terça-feira, 6 de setembro de 2022

Amores proibidos: a homossexualidade em Manaus no início do século XX

Rapaz com cesto de frutas. Caravaggio, 1593. FONTE: commons.wikimedia.org.

Nos últimos 100 anos o entendimento sobre a homossexualidade sofreu grandes mudanças. Considerada uma condição/prática pecaminosa e antinatural, dentro a esfera religiosa, passou a ser compreendida e aceita por parte da população, ainda que boa parcela da sociedade continue utilizando justificativas de cunho religioso para condená-la. Entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, tornou-se objeto de estudo das ciências médicas, por elas entendida como um “distúrbio, anomalia, carecendo de cura, correção” (MOREIRA, 2012, p. 263), no contexto da medicalização e saneamento “moral” que se difundiu no Ocidente.

No recorte temporal do presente texto, a homossexualidade é entendida como um vício, uma imperfeição que degenerava homens e mulheres, estando lado a lado, nos famosos Códigos de Posturas, da prostituição e do alcoolismo. De acordo com o professor Adailson Moreira, “As práticas sexuais passaram dos domínios da religião para os da ciência, com sua postura higienista” (MOREIRA, 2012, p. 256). A passagem da esfera sagrada para a científica não representou o fim das perseguições. Pode-se pensar que, agora, a “ciência” justificava, seguindo os mais modernos critérios de pesquisa, a repressão e a marginalização de homens e mulheres que não se enquadravam em padrões normativos.

Para compreendermos a vida dos homossexuais de Manaus no início do século XX, devemos, primeiramente, ter ciência de que a cidade estava em plena modificação. A partir de 1890-1900, ela passa por um profundo processo de transformação em seus aspectos socioculturais, políticos e econômicos, possibilitado pelo crescimento do mercado de produtos primários – com destaque para a borracha - destinados ao abastecimento dos grandes centro industriais da Europa e da América do Norte. Ela precisa ser modernizada, práticas consideradas impróprias devem ser expurgadas e a vida urbana deve ser controlada por rigorosos Códigos de Posturas criados pelos administradores para garantir o bom funcionamento do novo polo econômico para as elites. Hábitos, costumes e práticas são sepultados, nos dizeres da historiadora amazonense Edinea Mascarenhas Dias (DIAS, 2007, p. 43).

Os periódicos locais são fontes preciosas para o estudo da vida dos homossexuais da cidade. O contato e leitura deles permitiu compreender o tratamento dispensado a eles, referidos nas folhas como pederastas, sodomitas e invertidos. As principais formas encontradas pelo poder público para combatê-los em nome do “saneamento moral” eram as perseguições e prisões, estimuladas pelos veículos de imprensa. Em 1912 o jornal A Marreta informava, estarrecido, que “Augmenta, dia a dia, de uma forma assustadora entre nós, o numero dos invertidos”. Eles estavam se espalhando pelas imediações do botequim ‘O Malho’, próximo ao Mercado Municipal, e por outros pontos da cidade. O redator da denúncia considerava a homossexualidade um vício terrível, afirmando que “Os invertidos de Manáos são de indole perversa, corruptos de natureza, excessivos e bandidos”. Para cortar o mal pela raiz, sugeriu que “Pode-se arranjar uma ilha, e nella se colocar os invertidos, obrigando-os a trabalhos forçados” (A MARRETA, 03/11/1912). A prisão com trabalho forçado era aplicada em diferentes partes do mundo contra os homossexuais, como foi o caso da condenação, em 06 de abril de 1895, do escritor e dramaturgo irlandês Oscar Wilde (1854-1900). Nesse mesmo ano o Jornal do Commercio informava ter recebido da Casa Freitas um exemplar do primeiro volume da obra Os desequilibrados do amor, de A. Dubany (JORNAL DO COMMERCIO, 08/07/1912).

Em 1913 uma matéria do jornal O Chicote registrou que Manaus era “um dos mais sinceros espelhos de Sodoma e Gomorrha”, onde todos os vícios eram praticados, da vadiagem às relações sexuais com pessoas do mesmo sexo. A “pederastia” era um vício que “alastra-se, desce do alto, arrasta na onda a infancia inexperiente e atira para as esquinas dos cinemas e sombras propicias dos jardins publicos as figuras amarellentas e repulsivas dos “brizas” (O CHICOTE, 02/08/1913). O autor finaliza sua denúncia pedindo mais esforços da polícia para moralizar a capital. No ano seguinte, Evaristo da Silva e Norberto da Silva Azevedo foram presos por um guarda-civil na Rua Governador Vitório, no bairro de São Vicente, por estarem praticando, de madrugada, atos capazes de “lembrar os tempos de Sodoma” (JORNAL DO COMMERCIO, 26/12/1914). A homossexualidade era enquadrada nos crimes sexuais. Seja por questões biológicas, hereditárias ou adquiridas do meio em que se vive, o historiador Carlos Martins Júnior afirma que

Sob a justificativa de evitar o contato de indivíduos “sãos” com a “doença” física e moral, no final do século XIX desenvolveu-se a noção de que o controle racional das “perversões sexuais”, e mais especificamente da “homossexualidade viciosa”, garantiria a defesa do corpo social ameaçado (MARTINS JÚNIOR, 2015, p. 1249).

Esses são alguns registros de como os homossexuais eram tratados em Manaus. Não trata-se de um fenômeno exclusivo, pois ao redor do mundo, nas mais variadas sociedades, essas pessoas eram perseguidas, ridicularizadas e punidas. Observando bem, percebemos que esses informes tratam de um tipo específico de homossexual, o de baixa renda, que muitas vezes tinha que se prostituir para sobreviver. O que acontecia quando ele pertencia à elite? Qual era o peso da classe social sobre essa questão? O jornal A Marreta, em matéria já citada, informava que a campanha contra os “invertidos” deveria “[…] começar pelos grandes, que occupam logares importantes em nossa sociedade” (A MARRETA, 03/11/1912). Aqueles que tinham prestígio na sociedade procuravam viver de maneira discreta, sem levantar suspeitas. Alguns mantinham uma vida dupla, pois eram casados ou tinham a fama de mulherengos, que não passava de uma fachada. Qualquer rumor era um prato cheio para os jornais de mexericos como O Chicote, A Marreta e A Farpa, sempre dispostos a acabar com uma reputação considerada irretocável.

A sociedade manauara do início do século XX tinha rígidos valores morais, que não davam espaço para qualquer tipo de “desvio”. Em Evocação de Manaus – como eu a vi ou sonhei, trabalho memorialístico de José Jefferson Carpinteiro Péres sobre sua infância e adolescência entre as décadas de 1940 e 1950, nos é apresentada uma Manaus de padrões vitorianos, patriarcais, praticamente inalterados desde 1900. As meninas eram educadas para serem esposas obedientes, e os meninos para serem varões exemplares, chefes de família. Existia uma única preocupação que atormentava pais e mães: a homossexualidade. “Não tanto o feminino”, escreve Jefferson, “pois, tanto quanto eu sabia, o lesbianismo era raríssimo”. “O problema dizia respeito”, continua, “aos homens. Estes podiam ser tudo, bêbados, vagabundos ou arruaceiros, mas homossexuais, nunca. Era o que de pior podia acontecer a uma família. Quando um garoto ou rapaz se revelava como tal, os pais e irmãos morriam de vergonha e desgosto”. O pai castigava o filho e este era expulso de casa e, assim que os amigos ficavam sabendo, também era excluído de seus círculos sociais:

Lembro-me de um, meu contemporâneo no Colégio D. Bosco, assumido, como hoje se diz, que levava surras homéricas do pai, um militar que se julgava desonrado pelo filho. Este acabou expulso de casa, indo abrigar-se na casa da avó. Mas a hostilidade existia na escola, na rua, em toda parte. Aqueles de trejeitos mais acentuados eram perseguidos com assobios e piadas obscenas. E quando ousavam replicar, os provocadores reagiam com sonoras vaias e, não raro, com agressões físicas. Os enrustidos, quando descobertos, eram sumariamente excluídos das turmas. Lembro-me, por exemplo, dos meus tempos de molecagem na rua Saldanha Marinho, hoje Huáscar de Figueiredo. Fazia parte do grupo um garoto chamado Celino, dos mais inteligentes e agradáveis. Um dia, não sei como, correu a notícia de que o Celino era. Recebida com estupor e incredulidade, a nova levou algum tempo para ser assimilada. Quando não houve mais dúvida, ficou decidido que ele não mais frequentaria a roda (PÉRES, 2002, p. 49-50).

Celino não esperou pela expulsão do grupo de amigos. Fez, de acordo com Jefferson Péres, o que muitos homossexuais que tinham condições faziam: deixou de procurá-los e, “[…] pouco tempo depois tomava o rumo do Rio de Janeiro” (PÉRES, 2002, p. 50). Amaro Vieira de Alencar, autor de São Raimundo dos Meus Amores, obra sobre sua infância e adolescência no bairro de São Raimundo entre as décadas de 1940 e 1950, relata, com certa carga pejorativa, aspectos da homossexualidade dos meninos de seu tempo. Um jovem de nome Leopoldino, cita Amaro, era inclinado à “pederastia”. Certa vez, foi flagrado por vários garotos em posição de quatro com um rapaz, que logo saiu de cena: “Indignado, Leopoldino continuou de quatro pés e, arreganhando as nádegas com as duas mãos, exclamou – Deixa porr!… O c… é meu! Mete Chico! Amaro finaliza esse breve relato afirmando que isso não era estranho, pois outros meninos também eram homossexuais, ativos ou passivos, abandonando a prática na fase adulta: “Quando meninos, davam até por uma bolacha, hoje não dão nem por uma padaria” (ALENCAR, 1985, p. 26).

Essa Manaus de Jefferson Péres e Amaro Alencar guardava resquícios dos tempos dos periódicos analisados. Os relatos desses memorialistas descortinam uma cidade que convivia, de um lado, com rígidos padrões morais, oriundos de um tradicional Catolicismo enraizado na sociedade, que castigava, humilhava e excluía os homossexuais do convívio social; e, do outro, com esse e outros grupos marginalizados que, apesar das tentativas de “saneamento moral” e exclusão e após anos de luta renhida, conquistaram o direito de existir.


FONTES:


Jornal do Commercio, 08/07/1912.

A Marreta, 03/11/1912.

O Chicote, 02/08/1913.

Jornal do Commercio, 26/12/1914.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


ALENCAR, Amaro Vieira de. São Raimundo dos Meus Amores. Manaus, Sociedade de Televisão Ajuricaba, 1985.

DIAS, Edinea Mascarenhas. A Ilusão do Fausto: Manaus 1890-1920. 2° ed. Manaus: Editora Valer, 2007.

MOREIRA, A. S. A homossexualidade no Brasil no século XIX. Bagoas: Revista de Estudos Gays, v. 6, p. 253-279, 2012.

MARTINS JÚNIOR, Carlos. Saber jurídico e homossexualidade no Brasil da Belle Époque. Diálogos (Maringá), v. 19, p. 1217-1251, 2015.

PÉRES, Jefferson. Evocação de Manaus – como eu a vi ou sonhei. 2° edição revista e ampliada. Manaus: Editora Valer, 2002.

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