terça-feira, 5 de setembro de 2023

De Capitania de São José do Rio Negro à Província do Amazonas

 
Trecho da Lei n° 582 de 05 de Setembro de 1850. Fonte: Collecção das Leis do Império do Brasil de 1850. Tomo XI, parte I, p. 271. Acervo da Câmara dos Deputados.

No dia 05 de Setembro comemora-se a Elevação do Amazonas à categoria de Província. É a data maior do nosso estado. Para entendermos esse acontecimento é preciso compreender primeiro o processo de constituição política do Amazonas.

O embrião político do Estado do Amazonas foi a Capitania de São José do Rio Negro, criada pelo Império Português em 03 de março de 1755 e instalada oficialmente em 07 de maio de 1758. O historiador Arthur Cézar Ferreira Reis ensina que ela foi criada para dinamizar a administração da região Amazônica, facilitar a catequese dos indígenas e garantir a soberania portuguesa, pois as dimensões continentais do Estado do Maranhão e Grão-Pará, cuja administração estava centrada em São Luís e Belém, era um problema para a manutenção da autoridade nessa porção do território. Nada melhor do que a criação de uma nova unidade política (REIS, 1989, p. 119).

A Amazônia, é sempre bom lembrar, era um território autônomo que respondia diretamente à Portugal. Em 1621, durante a União Ibérica, foi criado o Estado do Maranhão e Grão-Pará, separado do Estado do Brasil, visando a defesa e a colonização da parte setentrional da América Portuguesa e o desenvolvimento da coleta das drogas do sertão. Em 1751, dada a ascensão metórica do Pará, o nome foi alterado para Estado do Grão-Pará e Maranhão e, em 1772, o Maranhão torna-se uma capitania independente, passando a existir o Estado do Grão-Pará e Rio Negro, com a Capitania de São José do Rio Negro subordinada à do Grão-Pará.

A Capitania de São José do Rio Negro foi crescendo lentamente, enfrentando dificuldades técnicas e financeiras, o baixo povoamento e a dependência política e econômica do Grão-Pará. No entanto, no final do século XVIII, entre 1788 e 1799, surgiu um fio de esperança em dias melhores. Nesse período assumiu seu governo o militar português Manuel da Gama Lobo d’Almada, responsável por introduzir uma série de melhoramentos. Em 1791 transferiu a capital de Barcelos para o Lugar da Barra (Manaus), por considerá-lo estratégico entre os rios Negro e Solimões, facilitando a defesa e o comércio. Construiu fábricas de panos e tecidos, padarias, cordoarias, olarias, açougues, engenhos e introduziu gado no Vale do Rio Branco (MONTEIRO, 1994, p. 51). Esses foram os anos mais prósperos da capitania.

“A inveja e o despeito, porém, preparavam um golpe fatal para a obra de Almada”, escreveu o historiador Agnello Bittencourt sobre as medidas tomadas pelo governo do Grão-Pará para conter a rápida ascensão do Rio Negro. Assustado com o crescimento da capitania e temendo a perda de seu cargo para Lobo d’Almada, o governador da Capitania do Grão-Pará, D. Francisco de Sousa Coutinho, com apoio de seu irmão, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro em Portugal, passa a perseguir Lobo d’Almada, determinando o retorno da capital para Barcelos, cortando as verbas para a capitania e o acusando de usurpar o erário. Com a honra ferida e anos de trabalho arruinados, Almada falece em 1799 (BITTENCOURT, 1985, p. 262-263; REIS, 1989, p. 146-148). O cenário era aterrador: “O Rio Negro ia atravessar um longo período de amarguras. As vilas e povoados principiaram a viver novamente dias miseráveis. A população diminuída, as lavouras e as indústrias entrariam a definhar. O censo de 1799 acusou 15.480 almas. Os cômputos anteriores assinalavam maior total” (REIS, 1989, p. 149).

De acordo com Agnello Bittencourt, por volta de 1820 já “fervilhavam nas intenções políticas da Capitania as ideias autonomistas”. Essas ideias, afirma Arthur Reis, foram bem recebidas pela população, que ansiava pela independência em relação ao Grão-Pará. A situação do Rio Negro a cada dia tornava-se insustentável, e pouco era feito pela autoridade instituída em Belém. Silves, Vila Nova da Rainha e Barcelos, em 1818, solicitaram à D. João VI a separação (BITTENCOURT, 1985, p. 263; REIS, 1989, p. 151). Em 1820 estoura em Portugal a Revolução Liberal do Porto, movimento que pedia o retorno de D. João VI e a recolonização do Brasil, desde 1815 elevado à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves. Participaram dos trabalhos nas Cortes Gerais deputados favoráveis à emancipação da Capitania de São José do Rio Negro. Em 29 de Setembro de 1821 Dom João transformou as capitanias em províncias, com o Rio Negro subordinado ao Grão-Pará. Na Constituição Política da Monarquia Portuguesa consta o nome da Província do Pará e Rio Negro.

D. João deixou seu filho, D. Pedro, como Príncipe Regente. As Cortes exigiam o retorno do regente para poder recolonizar o território. Com apoio da elite brasileira, D. Pedro rompeu relações com Portugal e proclamou a Independência em 7 de Setembro de 1822. O Grão-Pará continuou fiel à antiga metrópole. Sabendo da resistência que encontraria em regiões com fortes laços econômicos, políticos e culturais com Portugal, o agora Imperador Dom Pedro I contratou, para impor a adesão ao Império, os militares Thomas John Cochrane e John Pascoe Grenfell, da Marinha Real Britânica, especialistas em processos de independência. Grenfell, sob comando de Cochrane, se dirigiu ao Grão-Pará. Chegou em Belém no dia 10 de agosto de 1823. Intimou o governo a aderir ao Império Brasileiro. No dia seguinte, receando um ataque à capital, a independência foi reconhecida, sendo o auto de juramento lavrado em 15 de agosto. A notícia da adesão foi chegando lentamente aos povoados e vilas, chegando ao Lugar da Barra (Manaus) em 09 de novembro.

A adesão à Independência ocorreu no Largo da Trincheira (Praça IX de Novembro), lugar simbólico onde localizavam-se a Fortaleza, a Igreja e o Cemitério, na manhã do dia 09 de novembro. A Câmara de Serpa instalou-se na Barra no dia 19, com o juramento de fidelidade à D. Pedro I realizado na manhã do dia 22. No dia seguinte foi eleita uma Junta Governativa formada por Bonifácio João de Azevedo, Raymundo Barroso de Bastos, Plácido Moreira de Carvalho, Luiz Ferreira da Cunha e João da Silva Cunha. Os dirigentes do Amazonas esperavam que a adesão trouxesse a tão sonhada autonomia (REIS, 1989, p. 156).

Conforme André Roberto de Arruda Machado, no projeto da Constituição para o Império do Brasil o Rio Negro constava como uma de suas províncias (MACHADO, 2006, p. 48). Arthur Reis, comentando a carta magna outorgada em 1824, registrou que “O Rio Negro, naturalmente, estava incluído. Apesar da clareza do texto da lei magna, logo a seguir, marcando o governo o número de deputados ao Parlamento que convocou e nomeando os presidentes para as Províncias, não incluía o Amazonas, considerando-o, tacitamente, uma dependência do Pará” (REIS, 1989, p. 157). Para Agnello Bittencourt, a Independência de 1822 “[…] não ergue da oppressão a Capitania do Rio Negro […] provocando tal situação várias explosões de ânimo” (BITTENCOURT, 1985, p. 264). Mesmo “feridos”, os amazonenses juraram fidelidade à Constituição Imperial em 1825.

Entre as décadas de 1820 e 1840 foram apresentados diferentes projetos pela emancipação do Rio Negro. Políticos paraenses como João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha – que foi o primeiro presidente da província do Amazonas – Frei José dos Inocentes e D. Romualdo Antônio Seixas foram as principais vozes favoráveis à transformação do Amazonas em unidade política independente, argumentando que o governo paraense, dada a extensão continental do território, não conseguiria dar a devida atenção à região, que tinha um enorme potencial econômico. Os políticos contrários afirmavam que o Amazonas possuía uma população rarefeita, carência de mão de obra especializada, rendas públicas e produção insignificantes (FREITAS, 2010).

O maior exemplo das “explosões de ânimo” foi o levante militar de 1832, ocorrido no Lugar da Barra (Manaus). Conforme pesquisa da historiadora Letícia Pereira Barriga, o movimento foi iniciado por praças de 1° e 2° linhas que reivindicavam o pagamento dos salários atrasados. Eles tomaram o Trem de Guerra, os armamentos e as munições, assassinando o comandante militar do Rio Negro, coronel Joaquim Filipe dos Reis. “De levante militar por insatisfação de pagamentos atrasados”, registra Barriga, “o movimento ampliou-se e assumiu um caráter separatista”. Em 22 de junho os revoltosos proclamam a Província do Rio Negro (BARRIGA, 2015, p. 02). O levante, em poucos meses, foi sufocado por tropas militares vindas de Belém, que ocuparam o Lugar da Barra em 12 de agosto, pondo fim à província (LOUREIRO, 1989, p. 14). O Código do Processo Criminal, promulgado pela Regência em 1832, transformou o Rio Negro em Comarca do Alto Amazonas, uma das três que compunham a Província do Pará, formada pelos municípios de Tefé, Luseia, Mariuá (Barcelos) e Manaus, este último elevado à vila (BITTENCOURT, 1985, p. 264; LOUREIRO, 1989, p. 14).

A criação da província vai ser postergada por várias décadas. A situação vai mudar quando, a partir da segunda metade do século XIX, a soberania sobre a Amazônia tornou-se uma questão de primeira ordem, pois era grande o interesse de outras nações sobre as riquezas da região. Para evitar futuras ameaças estrangeiras – sobretudo da Inglaterra, a potência industrial e política da época – e assegurar a soberania sob esse vasto território, o Império acelerou o processo de criação da Província do Amazonas (LOUREIRO, 1989, p. 16). André Luiz dos Santos Freitas afirma que é provável que a Cabanagem (1835-1840) tenha exercido influência sobre a criação da província, pois o estabelecimento de uma nova autoridade poderia evitar revoltas semelhantes (FREITAS, 2010). O deputado paraense João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha apresentou uma indicação em 1844: “Indico que se dirija á Assembléa Geral uma representação para que a Comarca do Alto Amazonas seja elevada à cathegoria de Província. Pará, 7-11-1844” (BITTENCOURT, 1985, p. 271). 

Seis anos depois, o Imperador Dom Pedro II homologou a Lei n° 582 de 5 de Setembro de 1850, elevando a Comarca do Alto Amazonas à categoria de Província do Amazonas, tendo como capital a Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro, atual Manaus. Seu primeiro presidente foi João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, nomeado por Carta Imperial de 07 de junho de 1851. Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa registra que a instalação ocorreu somente em 01 de Janeiro de 1852. Ela teve lugar em um sobrado localizado entre as ruas Oriental (posteriormente rua da Instalação), Frei José dos Inocentes e Henrique Antony, que funcionava como a Casa da Câmara Municipal. Estiveram presentes autoridades civis, militares e eclesiásticas, bem como grande número de populares. A população da cidade era estimada em pouco mais de 4.000 habitantes (PEDROSA, 2021).

A criação da Província do Amazonas, um sonho antigo dos tempos da Capitania, representou a autonomia dos amazonenses, que agora poderiam crescer sem depender do controle, muitas vezes autoritário, do governo paraense e suas elites; e a garantia da soberania do Império Brasileiro em terras distantes e quase esquecidas, mas tão cobiçadas por outras nações. O 5 de Setembro é uma data que fala sobre a identidade do amazonense.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BITTENCOURT, Agnello. Corografia do Estado do Amazonas. Manaus: ACA – Fundo Editorial, 1985. [original de 1925].

BARRIGA, Letícia Pereira. Espírito de revolta e separação – o Rio Negro e sua luta por uma nova província na primeira metade do XIX. XVIII Simpósio Nacional de História – Lugares dos Historiadores: velhos e novos desafios, 27-31 jul. 2015.

FREITAS, André Luiz dos Santos. O Gigante Abatido: O Longo Processo de Constituição da Província do Amazonas (1821-1850). Dissertação (Mestrado em História), PUC-SP, 2010.

LOUREIRO, Antonio José Souto. O Amazonas na Época Imperial. Manaus: T. Loureiro, 1989.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fundação de Manaus. 3° ed. Manaus: Editora Metro Cúbico, 1994.

MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do Antigo Regime português na província do Grão-Pará (1821-1825). Tese (Doutorado em História). USP, 2006.

PEDROSA, Fábio Augusto de Carvalho. A antiga Casa da Câmara Municipal e a Instalação da Província do Amazonas. Blog História Inteligente, 04/09/2023. Disponível em: https://historiainte.blogspot.com/2021/09/a-antiga-casa-da-camara-municipal-e.html fbclid=IwAR3qUcvV7Ixt0Bu_mUKXQkqYzHdlNQE2NEHZCZlfKcFzCqvoAMRq4HTAS_k

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