século XIX por necessidades, garantindo ganhos a seus senhores e, no caso das mulheres livres, atuando de forma independente, as amas se tornaram alvo de críticas e da fiscalização sanitária, o que contribuiu para o seu desaparecimento.
FONTES:
O Catechista, 28/01/1865.
Amazonas, 21/11/1880.
Jornal do Amazonas, 10/05/1888.
Diário Oficial, 14/01/1894.
Commercio do Amazonas, 22/06/1898.
Commercio do Amazonas, 01/07/1898.
Commercio do Amazonas, 03/07/1898.
Commercio do Amazonas, 06/07/1898.
Commercio do Amazonas, 28/09/1899.
Jornal do Commercio, 27/12/1905.
Correio do Norte, 23/02/1906.
Jornal do Commercio, 17/12/1907.
Jornal do Commercio, 31/01/1907.
Jornal do Commercio, 24/06/1907.
Correio do Norte, 21/05/1911.
Jornal do Commercio, 19/03/1912.
Jornal do Commercio, 20/03/1913.
Jornal do Commercio, 07/04/1913.
Jornal do Commercio, 07/01/1914.
Jornal do Commercio, 26/08/1917.
A Capital, 07/12/1917.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada no Império. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe (Org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 11-93.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48° ed. São Paulo: Global, 2003.
FRANCO, Renato. Órfãos e expostos no império luso-brasileiro. O Arquivo Nacional e a História Luso-Brasileira, 23/05/2018. Disponível em:http://historialuso.arquivonacional.gov.br/index.phpoption=com_content&view=article&id=5201&Itemid=344. Acesso em 02/07/2020.
GUTIERRES, Damiana Valente Guimarães. No colo da ama de leite: a prática cultural da amamentação e dos cuidados das crianças na Província do Grão-Pará no século XIX. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da Educação, Belém, 2013.
SILVA, Robson Roberto. A presença das amas-de-leite na amamentação das crianças brancas na cidade de São Paulo no século XIX. Antíteses (Londrina), v. 9, n. 17, p. 297-322, jan./jun. 2016.
SAMPAIO, Patrícia Melo (Org.). Posturas municipais, Amazonas (1838-1967). Manaus: EDUA, 2016.