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segunda-feira, 23 de outubro de 2023

O xote, o baião e a esperança em dias melhores: a presença nordestina em Manaus

Soldados da borracha. Fonte: O Cruzeiro, 1944.

A região Nordeste é formada pelos estados da Bahia, Paraíba, Ceará, Alagoas, Maranhão, Piauí, Pernambuco, Sergipe e Rio Grande do Norte. Dona de uma rica diversidade cultural, foi berço da colonização portuguesa e palco dos primeiros grandes ciclos econômicos, o do pau Brasil e do açúcar. Até 1763 a cidade de Salvador, na Bahia, foi a capital e principal porto do país. Milhares de nordestinos, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, migraram em uma verdadeira epopeia para a Amazônia, influenciando imensamente nossa economia e cultura.

Atraídos para uma região tão vasta, em busca de um refúgio contra as secas que assolavam seus estados de origem, logo se viram frente a uma das piores faces da economia gomífera: o regime de servidão. Em teoria, o seringueiro era um trabalhador livre, mas trazia, desde sua viagem para a região, uma dívida com o dono do seringal. Chegando ao local de trabalho, extraía o látex até pagar o que devia ao seringalista. Só que isso raramente acontecia, pois todos os utensílios para o trabalho e bens de consumo deveriam ser comprados no barracão, também de propriedade do seringalista.

Assim, esse trabalhador, explorado em um regime de trabalho que começava entre 4:00-5:00 horas, percorrendo vários quilômetros para encontrar seringueiras, ficava em um ciclo eterno de fazer e pagar dívidas. Se tentasse comprar em outro lugar, falsificar o peso das pélas de borracha ou fugir do seringal, era eliminado pelo patrão, que controlava o lugar com mãos de ferro.

Samuel Benchimol, no livro Amazônia – Formação Social e Cultural (1999), faz um minucioso levantamento da entrada de imigrantes nordestinos na região. Durante as secas de 1877 e 1878, foi registrada a entrada de 19.910 imigrantes. Em 1892 entraram mais 13.593. Entre 1898 e 1900 aportaram em Belém e Manaus, posteriormente com destino aos seringais, 88.709. De 1900 até a crise da economia gomífera, foram contabilizados 150.000 nordestinos. De 1877 a 1920, estima o sociólogo, migraram 300.000 pessoas.

Alguns conseguiam, mesmo em meio à brutalidade da selva, galgar melhores posições. Ainda de acordo com Benchimol, parte dos seringalistas tinha origem nordestina. Eles começavam a vida como seringueiros 'brabos', sem experiência, e aos poucos, com a ajuda dos seringueiros ‘mansos’, ascendiam socialmente, assumindo diferentes cargos no seringal – mateiro, comboieiro, pesador, classificador, capataz, auxiliar de escrita, gerente de barracão, arrendatário de estradas e colocações – até chegar ao topo, tornando-se seringalistas, proprietário de seus próprios seringais.

Durante a Segunda Guerra Mundial, com o bloqueio das colônias asiáticas que produziam borracha pelo Japão, matéria prima necessária na indústria armamentista, os Aliados voltaram seus olhos para a Amazônia. Entre 1943 e 1945 foram recrutados cerca de 60.000 mil trabalhadores de diferentes estados da região Nordeste para a extração de látex. Estes ficaram conhecidos como Soldados da Borracha. Os governos estadunidense e brasileiro esperavam elevar a produção ao número de 70.000 mil toneladas anuais até onde a Guerra durasse.

Muitos deles ficaram em Manaus, atuando em outras atividades como o comércio ou realizando trabalhos braçais. O historiador Arthur Cezar Ferreira Reis registra, em História do Amazonas (1989), que ao final da década de 1870, “o governo, procurando recebê-los e localizá-los como contribuições preciosas ao progresso da Província, criou colônias em vários pontos do interior, núcleos agrícolas, duas das quais nas cercanias de Manaus”. A mais célebre foi a Colônia Maracaju, que recebeu centenas de retirantes.

A partir da década de 1920, com a crise econômica, e após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a presença na capital se intensificou, pois deixaram os seringais falidos em busca de melhores condições de vida. Eles vão se instalar e fundar bairros como Colônia Oliveira Machado, Praça 14 de Janeiro, São Francisco, São Lázaro, Santa Luzia, Crespo e São Jorge. Não é difícil encontrar famílias manauaras com antepassados cearenses, pernambucanos, alagoanos, baianos e norte riograndenses.

Mas, claro, como ocorre nesses movimentos migratórios, o preconceito se fez presente nos primeiros tempos. Alguns jornais se referiam a eles pejorativamente como arigós, pessoas ríspidas e perigosas. O jornal Diário da Tarde, em 1944, descreveu Antônio Dionísio como “paraibano, solteiro, vagabundo, sem profissão, sem residência, freguês da dormida no pátio interno da Delegacia Auxiliar”. Nesse mesmo ano comemorou a “boa safra” de prisões, destacando as de Francisco Ignácio da Silva, rio grandense do norte, e Manuel Caetano Pereira, paraibano, por terem promovido distúrbios na Estrada de Constantinópolis, também conhecida como Estrada dos Arigós.

Uma parte dos nordestinos vindos para Manaus tinha ensino superior, formados em instituições prestigiadas como a Faculdade de Medicina da Bahia e a Faculdade de Direito do Recife, realizando suas especializações em universidades europeias. Estes passaram a trabalhar como profissionais liberais e também assumiram importantes cargos no funcionalismo público e na política. Eles chegaram a fundar agremiações como o ‘Club União Cearense’ (1890), que tinha como objetivo “agremiar os cearenses rezidentes no Estado do Amazonas no pensamento de bem servir a pátria”.

O Amazonas deve seu desenvolvimento aos nordestinos, nomes ilustres que homenageiam ruas e praças de Manaus: Theodureto Carlos de Faria Souto (1841-1893) - Natural de Ipu, no Ceará, foi Presidente da Província do Amazonas em 1884, sendo responsável pela assinatura da libertação dos escravos no Amazonas em 10 de julho de 1884. Eduardo Gonçalves Ribeiro (1862-1900) - Natural de São Luís, no Maranhão, foi militar e Governador do Estado do Amazonas entre 1890 e 1891 e 1892 e 1896, sendo responsável pela transformação urbana da capital.

Aprígio Martins de Menezes (1844-1891) - Natural de Salvador, na Bahia, foi médico, poeta e historiador, sendo o primeiro autor a sistematizar a História do Amazonas. Astrolábio Passos (1862-1926) - Natural de Jeromenha, no Piauí, foi médico, um dos fundadores e primeiro reitor da Escola Universitária Livre de Manáos, hoje Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Adriano Augusto de Araújo Jorge (1879-1948) - Natural de Alagoas, foi médico, jornalista, escritor, membro fundador e primeiro Presidente da Academia Amazonense de Letras (AAL).

As influências são várias. Na gastronomia, incorporamos ao consumo de peixe com farinha, alimentos tipicamente indígenas, o baião de dois, prato típico do Ceará. Complementamos com banana frita e vinagrete. Impossível encontrar alguma peixaria em Manaus que não sirva seus pratos acompanhados de baião. Os prestamistas que percorrem nossas ruas e avenidas são ou têm descendência nordestina. A festa em torno do boi, animal que dá sustento e alimento, introduzidas pelos colonizadores, foi introduzida na região através de migrantes oriundos do Maranhão e do Ceará, aqui ganhando novas roupagens. Sem os nordestinos Manaus não seria Manaus.

Texto publicado na edição de 23 e 24 de outubro de 2023 do Jornal do Commercio de Manaus.

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Entrevista: Professor Dr. Bruno Miranda Braga

Bruno Miranda Braga nasceu em Manaus, Amazonas. Historiador e geógrafo, tem graduação em História pelo Centro Universitário do Norte (Uninorte) e Geografia pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), com especializações em Gestão e Produção Cultural pela UEA e Estudos Amazônicos pela Universidade de Brasília (UnB), mestrado em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Foi professor substituto na graduação em História da UFAM e pesquisador no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, o MASP, no Projeto MASP Pesquisa. Atualmente é membro do Núcleo de Estudos em História Social da Cidade – NEHSC, da PUC-SP, e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), ocupando a cadeira n° 38, cujo patrono é o etnólogo alemão Karl von den Steinen.

Primeiramente, muito obrigado por ter aceitado o convite para conceder essa entrevista, que faz parte de um projeto de conversas com historiadores amazonenses. Para iniciarmos, que tal você falar um pouco sobre sua origem e família?

Eu que agradeço o convite, Fábio. Então, eu sou manauara, filho de uma parintinense (por isso meu amor pelo Caprichoso, risos) e um manauara. Bem, minha mãe Sônia Miranda é professora de educação básica, foi por anos alfabetizadora e mais tarde graduou-se em Letras Língua e Literaturas Portuguesa e Espanhola. Hoje não exerce mais o magistério. Já meu pai, Valmir Braga, é funcionário público aposentado, foi industriário boa parte da vida, depois foi funcionário público do estado até se aposentar. Eu sou o filho caçula dos dois. Desde cedo quis ser professor, demorei a decidir as áreas da Licenciatura que queria, mas durante meus tempos de Ensino Médio, cursado no IEA, a opção pela História e pela Geografia se confirmou. Sempre friso que não era História ou Geografia, porém História e Geografia, e assim o fiz!

A escolha das carreiras de docente e pesquisador foi uma influência familiar, já que sua mãe foi professora?

É inegável que a escolha pelo magistério teve sim profunda ligação com mamãe que é professora. Reitero que desde muito cedo, ainda criança, escolhi o magistério como mister, motivado por minha mãe. Já a questão da pesquisa foi algo que surgiu ao longo da minha graduação em história. Quando adentrei a universidade meu desejo era me formar professor. Como todo calouro, não sabia o que era “ser/ter” lato sensu, strictu sensu, menos ainda como proceder em pesquisa. Ao final da graduação já após ter feito pesquisa para minha monografia, a pesquisa foi paulatinamente tomando vez em minha vida e carreira.

O vestibular é um dos momentos mais tensos na vida dos jovens, que enfrentam pressões da família e da sociedade. Muitos ainda não fazem ideia de qual área escolher. Como você encarou esse processo?

Comigo o mais difícil foi definir a aérea da Licenciatura. Já sabia que queria ser professor só não sabia de que: pensei em Pedagogia, Letras, Artes. Mas sempre na habilitação para o magistério. Sempre costumo dizer para os vestibulandos que o que mais importa é a sua realização e a sua inserção e seu gosto. Não adianta o aluno querer cursar Direito se não gosta de História ou de Ciências Políticas, ou querer cursar Medicina se não gosta de Biologia ou Anatomia. Então sempre destaco que o aluno deve considerar isso, o Ensino Médio em nosso país foi pensado para isso também, de apresentar um leque de ciências que no universo acadêmico são presença constante. Vale sempre a pena considerar suas vontades e gostos, até mesmo para no futuro não se frustrar com tanta matemática ou com tanta história na grade de seu curso. Uma dica que vale muito é verificar as grades curriculares, eu mesmo fiz isso, e dizia a meus colegas “meu curso não pode ter Matemática ou Química ou Física” que eram as temidas, por mim, exatas (risos). Então, vestibulando, veja as grades, se tem perfil para aquele métier, e considera muito sua vontade. Pois serão 4 ou 5 anos lendo, pesquisando e estudando aquela área. E se não for algo prazeroso acarretará sua eminente desistência.

A graduação é outro grande impacto. Nos deparamos com novos conhecimentos, novas abordagens, novas visões de mundo. Em outras palavras, somos praticamente desconstruídos. Conte-nos como foi o início de sua formação.

Interessante abrir um parêntese: como eu fiz duas graduações, cada uma teve um impacto diferente. Primeiramente cursei História. História de cara é um curso que a gente entra e pensa “mas cadê o Renascimento? Cadê a Segunda Guerra Mundial?” Aí vem Marc Bloch, Chartier, Boris Fausto e os autores/teóricos. Ai caímos por terra e vemos que a História por nós pensada é uma coisa, já a graduação é outra, aí começamos a aprender. Costumo dizer que sempre gostei de Teoria da História e Historiografia sem falar em História da Amazônia, tiveram assim disciplinas que foram para mim amadas, outras nem tanto (Medieval que o diga) mas de um todo a História nos impele a ser e ler mais! Creio que a leitura no Curso de História foi primordial para meu encantamento pela ciência. Adorava e ainda prezo muito em ler os textos, fazer comentários, enfim, sentir o texto. E isso fez e faz a História ser fascinante para mim. Durante a graduação foram muitos fichamentos, uns que dava raiva sim de ter de fazê-los, mas foram fundamentais. O exercício do historiador começa na nossa graduação com os fichamentos.

E por falar em textos e fichamentos, quais autores foram marcantes nesse período?

Essa pergunta é difícil viu… Muitos textos nos marcam seja pela complexidade seja pela facilidade. Mas vou te citar os que ainda hoje são referências quase em tudo que produzo: Apologia da História ou Ofício de Historiador, de Marc Bloch. A nossa Bíblia. A veemência do autor nesse texto, o amor pela História é atemporal, o capítulo da crítica histórica é para mim uma lição eterna de como ler documentos; A invenção do cotidiano I: artes de fazer, de Michel de Certeau. Tive uma dificuldade enorme em entender esse autor, mas a teoria dos “usos e práticas” me seduziu de uma maneira única, quando o autor fala em “resistência silenciosa” como sendo “mais perigosa que a barulhenta” me fez pensar que a história é sempre feita de lutas, mas que nem todos veem outros tipos de lutas e propostas de insurreições; Os fios de Ariadne: fortunas e hierarquias na Amazônia do século XIX – Patrícia Melo. O Capítulo intitulado “Bens e homens no mundo das águas” é para mim um dos maiores escritos sobre a história da Amazônia, me marcou muito, lembro que lemos na disciplina de Amazônia II, e dali em diante sabia que queria pesquisar o século XIX; A Ilusão do Fausto – Edinea Mascarenhas. Existem textos que não morrem. A Ilusão do Fausto é um deles. Obra revolucionária, quando li também em Amazônia II me confirmou a vontade de escrever algo sobre Manaus na Belle Époque, mas noutras perspectivas. Edinea nos brinda nesse texto de maneira ousada e comprometida.

Além dos célebres autores, é impossível passar pela academia sem ser marcado pelos professores e professoras, tanto positivamente quanto negativamente em alguns casos. Qual foram aqueles que você viu e pensou: quero ser assim quando crescer?

Sem dúvidas na graduação em História me marcaram os Drs. Arcangelo Ferreira e José Vicente Aguiar, ambos foram meus professores de História da Amazônia em diferentes temporalidades, e me ensinaram muito, sendo e fazendo. A Mestra Cristiane Manique foi quem me introduziu a Ciência histórica de fato. Foi minha professora de Introdução aos Estudos Históricos, Metodologia da História, Teoria da História e Laboratório do Ensino e da Pesquisa em História. Com ela em suas diferentes aulas aprendi o “grosso” da nossa ciência, como pesquisar e produzir a narrativa historiográfica, além do mais foi minha orientadora de Monografia histórica, marcando-me até o presente. Mestra Elisângela Maciel e Dra. Adriana Brito também me marcaram bastante. Mantenho ainda hoje boas relações com ambas se tornando amigas de profissão com muita cordialidade.

Você tem formação em História e Geografia, duas das principais ciências humanas, que mantém um diálogo bastante profundo. Como enxerga essa relação?

Penso que uma completa a outra e ambas completam a cultura e a sociabilidade. História se dedica aos homens no tempo, Geografia, os homens no espaço. Tempo e Espaço são indispensáveis para pensar as diferentes formas de ser/fazer da humanidade. São duas categorias presentes em qualquer pesquisa. Lembro que um dia num congresso sobre a História Indígena, a conferencista falou “assim como há uma história, há também uma geografia indígena”, parafraseando-a penso que para tudo há uma história e uma geografia, e isso concerne boa parte das ciências humanas e sociais que as duas disciplinas englobam. Sou suspeito pra falar de ambas, em minha formação as duas foram primaz para pensar e estruturar meu pensamento e vertente teórico-metodológico.

Até hoje você é lembrado por sua passagem como professor substituto na graduação em História da UFAM, tido como bastante atencioso aos alunos e com uma didática e domínio do conteúdo de dar inveja. Como foram as primeiras experiências como professor?

As minhas primeiras experiências como professor de história foram desafiantes e instigantes. Comecei ministrando aulas em um famoso curso preparatório para vestibular da cidade e ali, o domínio do conteúdo e da didática se tornam essenciais. Depois me tornei professor do Plano Nacional de Formação de Professores para a Educação Básica, o PARFOR da UEA, e surgiram mais desafios: o PARFOR nos ensina muito, a dinâmica, o ritmo da viagem para o Alto Rio Negro, Alto Solimões, Calha Média do Solimões já se torna um desafio, então saber que tinham pessoas me esperando fazia-me querer ser mais, ensinar sendo, como eu gosto de apontar. Na UFAM eu concretizei no meu período de substituto uma tentativa de tornar as “disciplinas pedagógicas e didáticas” interessante aos alunos, uma vez que o curso é uma Licenciatura e muitos, ainda hoje pouco apreciam as disciplinas da formação docente, mais um desafio, fazer os alunos se interessarem pelas disciplinas didáticas. O resultado foi muito bom. Então assim, ao longo da minha breve (até aqui) carreira eu procurei e procuro verificar maneiras de ensinar sendo, a partir daí vem o domínio do conteúdo, a dinâmica, mas o ponto primevo é a didática, é pensar algo que os alunos pensem “poxa quero fazer isso quando eu lecionar”. Meus primeiros anos foram desafiantes, mas com o sentimento de estar feliz fazendo aquilo que sempre quis.

Sua dissertação de mestrado, Manáos uma Aldeia que virou Paris: saberes e fazeres indígenas na Belle Époque Baré 1845-1910, defendida em 2016, hoje é uma referência para os estudos sobre a constituição do espaço urbano de Manaus e as tentativas de apagamento e a resistência dos 'excluídos da história'. Percebo que ela dialoga com premissas postuladas por Edinea Mascarenhas Dias em a A Ilusão do Fausto, mas você buscou ir além. Qual foi o caminho trilhado em sua produção?

Sem sombras de dúvidas o proposto pelo clássico da nossa historiografia A Ilusão do Fausto da professora Edinea foi leitura inspiradora para tal feito. É uma história bem peculiar: tudo iniciou antes mesmo de eu estar na Faculdade de História. Ainda aluno no IEA, um dia olhando a Eduardo Ribeiro, a Cúpula do Teatro Amazonas e todo seu entorno das janelas da minha sala pensei “como seria isso aqui tudo no século de sua criação? Como os indígenas viviam aqui?” E fiquei com aquela questão, lembro que comentei com o professor Laerte, ícone das humanas no IEA sobre e ele me indicou o texto da professora Edinea. Li sem entender muito, era um garoto de 16 anos. Me fascinaram as imagens do texto. Já na faculdade tudo foi definido. O caminho seria o mesmo que Edinea definiu: não negar o Fausto, mas destacar que ele não foi para todos, porém todos estavam naquele espaço/tempo: indígenas, negros, escravizados, prostitutas, mendigos, doentes… o foco foi destacar o elemento indígena, que era o mais visível e o que mais tentavam esconder, porém o que mais permanecia. E na guisa da Edinea mostrar que “pobres” na Belle Époque manauara, era um termo genérico: era pobre o trabalhador urbano, o indígena, o negro, a prostituta, o doente, o migrante nordestino, o seringueiro, tudo que contrariava o belo, era pobre. E desse termo genérico, disse “vou focar nos indígenas e nos seus saberes e fazeres”, em diante tudo fluiu e foi acontecendo, começaram a aparecer nas minhas fontes indígenas de diferentes grupos, realizando diferentes coisas na cidade: sendo batizados, fugindo das obras da Igreja Matriz, tomando banho no Igarapé de São Vicente, atirando flechas no Porto, vendendo doces e “encantamentos” no Mercado, etc. A cidade estava assim para o indígena como este estava para a cidade.

Anos mais tarde você ingressou no doutorado em História na PUC-SP. Sua tese de doutorado Chão de vidas, rios de memórias: histórias indígenas do Amazonas Imperial 1845-1888, defendida em 2022, é monumental. Nela você buscou compreender o cotidiano indígena do Amazonas na época imperial, desnudando aquela ideia tradicional do 'índio genérico', como se cada comunidade não tivesse suas especificidades. Conte-nos como foi sua produção.

Foi desafiadora ao máximo. Eu sempre disse a mim mesmo que quando fosse cursar doutoramento seria com o propósito de responder antes de tudo inquietações minhas. Quando escrevi o projeto de tese me propus a compor não uma história, mas diferentes histórias que se encontravam num elemento comum: esse elemento comum eram as populações indígenas. Era uma inquietação particular em desvendar como eram/estavam os mundos indígenas no Amazonas Provincial. Se até antes nos séculos XVII E XVIII grandes historiadores já haviam mostrados os xamanismos, as lideranças, as práticas de cura e o cotidiano de diferentes etnias, me perguntava “cadê esse povo no XIX? É consenso entre os historiadores do Brasil Imperial que a questão indígena para aquele século ainda é um campo em plena construção, é algo em andamento. Nisso me filiei plenamente na História Indígena que usa de certa “sensibilidade antropológica” como diz o mestre John Manuel Monteiro, e a História Cultural, e procurei na minha tese fazer uma História dos sentimentos e sensibilidades indígenas, dei ao indígena além da voz protagonista, a ação de sujeito histórico. Sempre ouvimos falar que “os índios eram os braços do Amazonas provincial”, que “eles dependiam da província” e inverti a lógica: era a província que dependia dos indígenas para tudo: eles eram os trabalhadores das obras públicas, os guias dos rios e matas seja dos naturalistas, seja das expedições demarcatórias do Império e da Província, eles que dominavam o conhecimento das ervas e fármacos da floresta, dos peixes e frutos bons, do manejo do solo e das estações sazonais dos rios do Amazonas. Nessa lógica procurei entender como os indígenas trabalhavam, estudavam, lideravam, dançavam e festejavam. Para o Brasil oitocentista como um todo se criou uma coisa que chamo de “discurso da aniquilação” que simplesmente sumiu com os povos indígenas no XIX, atrelando a eles o estigma de “ociosos, vagabundos e preguiçosos” simplesmente pelo fato de seus fazeres serem a outros modos. Então busquei nas fontes dizer “quem eram eles”, dar nomes, aí me apareceram macuxi, wapixana, baré, werekena, parintintim, sateré, tikuna, matsé, e uma gama de povos. Procurei mostrar como cada um agia e demonstrava suas organizações. E isso está na fonte. E não precisamos, como muitíssimo bem disse John Manuel Monteiro “forçar a mão” para escrever essa história. Eles, os povos indígenas, estão nas fontes, tudo é uma questão de perspectiva de leitura e construção da narrativa. Logo me “casei” numa portentosa união com a antropologia e fiz História Cultural Indígena mostrando sobretudo sua presença em todo o Amazonas do oitocentos.

Você se define como um Historiador Cultural. A palavra cultura tem um peso fortíssimo, pois é polissêmica, dando margem a diversas interpretações e gerando debates acalorados. No entanto, sabemos que a História Cultural é um campo historiográfico que nos apresenta inúmeras possibilidades. Foi essa variedade de temas que lhe atraiu?

Então o campo da cultura é polissêmico por “abraçar tudo” como dizem alguns colegas de outras vertentes da História. As inúmeras possibilidades da História Cultural tendem a complementar os vazios do Político, do Econômico e do Social. O que mais me atraiu na História Cultural foi sua amplitude teórico-metodológica. Diferente de suas “irmãs mais velhas” como diz o historiador inglês Peter Burke, a História Cultural parte de um exercício semântico da sensibilidade: o exercício da narrativa historiográfica não tende apenas a destacar nomes, valores, monumentos e esfinges, mas verificar cheiros, sabores, rostos. Isso me seduziu na História Cultural: a possibilidade de escrever história pelos ritmos, pelas danças, pelos sentidos dos rituais indígenas, pelos rostos desses… então o que mais me atraiu e continua atraindo é essa possibilidade quase como que uma encantriz de narrar a partir de coisas que não estão grafadas, mas estão nas fontes, especialmente nas fontes imagéticas, que gosto muito de utilizar.

No início de 2022 você foi eleito membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), ocupando a cadeira n° 38 cujo patrono é o etnólogo alemão Karl von den Steinen, tomando posse hoje. Fizeram parte dessa instituição pesquisadores renomados como Arthur Cézar Ferreira Reis, Mário Ypiranga Monteiro e Agnello Bittencourt. Quais são suas expectativas ao adentrar nessa casa centenária e de que forma pretende contribuir para sua aproximação com a comunidade?

Primeiro quero destacar a alegria e honra que é tomar posse de uma cadeira nesse estimado espaço da cultura e da pesquisa da nossa cidade, a mais antiga instituição do gênero. O IGHA está presente em todos os meus textos, trabalhos e pesquisas. Seu acervo é um dos que mais utilizo desde a monografia da licenciatura. A cadeira que passarei a me assentar era a que sempre quis: Karl von den Steinen, proeminente etnógrafo alemão que em nosso país muito contribuiu para o conhecimento dos povos indígenas. Sem dúvidas é um desafio estar a posteriori dos nomes que você citou pela carga grandiosa que as pesquisas destes nos legaram. Ainda hoje é quase inconcebível findar um curso de História sem ter lido algo de Arthur Reis, de Mário Ypiranga. É difícil estudar Amazônia e não ter lido Agnello. Estar no local que eles estiveram um dia é se apropriar e gerar novidades, uma vez que eles em seus tempos nos brindaram com essas novidades. A expectativa é grande e auspiciosa, pretendo junto ao Instituto potencializar aquilo que temos e ser/fazer mais, considerar a longevidade do IGHA é apontar para as vindouras realizações do Silogeu. Espero que estando ali a comunidade acadêmica e interessada em nossa história avance, seja e faça mais. Temos tanto a pesquisar e apresentar ainda sobre nossa capital e nosso estado. Então a expectativa é de cada vez sermos mais.

Quais são seus planos futuros?

Então a pesquisa é algo que nunca para, atualmente eu estou como Especialista Visitante do CNPq num projeto educacional do Museu da Amazônia MUSA, e está sendo uma experiência muito boa. Meu plano maior é voltar ao magistério, que é minha realização maior, voltar também a “amores que deixei no caminho” por conta da tese, ou seja, finalizar umas pesquisas que ainda não findei. Colaborar com o engrandecimento do IGHA, que passará a ser minha eterna casa de pesquisa histórica. E esperar, uma das coisas que aprendi ao longo dessa minha breve trajetória até aqui, é saber esperar. Não somos nós que escolhemos a ciência, é ela que nos escolhe e acolhe. Então esperar o que a história reserva a mim (risos).

Para finalizarmos, você é um historiador jovem, mas com uma bagagem cultural e experiência imensos. Quais conselhos você dá para aqueles que almejam ser historiadores?

Leia, reserve um tempo pra você, e se atualize! Ser historiador é estar aberto a muitas possibilidades e não fechar portas. Invista em você e no seu crescimento, faça cursos, adquira livros, participe de congressos, ouse. Para mim ser historiador hoje é ousar, é saber a partir da leitura da palavra mundo, como ensinou Paulo Freire, o que dizer, o que narrar e como narrar. Ousando construímos narrativas novas, conhecemos problemas novos e concebemos metodologias novas, então ouse! Vão te criticar, vão, mas também irão te aplaudir e dizer “olha ela fez isso, ele trouxe isso…” Sempre digo que o bom historiador lê muito e nessa leitura ele constrói aliados. A importância da leitura em nosso mister é conhecer, então leia, mesmo àqueles autores/teóricos que por alguma razão tu não concordas, leia. Logo, o conselho é leia, conheça, ouse e faça! Seja a diferença e construa uma boa narrativa histórica. Não invente, não caia em sensacionalismos, o bom historiador foge disso, mas, faça um texto que ao lerem as pessoas aprendam.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Entrevista: Ed Lincon Barros Silva

Ed Lincon Barros Silva.

Ed Lincon Barros Silva, 53, nasceu em Manaus, na Maternidade Balbina Mestrinho, em 20 de julho de 1969, dia em que o homem pisou na lua. Pesquisa de forma autodidata a História de Manaus e de suas antigas salas de cinema desde 1984. É proprietário de um dos mais ricos acervos fotográficos e documentais da cidade, em parte reproduzido em fanpages na internet, em livros, revistas e jornais.

– Muito obrigado por conceder essa entrevista. Para começarmos, conte um pouco sobre você e sua família.

Sou filho de Aluízio e Arlete Barros Silva. Minha infância foi boa. Gostava de assistir desenhos e séries hoje considerados clássicos. Tive vários brinquedos. Joguei bola, empinei papagaio e brinquei de bolinha de gude. Só não joguei pião porque nunca soube usar. Fui nos balneários do Parque 10 de Novembro, Tarumãzinho, Ponte da Bolívia e Ponta Negra, quando esta era distante da cidade e cercada pelo mato. Estudei no Colégio Ângelo Ramazzotti, Escola Estadual Márcio Nery e Escola Estadual Ruy Araújo. Trabalhei 11 anos em uma empresa concessionária da Scania e Agrale. Também fui estagiário na Caixa Econômica e na Suhab. Atualmente trabalho em uma loja de informática.

- Quando e como surgiu o interesse pela História, especialmente a de Manaus?

Começou quando o meu pai e outras pessoas mais velhas me falavam sobre as coisas da Manaus de outrora, como os bondes, os cinemas, os prédios antigos, o Carnaval, os carros, os ônibus com carroceria de madeira, o Zeppelin, o Balneário do Parque 10 de Novembro, Tarumãzinho, Ponta Negra dentre outros assuntos. Isso despertou o desejo de saber mais sobre a História de Manaus que não ensinaram na escola, pois não existiam, naquela época, livros sobre o assunto. No começo foi difícil, já que não havia internet, e as únicas fontes de pesquisa eram os jornais e revistas da Biblioteca Pública e também livros de parentes e amigos. Meu pai era minha fonte de informações. Infelizmente ele faleceu em 2013. Ele tirava minhas dúvidas e dizia que eu era um saudosista (risos). Alguns parentes também me ajudavam.

- Ao nos aventurarmos pela pesquisa, é impossível não nos inspirarmos em determinados autores. Quais você considera mais marcantes?

São vários: Selda Vale da Costa, Mário Ypiranga Monteiro, Cláudio Amazonas, Roberto Mendonça, Otoni Mesquita, Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa, Samuel Benchimol, Márcio Souza, Elza Souza, Moacir Andrade e tantos outros. A minha pesquisa sobre os cinemas começou com a leitura dos livros Hoje tem Guarany!, de Selda Vale e Narciso Lobo, Eldorado das Ilusões: cinema e sociedade, Manaus 1897-1935 e No rastro de Silvino Santos, ambos de Selda Vale, A Tônica da Descontinuidade: Cinema e Política em Manaus na década de 1960, de Narciso Lobo. Também tem o livro Síntese da História do Amazonas, de Antônio Loureiro, publicado em 1978.

- Em algum momento dessa trajetória você pensou em se profissionalizar através de um curso superior?

Sim, mas acho que não levo muito jeito para escrever.

- Você é considerado por muitos historiadores como um dos grandes especialistas na História dos cinemas de Manaus. Como surgiu o interesse pela sétima arte?

Como disse, das conversas com os mais velhos, da leitura dos livros da Professora Selda Vale da Costa e das conversas com o Joaquim Marinho. Meu pai, durante a década de 1960, trabalhava como taxista e também era contratado pelo gerente do Cine Polytheama para fazer a propaganda dos filmes. Para isso, o gerente mandava colocar em cima do carro dois alto falantes e cartazes afixados nas portas com o nome ou pôster do filme. Ele ia acompanhado por um funcionário do cinema que fazia a locução. A curiosidade de saber a História das casas cinematográficas de Manaus me empolgaram. Juntei um bom material. Joaquim Marinho e a professora Selda me ajudaram muito nas minhas pesquisas com fotos e informações. A pesquisa nos jornais foi longa e difícil, pois muitos jornais estavam deteriorados.

- Como pesquisador detentor de um acervo ímpar, você já foi várias vezes requisitado por historiadores, instituições, jornais e revistas para prestar consultoria. Foi um bom período? Quais os trabalhos mais desafiadores?

Foi uma época boa, pois eu estava desempregado. Trabalhei com o Coronel Roberto Mendonça, Selda Vale da Costa, Durango Duarte e Cláudio Amazonas. Agradeço a todos eles. A História dos grupos teatrais de Manaus e a História dos bombeiros foram grandes desafios. A falta de informações sobre o segundo era grande. Muita coisa se perdeu como jornais e fotos, e as pessoas que viveram a época já haviam falecido. Os jornais e revistas que existiam estavam em péssimo estado de conservação, com páginas rasgadas. Uma pena. Outra dificuldade encontrada foi que algumas instituições dificultaram o acesso a seus acervos, como o Instituto Geográfico e Histórico do Amazona (IGHA) e a Biblioteca da Fundação Rede Amazônica. NA Biblioteca da Associação Comercial do Amazonas (ACA) e do Museu Amazônico da UFAM fui muito bem atendido.

- Além da consultoria, você também é conhecido por colaborar com fanpages e blogs que divulgam a História de Manaus e do Amazonas. Parte de seu acervo se encontra em páginas e perfis no Instagram e Facebook. Como funciona essa parceria?

Eu sempre procuro ajudar com informações sobre datas e observações, como curiosidades sobre os registros fotográficos. Quando alguém tem dúvida, procuro sempre passar a informação correta. Quando não sei, prefiro não opinar. Sou muito consultado pelo jornalista Evaldo Ferreira, do Jornal do Commercio. No passado, o saudoso Joaquim Marinho sempre me ligava quando precisava saber a data de inauguração de seus cinemas. Atualmente colaboro com o Eliton Reis Lira, da Manaus na História, com o Paulo Menezes, da Manaus em Cores, com o Marçal, da Manaus Sorriso, com você, do blog História Inteligente, e com a Elza Souza e o Cláudio Amazonas. Todos são grandes amigos que fiz durante as pesquisas.

Nos arquivos encontramos fontes únicas, verdadeiros tesouros históricos muitas vezes intocados. Quais foram suas principais descobertas?

A foto do Cine Popular quando de seu fechamento em 1972. Não existia nada na internet. Procurei ano a ano em todos os jornais até que finalmente encontrei. Depois o Coronel Roberto Mendonça colocou na internet e agora é fácil de encontrar. Mas quem encontrou fui eu. Outra foto difícil de encontrar foi a do Silvério José Nery, patriarca da família Nery falecido em 1878. Achei no Diário Oficial. Outros achados foram a fotos da inauguração do Prédio do Departamento de Saúde Pública, na Praça Antônio Bittencourt (do Congresso) e da inauguração do Quartel dos Bombeiros na rua Joaquim Sarmento. Encontramos uma página manuscrita no Arquivo Público com dona Janete, funcionária.

Tanto pesquisadores formados quanto autodidatas, para realizarem suas investigações, enfrentam uma série de problemas, como a péssima conservação de arquivos e a resistência de certas instituições em abrir seus espaços ao público. Você já se viu diante desses entraves?

As dificuldades são muitas. A falta de incentivo para as pesquisas e os locais que não permitem a reprodução de seus acervos são alguns exemplos. Alguns responsáveis pelos arquivos questionam o porque da pesquisa, se é trabalho de faculdade ou para escrever um livro. Sempre que possível limitam o acesso a jornais e revistas.

Em sua opinião, qual o papel dos historiadores na sociedade?

Os historiadores devem ser pessoas interessadas em resgatar a História de uma cidade que, como a nossa, não se preocupa em preservá-la; ajudar quem tem interesse em conhecer as origens de sua cidade, de seus habitantes e seu cotidiano ao longo do tempo; deixar um legado para as novas gerações que desconhecem a História de Manaus, seja por falta de interesse ou de não haver a matéria de história local nas escolas. Falta incentivo do Governo e da Prefeitura.

A Manaus de sua geração foi a das décadas de 1970, 80 e 90. Do que você guarda boas lembranças?

Da minha infância. Dos igarapés de águas limpas e sem poluição. Dos vários circos que passaram por Manaus, de algumas lojas que fecharam, supermercados como Agromar, Royale, loja S. Monteiro e Credilar. Do Parquinho 2000 no Adrianópolis, do Aviaquário na Praça da Matriz, do Avião da Praça da Saudade e do Cine Guarany. Até hoje não me conformo com a demolição dele. Sinto um vazio muito grande quando passo em frente onde ele existiu. Guardo ainda boas recordações do Boulevard Amazonas, onde eu e meus primos costumávamos jogar bola no canteiro central. De andar de bicicleta na época de finados, saudades da casa dos meus avós. Como era de dois andares, gostava de ver a cidade lá do alto. Da Lobrás com seus chocolates e revistas para colorir na minha infância. Da Pastelaria Suprema na Rua Silva Ramos com Ferreira Pena, da Sorveteria Zizas na Praca 14. De visitar o Aeroporto de Ponta Pelada, do Porto com a locomotiva na entrada e as águas escuras que me davam medo. Da drogaria Avenida que vi inaugurar em 1977. Dos desfiles na avenida Eduardo Ribeiro e do Peladão.

Para finalizarmos, que conselhos você pode dar para os pesquisadores que estão iniciando suas carreiras?

Primeiro, gostar de pesquisar em jornais, revistas, cemitérios e arquivos públicos. Segundo, sempre usar equipamentos de proteção quando for manusear material antigo. Se dedicar, gostar de História e entender o passado, para poder ter pleno domínio sobre o assunto pesquisado. Registrar em fotos o que está pesquisando, respeitando os acervos dos arquivo para que outros pesquisadores possam utilizar os mesmos.

Manaus, 26/02/2023 – 27/02/2023.



sábado, 21 de janeiro de 2023

10 anos de História Inteligente

No dia 18 o blog História Inteligente completou 10 anos de existência. Tudo começou em 18 de janeiro de 2013, nas férias do Ensino Médio. Historia era desde que me lembre a disciplina à que mais me dedicava. Escrevia textos e fazia resumos de livros sobre as mais variadas temáticas históricas. Tive a ideia, então, de criar um blog para divulgar essa singela e amadora produção. Me questionei qual seria seu nome. Minha mãe fez uma sugestão: "História Inteligente". Não sabia utilizar muito bem essa nova tecnologia. Mas precisava dar início com uma postagem. Acabou que fiz a reprodução de uma matéria de 2006 da revista História Viva sobre o racismo no século XIX. Após ter contato na escola com a História do Amazonas, especialmente a da capital Manaus, decidi focar nessa área. Os textos sobre a história da cidade fizeram sucesso. Era pouco o conteúdo dessa área na internet. Ainda não sabia, mas estava fazendo um trabalho atualmente conhecido como História Pública, que consiste na divulgação do conhecimento histórico para o grande público. Em 2015 surgiu a oportunidade de me especializar através do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Olhando para trás, percebo o quanto ela foi importante para o amadurecimento da escrita e para reflexões profundas sobre a sociedade. A partir daí fui convidado para publicar textos em jornais, dar entrevistas, prestar consultoria, realizar passeios públicos e ministrar palestras. O ponto alto foi o convite para ser colunista de História do Jornal do Commercio. Após finalizar a graduação, fui aprovado em 2022 para cursar o Mestrado em História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Atualmente estou na fase da redação da dissertação, o que fez eu esquecer de publicar esse texto no dia 18. O blog foi responsável por várias conquistas. Agradeço imensamente a vocês seguidores, no Facebook e no Instagram, que me acompanham ao longo dessa década.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Os nomes de Manaus

Manaus em 1865. Aquarela de Jacques Burkhardt. FONTE: Harvard Library.

Manaus surge ao redor da Fortaleza de São José da Barra do Rio Negro, construída na segunda metade do século XVII, como um modesto povoado formado pelas tribos indígenas dos barés, aruaquis, manaus, tacu, passé, baníua, tarumã, muras, merequenas, juris e alguns soldados portugueses. O local foi denominado Lugar da Barra. Permaneceu em relativo abandono por mais de um século, com uma população rarefeita e sem infraestrutura. A fortaleza desempenhava suas funções defensivas contra espanhóis, ingleses, franceses e holandeses, que, assim como os portugueses, tinham grande interesse no comércio das drogas do sertão.

Em 1755 é criada a Capitania de São José do Rio Negro – embrião político geográfico do atual Estado do Amazonas – subordinada à do Grão-Pará. Instalada em 1758, teve como primeira capital a antiga Aldeia de Mariuá, transformada em Vila de Barcelos. No final do século XVIII, Manuel da Gama Lobo d’Almada, Governador da Capitania de São José do Rio Negro, considerou a posição geográfica do Lugar da Barra, entre os rios Negro e Solimões, como bastante favorável à defesa contra invasões estrangeiras e às rotas de comércio naquela região. Decide, então, transformá-lo em capital, transferindo-a de Barcelos em 1791. A Barra, agora capital, recebeu uma série de melhorias, como a construção de fábricas, engenhos, cordoarias, padaria, olarias, poço e outros estabelecimentos.

O lugar desfrutou de certo prestígio até 1799, quando, por ordem do Governador do Grão-Pará, a capital retornou para Barcelos. Em 1804 o novo Governador do Grão-Pará, D. Marcos de Noronha e Brito, Conde dos Arcos, reavaliou a administração de Lobo d’Almada e sugeriu ao Governador da Capitania de São José do Rio Negro, José Simões de Carvalho, a mudar novamente a capital para o Lugar da Barra. A transferência, porém, explica o historiador Arthur Cézar Ferreira Reis, só se concretizou quatro anos mais tarde: “Só, porem, em 1808, já sob o governador capitão de mar e guerra José Joaquim Victorio da Costa, a suggestão era acceita, deixando-se em definitivo Barcellos e reinstalando-se a capital na Barra, aos 29 de março” (REIS, 1934, p. 56).

Mais de vinte anos depois, em 1833, o Lugar da Barra foi elevado à categoria de Vila com o nome de Manáos (Manaus). Isso só foi possível graças ao Código do Processo Criminal, promulgado pela Regência em 1832, que reorganizou os termos e comarcas das Províncias. A Província do Grão-Pará o executou em 25 de junho de 1833, ocasião em que a Província foi dividida nas comarcas do Grão-Pará, Baixo Amazonas e Alto Amazonas: “O Logar da Barra do Rio Negro fica erecto em villa com a denominação de Manáos, servindo de cabeça de termo, em o qual se comprehende a mesma villa e a de Silves, que perde o predicamento de villa e a denominação de Silves, sendo substituída pela de Saracá; e bem assim as Freguezias de Aturiá e Amatary (supprimindo o título que cada uma tinha de Missão) e de Jaú, que era denominada Ayrão, com os seus limites actuaes” (REIS, 1934, p. 69-70).

A cidade de Manaus conservaria esse nome por 15 anos. A Assembleia Provincial do Grão-Pará, após estudos, decidiu que a então Vila de Manaus, capital da Comarca do Alto Amazonas, já possuía as devidas condições de ser elevada à categoria de cidade. A população era estimada entre 3000 e 6000 habitantes, existia uma pequena lavoura, comércio de matérias-primas e manufatura de produtos como a tartaruga, o pirarucu e a mandioca. A elevação foi levada a efeito através da Lei N° 145 de 24 de outubro de 1848. A Vila de Manaus passou a se chamar Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro, homenageando a geografia da região e a padroeira do Amazonas.

Assim se chamou a cidade até 1856. O historiador Robério dos Santos Pereira Braga registra que em 21 de agosto de 1856 o Deputado Provincial João Inácio Rodrigues do Carmo apresentou à Assembleia um projeto mudando o nome da Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro para Manáos (Manaus). Após longos debates e sendo aprovado, o projeto deu origem à Lei N° 68 de 04 de setembro de 1856, oficializando a mudança do nome (BRAGA, 1993, p. 40). Uma publicação de 06 de setembro de 1856 do jornal Estrella do Amazonas informa que “Manáos foi o nome de uma antiga e poderosa tribu, que habitava o lugar onde está hoje assentada a cidade. Manáos é também o nome do igarapé que a embelleza pelo lado oriental, e o de um regato que abastece de água potavel”. A lei, conforme esse periódico, foi instituída no dia 05 de Setembro, data em que foi criada a Província do Amazonas em 1850. A população comemorou com júbilo o novo nome, soltando nas ruas e praças, durante o dia e a noite, fogos de artifício. Ao fim da matéria, o autor informa que “A mudança do nome da capital foi geralmente applaudida. Todos achão o nome de Manáos mais nosso e mais significativo” (ESTRELLA DO AMAZONAS, 06/09/1856).

Como se escreveu o nome da cidade? Em documentos, jornais, livros, revistas, placas, cartas e cartões-postais de 1856 a 1940 encontramos o nome sendo escrito como Manáos, Manáus e Manaus. A grafia Manáos, com acentuação tônica no ‘a’, foi a forma mais difundida. Pelo Decreto N° 117, publicado no Diário Oficial do Estado do Amazonas, de 17 de março de 1937, a grafia Manaus foi oficialmente estabelecida. O Diário Oficial do Estado corrigiu seu cabeçalho em 1939 (BRAGA, 2007). A Reforma Ortográfica de 1943, que excluiu os étimos latinos e gregos ch, th, ph, xh, mm, nn e os por us, a grafia Manaus se consolidou (PEDROSA, 2018).


FONTES:

Estrella do Amazonas, 06/09/1856.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRAGA, Robério dos Santos Pereira. Da cidade da Barra do Rio Negro e de Manaus. Jornal do Commercio, 24/10/1993, p. 40-40.

BRAGA, Robério dos Santos Pereira. O nome "Manaus". Blog do Rocha, 21/02/2007.

PEDROSA, Fábio Augusto de Carvalho. Manaós, Manáos e Manaus: Como se escreveu o nome da cidade ao longo do tempo. Blog História Inteligente, 19/10/2018. Disponível em: https://historiainte.blogspot.com/2018/10/manaos-manaos-e-manaus-como-se-escreveu.html.Acesso em 24/10/2022.

REIS, Arthur Cézar Ferreira. Manáos e outras Villas. Manáos: Typografia Phênix, 1934. Biblioteca Arthur Reis – CCPA.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Amores proibidos: a homossexualidade em Manaus no início do século XX

Rapaz com cesto de frutas. Caravaggio, 1593. FONTE: commons.wikimedia.org.

Nos últimos 100 anos o entendimento sobre a homossexualidade sofreu grandes mudanças. Considerada uma condição/prática pecaminosa e antinatural, dentro a esfera religiosa, passou a ser compreendida e aceita por parte da população, ainda que boa parcela da sociedade continue utilizando justificativas de cunho religioso para condená-la. Entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, tornou-se objeto de estudo das ciências médicas, por elas entendida como um “distúrbio, anomalia, carecendo de cura, correção” (MOREIRA, 2012, p. 263), no contexto da medicalização e saneamento “moral” que se difundiu no Ocidente.

No recorte temporal do presente texto, a homossexualidade é entendida como um vício, uma imperfeição que degenerava homens e mulheres, estando lado a lado, nos famosos Códigos de Posturas, da prostituição e do alcoolismo. De acordo com o professor Adailson Moreira, “As práticas sexuais passaram dos domínios da religião para os da ciência, com sua postura higienista” (MOREIRA, 2012, p. 256). A passagem da esfera sagrada para a científica não representou o fim das perseguições. Pode-se pensar que, agora, a “ciência” justificava, seguindo os mais modernos critérios de pesquisa, a repressão e a marginalização de homens e mulheres que não se enquadravam em padrões normativos.

Para compreendermos a vida dos homossexuais de Manaus no início do século XX, devemos, primeiramente, ter ciência de que a cidade estava em plena modificação. A partir de 1890-1900, ela passa por um profundo processo de transformação em seus aspectos socioculturais, políticos e econômicos, possibilitado pelo crescimento do mercado de produtos primários – com destaque para a borracha - destinados ao abastecimento dos grandes centro industriais da Europa e da América do Norte. Ela precisa ser modernizada, práticas consideradas impróprias devem ser expurgadas e a vida urbana deve ser controlada por rigorosos Códigos de Posturas criados pelos administradores para garantir o bom funcionamento do novo polo econômico para as elites. Hábitos, costumes e práticas são sepultados, nos dizeres da historiadora amazonense Edinea Mascarenhas Dias (DIAS, 2007, p. 43).

Os periódicos locais são fontes preciosas para o estudo da vida dos homossexuais da cidade. O contato e leitura deles permitiu compreender o tratamento dispensado a eles, referidos nas folhas como pederastas, sodomitas e invertidos. As principais formas encontradas pelo poder público para combatê-los em nome do “saneamento moral” eram as perseguições e prisões, estimuladas pelos veículos de imprensa. Em 1912 o jornal A Marreta informava, estarrecido, que “Augmenta, dia a dia, de uma forma assustadora entre nós, o numero dos invertidos”. Eles estavam se espalhando pelas imediações do botequim ‘O Malho’, próximo ao Mercado Municipal, e por outros pontos da cidade. O redator da denúncia considerava a homossexualidade um vício terrível, afirmando que “Os invertidos de Manáos são de indole perversa, corruptos de natureza, excessivos e bandidos”. Para cortar o mal pela raiz, sugeriu que “Pode-se arranjar uma ilha, e nella se colocar os invertidos, obrigando-os a trabalhos forçados” (A MARRETA, 03/11/1912). A prisão com trabalho forçado era aplicada em diferentes partes do mundo contra os homossexuais, como foi o caso da condenação, em 06 de abril de 1895, do escritor e dramaturgo irlandês Oscar Wilde (1854-1900). Nesse mesmo ano o Jornal do Commercio informava ter recebido da Casa Freitas um exemplar do primeiro volume da obra Os desequilibrados do amor, de A. Dubany (JORNAL DO COMMERCIO, 08/07/1912).

Em 1913 uma matéria do jornal O Chicote registrou que Manaus era “um dos mais sinceros espelhos de Sodoma e Gomorrha”, onde todos os vícios eram praticados, da vadiagem às relações sexuais com pessoas do mesmo sexo. A “pederastia” era um vício que “alastra-se, desce do alto, arrasta na onda a infancia inexperiente e atira para as esquinas dos cinemas e sombras propicias dos jardins publicos as figuras amarellentas e repulsivas dos “brizas” (O CHICOTE, 02/08/1913). O autor finaliza sua denúncia pedindo mais esforços da polícia para moralizar a capital. No ano seguinte, Evaristo da Silva e Norberto da Silva Azevedo foram presos por um guarda-civil na Rua Governador Vitório, no bairro de São Vicente, por estarem praticando, de madrugada, atos capazes de “lembrar os tempos de Sodoma” (JORNAL DO COMMERCIO, 26/12/1914). A homossexualidade era enquadrada nos crimes sexuais. Seja por questões biológicas, hereditárias ou adquiridas do meio em que se vive, o historiador Carlos Martins Júnior afirma que

Sob a justificativa de evitar o contato de indivíduos “sãos” com a “doença” física e moral, no final do século XIX desenvolveu-se a noção de que o controle racional das “perversões sexuais”, e mais especificamente da “homossexualidade viciosa”, garantiria a defesa do corpo social ameaçado (MARTINS JÚNIOR, 2015, p. 1249).

Esses são alguns registros de como os homossexuais eram tratados em Manaus. Não trata-se de um fenômeno exclusivo, pois ao redor do mundo, nas mais variadas sociedades, essas pessoas eram perseguidas, ridicularizadas e punidas. Observando bem, percebemos que esses informes tratam de um tipo específico de homossexual, o de baixa renda, que muitas vezes tinha que se prostituir para sobreviver. O que acontecia quando ele pertencia à elite? Qual era o peso da classe social sobre essa questão? O jornal A Marreta, em matéria já citada, informava que a campanha contra os “invertidos” deveria “[…] começar pelos grandes, que occupam logares importantes em nossa sociedade” (A MARRETA, 03/11/1912). Aqueles que tinham prestígio na sociedade procuravam viver de maneira discreta, sem levantar suspeitas. Alguns mantinham uma vida dupla, pois eram casados ou tinham a fama de mulherengos, que não passava de uma fachada. Qualquer rumor era um prato cheio para os jornais de mexericos como O Chicote, A Marreta e A Farpa, sempre dispostos a acabar com uma reputação considerada irretocável.

A sociedade manauara do início do século XX tinha rígidos valores morais, que não davam espaço para qualquer tipo de “desvio”. Em Evocação de Manaus – como eu a vi ou sonhei, trabalho memorialístico de José Jefferson Carpinteiro Péres sobre sua infância e adolescência entre as décadas de 1940 e 1950, nos é apresentada uma Manaus de padrões vitorianos, patriarcais, praticamente inalterados desde 1900. As meninas eram educadas para serem esposas obedientes, e os meninos para serem varões exemplares, chefes de família. Existia uma única preocupação que atormentava pais e mães: a homossexualidade. “Não tanto o feminino”, escreve Jefferson, “pois, tanto quanto eu sabia, o lesbianismo era raríssimo”. “O problema dizia respeito”, continua, “aos homens. Estes podiam ser tudo, bêbados, vagabundos ou arruaceiros, mas homossexuais, nunca. Era o que de pior podia acontecer a uma família. Quando um garoto ou rapaz se revelava como tal, os pais e irmãos morriam de vergonha e desgosto”. O pai castigava o filho e este era expulso de casa e, assim que os amigos ficavam sabendo, também era excluído de seus círculos sociais:

Lembro-me de um, meu contemporâneo no Colégio D. Bosco, assumido, como hoje se diz, que levava surras homéricas do pai, um militar que se julgava desonrado pelo filho. Este acabou expulso de casa, indo abrigar-se na casa da avó. Mas a hostilidade existia na escola, na rua, em toda parte. Aqueles de trejeitos mais acentuados eram perseguidos com assobios e piadas obscenas. E quando ousavam replicar, os provocadores reagiam com sonoras vaias e, não raro, com agressões físicas. Os enrustidos, quando descobertos, eram sumariamente excluídos das turmas. Lembro-me, por exemplo, dos meus tempos de molecagem na rua Saldanha Marinho, hoje Huáscar de Figueiredo. Fazia parte do grupo um garoto chamado Celino, dos mais inteligentes e agradáveis. Um dia, não sei como, correu a notícia de que o Celino era. Recebida com estupor e incredulidade, a nova levou algum tempo para ser assimilada. Quando não houve mais dúvida, ficou decidido que ele não mais frequentaria a roda (PÉRES, 2002, p. 49-50).

Celino não esperou pela expulsão do grupo de amigos. Fez, de acordo com Jefferson Péres, o que muitos homossexuais que tinham condições faziam: deixou de procurá-los e, “[…] pouco tempo depois tomava o rumo do Rio de Janeiro” (PÉRES, 2002, p. 50). Amaro Vieira de Alencar, autor de São Raimundo dos Meus Amores, obra sobre sua infância e adolescência no bairro de São Raimundo entre as décadas de 1940 e 1950, relata, com certa carga pejorativa, aspectos da homossexualidade dos meninos de seu tempo. Um jovem de nome Leopoldino, cita Amaro, era inclinado à “pederastia”. Certa vez, foi flagrado por vários garotos em posição de quatro com um rapaz, que logo saiu de cena: “Indignado, Leopoldino continuou de quatro pés e, arreganhando as nádegas com as duas mãos, exclamou – Deixa porr!… O c… é meu! Mete Chico! Amaro finaliza esse breve relato afirmando que isso não era estranho, pois outros meninos também eram homossexuais, ativos ou passivos, abandonando a prática na fase adulta: “Quando meninos, davam até por uma bolacha, hoje não dão nem por uma padaria” (ALENCAR, 1985, p. 26).

Essa Manaus de Jefferson Péres e Amaro Alencar guardava resquícios dos tempos dos periódicos analisados. Os relatos desses memorialistas descortinam uma cidade que convivia, de um lado, com rígidos padrões morais, oriundos de um tradicional Catolicismo enraizado na sociedade, que castigava, humilhava e excluía os homossexuais do convívio social; e, do outro, com esse e outros grupos marginalizados que, apesar das tentativas de “saneamento moral” e exclusão e após anos de luta renhida, conquistaram o direito de existir.


FONTES:


Jornal do Commercio, 08/07/1912.

A Marreta, 03/11/1912.

O Chicote, 02/08/1913.

Jornal do Commercio, 26/12/1914.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


ALENCAR, Amaro Vieira de. São Raimundo dos Meus Amores. Manaus, Sociedade de Televisão Ajuricaba, 1985.

DIAS, Edinea Mascarenhas. A Ilusão do Fausto: Manaus 1890-1920. 2° ed. Manaus: Editora Valer, 2007.

MOREIRA, A. S. A homossexualidade no Brasil no século XIX. Bagoas: Revista de Estudos Gays, v. 6, p. 253-279, 2012.

MARTINS JÚNIOR, Carlos. Saber jurídico e homossexualidade no Brasil da Belle Époque. Diálogos (Maringá), v. 19, p. 1217-1251, 2015.

PÉRES, Jefferson. Evocação de Manaus – como eu a vi ou sonhei. 2° edição revista e ampliada. Manaus: Editora Valer, 2002.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

O Amazonas na época da Elevação à categoria de Província

Bandeira do Amazonas.

Naquele 05 de Setembro de 1850, encerrava-se, pela força da lei, uma luta. Luta por emancipação política que teve início décadas antes. A antiga Comarca do Alto Amazonas, subordinada à Província do Grão-Pará, foi elevada, através da Lei n° 582 de 05 de Setembro daquele ano, à categoria de Província do Amazonas. Emancipada essa porção territorial, criada uma nova unidade política, era preciso organizar a administração, ver o que existia, o que faltava, cuidar da arrecadação. Enfim, planejar o futuro da nova Província.

Os limites da Província do Amazonas seriam os mesmos da antiga Capitania de São José do Rio Negro, “com a Capitania de Mato Grosso, ao sul, através da Cachoeira de Nhamundá até sua foz no Amazonas e deste pelo outeiro de Maracá-Açu, ficando para o Rio Negro a margem ocidental do Nhamundá e do outeiro” (REIS, Arthur Cézar Ferreira. História do Amazonas, 2° ed, 1989, p. 121).

Quando a Província foi entregue a seu primeiro Presidente, João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha (1798-1861), nomeado por Carta Imperial de 07 de junho de 1851, esta contava com um Comando Geral, criado em 05 de julho de 1737, que compreendia todo o território; a Guarda Policial, criada em 04 de abril de 1837, formada por dois Batalhões com uma força de 1339 praças; nos portos existiam 12 oficiais militares destacados; e as Companhias de Trabalhadores, instituídas pela Lei n° 02 de 25 de abril de 1838, que eram instituições que recrutavam trabalhadores, índios e mestiços, para a prestação de serviços compulsórios para o Estado e particulares. Foi criada uma Companhia Provisória de Caçadores de 1° Linha, que contava com 84 praças. Existiam também 39 praças destacadas que pertenciam ao 3° Batalhão de Artilharia a pé. Com 2 Termos com foro independente, o Amazonas possuía 4 municípios, 20 freguesias, 18 Distritos de Paz, 2 Delegacias e 11 Subdelegacias.

O estado da segurança pública era considerado lisonjeiro, ainda que as maiores ameaças consideradas pelos administradores locais fossem os ataques de indígenas das tribos arara, macûs, muras e karipuna, que vez ou outra assaltavam embarcações e matavam seus passageiros. Tenreiro Aranha tomou medidas para coibir esses ataques e punir seus autores.

No que diz respeito ao culto público, representado pela religião Católica, existiam 3 Missões na região para a catequese dos indígenas: a de Porto Alegre, em São Joaquim do Rio Branco, no Alto Rio Branco, onde eram catequizados uapixanas, macuxis, jaricunas, anhuaques, arutanis, procutus e saparás; a de Japurá, Içá e Tonantins, na margem esquerda do Solimões, cujos trabalhos eram feitos com ticunas, mariatés, xomanas, juris e passés; e a do Andirá, em Vila Nova da Rainha (Parintins), voltada para a catequese de maués e muras. As missões não estavam dando os resultados esperados, o que era atribuído “a carencia de Missionarios esclarecidos, e animados de fervor religioso, e de patriotismo; a insufficiencia dos meios pecuniarios, de que se tem disposto; e a falta de um systema de educação mais apropriada” (EXPOSIÇÃO, 1851).

Em aspectos educacionais, em seus anos iniciais a Província possuía 8 escolas de ensino primário, das quais 7 estavam plenamente providas de todos os materiais necessários para o funcionamento. A única instituição de ensino secundário, o Seminário de São José, criado em 1848, ficava na capital, Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro (Manaus). Nela eram ensinada gramática latina, língua francesa, música e canto. À época era frequentado por 17 alunos, sendo 13 internos. Em trabalho de recenseamento realizado em 1851, a população foi estimada em 29.798 habitantes, sendo 7.815 homens livres e 225 escravos, 8.772 mulheres livres e 272 escravas, 6.776 menores do sexo masculino livres e 117 escravos, e 5.685 menores do sexo feminino livres e 136 escravas.

Assim se encontrava a Província do Amazonas, de acordo com a Exposição apresentada em 09 de dezembro de 1851 por Fausto Augusto de Aguiar, Presidente da Província do Pará, a João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha. Fausto concluiu sua exposição desejando sucesso a Tenreiro Aranha e ao Amazonas: "Concluindo, felicito a V. Exa. pela gloria, que lhe caberá, de dar á Provincia do Amazonas o impulso, que deve acceleral-a na carreira do progresso, desenvolvendo largamente os grandes meios que ella possue, e que lhe afiançam, no porvir, um logar a par das que mais hajam florescido" (EXPOSIÇÃO, 1851).

A par dessas informações, do lugar que primeiro administraria, Tenreiro Aranha pôde enfim instalá-la em 01 de Janeiro de 1852, no prédio da Câmara Municipal de Manaus. Instalada, nomeados seus vice-presidentes e demais funcionários, seguiram-se os festejos e dois tradicionais atos religiosos, o de Ação de Graças, na capela do Seminário de São José, e o Te Deum Laudamus (A Ti Louvamos, Deus), na Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, que estava servindo de Igreja Matriz.

Em 1852 foi levantada a planta de Manaus. Nela, além dos limites urbanos, pode-se observar que a pequena cidade era dominada pelos igarapés de São Vicente, da Ribeira, do Espírito Santo e do Aterro, que cortavam seus poucos bairros, Remédios, República, Espírito Santo, Campina e São Vicente. As ruas continuavam estreitas e curtas, como nos tempos coloniais, definidas de forma natural pelo terreno. Registra-se, ainda, como acontecimento marcante para a região, a introdução da navegação a vapor mediante a Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá.