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quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

A ocupação da América

Esquema de ocupação da América. Fonte: Letícia Fuentes.

Quando os europeus chegaram ao continente que seria denominado América, se depararam com milhares de habitantes, com formas de organização, línguas e culturas diferentes das suas. O impacto, de ambos os lados, foi imenso. Os invasores começaram a se questionar quais as origens daquelas pessoas. Teriam nascido ali? Vieram de outro lugar?

O linguista Benito Arias Montano (1527-1598), autor da Bíblia Poliglota, registrou, em uma perspectiva religiosa, que a América foi povoada por personagens bíblicos: Ophis colonizou a região nordeste do continente, enquanto Jobal colonizou o Brasil.

Desde a segunda metade do século XIX, pesquisadores das mais variadas áreas, como História, Antropologia e Arqueologia, elaboraram hipóteses e criaram teorias sobre a ocupação do continente americano: teoria asiática, teoria malaio-polinésia e teoria africana.

Teoria Asiática

Essa teoria afirma que grupos de homens e mulheres caçadores e coletores chegaram à América através do Estreito de Bering, região que separa o extremo leste da Ásia do extremo oeste da América do Norte, há cerca de 18-20 mil a.C., período em que ocorreram profundas mudanças climáticas.

Esses povos saíram de suas regiões de origem em busca de melhores condições de vida, atravessando essa passagem entre a Ásia e a América, em diferentes ondas migratórias, durante a última Era do Gelo, momento em que as camadas de gelo se elevaram e, consequentemente, os níveis dos oceanos diminuíram, formando uma ponte terrestre entre os dois continentes.

Através da análise de milhares de amostras de DNA, geneticistas mostraram que povos como os incas, astecas e iroqueses, entre as Américas do Sul e do Norte, eram geneticamente semelhantes aos dos povos da Sibéria, uma extensa região do norte da Ásia que compreende o Cazaquistão, a Mongólia e a China.

O historiador Fausto Evaldo Strassburger afirma que "O pressuposto de que o homem teria vindo unicamente a pé, atravessando a Beríngia, atrás dos rebanhos de animais que migravam, não faz justiça à capacidade intelectual humana, reduzindo o homem americano a um descendente de um animal não mais capaz que os camelos, mastodontes e bisões que migravam para a América".

Teoria Malaio-Polinésia

Essa teoria defende que grupos de caçadores e pescadores, hábeis na arte da navegação, teriam vindo da Polinésia, da Melanésia e da Austrália (regiões da Oceania), entre 10 e 4 mil anos a.C. para a América através do Oceano Pacífico, utilizando embarcações rústicas de pequeno porte, tendo aproveitado as correntes marinhas em direção à costa do continente americano.

Da costa da América do Sul eles se espalharam pelo restante do território. Em sítios arqueológicos peruanos foram encontrados vestígios de aves marinhas, mariscos, peixes, moluscos, ferramentas e habitações, com forte indício de terem pertencido a pescadores, dado o tipo de dieta e materiais encontrados.

O etnólogo francês Paul Rivet (1876-1958), criador dessa teoria, não descarta as migrações pelo Estreito de Bering, afirmando que os humanos podem ter chegado à América através de mais de uma rota em diferentes momentos. Análises genéticas constataram que o DNA de grupos nativos da América do Sul possui semelhanças com povos da Oceania.

Teoria Africana

Uma outra teoria, defendida principalmente por pesquisadores brasileiros, afirma que os povos americanos descendem de africanos que teriam migrado para a América através do Estreito de Bering, em data ainda incerta. Essa teoria tem como base o estudo dos crânios de indígenas brasileiros e de outras partes do continente, que após análise mostraram ter semelhança com os de povos da África.

Arqueólogos brasileiros, europeus e estadunidenses, ao fazerem a análise craniométrica, demonstraram que eles não possuíam traços asiáticos, mas sim africanos. Para o arqueólogo Walter Neves, a América foi ocupada primeiramente por povos africanos e não-mongolóides (não asiáticos).

O exemplar mais antigo foi encontrado no Brasil em 1974. Trata-se do fóssil de uma mulher, batizada como Luzia, datado com 11.500 anos de idade. Seu crânio possui fortes traços africanos, o que pode indicar que a chegada desse grupo foi anterior à dos asiáticos. Os cientistas acreditam que os grupos asiáticos, por conta da disputa por alimentos e território, exterminaram os africanos.

Concordado com o historiador Fausto Strassburger que "[...] pessoalmente acredita-se que possam ter sido várias ondas migratórias de diferentes lugares do mundo e que formaram esta diversidade de tipos genealógicos observados nos ameríndios, já que em algumas populações indígenas atuais da América observam-se traços característicos da etnia mongólica, noutras de aborígines australianos, noutras de polinésios, noutras de africanos, enfim, compondo uma variedade morfológica que dificilmente teria sido formada pelo concurso de apenas uma etnia".

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

FIGUEIREDO, Aguinaldo Nascimento. História do Amazonas. Manaus: Editora Valer, 2011.

STRASSBURGER, Fausto Evaldo. Ocupação humana no continente americano. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Universidade Federal da Fronteira Sul, Curso de Licenciatura em História, Erechim, RS, 2020.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

O espanhol que veio para a América

Pintura de Andrés de Islas retratando um casal de Chapetones e seus escravos, no México, no século XVIII.

A América, o novi orbis (novo mundo) de Pedro Mártir de Anglería, era um lugar de oportunidades para os que se aventuravam em terras distantes. O quadro político e econômico da Europa no século XV, principalmente da Península Ibérica, recém-saída de um processo de reconquista, agravada por problemas, faz da América uma terra visada por grupos que procuravam a estabilidade e a ascensão social.

No continente, além de ouro e pedras preciosas, buscou-se o que dificilmente esses homens encontrariam na metrópole: a ascensão social. Como bem escreveu Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, o nivelamento de classes na Península Ibérica dependia do prestígio social herdado, do peso da ancestralidade. No entanto, feitos notáveis e boas virtudes suprem essa carência hereditária. O homem ibérico dos séculos XV e XVI, principalmente o espanhol, tenta se superar, é competitivo. Uma pequena ou inexistente nobreza, às vezes imaginária, buscava por suas ações na conquista o reconhecimento, um alicerce e a inserção no mundo das cortes. O enobrecimento permitiria uma vida tranquila, pois “uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobiliante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia” (HOLANDA, 1996, p. 40).

O conquistador que vem para a América traz consigo o mito da superioridade espanhola, mito esse sustentado pelo pioneirismo e pelos efeitos das guerras de reconquista, ainda frescos na memória desses agentes. Esse espanhol que desembarca no continente carrega valores do antigo mundo medieval, tanto é que a organização da conquista é assentada, em certas proporções, em elementos feudais, na Igreja Católica e nas guerras de reconquista. Na encomienda – sistema mais difundido – os índios são confiados (encomendados) a um espanhol a quem pagam tributos sob a forma de prestação de serviços, predominando o trabalho forçado. As províncias, afastadas da metrópole, o centro do Império, se transformam em unidades autônomas. Nobres ou militares que imaginam-se nobres governam, até certo período, a seu modo e sem medo de intervenções do poder central.

A presença do conquistador atinge o psicológico dos nativos. Frei Bernardino de Sahagun escreveu que as armas bélicas, o canhão em especial, assombraram os índio da Nova Espanha: “[…] Muito espanto lhe causou ao ouvir como dispara um canhão […], como derruba as pessoas; e atordoaram-se os ouvidos. E quando cai o tiro, uma bola de pedra de suas entranhas: vai chovendo fogo […] (SAHAGUN, 1555, Apud AMADO e GARCIA, 1989, p. 50). Elementos do catolicismo espanhol sofrem alterações constantes. Santiago Matamoros, representação iconográfico Santiago Maior, padroeiro da Espanha, ganha uma nova roupagem em terras americanas:

Desde un punto de vista icnográfico el Miles Christi, o también llamado Matamoros, que había acompañado a los españoles en la reconquista de la Península, cuando llega a las tierras americanas se convierte en el emblema de la conquista y la figura del moro pagano se va sustituyendo con la del indio idólatra de modo que el patrono de España se convierte de Matamoros en Mataindios (CAPPONI, 2006, p. 253)

A chegada dos espanhóis é acompanhada de cataclismos, presságios. Tzvetan Todorv, em a Conquista da América: a questão do outro, recupera o seguinte relato de um tarasco nobre transmitido ao padre franciscano Martín Jesus de la Coruão:

Essa gente conta que durante os quatro anos que precederam a chegada dos espanhóis a estas terras, seus templos queimavam de alto a baixo, fecharam-nos, e os templos queimaram de novo e as paredes de pedra desmoronaram (porque os templos eram feitos de pedra). Não sabiam qual a causa desses acontecimentos mas consideraram-nos como presságios. Ao que parece, viram dois grandes cometas no céu (TODOROV, 1983, p. 54).

O espanhol, a contrário do que afirma Sérgio Buarque no capítulo O Semeador e o Ladrilhador, não é plenamente mais planejado que o vizinho português. As cidades da América Espanhola são articuladas, pelo menos até certo ponto. Existem, como se pode ver até hoje nas cidades históricas do México, da Colômbia e do Peru, cidades traçadas, planejadas, mas também existem, em grande número, aquelas que seguem o desenho natural do terreno, acidentado, ondulado, onde as casas estão aglomeradas umas sobre as outras, com ruas tortuosas, erguidas pela necessidade e muitas das vezes aproveitando as práticas de construção dos nativos ou as bases de suas antigas cidades. Mesmo com esse ‘semi planejamento’ o espanhol consegue criar, mesmo que imperfeitamente, uma extensão do Império Espanhol, criando várias instituições, com destaque para as universidades.

Foi citado no início a existência de elementos que lembram o sistema feudal da Idade Média. Essa é uma longa discussão de historiadores que abordam a questão da longa duração desse período e seu avanço sobre a América. Para vários autores a encomienda não é um feudo, visto que ele é um sistema no qual um único fica encarregado de receber os impostos que os índios devem ao soberano. O encomendero é uma espécie de coletor munido de grandes poderes. Esses mesmos autores acrescentam que a diferença fundamental entre o feudo e a encomienda consiste no fato desta não acarretar de forma alguma uma relação de propriedade sobre a terra. No entanto, como salienta Ruggiero Romano, os encomenderos receberam também, além dos índios que lhes eram confiados, terras, obtidas a título de ‘merced’ (concessão de terras, estímulo para o assentamento colonial). Romano compartilha da ideia que se tornou tendência nos estudos sobre América Colonial, de que os valores medievais europeus penetraram na região, tornando-a uma continuidade medieval.

Na ausência de mulheres europeias, os espanhóis casam-se as mulheres indígenas, formando famílias numerosas, com vários agregados. É uma família mestiça, vista de forma negativa tanto pelos europeus quanto pelos indígenas, já que o resultado dessa união, o mestiço, acreditava-se carregar os defeitos de ambas as raças, o que para o historiador italiano Ruggiero Romano faz a família indígena-espanhola não ser um grupo estável suscetível de construir o núcleo de um mundo futuro.

O Estado por eles formado é fraco, dominado por um número incrível de contradições, de interesses divergentes que dificilmente chegam a encontrar um equilíbrio. Nesse ponto é interessante lembrar o embate entre Frei Bartolomé de Las Casas, que defendia os interesses da Coroa Espanhola; e Juan Ginés Sepúlveda, que defendia os interesses dos encomenderos, os particulares. O projeto de conquista em si é conflitante, dada a realidade política e geográfica que se estabeleceu no continente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AMADO, Janaína; GARCIA, Ledonias Franco. Navegar é preciso: grandes descobrimentos marítimos europeus. São Paulo: Atual, 1989. (História em documentos).
CAPPONI, Anna Sulai. El culto de Santiago entre las comunidades indígenas de Hispanoamérica: símbolo de comprensión, reinterpretación y compenetración de una nuevarealidad espiritual. Imaginário - USP, 2006, vol. 12, no 13, 249-277.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
ROMANO, Ruggiero. Os Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1983.


CRÉDITO DA IMAGEM:

http://www.estherlederberg.com



quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Filme: Aguirre, a Cólera dos Deuses



País: Antiga Alemanha Ocidental
Direção: Werner Herzog
Roteiro: Werner Herzog
Elenco: Klaus Kinski, Helena Rojo, Ruy Guerra e Del Negro
Ano: 1972
Duração: 90 minutos


Aguirre, a Cólera dos Deuses (Aguirre, der Zorn Gottes), é uma das melhores produções do diretor alemão Werner Herzog, contando com a magistral atuação do também alemão Klaus Kinski no papel de Don Lope de Aguirre (1510-1561), el tirano, el loco, conquistador espanhol do século XVI.

O filme, um drama histórico, retrata, com algumas alterações significativas, os desdobramentos da Expedição de Pedro de Ursúa e Lope de Aguirre (1560-1561), dois conquistadores que, após notícias dos sobreviventes da expedição de Orellana, reavivaram a crença da existência das ricas províncias de Omágua e El Dorado. Os cenários, entre o Peru e o Rio Amazonas, dão o tom de naturalidade ao filme, com vários enquadramentos que captam o enfrentamento entre homens europeus de valores cristãos medievais e a natureza selvagem, desconhecida e indomável, habitada por povos igualmente desconhecidos.

Klaus Kinski conseguiu transpor nessa obra a personalidade de Lope de Aguirre, marcante na historiografia da conquista da América: louco, sádico, disposto a tudo para liderar a expedição e alcançar os mais altos postos na Coroa Espanhola. Na América, além da busca por ouro e outras pedras preciosas, buscou-se o que dificilmente esses homens encontrariam na metrópole: a ascensão social. Uma pequena ou inexistente nobreza, às vezes imaginária, buscava por suas ações na conquista o reconhecimento, um alicerce e inserção no mundo das cortes.

Acreditando que organizaria uma rica colônia, Aguirre ordena aos soldados que o sigam numa rebelião contra a Coroa Espanhola, assassinando quem não concordasse. Auxiliomar Silva Ugarte afirma que, na segunda etapa da expedição, ela [...] "mergulharia em sangue, pois Lope de Aguirre, utilizando-se de todos os meios de que dispunha, eliminando opositores reais ou imaginários, pôs fim às buscas a Omágua e Dorado e deu início a uma das mais sangrentas rebeliões do período" (UGARTE, 2003, p. 26). Aguirre (Klaus Kinski) usa uma das melhores armas no processo de conquista após os instrumentos bélicos: a imposição psicológica, que vai criando temores tanto entre os tripulantes de sua expedição quanto entre os nativos que vão sendo encontrados ao longo dos rios.

Apesar de a expedição retratada incluir personagens históricos que não faziam parte dela, e de apresentar um desfecho idealizado por Aguirre, o filme consegue exemplificar as relações de poder e os modos de agir característicos do processo de Conquista da América Espanhola, lembrando la espada, la cruz e la hambre que iam dizimando a família selvagem, como bem escreveu Pablo Neruda. Devidamente contextualizado, partindo de um elemento micro (a expedição) para um elemento macro (o processo de conquista entre os séculos XVI e XVII), é um filme vale a pena ser assistido e analisado, do ponto de vista dos mecanismos e mentalidades da Conquista Colonial.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

UGARTE, Auxiliomar Silva. Margens Míticas: a Amazônia no Imaginário Europeu do século XVI. In:  DEL PRIORI, Mary; GOMES, Flávio dos Santos (org). In: Os Senhores dos Rios: Amazônia, Margens e Histórias. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.


CRÉDITO DA IMAGEM:

maumiranda.wixsite.com

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

O Pensamento Político de Frei Bartolomé de Las Casas

Frei Bartolomé de Las Casas (1474-1566), Bispo de Chiapas, México.

Bartolomé de Las Casas (1474-1566) foi um frade dominicano espanhol que atuou na América durante o processo de conquista, no século XVI. Mas, mais que um frade dominicano, Las Casas pode ser considerado, dada a produção, a dimensão e a difusão de suas ideias, um pensador político que atuou tanto em defesa dos nativos americanos quanto na reflexão sobre a diversidade de poderes políticos existentes naquele momento.

Dois mundos entraram em choque quando do “descobrimento” da América. De um lado, uma sociedade unida pelos valores culturais e políticos da cristandade europeia. Do outro, um mundo que apresentava-se como novo, com outros povos e realidades distintas. O impacto foi grande, pois como escreveu o cronista Fernando López de Gómara em sua História Geral das Índias (1552) “a maior coisa depois da criação do mundo, tirando a encarnação e a morte de quem o criou, foi o descobrimento das Índias”. O dominicano Frei Bartolomé de Las Casas, vindo para a América em 1503, aperfeiçoou seu pensamento político, ou teoria política, ao longo da evolução do processo de conquista empreendido pelos espanhóis.

O pensamento político de Las Casas caracteriza-se pela ênfase ao Direito Natural e aos valores cristãos, estes aplicados em defesa dos nativos, bem como à soberania popular e questões sobre a diversidade de poderes e seus papéis. Las Casas, a Espanha, a Europa, faziam parte da Cristandade, esta entendida como uma sociedade global unida por uma mesma religião, por um mesmo Deus e pela tradição escrita da língua latina. O objeto de estudo de Las Casas era a América, terra que ainda estava sendo incorporada a Cristandade. É nessa questão de incorporação da América ao mundo cristão que o frade dominicano começa a expressar seus primeiros questionamentos.

Para Las Casas, a forma como o continente estava sendo incorporado à Cristandade passava por cima de todos os preceitos do Direito Natural e daquela sociedade assentada nas bases cristãs católicas: A Igreja e o príncipe de Castela não tinham domínio sobre as populações americanas enquanto estas, de livre e espontânea, não aceitassem a nova religião e o novo soberano. Em Treinta Proposiciones Muy Jurídicas (1552) ele afirma que

“Todos os reis e senhores naturais, cidades e povos das Índias são obrigados a reconhecer os reis de Castela como universais senhores soberanos e imperadores da maneira dita, depois de terem recebido de sua própria e livre vontade nossa santa fé e o sacro batismo, e se antes que tenham recebido ou não queiram receber, não podem ser por algum juiz ou Justiça punidos” (Las Casas, 1965, vol. 1, p. 483 APUD Bruit, 2003, p. 9).

Já é por demais conhecido que os conquistadores não esperaram a “livre e espontânea” vontade dos nativos. Igreja e Coroa Espanhola passaram por cima das tentativas de uma incorporação mais “democrática” da América. Estava instalada uma crise de valores, pois para Las Casas, as ações violentas dos conquistadores impediram a formação de uma sociedade cristã livre, justa, com respeito à condição humana. Dado esse fracasso, era necessária a elaboração de uma teoria política sobre a sociedade e o Estado. Os primeiros argumentos de Las Casas são religiosos e humanitários, assumindo posteriormente um caráter jurídico-político.

Em Tratado Comprobatorio del Império Soberano e Algunos Princípios que deben servir de punto de partida, ambas de 1553, Las Casas escrevia que a sociedade deveria funcionar em equilíbrio a partir do império da lei, que mediaria as relações entre governantes e governados (LE BRUIT, 2003, p. 7). Para o frade dominicano os fundamentos do Cristianismo rejeitavam a força como instrumento de expansão da fé. O Papa era o senhor espiritual dos cristãos e também dos nativos, mas destes últimos apenas por suas vontades e consentimentos. Por essas ideias sobre os nativos e o Papa que Las Casas travou um acirrado debate, em 1550, com o sacerdote e filósofo Juan Ginés de Sepúlveda (1489-1573). Sepúlveda tinha como base a filosofia aristotélica e defendia que o nativo americano, “por sua bestialidade e inferioridade, marcadas por suas práticas de idolatria, politeísmo, canibalismo, sodomia, incesto e sacrifícios humanos, era escravo natural dos espanhóis” (FIGUEIREDO JÚNIOR, 2011, p. 5). Acusava, também, que Las Casas negava o poder temporal do Papa.

Em contrapartida, Las Casas defendia os nativos afirmando que qualquer nação e povos, possuidores de terras e reinos que habitam desde o início dos tempos, são povos livres que reconhecem apenas a autoridade de seus senhores. Em sua defesa também utilizou o preceito cristão de que todos os homens são criados à imagem e semelhança de Deus e de que somente pela fé, e não pela força, poderiam ser amenizadas e modificadas certas práticas nativas. Ele não negava o poder temporal do Papa, mas defendia veemente que este não poderia usar instrumentos que fossem contra a vontade dos indígenas. Las Casas nunca se questionou sobre a importância do poder espiritual, pois este se originava de Deus, estando acima do poder dos reis de Castela. O poder temporal “aperfeiçoava-se e atingia seu verdadeiro sentido pela aprovação do Papa, mas isto não queria dizer que esse poder tivesse origem no Papa, pois era de direito natural e estava fundado no povo” (BRUIT, 2003, p. 8).

Em outras palavras, quando os nativos aceitassem a fé cristã católica os reis teriam a jurisdição sobre eles. O poder político era uma consequência do espiritual eclesiástico, este último também devendo ser aceito e não imposto aos indígenas. Las Casas, dessa forma, dá luz a uma pluralidade de autoridades políticas. Caso os nativos aceitassem a fé cristã, o monarca espanhol seria o poder central, mas os soberanos nativos teriam autonomia para governar seus reinos, mediante o pagamento de um tributo à Coroa. O poder, para o autor, emanava do povo, e este não era inferior ao do soberano, sendo o segundo determinado pelo primeiro. Em Algunos Princípios ele expressa essa ideia da seguinte forma:

“Vendo os homens que não podiam viver em comum sem um chefe, elegeram por mútuo acordo ou pacto desde o início algum ou alguns para dirigir e governar toda a comunidade e cuidaram principalmente de todo o bem comum […] Somente deste modo, ou seja, por eleição do povo, teve sua origem qualquer domínio justo ou jurídico dos reis sobre os homens em todo o mundo e em todas as nações, domínio que, de outro modo, teria sido injusto e tirânico” (Las Casas, 1965, vol. 2, p. 1245 a 1259 APUD Bruit, 2003, p. 11).

Direito, justiça e lei são os três fundamentos do pensamento de Bartolomé de Las Casas. Para ele reis e imperadores não são senhores soberanos, mas sim administradores dos interesses públicos. O mais importante para que a sociedade funcionasse sem nenhuma arbitrariedade era a soberania popular, a união de vontades do povo, que os encaminharia à liberdade, ao bem-estar e a defesa da propriedade. Antes de um político tomar alguma decisão ou realizar alguma obra, era necessário que este consultasse sua comunidade, que diria se isso beneficiaria ou não a coletividade. O rei não pode “vender a jurisdição, contratá-la ou aliená-la, pois não é dono dela. A jurisdição é do povo. Se o rei a vendesse, cometeria roubo, pois a jurisdição é de direito público” (BRUIT, 2003, p. 17). É obrigação do rei administrar os bens fiscais e patrimoniais, bem como exercer jurisdição e proteção sobre os bens privados, não tendo, no entanto, direito de propriedade sobre eles.

Bartolomé de Las Casas, sem dúvidas, estava a frente de seu tempo, com uma teoria que prezava antes a soberania popular, o direito natural da liberdade e da propriedade dos povos, que o poder real e o eclesiástico. É possível falar que fosse ele um teórico da democracia, dos Direitos Humanos? Para Ruggiero Romano (1972) o “Estado” que se forma nos países da América é fraco, dominado por um número incrível de contradições, de interesses contrastantes que dificilmente chegam a encontrar um equilíbrio. Nesse ponto, é interessante ver o embate entre Las Casas, que defende os interesses da Coroa Espanhola; E Sepúlveda, que defende o interesse dos encomenderos, os particulares. Las Casas vê na ação da Coroa, mediada pela Igreja, ambas aceitas pelos nativos, a única forma de amenizar as relações políticas e sociais na América.


BIBLIOGRAFIA:

BRUIT, Héctor H. Uma utopia democrática do século XVI. São Paulo, Revista Eletrônica da Anphlac, n°03, 2003.

FIGUEIREDO JÚNIOR, Selmo Ribeiro. Valladolid: A polêmica indigenista entre Las Casas e Sepúlveda. Brasília, Revista Filosofia Capital, vol. 6, ed. 12, 2011.

ROMANO, Ruggiero. Os Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo, Editora Perspectiva, 1972. (Coleção Kronos).


CRÉDITO DA IMAGEM:


General Archives of the Indies (commons.wikimedia.org)

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Apropriações e conquistas simbólicas do Cristianismo

Neste mosaico, da cidade de Ravena, Jesus é retratado como um Imperador Romano, utilizando vestes militares. Em uma mão carrega um báculo, na outra, as Sagradas Escrituras.

O Cristianismo é hoje a religião com o maior número de adeptos no mundo. Dos praticantes aos não praticantes, ele se encontra presente desde as pequenas vilas nos Andes até as grandes metrópoles da Europa. Foi um longo trajeto, desde a Antiguidade, até que essa religião com raízes no Oriente chegasse a essa posição, com seus agentes encontrando diferentes formas para sua expansão. Uma das mais conhecidas foi a apropriação de certos elementos do mundo pagão de forma a subvertê-los à nova realidade cristã, para atingir o maior número possível de pessoas, o que acarretou em verdadeiras conquistas simbólicas. O inverso também ocorreu, com o Estado Romano procurando formas de se associar ao novo culto para garantir uma ínfima sobrevida de suas já desgastadas estruturas. Nesse texto, destaco alguns exemplos, da Antiguidade, da Idade Média e da Idade Contemporânea, de apropriações e conquistas simbólicas do Cristianismo.

O Cristianismo se tornou, em 392, a única religião legalmente praticável no Império Romano. Os imperadores depois de Constantino, com exceção de Juliano, que tentou reavivar os cultos pagãos, realizavam doações em dinheiro, terras e financiavam a construção de basílicas em Roma e outras cidades importantes do Império. Essas medidas visavam a incorporação da população cristã ao Império, evitando assim qualquer tumulto desta, tendo em vista a delicada situação interna pela qual Roma passava pelo menos desde o início do século III. O Cristianismo tinha, agora, um terreno favorável para se expandir pelo Império Romano e outras áreas fronteiriças.

Para atingir ideologicamente a população e, como ocorrera antes com o paganismo, legitimar o poder, os imperadores passaram a associar suas imagens com a de Jesus Cristo. Dessa época existe uma rica iconografia que atesta essa associação. Na primeira imagem, um mosaico da cidade de Ravena, temos Jesus Cristo retratado como um imperador, usando vestes militares ao gosto romano. Segurando um báculo, insígnia dos bispos, traz na outra mão as sagradas escrituras, com os dizeres latinos Ego sum via, veritas et vita, que significam Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Em outras ocasiões, em painéis de marfim ou em mosaicos, esses mesmos imperadores eram representados sendo arrebatados por Deus, em famosas representações de apoteoses. Os romanos mais abastados tinham gravados em seus mausoléus cenas bíblicas como a expulsão do Éden, o martírio dos apóstolos e a ressurreição de Cristo.

Detalhe do Sarcófago de Júnio Basso, senador romano do século IV d.C., mostrando Jó e Adão e Eva no Paraíso.

Um pouco distante da vida política do Império, figuras do antigo panteão greco-romano também eram incorporadas e associadas aos simbolismos e práticas cristãs. Orfeu, personagem da mitologia grega que era médico e poeta, foi inúmeras vezes associado à figura de Jesus, do Bom Pastor e do Rei Davi. Orfeu desafiou a morte indo ao submundo e ficando diante de Hades, Deus do submundo e dos mortos. Jesus, na Bíblia, ressuscitou após três dias de sua morte. A passagem nas escrituras que melhor explica esse momento é: "E ele pôs sobre mim a sua destra, dizendo-me: Não temas; eu sou o Primeiro e o Último; e o que vive; fui morto, mas eis que aqui estou vivo para todo o sempre. Amém! E tenho as chaves da morte e do inferno." (Apocalipse 3.18). Orfeu e Jesus Cristo, duas personagens que escaparam da morte.

A lira de Orfeu tinha o poder de apaziguar a mais selvagem das feras, o que fazia os cristãos lhe associarem a Jesus e seu poder sobre a natureza e ao Bom Pastor que cuida de seu rebanho. O Rei Davi […] “quando o espírito maligno vinha sobre Saul, tomava a harpa, e a tocava com a sua mão; então Saul sentia alívio, e se achava melhor, e o espírito maligno se retirava dele” (1Sm 16.23). A harpa de Davi tinha as mesmas propriedades da lira de Orfeu. O mosaico abaixo, datado do século V, encontra-se no interior de uma igreja cristã de Jerusalém. Nele vemos, no centro, Orfeu tocando sua lira enquanto acalma algumas feras ao seu redor, incluindo o Deus Pã e um sátiro.

Mosaico do século V d.C. localizado no interior de uma igreja cristã de Jerusalém. No centro, Orfeu toca sua lira para apaziguar as feras ao seu redor, incluindo o Deus Pã e um sátiro.

Mais afastado do centro do antigo Império Romano no Ocidente, já na Idade Média, no Norte da Europa, o Cristianismo já não tinha mais como ameaça os romanos. O inimigo agora era outro: Os bárbaros germânicos que começavam a atravessar as fronteiras e a entrar em contato com outros povos, eram em sua maioria pagãos ou cristãos arianos. Esses povos eram, de acordo com os escritos de Orósio, genuinamente pagãos, pois viviam nos campos onde realizavam seus cultos rurais.

Tornou-se necessária a dessacralização da natureza e a valorização do elemento humano. O culto dos santos cumpre a função de substituir os antigos elementos pagãos presentes na natureza. O culto dos santos se mostra uma arma poderosa na luta contra o paganismo, pois torna o processo de conversão mais maleável, dessacralizando antigos símbolos pagãos e substituindo-os por imagens cristãs. São frequentes as iconografias de santos abatendo bestas como dragões, serpentes etc. O ato mais simbólico foi a derrubada, por São Bonifácio, no ano de 723, do Carvalho de Thunor (Thor), o Deus nórdico dos trovões e das batalhas. Da madeira da árvore Bonifácio construiu uma capela consagrada a São Pedro, o que marca o início da conversão da Germânia ao Cristianismo.

Gravura do século XVIII representando São Bonifácio derrubando o Carvalho de Thunor (Thor).

Na Idade Moderna, inúmeros territórios foram conquistados em nome da Coroa e da Igreja, ou de la espada e la cruz, como bem escreveu Ruggiero Romano, destacando a aliança militar e espiritual da conquista da América. Os ídolos maias, incas e astecas foram substituídos por imagens sacras de Santiago Apóstolo, Virgem Maria e Jesus Cristo. Boa parte das cidades coloniais foram erguidas sobre antigos templos nativos e cemitérios indígenas. A Catedral Metropolitana da Cidade do México, símbolo do poder espiritual cristão no continente, foi erguida sobre os escombros de um templo asteca.

Esse processo de apropriação, que leva à conquista simbólica, também ocorre entre diferentes vertentes do Cristianismo. Curiosamente, caminhando por meu bairro, me deparo com um arraial sendo realizado em uma Igreja mórmon de nome Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Era final de julho, fora da época dos festejos. Nenhuma menção a São Pedro, Santo Antônio e São João, nem de frases como anarriê, alavantú, balancê. O arraial foi apropriado do Catolicismo, este tendo apropriado a festa do paganismo, com a exclusão de vários elementos, preservando apenas o caráter popular da festa, que sempre atrai grande público. Essas apropriações parecem ser válidas a partir do momento em que são dados novos significados para antigos elementos e estes passam a contribuir para o fortalecimento e crescimento da religião.


FONTES:

_____Bíblia Sagrada. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/

_____Impérios sitiados (200-600) - O declínio romano, Renovação no Oriente Médio, Reinos chineses em tumulto e um vigoroso Novo Mundo. Tradução de Pedro Maia Soares. Rio de Janeiro, Editora Cidade Cultural, 1990. (Coleção História em Revista).

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo Editora, 2006.

ROMANO, Ruggiero. Os Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo, Editora Perspectiva, 1972. (Coleção Kronos).

CRÉDITO DAS IMAGENS:

commons.wikimedia.org
Rijksmuseum van Oudheden - Museu Real de Antiguidades dos Países Baixos

sábado, 6 de maio de 2017

História da América: Análise de documento

Ritual de sacrifício asteca retratado no Codex Magliabechiano (circa 1570).

Trecho de Historia de los indios de Nueva España, de Frei Toríbio Motolinía

Tratado primeiro, capítulo VI – Da festa chamada panquezalizti, e dos sacrifícios e homicídios que nela se faziam; e como tiravam os corações e os ofereciam, e depois comiam os que sacrificavam.

[...]Naqueles dias dos meses acima ditos, em um deles que se chamava panquezalizthi, que era o décimo quarto, o qual era dedicado aos deuses do México, principalmente a dois deles que se diziam ser irmãos e deuses da guerra, poderosos para matar e destruir, vencer e sujeitar; pois neste dia, como páscoa ou festa muito importante, se faziam muitos sacrifícios de sangue, tanto das orelhas como da língua, sendo isso muito comum; outros se sacrificavam dos braços e peitos e outras partes do corpo; mas porque nisto de arrancar um pouco de sangue para lançar nos ídolos, como quem derrama água benta com os dedos , ou jogar o sangue em alguns papéis e oferecê-los das orelhas e da língua era comum a todos em todas as partes; mas das outras partes do corpo cada província tinha o seu costume; uns dos braços, outros dos peitos, e através desses sinais se reconhecia de que províncias eram. Além destes e de outros sacrifícios e cerimônias, eles sacrificavam e matavam muitos da maneira que aqui direi.

Tinham uma pedra grande, de uma braçada de comprimento, e quase um palmo e meio de largura, e um bom palmo de grossura ou de espessura. Metade desta pedra estava enterrada na terra, no alto, em cima dos degraus, diante do altar dos ídolos. Nessa pedra estendiam os desventurados de costas, para os sacrificar, com o peito muito tenso, porque tinham atados os pés e as mãos, e o principal sacerdote dos ídolos e seu lugar-tenente, que eram os que mais comumente sacrificavam, e se algumas vezes haviam muitos a serem sacrificados e estes se cansassem, entravam outros que já eram hábeis no sacrifício e , prontamente, com uma pedra de pedernal com que tiram faíscas, desta pedra faz-se uma grande navalha como ferro de lança, não muito afiada; digo isto porque muitos pensam que eram daquelas navalhas de pedra negra, que há nesta terra, e as fazem com o corte tão fino quanto o de uma navalha, e corta tão docemente como navalha, que logo abrem fendas: com aquela cruel navalha grande, como o peito estava tão tenso, com muita força abriam o desventurado e prontamente lhe tiravam o coração, e o oficial desta maldade jogava o coração em cima do umbral do altar na parte de fora, e ali deixava feita uma mancha de sangue; e caído o coração, ele ainda se mexia um pouco na terra, e logo o colocavam em uma tigela diante do altar. Outras vezes, pegavam o coração e levantavam-no em direção ao sol, e às vezes untavam os lábios dos ídolos com o sangue. Às vezes, os ministros velhos comiam os corações; outras, enterravam-no e logo pegavam o corpo e o jogavam rolando escada abaixo; e chegando embaixo, se o corpo era dos presos de guerra, o que o prendeu, com seus amigos e parentes, levavam-no e preparavam aquela carne humana com outras comidas, e em outro dia faziam festa e o comiam ; o mesmo que o prendeu, se tinha como o fazer, dava naquele dia mantos a seus convidados; e se o sacrificado era escravo, não o jogavam a rodar, mas sim o desciam nos braços, e faziam a mesma festa e convite que ao preso de guerra, ainda que não tanto com o escravo...Quanto aos corações dos que sacrificavam, digo: que após tirar o coração do sacrificado, aquele sacerdote do demônio tomava o coração em suas mãos e o levantava como quem o mostra ao sol, e logo voltava a fazer o mesmo ao ídolo, e o colocava diante de um vaso de madeira pintada, maior que uma tigela, e em outro vaso colhia o sangue e o davam como que de comer ao ídolo principal...

Em outros dias daqueles já nomeados se sacrificavam muitos, ainda que não tanto como na festa já dita; e ninguém pense que nenhum dos que sacrificavam matando-lhes e tirando-lhes coração, ou qualquer outra morte, que não era de sua própria vontade, mas sim à força, e sentiam muito a morte e sua espantosa dor. Os outros sacrifícios de tirar sangue das orelhas ou língua, ou de outras partes, estes eram voluntários quase sempre. Daqueles que assim sacrificavam, tiravam a pele de alguns, em umas partes, dois ou três, em outras, quatro ou cinco, em outras, dez, e no México até doze ou quinze, e vestiam aqueles couros, que pelas costas e em cima dos ombros, deixavam abertos, e vestido o mais justo que podiam, como quem veste colete e calças, dançavam com aquela cruel e espantosa vestimenta; e como todos os sacrificados ou eram escravos ou prisioneiros de guerra, no México, para este dia, guardavam algum prisioneiro de guerra que fosse senhor ou pessoa importante e, a este, esfolavam para vestir o couro dele no grande senhor do México, o qual, vestido com aquele couro, dançava com muita solenidade, pensando que fazia grande serviço ao demônio que naquele dia honravam; e a isto muitos iam ver com grande maravilha porque nos outros povoados não se vestiam os senhores com os couros dos esfolados, mas outros principais. Outro dia, de outra festa, em cada parte sacrificavam uma mulher, e esfolavam-na, e alguém se vestia com o couro dela e dançava com todos os outros do povo; aquele vestido com o couro da mulher e os outros com suas plumagens.

Havia outro dia em que faziam festa ao deus da água. Antes que este dia chegasse, vinte ou trinta dias, compravam um escravo e uma escrava e os faziam morar juntos como casados; e chegado o dia da festa, vestiam o escravo com as roupas e insígnias daquele deus, e a escrava com as da deusa, mulher daquele deus, e assim vestidos dançavam todo aquele dia até à meia-noite quando os sacrificavam; e a estes não os comiam, mas sim os deixavam em uma cova como um depósito que para isto tinham.

(FERNANDES, Luis E. de Oliveira. “Motolinía: o choque espiritual no Novo Mundo”, Ideias: Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Unicamp, ano 11, vol. 1, 2004)


Frei Toríbio de Benavente

Frei Toríbio de Benavente, alcunhado ‘Motolinía”, o pobre, nasceu no final do século XV. Era, portanto, um homem que viveu em um contexto de Renascimento cultural e disputas religiosas. Veio para a Nova Espanha como religioso franciscano, atuando no projeto espanhol de colonização. Sendo um homem do Renascimento e do mundo religioso, tinha conhecimentos de Filosofia e Teologia, o que leva Leandro Karnal a classificá-lo como um autor que transitava entre o intelectual e o religioso. Dentro dessa perspectiva, estava inserido no projeto colonial como um agente que utilizava a cultura como um mecanismo da colonização nativa, de forma que fossem eliminadas práticas e alterados comportamentos que não fosse de encontro com a ordem colonizadora. O texto estudado em questão, Tratado primeiro, capítulo VI – Da festa chamada panquezalizti, e dos sacrifícios e homicídios que nela se faziam; e como tiravam os corações e os ofereciam, e depois comiam os que sacrificavam, foi produzido na segunda metade do século XVI, entre 1540 e 1550. É válido salientar que, além de Toríbio ser um homem de um contexto de Renascimento, ele também vinha de uma Europa cujas estruturas políticas, sociais e urbanas ainda guardavam fortes traços medievais, traços esses fortemente influenciadores nas mentalidades de homens e mulheres. Não é exagero afirmar que a Igreja que veio para a América era medieval, igreja essa que reproduziria no território conquistado doutrinação, conversão e controle através do aparelho religioso. Santo Santiago Matamoros, terror dos ‘sarracenos’ durante a reconquista da Península Ibérica (1492), é transformado em Santiago Mataindios na América, isso em um curto intervalo de tempo entre um processo puramente medieval e outro da era ‘moderna’. O local e os inimigos eram outros, mas a ideia era a mesma: conquistar. Toríbio é um dos vários agentes do processo de introdução dos nativos em uma ordem a eles imposta.

Sobre alteridade e síntese de ideias

Alteridade, a questão do outro, como escreveu Todorov no clássico Conquista da América: a questão do outro (1983). Frei Toríbio escreveu etnograficamente sobre os índios da Nova Espanha, impregnado de uma visão de mundo religiosa. Nesse texto, é possível identificar alguns elementos de uma escrita de alteridade. No início, Toríbio inicia sua narrativa como um tradicional cronista religioso e etnográfico, destacando as principais características das festividades nativas e comparando-as com festejos cristãos. Seria essa alguma tentativa de encontrar semelhanças, mesmo que mínimas, entre duas realidades distintas? Ou apenas um parâmetro eurocêntrico? Aos poucos, alguns termos e observações vão dando o tom de uma narrativa que tem por objetivo, além da documentação, depreciar determinadas práticas. A pessoa que realiza o sacrifício é chamado de “oficial do diabo”. Os deuses eram nomeados “ídolos”, que faz remeter ao “terrível pecado da idolatria”. Outro agente do processo de sacrifício é chamado de “sacerdote do demônio”, numa clássica oposição entre o bem (colonizador, Cristianismo) e o mal (nativo, práticas pagãs). Toríbio dá ênfase que, para o sacrificado, o processo “não era de sua própria vontade, mas sim à força”, e que este “sentia muito a morte e sua espantosa dor”. Os adereços utilizados nos ritos (feitos de pele humana) também eram vistos como cruéis e espantosos. Outra forma de se referir aos deuses ou ídolos era por “demônios”, os quais eram honrados pelos indígenas. Dessa forma, Toríbio buscava em sua escrita etnográfica um meio para facilitar o processo evangelizador. Sua crônica é religiosa e etnográfica, intelectual e eclesiástica, descritiva e crítica. Essas passagens escolhidas para falar sobre uma escrita de alteridade, nos permitem entender a mentalidade por trás conquista.

O título do trabalho de onde foi retirado esse texto, Motolinía: o choque espiritual no Novo Mundo, já nos direciona para uma discussão de caráter cultural. Portanto, esse texto do século XVI, amparado por outras fontes de caráter seriado e quantitativo, nos permite, através de sua problematização, identificar elementos do contexto do processo de colonização da América, seus mecanismos e as mentalidades de seus agentes.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

A Economia Gomífera na Amazônia I: Dos primórdios aos componentes humanos

Versão resumida do texto Ciclo da Borracha (dos primórdios até 1920), publicado em 24 de junho de 2013. Nessa primeira parte, apresento aos leitores como ocorreu o contato com o látex, com registros datados de antes de Cristo, até a vinda de aventureiros para a Amazônia entre os séculos XIX e XX. A segunda postagem englobará as transformações políticas, econômicas e culturais. A terceira e última parte será dedicada ao lado pregresso dessa economia e a sua decadência.

A ambição que gerou a conquista. A conquista que gerou o extrativismo onde os caudilhos fixaram suas leis homicidas. O extrativismo que gerou a súbitas fortunas de aventureiros dos quatro cantos. Era o Eldorado, o esplendor de uma selvagem nobreza dos trópicos cujos cenários e costumes foram importados de Inglaterra, França e Itália (Amazonas, Amazonas. Glauber Rocha, 1966). É com essa passagem marcante do documentário Amazonas, Amazonas, que dou início a esse texto. A economia gomífera na Amazônia, que dominou a região entre 1880 e 1929, com uma sobrevida até 1945, se constituiu em um dos principais ciclos econômicos do Brasil contemporâneo. Movimentou somas que iam da Amazônia à Europa; garantiu a construção de estruturas industriais com utilidade até os dias de hoje; e alterou para sempre a fisionomia social e econômica da região Norte do país. 

À esquerda, a "trave" do jogo praticado pelos nativos pré-colombianos. À direita, um jogador atual no estado de Sinaloa, no México.

Os povos nativos da América pré-colombiana já utilizavam a borracha no seu dia a dia. Um dos usos mais comuns, entre os Teotihuacan do México (300 a.C. - 600 d.C.), era o de confeccionar uma bola utilizada em um jogo ritualístico, difundido entre outros povos, no qual os vencedores eram sacrificados em honra ao Sol. Ao chegar no continente entre os séculos XVI e XVII, cronistas, clérigos e viajantes europeus tiveram contato com essa substância, a qual passaram a observar e descrever suas propriedades.

A primeira descrição detalhada sobre a borracha foi produzida no século XVIII pelo sábio francês Charles Marie de La Condamine, que esteve na Amazônia em 1736, descrevendo seus usos pelos omáguas, que fabricavam bolas, garras e revestimentos para tecidos. Também notou que os portugueses aprenderam com os cambebas o processo de fabricação da borracha, e passaram a fazer fazer seringas, sapatos e galochas. De sua experiência surgiu, em 1745, a obra Relato abreviado de uma viagem feita ao interior da América Meridional.

No início do século XIX, os arredores de Belém e as ilhas de Marajó, no Pará, começaram a exportar para os Estados Unidos e Europa milhares de sapatos impermeabilizados e galochas. Seriam necessárias mais de 2 décadas de pesquisas para que a borracha amazônica ganhasse uma utilização industrial, pois esse produto sofre alterações com a temperatura: no calor, torna-se pegajosa; com o frio, quebradiça. O inventor estadunidense Charles Goodyear criou o processo de vulcanização (1839), no qual o uso de calor e enxofre aumenta a durabilidade da borracha. Luvas, preservativos e outros produtos feitos a partir dessa matéria ganharam os mercados europeus e norte americanos com uma velocidade tão grande que, na Amazônia, já começava a movimentação de braços para atender a crescente demanda internacional.

À esquerda, Charles Goodyear, 1891. Ilustração póstuma da Scientific American. À direita, índio omágua defumando borracha, 1876. Gravura de Franz Keller-Leuzinger.

A mão de obra destinada à extração do látex, num primeiro momento, trouxe alguns problemas para os governos locais. O governador do Pará, e mais tarde o da Província do Amazonas, se queixava que a atividade gomífera estava absorvendo trabalhadores da área de produção de bens de consumo (cacau, café, anil, arroz, guaraná), que começavam a ser importados, e das indústrias locais (cordoarias, olarias, algodoaria e estalagens). Para suprir a demanda de mão de obra, motivados por fatores naturais e econômicos, migraram para a Amazônia milhares de nordestinos entre 1877 e 1879.

Nesse final de século XIX, saíram do Ceará em direção à Amazônia cerca de 65.000 flagelos das secas e do péssimo resultado da produção agrícola causado por estas. Este contingente de pessoas avançou pelo rio Purus, atingindo, em terras estrangeiras, áreas ricas em seringueiras. A presença de brasileiros na região que viria a ser o futuro estado do Acre criaria querelas diplomáticas entre Brasil e Bolívia.

Com a rápida penetração de brasileiros nessa região, a Bolívia se alia ao capital estrangeiro de grupos europeus e norte-americanos, fundando o Bolivian Syndicate, sindicato altamente capitalizado que asseguraria o domínio boliviano e, por dez anos, exploraria os recursos da região. Em 1899, sem autorização e de madrugada, um navio de guerra norte-americano navega ilegalmente o rio Amazonas em direção ao Acre. O navio é interceptado nos arredores de Manaus, causando protestos do governo brasileiro contra os Estados Unidos.

À esquerda, as comitivas do Brasil e da Bolívia que participaram das negociações, com o Barão do Rio Branco ao centro. À direita, um mapa mostrando como ficou a geografia política após os acordos.

No mesmo ano, financiado por políticos e empresários amazonenses, o aventureiro espanhol Luiz Galvez Rodrigues de Aria, com um pequeno exército improvisado, ocupa o território reivindicado pela Bolívia e funda o Estado Independente do Acre, desfeito no final do mesmo ano pelo governo brasileiro. Em 06 de agosto de 1902, o jovem Plácido de Castro, gaúcho de São Gabriel, com um exército improvisado, composto de seringueiros, entra na cidade de Xapuri, prende o intendente boliviano e proclama o Estado Independente do Acre, entrando em guerra com o exército da Bolívia. Com mais uma intervenção do governo federal brasileiro, é cessada a batalha armada em nome da batalha diplomática. O diplomata José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, já famoso por ter atuado nos impasses territoriais entre Brasil e Argentina (Questão de Palmas, 1890-1895); e Amapá (1900), propõe um acordo entre Brasil e Bolívia: O Tratado de Petrópolis. Concretizado em 1903, nele ficou estabelecido que a Bolívia venderia para o Brasil o território do Estado do Acre por 2 milhões de libras esterlinas; e o Brasil indenizaria o Bolivian Syndicate em 110 mil libras esterlinas e se comprometeria a construir a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, para escoar a produção boliviana pelo rio Amazonas.

Na segunda metade do século XIX, a tranquilidade da região amazônica seria alterada por dois acontecimentos: A criação da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, em 1852; e a Abertura dos Portos do Rio Amazonas às Nações Amigas, em 1866. A Companhia foi criada pelo empresário Irineu Evangelista, o  Barão de Mauá, e começou a operar na região com três pequenos vapores, intensificando o comércio e a comunicação da Província do Amazonas com outras províncias brasileiras e o Peru. Em 1866, pressionado por europeus, norte-americanos e membros das elites do Pará e Amazonas, ávidas por mudança, o Império do Brasil decreta, em 7 de setembro, a abertura dos rios Amazonas, Tocantins, Tapajós e Madeira à navegação estrangeira. Com esses dois acontecimentos é facilitada a escoação de matérias-primas regionais, principalmente a borracha, e a entrada de capital e manufaturados estrangeiros.

À esquerda, seringueiro extraindo látex. Gravura de Percy Lau. À direita, seringueiro defumando a borracha no tapiri, em 1900.

O novo panorama que começava a se configurar nessa parte afastada dos principais centros econômicos do Brasil atraiu pessoas das mas variadas classes sociais: Aqueles que não tinham nada a perder e buscavam um recomeço; os aventureiros, ávidos por novos experiências; e até pessoas nobres. No primeiro grupo vamos ter os nordestinos, em grande parte vindos do Ceará, mas também de Alagoas, Pernambuco e Paraíba. Atraídos para uma região tão vasta, em busca de um refúgio contra as secas que assolavam seus estados de origem, logo se viram frente a uma das piores faces da economia gomífera na Amazônia: o regime de semi-servidão. Em teoria, o seringueiro era um trabalhador livre, mas trazia, desde sua viagem para a região, uma dívida com o dono do seringal. Chegando ao local de trabalho, extraía o látex até pagar o que devia ao seringalista. Só que isso raramente acontecia, pois todos os utensílios para o trabalho e bens de consumo deveriam ser comprados no barracão, também de propriedade do seringalista. Assim, esse trabalhador, explorado em um regime de trabalho que começava entre 4:00-5:00 horas, percorrendo vários quilômetros para encontrar seringueiras, ficava em um ciclo eterno de fazer e pagar dívidas. Se tentasse comprar em outro lugar, falsificar o peso das pélas de borracha ou fugir do seringal, era eliminado pelo patrão, que controlava o lugar com mãos de ferro.

Entre os aventureiros podemos citar Plácido de Castro, ex-militar, combatente da Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, que em 1902 proclamou o Estado Independente do Acre, enfrentando, com um exército improvisado de seringueiros, as forças militares bolivianas. Pensava em uma economia gomífera mais humanizada e eficiente, indo contra o pensamento dos seringalistas. Pagou com a própria vida, em 1908, ao ser morto em uma emboscada no Seringal Benfica, no Acre. Abandonando a comuna italiana de Borgo Val di Taro, o conde Ermanno Stradelli, etnólogo e poeta autodidata, nutriu grande fascinação pela Amazônia, colhendo e publicando, de 1880 até sua morte, em 1926, informações riquíssimas sobre os hábitos e costumes dos nativos da região.

FONTE:

Resumo feito a partir do livro 'Breve História da Amazônia', de Márcio Souza (1994).


CRÉDITO DAS IMAGENS:

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Acervo Sergio Figueiredo/Povos da Amazônia
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