A região Nordeste é formada pelos estados da Bahia, Paraíba, Ceará, Alagoas, Maranhão, Piauí, Pernambuco, Sergipe e Rio Grande do Norte. Dona de uma rica diversidade cultural, foi berço da colonização portuguesa e palco dos primeiros grandes ciclos econômicos, o do pau Brasil e do açúcar. Até 1763 a cidade de Salvador, na Bahia, foi a capital e principal porto do país. Milhares de nordestinos, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, migraram em uma verdadeira epopeia para a Amazônia, influenciando imensamente nossa economia e cultura.
Atraídos para uma região tão vasta, em busca de um refúgio contra as secas que assolavam seus estados de origem, logo se viram frente a uma das piores faces da economia gomífera: o regime de servidão. Em teoria, o seringueiro era um trabalhador livre, mas trazia, desde sua viagem para a região, uma dívida com o dono do seringal. Chegando ao local de trabalho, extraía o látex até pagar o que devia ao seringalista. Só que isso raramente acontecia, pois todos os utensílios para o trabalho e bens de consumo deveriam ser comprados no barracão, também de propriedade do seringalista.
Assim, esse trabalhador, explorado em um regime de trabalho que começava entre 4:00-5:00 horas, percorrendo vários quilômetros para encontrar seringueiras, ficava em um ciclo eterno de fazer e pagar dívidas. Se tentasse comprar em outro lugar, falsificar o peso das pélas de borracha ou fugir do seringal, era eliminado pelo patrão, que controlava o lugar com mãos de ferro.
Samuel Benchimol, no livro Amazônia – Formação Social e Cultural (1999), faz um minucioso levantamento da entrada de imigrantes nordestinos na região. Durante as secas de 1877 e 1878, foi registrada a entrada de 19.910 imigrantes. Em 1892 entraram mais 13.593. Entre 1898 e 1900 aportaram em Belém e Manaus, posteriormente com destino aos seringais, 88.709. De 1900 até a crise da economia gomífera, foram contabilizados 150.000 nordestinos. De 1877 a 1920, estima o sociólogo, migraram 300.000 pessoas.
Alguns conseguiam, mesmo em meio à brutalidade da selva, galgar melhores posições. Ainda de acordo com Benchimol, parte dos seringalistas tinha origem nordestina. Eles começavam a vida como seringueiros 'brabos', sem experiência, e aos poucos, com a ajuda dos seringueiros ‘mansos’, ascendiam socialmente, assumindo diferentes cargos no seringal – mateiro, comboieiro, pesador, classificador, capataz, auxiliar de escrita, gerente de barracão, arrendatário de estradas e colocações – até chegar ao topo, tornando-se seringalistas, proprietário de seus próprios seringais.
Durante a Segunda Guerra Mundial, com o bloqueio das colônias asiáticas que produziam borracha pelo Japão, matéria prima necessária na indústria armamentista, os Aliados voltaram seus olhos para a Amazônia. Entre 1943 e 1945 foram recrutados cerca de 60.000 mil trabalhadores de diferentes estados da região Nordeste para a extração de látex. Estes ficaram conhecidos como Soldados da Borracha. Os governos estadunidense e brasileiro esperavam elevar a produção ao número de 70.000 mil toneladas anuais até onde a Guerra durasse.
Muitos deles ficaram em Manaus, atuando em outras atividades como o comércio ou realizando trabalhos braçais. O historiador Arthur Cezar Ferreira Reis registra, em História do Amazonas (1989), que ao final da década de 1870, “o governo, procurando recebê-los e localizá-los como contribuições preciosas ao progresso da Província, criou colônias em vários pontos do interior, núcleos agrícolas, duas das quais nas cercanias de Manaus”. A mais célebre foi a Colônia Maracaju, que recebeu centenas de retirantes.
A partir da década de 1920, com a crise econômica, e após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a presença na capital se intensificou, pois deixaram os seringais falidos em busca de melhores condições de vida. Eles vão se instalar e fundar bairros como Colônia Oliveira Machado, Praça 14 de Janeiro, São Francisco, São Lázaro, Santa Luzia, Crespo e São Jorge. Não é difícil encontrar famílias manauaras com antepassados cearenses, pernambucanos, alagoanos, baianos e norte riograndenses.
Mas, claro, como ocorre nesses movimentos migratórios, o preconceito se fez presente nos primeiros tempos. Alguns jornais se referiam a eles pejorativamente como arigós, pessoas ríspidas e perigosas. O jornal Diário da Tarde, em 1944, descreveu Antônio Dionísio como “paraibano, solteiro, vagabundo, sem profissão, sem residência, freguês da dormida no pátio interno da Delegacia Auxiliar”. Nesse mesmo ano comemorou a “boa safra” de prisões, destacando as de Francisco Ignácio da Silva, rio grandense do norte, e Manuel Caetano Pereira, paraibano, por terem promovido distúrbios na Estrada de Constantinópolis, também conhecida como Estrada dos Arigós.
Uma parte dos nordestinos vindos para Manaus tinha ensino superior, formados em instituições prestigiadas como a Faculdade de Medicina da Bahia e a Faculdade de Direito do Recife, realizando suas especializações em universidades europeias. Estes passaram a trabalhar como profissionais liberais e também assumiram importantes cargos no funcionalismo público e na política. Eles chegaram a fundar agremiações como o ‘Club União Cearense’ (1890), que tinha como objetivo “agremiar os cearenses rezidentes no Estado do Amazonas no pensamento de bem servir a pátria”.
O Amazonas deve seu desenvolvimento aos nordestinos, nomes ilustres que homenageiam ruas e praças de Manaus: Theodureto Carlos de Faria Souto (1841-1893) - Natural de Ipu, no Ceará, foi Presidente da Província do Amazonas em 1884, sendo responsável pela assinatura da libertação dos escravos no Amazonas em 10 de julho de 1884. Eduardo Gonçalves Ribeiro (1862-1900) - Natural de São Luís, no Maranhão, foi militar e Governador do Estado do Amazonas entre 1890 e 1891 e 1892 e 1896, sendo responsável pela transformação urbana da capital.
Aprígio Martins de Menezes (1844-1891) - Natural de Salvador, na Bahia, foi médico, poeta e historiador, sendo o primeiro autor a sistematizar a História do Amazonas. Astrolábio Passos (1862-1926) - Natural de Jeromenha, no Piauí, foi médico, um dos fundadores e primeiro reitor da Escola Universitária Livre de Manáos, hoje Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Adriano Augusto de Araújo Jorge (1879-1948) - Natural de Alagoas, foi médico, jornalista, escritor, membro fundador e primeiro Presidente da Academia Amazonense de Letras (AAL).
As influências são várias. Na gastronomia, incorporamos ao consumo de peixe com farinha, alimentos tipicamente indígenas, o baião de dois, prato típico do Ceará. Complementamos com banana frita e vinagrete. Impossível encontrar alguma peixaria em Manaus que não sirva seus pratos acompanhados de baião. Os prestamistas que percorrem nossas ruas e avenidas são ou têm descendência nordestina. A festa em torno do boi, animal que dá sustento e alimento, introduzidas pelos colonizadores, foi introduzida na região através de migrantes oriundos do Maranhão e do Ceará, aqui ganhando novas roupagens. Sem os nordestinos Manaus não seria Manaus.
Texto publicado na edição de 23 e 24 de outubro de 2023 do Jornal do Commercio de Manaus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário