quarta-feira, 9 de agosto de 2023

"Imitadores do belo sexo": travestis na Manaus da Belle Époque

Darwin, o travesti mais famoso do Brasil no início do século XX. Em 1916 realizou algumas apresentações em Manaus. Fonte: Revista de Theatro e Sport, RJ, 26/08/1916.

Travesti, de acordo com a empresa de consultoria em diversidade Transcendemos, “é uma pessoa que foi designada homem no seu nascimento, mas se entende como uma figura feminina”. Por muito tempo a palavra, de maneira pejorativa e transfóbica, esteve associada à prostituição (TRANSCENDEMOS, s. d.). Com o avanço da luta de grupos LGBTQIAPN+, ele vem sendo ressignificado como uma forma de resistência. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Em 2022, conforme levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), foram assassinadas 131 pessoas trans, mas é possível que o número seja ainda maior dada a sub notificação. Escrevi esse texto buscando compreender como elas eram vistas e viviam na Manaus do início do século XX, período marcado por um turbilhão de transformações.

Por muito tempo a homossexualidade e a travestilidade foram analisados apenas do ponto de vista religioso, entendidos como pecados que atentavam contra a obra do criador. A partir da segunda metade do século XIX, tornaram-se objetos de estudo da medicina, que as definiu como “distúrbio, anomalia, carecendo de cura, correção” (MOREIRA, 2012, p. 263). O professor Adailson Moreira, em estudo sobre a homossexualidade no Brasil do século XIX, registra que “As práticas sexuais passaram dos domínios da religião para os da ciência, com sua postura higienista” (MOREIRA, 2012, p. 256). Naquele contexto de transformações políticas, econômicas e urbanas, os “desvios” deveriam ser combatidos em nome de uma sociedade sadia, burguesa e heteronormativa.

Uma das primeiras apresentações de transformistas em Manaus ocorreu em 1899. Em 18 de janeiro daquele ano os jornais Commercio do Amazonas A Federação noticiaram que se apresentaria brevemente no Teatro Amazonas o transformista português José Minuto, discípulo do artista italiano Leopoldo Fregoli (1867-1936). O espetáculo ocorreu no dia 23 de janeiro. Dentre os inúmeros personagens, Minuto interpretou mulheres. Os dois periódicos publicaram críticas diferentes entre si. O Commercio do Amazonas informou que a presença de público foi pequena e que o transformista “representou muito correctamente, colhendo enthusiasticos applausos” (COMMERCIO DO AMAZONAS, 26/01/1899, p. 02). A Federação afirmou que o público manauara desconhecia o gênero apresentado, estando bastante ansiosa para vê-lo. Em tom de lamento, registrou que a apresentação ficou muito abaixo do esperado: “Minuto, porém, pelo que ante-hontem tivemos occasião de ver, não merece quanto delle por ahi se apregôa” (A FEDERAÇÃO, 25/01/1899, p. 01).

O Carnaval era uma época propícia para a inversão dos sexos sem medo da repressão policial, pois tratava-se apenas de uma “brincadeira”. Em uma sociedade que reprimia com violência o diferente, era o momento perfeito para se libertar das amarras. O jornal Correio do Norte, em crônica sobre as festividades de 1906 em Manaus, registrou a presença de um travesti em um carro alegórico que passava pela avenida Eduardo Ribeiro: “Um máscara, em trajes femininos, saltou em terra. Trajava um vestido liso, de cor escura, e sobre elle um bello avental de tiras bordadas, sombreadas de azul. Um lenço de seda branco, dobrado em diagonal, occultava-lhe os cabellos, - systema usado pelas criadas estrangeiras” (CORREIO DO NORTE, 15/04/1906, p. 01).

Na edição de 08 de novembro de 1916, o Jornal do Commercio, na seção Diversões, anunciou que na próxima semana estrearia, no Cine Polytheama, a “troupe de variedades” dirigida por Alfredo Albuquerque. Uma de suas atrações era Darwin, famoso “imitador do bello sexo” (JORNAL DO COMMERCIO, 08/11/1916, p. 01). No dia 11 o periódico voltaria a divulgar o evento, descrevendo Darwin como “notavel imitador do bello sexo”, dono de um “lindíssimo guarda-roupa” (JORNAL DO COMMERCIO, 11/11/1916, p. 04). As expectativas para sua apresentação eram grandes, pois àquela altura ele era considerado o melhor travesti do país. Um dia antes do acontecimento, o JC publicou que “O celebre e admiravel artista Darwin, o mais perfeito e luxuoso imitador do bello sexo, estreará, amanhã, no palco desse theatro” (JORNAL DO COMMERCIO, 17/11/1916, p. 01). No dia 18 ele publicou um anúncio com a foto do artista:

Colossal e estrondoso sucesso com a grandiosa estréa do celebre artista de fama mundial DARWIN o mais perfeito e admiravel imitador do bello sexo, com um repertorio de primeira ordem e luxuosissimo guarda roupa. DARWIN é simplesmente admirável! NÃO TEM RIVAL!! Números novos todas as noites!

E’ de tal ordem a perfeição do trabalho de DARWIN que um jornal da Capital Federal termina assim um dos seus elogios ao grande artista: “E’ o caso de perguntar-se: Darwin será realmente um homem imitando a mulher em scena ou será uma mulher fazendo-se passar por homem fora do palco?” (JORNAL DO COMMERCIO, 18/11/1916, p. 04).

Por que utilizo o artigo 'o' e não 'a' travesti? O utilizo levando em conta a trajetória de Darwin e a forma como se identificava. Nas entrevistas que deu a jornais do Rio de Janeiro, onde realizou suas principais apresentações, nunca se identificou com o gênero feminino. Dizia sempre estar feliz com o seu sexo, apesar das especulações, como registrou o Jornal do Brasil (KOCH, 2022).

No dia 20 Darwin participou de um espetáculo em homenagem à colônia italiana da cidade. No dia seguinte o JC escreveu que ele se apresentaria novamente no palco do Polytheama, e que estava obtendo “ruidoso sucesso” (JORNAL DO COMMERCIO, 21/11/1916, p. 01). Ele fez novas apresentações nos dias seguintes, como consta em anúncio de 24 de novembro de 1916: “Darwin. O celebre e inexcedivel imitador do bello sexo em novos e deslumbrantes numeros do seu encantador repertorio” (JORNAL DO COMMERCIO, 24/11/1916, p. 04). A apresentação do dia 24 foi a última referência encontrada sobre sua passagem por Manaus. De acordo com as publicações do Jornal do Commercio, ele foi bastante aclamado pelos espectadores, dando provas do estrondoso sucesso que vinha fazendo no Sul do país e na Europa.

Anúncio da apresentação de Darwin no Cine Polytheama. Fonte: Jornal do Commercio, Manaus, 18/11/1916.

Entre 1919 e 1928 foram exibidos no Cine Polytheama filmes protagonizados pelo transformista estadunidense Julian Eltinge (1881-1941): o drama A Tentadora Condessa, um deleite “Para os que apreciam o transformismo, que, quando feito com esmero é uma verdadeira arte” (JORNAL DO COMMERCIO, 03/09/1919, p. 04); Madame Carfax, “na qual aquelle habil transformista americano tem uma extraordinaria creação no sexo opposto” (JORNAL DO COMMERCIO, 01/01/1920, p. 04); e Madame Charlston, descrito como “Uma encantadora história de amor” (JORNAL DO COMMERCIO, 31/10/1928, p. 04).

Julian Eltinge (1881-1941), protagonista de filmes exibidos em Manaus entre 1919 e 1928. Fonte: memoriascinematograficas.com.br.

A travestilidade, deve-se destacar, só era tolerada a nível artístico, em cinemas, teatros e boates. O historiador Wellington do Rosário de Oliveira, em estudo sobre travestilidade e gênero, afirma que “O problema é que a tensão aumentava à medida em que esses indivíduos deixavam esses espaços para se tornarem figuras públicas. Com isso, coube à polícia intervir e a imprensa remediar com o intuito de “limpar a cidade” contra os “maus costumes” (OLIVEIRA, 2021, p. 85). Fora dos palcos, os travestis e homens afeminados eram sistematicamente perseguidos e criticados respectivamente. Na seção de moda do Jornal do Commercio de Manaus, foi publicado em 1926 um artigo sobre as roupas femininas e masculinas. O autor criticou com bastante veemência a aparência dos novos chapéus masculinos, afirmando que eles estavam parecidos com os das mulheres: “O que se dá com os vestidos acontece com os chapéos, sendo mais notavel o facto de querer o sexo barbado tambem adoptar o systema ridículo para imitar as mulheres” (JORNAL DO COMMERCIO, 16/05/1926, p. 06).

No Código Penal Brasileiro de 1890, promulgado em 11 de outubro pelo presidente Marechal Deodoro da Fonseca, foi determinado no artigo 379 do sétimo capítulo, intitulado Do uso de nome supposto, titulos indevidos e outros disfarces, que “Disfarçar o sexo, tomando trajos improprios do seu, e trazel-os publicamente para enganar” (DECRETO N° 847, 11/10/1890) era crime, punível com prisão de 15 a 60 dias.

Os jornais atuavam como órgãos defensores do saneamento moral da sociedade, apresentando às autoridades soluções para acabar com as “classes perigosas” (pobres, doentes, prostitutas, negros, homossexuais). A Marreta considerava, em 1912, que “Os invertidos de Manáos são de indole perversa, corruptos de natureza, excessivos e bandidos”, e apresentava o isolamento como resposta: “Pode-se arranjar uma ilha, e nella colocar os invertidos, obrigando-os a trabalhos forçados” (A MARRETA, 03/11/1912, p. 01). Para O Chicote, em 1913, a homossexualidade era um vício cujo crescimento estava desenfreado na cidade. Ela “desce do alto, arrasta na onda a infância inexperiente e atira para as esquinas dos cinemas e sombras propicias dos jardins publicos as figuras amarellentas e repulsivas dos “brizas”. Em tom de apelo, afirmou que era necessário bani-los da cidade, uma “urbs” aquatica para uns e Sodoma e Gomorrha para outros” (O CHICOTE, 02/08/1913, p. 01).

Travestis como Darwin, que encantou os palcos brasileiros e manauaras no início do século XX, só eram “aceitos” enquanto objetos de curiosidade e divertimento. A partir do momento que quiseram viver livremente, deixar suas marcas do mundo e desenvolver suas próprias sociabilidades, passaram a ser vistos como uma ameaça, um mal a ser debelado a qualquer custo. Quantas mudanças em mais de um século. Em 2017 foi fundada em Manaus a Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Estado do Amazonas (ASSOTRAM), uma importante vitória fruto de décadas de lutas. Hoje travestis ocupam lugares de destaque na sociedade: realizam pesquisas nas universidades, militam em associações e fiscalizam o governo na câmara dos deputados federais.

FONTES:

Commercio do Amazonas, 26/01/1899.

A Federação, 25/01/1899.

Correio do Norte, 15/04/1906.

A Marreta, 03/11/1912.

O Chicote, 02/08/1913.

Jornal do Commercio, 08/11/1916.

Jornal do Commercio, 11/11/1916.

Jornal do Commercio, 17/11/1916.

Jornal do Commercio, 18/11/1916.

Jornal do Commercio, 21/11/1916.

Jornal do Commercio, 24/11/1916.

Jornal do Commercio, 03/09/1919.

Jornal do Commercio, 01/01/1920.

Jornal do Commercio, 16/05/1926.

Jornal do Commercio, 31/10/1928.

131 pessoas trans foram assassinadas no Brasil, aponta dossiê. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/janeiro/131-pessoas-trans-perderam-a-vida-em-2022-no-brasil-aponta-dossie.

Decreto n° 847, de 11 de outubro de 1890. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MOREIRA, A. S. A homossexualidade no Brasil no século XIX. Bagoas: Revistas de Estudos Gays, v. 6, p. 253-279, 2012.

OLIVEIRA, Wellington do Rosário de. Travestismo, gênero e arte do disfarce: uma análise das narrativas periódicas sobre sujeitos em travesti no Rio de Janeiro (1912-1927). Revista Semina, Passo Fundo, vol. 20, n. 3, p. 75-00, set-dez 2021. Semestral.

O que é uma pessoa travesti? Disponível em: https://transcendemos.com.br/transcendemosexplica/trans/.

KOCH, Jandiro. Darwin: "imitador do belo sexo" transita pelos teatros brasileiros. Grafia Drag, 07/02/2022. Disponível em: https://www.ufrgs.br/grafiadrag/tag/darwin/

Um comentário:

  1. O conteúdo desta pesquisa é muito interessante, que precisa ser realizada e divulgada para reafirmar a existência de pessoas queers durante a história, principalmente do nosso país que, como o autor mesmo aponta, é o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. Porém, este texto está regado de desinformação, desinformação essa que reforça a percepção popular acerca da identidade trans, o que pode causar impactos negativos e por este motivo, gostaria de fazer algumas observações.
    Começando sobre o uso do palavra "travestismo". A identidade travesti não é doença então o emprego deste sufixo nesta palavra está incorreto e não nos representa.
    Dentro do texto também há uma contradição, quando Darwin é tratado no masculino mas referido como travesti ao mesmo tempo que é chamado de transformista. Só para esclarecer, travesti é uma identidade feminina, então o correto é utilizar pronomes e artigos femininos para se referir a Darwin. Mas como visto no texto, Darwin se identifica como um homem, desta forma não é uma mulher trans/travesti. Transformista não é sinônimo de travesti, transformista é uma expressão de gênero para fins performáticos, de arte assim como drag queens. Já travesti é uma identidade de gênero, ligada a transgeneridade.
    O texto também sugere uma relação entre travestis e homens afeminados, duas identidades distintas que não podem ser equiparáveis.
    A transgeneridade é um espectro mas diante das informações contidas neste texto, acredito que Darwin não faz parte, nem representa a transgeneridade visto que ele não possui as características comuns de uma travesti/ mulher trans.
    É necessário repensar e corrigir pois as informações contidas aqui neste texto levam a desinformação e fere a comunidade trans/travesti.

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