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domingo, 28 de abril de 2019

O mundo às vésperas das Revoluções Industrial e Francesa

Paisagem interiorana da Holanda. Pintura de Cornelis de Bruin (1652-1726).



Em a Era das Revoluções (1789-1848), o historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) analisa a derrocada do mundo feudal, do Antigo Regime, e a transição, marcada por conflitos e profundas transformações sociais, deste para uma nova realidade, a industrial e das democracias liberais. O século XVIII foi um período marcado por duas revoluções, a Industrial e a Francesa. Da primeira têm-se a constituição da estrutura econômica que dominará o mundo Ocidental. Da segunda, o arcabouço político teórico que sustentará a economia e os governos.

O mundo em 1780, às vésperas dessas revoluções, era ao mesmo tempo menor e maior que o nosso. Menor no sentido de que, na época, se conhecia pouco sobre os territórios, principalmente as regiões interioranas. Além do mais, a densidade demográfica era consideravelmente menor que a da atualidade. Epidemias, guerras, fatores climáticos e terras improdutivas eram barreiras para o estabelecimento e crescimento de colônia em regiões afastadas das áreas mais desenvolvidas. Os seres humanos também eram menores. Fatores biológicos ligados a alimentação produziam pessoas de estatura mais baixa que as atuais.

Ele tornava-se maior dadas as dificuldades em locomoção e comunicação com outras regiões, o que abria diversas possibilidades. Existiam dois meios de transporte, o marítimo e o terrestre. O primeiro era mais eficiente que o segundo, mas ainda assim passava por alguns problemas, principalmente a variação dos ventos e dos mares. As viagens terrestres, apesar da construção de estradas e a existência de charretes e carruagens, eram perigosas, onerosas e lentas. Uma cidade portuária da América do Norte estava mais perto de Paris do que uma cidade interiorana francesa. Em uma realidade majoritariamente rural, com mobilidade por terra problemática e navegação variável, as pessoas costumavam morrer no mesmo local em que nasciam sem nunca terem conhecido outras realidades. Jornais e cartas já eram uma realidade, mas o grosso da população era analfabeta, existindo uma certa mobilidade apenas entre viajantes, mercadores e membros da burocracia estatal, que tinham a necessidade de deslocar-se para realizar suas funções, fossem elas nas colônias além-mar ou no interior das cidades provinciais.

Poucas eram as cidades densamente habitadas. Da Rússia à Itália, entre 70 e 90% da população era rural. Apenas Londres e Paris eram cidades cujas populações eram, respectivamente, de 1 milhão e 500 mil habitantes. No mais, existiam cidades com pouco mais de 20 mil habitantes, cujas vidas estavam centradas na Igreja, na Praça e na atividade agrícola. Uma cidade desse tipo era dividida do mundo rural pelos seguintes aspectos: a presença de um aparato arquitetônico e estatal mínimos (igreja, praça, cobrança de impostos) e as vestes e estatura de seus habitantes, geralmente melhores e maiores que os trabalhadores rurais.

Esse mundo estava dividido em zonas de trabalho. Nas colônias da América predominava a escravidão indígena e africana voltada para o cultivo de gêneros primários que abasteciam a Europa. A leste da Europa Ocidental ficavam as propriedades de trabalho agrário servil. Na região Oriental o sistema de trabalho beirava a escravidão. Os trabalhadores eram ‘tecnicamente’ livres, mas ainda assim estavam presos a obrigações como o pagamento de dízimos as paróquias das quais faziam parte e a utilização de mecanismos, como o moinho, por exemplo, geralmente pertencentes a grandes proprietários. Com exceção da Inglaterra, em que a agricultura já estava sendo direcionada a um mercado mais amplo, um dos fatores para o seu pioneirismo industrial, toda a produção das outras localidades sustentava a necessidade e consumo regionais.

Predominava o modelo político das Monarquias Absolutistas, característico do Antigo Regime. Essa organização política estava assentada em privilégios monárquicos que se refletiam em todos os níveis da sociedade, principalmente na terra, defendida pelos fisiocratas franceses como a única fonte de riqueza. Os nobres alugavam suas terras aos camponeses, cobrando uma parte da produção ou um aluguel em dinheiro. Quando esse sistema econômico tornou-se obsoleto, desgastado, os membros da corte passaram a utilizar seus títulos de nobreza para se apropriarem dos cargos burocráticos, para dessa forma manterem seu estilo de vida aristocrático. Esses privilégios sobre a terra terão um peso decisivo na Revolução Francesa, em 1789. O status monárquico e a posse de grandes propriedades de terra eram as bases dos estados europeus.

Em síntese, o mundo, mais especificamente a realidade europeia, as vésperas das revoluções industrial e francesa, era predominantemente rural e menor por suas características limitadas de conhecimento e mobilidade, mas esta última característica o tornava maior dadas as possibilidades ainda não plenamente exploradas.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 20º ed., 2006.



CRÉDITO DA IMAGEM

Cornelis de Bruin Gallery.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Filme: Aguirre, a Cólera dos Deuses



País: Antiga Alemanha Ocidental
Direção: Werner Herzog
Roteiro: Werner Herzog
Elenco: Klaus Kinski, Helena Rojo, Ruy Guerra e Del Negro
Ano: 1972
Duração: 90 minutos


Aguirre, a Cólera dos Deuses (Aguirre, der Zorn Gottes), é uma das melhores produções do diretor alemão Werner Herzog, contando com a magistral atuação do também alemão Klaus Kinski no papel de Don Lope de Aguirre (1510-1561), el tirano, el loco, conquistador espanhol do século XVI.

O filme, um drama histórico, retrata, com algumas alterações significativas, os desdobramentos da Expedição de Pedro de Ursúa e Lope de Aguirre (1560-1561), dois conquistadores que, após notícias dos sobreviventes da expedição de Orellana, reavivaram a crença da existência das ricas províncias de Omágua e El Dorado. Os cenários, entre o Peru e o Rio Amazonas, dão o tom de naturalidade ao filme, com vários enquadramentos que captam o enfrentamento entre homens europeus de valores cristãos medievais e a natureza selvagem, desconhecida e indomável, habitada por povos igualmente desconhecidos.

Klaus Kinski conseguiu transpor nessa obra a personalidade de Lope de Aguirre, marcante na historiografia da conquista da América: louco, sádico, disposto a tudo para liderar a expedição e alcançar os mais altos postos na Coroa Espanhola. Na América, além da busca por ouro e outras pedras preciosas, buscou-se o que dificilmente esses homens encontrariam na metrópole: a ascensão social. Uma pequena ou inexistente nobreza, às vezes imaginária, buscava por suas ações na conquista o reconhecimento, um alicerce e inserção no mundo das cortes.

Acreditando que organizaria uma rica colônia, Aguirre ordena aos soldados que o sigam numa rebelião contra a Coroa Espanhola, assassinando quem não concordasse. Auxiliomar Silva Ugarte afirma que, na segunda etapa da expedição, ela [...] "mergulharia em sangue, pois Lope de Aguirre, utilizando-se de todos os meios de que dispunha, eliminando opositores reais ou imaginários, pôs fim às buscas a Omágua e Dorado e deu início a uma das mais sangrentas rebeliões do período" (UGARTE, 2003, p. 26). Aguirre (Klaus Kinski) usa uma das melhores armas no processo de conquista após os instrumentos bélicos: a imposição psicológica, que vai criando temores tanto entre os tripulantes de sua expedição quanto entre os nativos que vão sendo encontrados ao longo dos rios.

Apesar de a expedição retratada incluir personagens históricos que não faziam parte dela, e de apresentar um desfecho idealizado por Aguirre, o filme consegue exemplificar as relações de poder e os modos de agir característicos do processo de Conquista da América Espanhola, lembrando la espada, la cruz e la hambre que iam dizimando a família selvagem, como bem escreveu Pablo Neruda. Devidamente contextualizado, partindo de um elemento micro (a expedição) para um elemento macro (o processo de conquista entre os séculos XVI e XVII), é um filme vale a pena ser assistido e analisado, do ponto de vista dos mecanismos e mentalidades da Conquista Colonial.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

UGARTE, Auxiliomar Silva. Margens Míticas: a Amazônia no Imaginário Europeu do século XVI. In:  DEL PRIORI, Mary; GOMES, Flávio dos Santos (org). In: Os Senhores dos Rios: Amazônia, Margens e Histórias. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.


CRÉDITO DA IMAGEM:

maumiranda.wixsite.com

sábado, 28 de maio de 2016

Prefácio dos Estudos Históricos de René Chateaubriand (II)


Segunda parte do texto Prefácio dos Estudos Históricos de René Chateaubriand, agora focado nos escritores da história geral e história crítica da França, antes da Revolução de 1789; e a Escola Histórica moderna da França.


ESCRITORES DA HISTÓRIA GERAL E HISTÓRIA CRÍTICA DA FRANÇA, ANTES DA REVOLUÇÃO

Os julgamentos são muito duros hoje sobre os escritores que trabalharam em nossos anais antes da revolução. Suponhamos que nossa história geral estivesse para ser composta; que fosse preciso tirá-la de manuscritos ou mesmo de documentos impressos; que fosse preciso desenrolar a cronologia, discutir os fatos, estabelecer os reinos; eu sustento que, apesar de nossa ciência inata e todo nosso saber adquirido, não colocaríamos três volumes em pé. Quantos entre nós poderiam decifrar uma linha das cartas originais, quantos poderiam lê-las, mesmo com a ajuda dos alfabetos, dos specimen e fac-simile inseridos na Re diplomatica de Mabillon¹ e em outras obras? Somos muito impacientes de exibir nossos pensamentos; desdenhamos demais nossos antecessores para nos conformar com o modesto papel de leitores de cartulários. Se lêssemos, teríamos menos tempo para escrever, e que furto feito à posteridade! Qualquer que seja nosso justo orgulho, ousaria eu suplicar a nossa superioridade que não quebre muito depressa as muletas sobre as quais ela se arrasta de asas dobradas? Quando, com datas bem corretas, fatos bem exatos, impressos em belo francês num caractere bem legível, nós compomos à vontade histórias novas, saibamos ser gratos a esses espíritos obscuros, a esses trabalhos aos quais nos basta capturar os farrapos de nosso gênio para pasmar o universo maravilhado. [...]

A respeito das liberdades, uma observação análoga se apresenta. Os historiadores do século XVIII não podiam compreendê-la como nós; não lhes faltava nem imparcialidade, nem independência, nem coragem. Mas eles não tinham essas noções gerais das coisas que o tempo e a revolução desenvolveram. A história faz progressos dos quais são privadas algumas outras partes da inteligência letrada. A língua, quando atinge sua maturidade, permanece nesse estado ou se deteriora. Podem-se fazer versos diferentes dos de Racine, nunca melhores: a poesia tem suas fronteiras nos limites do idioma em que é escrita e cantada. Mas a história, sem se corromper, muda de caráter com os tempos, porque se compõe de fatos adquiridos e verdades encontradas, porque refaz seus julgamentos por suas experiências, porque, sendo o reflexo dos costumes e das opiniões do homem, é suscetível do aperfeiçoamento da espécie humana. Do ponto de vista físico, a sociedade, com as descobertas modernas, não é mais a sociedade sem essas descobertas; para a moral, esta sociedade, com as ideias engrandecidas tais como estão nos dias atuais, não é mais a sociedade sem estas ideias: o Nilo em sua nascente não é o Nilo de sua embocadura. Em uma palavra, os historiadores do século XIX nada criaram; somente têm um mundo novo sob os olhos, e esse mundo novo lhes serve de escala retificada para mensurar o antigo mundo.

Feita toda justiça aos homens de mérito que trataram de nossa história geral antes da revolução, eu diria com a mesma imparcialidade que não precisamos tomá-los por guias. Não podemos nos dispensar de recorrer aos originais, pois esses escritores os liam de modo diferente do nosso e com um outro espírito: eles não procuravam ali as coisas que nós procuramos, eles nem sequer as viam; rejeitavam precisamente o que recolhemos. Não escolhiam, por exemplo, nas obras dos padres da igreja senão o que concerne ao dogma e à doutrina do cristianismo: os costumes, os usos, as ideias não lhes pareciam ter nenhuma importância. Toda uma história nova está escondida nos escritos dos padres; esses estudos indicarão o caminho para ela. Não sabemos nada sobre a civilização grega e romana dos séculos V, VI e VII, nem sobre a barbárie dos destruidores do mundo romano, senão pelos escritores eclesiásticos dessa época.

Sobre nossos próprios monumentos, descobertas da mesma natureza estão por ser feitas. Antes da revolução, não se interrogavam os manuscritos apenas no tocante ao clero, aos nobres e aos reis. Nós não nos interrogamos senão sobre o que diz respeito aos povos e às transformações sociais/ ora, isto ficou sepultado nas cartas.

Os escritores pré-revolucionários da história crítica da França são tão numerosos que é impossível indicá-los todos: alguns somente devem ser assinalados como chefes de escola.

A Histoire de l' établissement de la monarchie française dans les Gaules é uma obra sólida, com frequência atacada, nunca derrubada, mesmo por Montesquieu, que aliás sabia poucas coisas sobre os francos. Rouba-se o abade Dubos sem admitir o pequeno furto: seria mais leal reconhecê-lo.

O mesmo ocorre com o abade de Gourcy: sua pequena Dissertation sur l' état des personnes en France sous la première et la seconde race, coroada pela Académie des Inscriptions, é de um método, de uma clareza e de um saber raros. O que se escreve hoje sobre o mesmo tema em parte é furtado do excelente trabalho de Gourcy: é acertado não refazer um trabalho árduo tão bem feito, mas seria necessário avisar, para deixar o elogio a quem direito. Existem, pois, homens que estão consagrados a servir de monitores a outros [...].

Desses detalhes resulta que duas escolas históricas se distinguem antes da época da revolução: a escola do século XVIII e a escola do século XIX; uma erudita e religiosa, a outra crítica e filosófica: na primeira, os beneditinos ajuntavam os fatos, e Bossuet os proclamava na Terra; na segunda, os enciclopedistas criticavam os fatos, e Voltaire os entregava aos debates da multidão. A Inglaterra fundou perto de nós sua escola exata, mais desembaraçada que a nossa dos preconceitos antirreligiosos. Nossa escola moderna do século XIX pode ser chamada de escola política: ela é filosófica também, mas de modo diferente que a do século XVIII. Falemos disso.

¹ Jean Mabillon (1632-1707), monge beneditino e historiador francês a quem se atribui o estatuto de fundador da paleografia e da diplomática como auxiliares importantes da pesquisa histórica, na medida em que pretendia construir instrumentos para discernir os documentos verdadeiros dos falsos (N. do T.)


ESCOLA HISTÓRICA MODERNA DA FRANÇA

A escola moderna se divide em dois sistemas principais: no primeiro, a história deve ser escrita sem reflexões; deve consistir na simples narrativa dos eventos, e na pintura dos costumes; deve apresentar um quadro ingênuo, variado, pleno dos episódios, deixando cada leitor, segundo a natureza de seu espírito, livre para tirar as consequências dos princípios e extrair as verdades gerais das verdades particulares. É o que se chama de história descritiva, por oposição à história filosófica do século passado.

No segundo sistema, é preciso narrar os fatos gerais, suprimindo neles uma parte dos detalhes; substituir a história da espécie pela do indivíduo; permanecer impassível diante do vício e da virtude assim como diante das catástrofes mais trágicas. É a história fatalista ou o fatalismo aplicado à história.

Vou expor minhas dúvidas sobre esses dois sistemas.

A história descritiva, levada a seus últimos limites, não entraria demais na natureza da memória? O pensamento filosófico, empregado com sobriedade, não seria necessário para dar à história sua gravidade, para fazê-la pronunciar sentenças que são da alçada de seu último e supremo tribunal? No grau de civilização a que chegamos, poderia a história da espécie desaparecer inteiramente da história do indivíduo? Deveriam as verdades eternas, bases da sociedade humana, se perder nos quadros que não representam senão costumes privados?

Existem no homem dois homens: o homem de seu século e o homem de todos os séculos: o grande pintor deve acima de tudo se fixar na semelhança deste último. Talvez hoje se valorizem demais a semelhança, e, pode-se dizer, a cópia da fisionomia de cada época. É possível que, na história como nas artes, representemos melhor do que faziam antigamente os costumes, os interiores, todo o material da sociedade; mas uma figura de Rafael, com o fundo negligenciado e flagrantes anacronismos, não apagaria as perfeições da segunda ordem? Quando se representavam os personagens de Racine com as perucas à moda de Luís XIV, os espectadores não ficavam nem menos maravilhados nem menos comovidos. Por quê? porque se via o homem no lugar de homens. [...]

Eis o que me parece verdadeiro no sistema da história descritiva: a história nunca é uma obra de filosofia; ela é um quadro; é preciso juntar à narração a representação do objeto, ou seja, é preciso ao mesmo tempo desenhar e pintar; é preciso dar aos personagens a linguagem e os sentimentos de seu tempo, não olhá-los através de nossas próprias opiniões, principal causa da alteração dos fatos. Se, tomando por regra aquilo que acreditamos da liberdade, da igualdade, da religião, de todos os princípios políticos, aplicamos essa regra à antiga ordem das coisas, nós falseamos a verdade, exigimos dos homens que vivem nessa ordem coisas das quais eles nem mesmo tinham ideia. Nada estava tão mal quanto pensávamos; o padre, o nobre, o burguês, o vassalo possuíam noções do justo e do injusto diferentes das nossas: era um outro mundo, um mundo sem dúvida menos próximo dos princípios gerais naturais do que o mundo presente, mas ao qual não faltavam nem grandeza, nem força, como testemunham seus atos e sua duração. Não nos apressemos em nos pronunciar muito desdenhosamente sobre o passado: quem sabe se a sociedade desse momento, que nos parecia superior (e que foi de fato em muitos pontos) à antiga sociedade, não parecerá a nossos sobrinhos, dentro de dois ou três séculos, aquilo que nos parece a sociedade de dois ou três séculos anteriores ao nosso? Nos alegraríamos no túmulo de sermos julgados pelas gerações futuras com o mesmo rigor com que julgamos nossos ancestrais? O que há de bom, de sincero na história descritiva é que ela narra os tempos tais como eles foram.

O outro sistema histórico moderno, o sistema fatalista, tem, acredito, inconvenientes bem menos graves, porque ele separa a moral da ação humana; sob esse aspecto terei daqui a pouco ocasião de combatê-lo, falando dos escritores de talento que o adotaram. Aqui direi somente que o sistema que baniu o indivíduo para se ocupar apenas da espécie caiu no excesso oposto ao sistema da história descritiva. Anular totalmente o indivíduo, não lhe dar senão a posição de uma cifra, a qual vem numa série de um número, é contestar-lhe o valor absoluto que ele possui, independentemente de seu valor relativo. Assim como um século influi sobre um homem, um homem influi sobre um século; e se um homem é o representante das ideias do tempo, muito mais ainda o tempo é o representante das ideias do homem.

O segundo sistema da história moderna tem seu lado verdadeiro, tal como o primeiro. É certo que não se pode hoje omitir a história da espécie; que há realmente revoluções inevitáveis porque elas não são realizadas nos espíritos antes de serem realizadas no exterior; que a história da humanidade, da sociedade geral, da civilização universal, não deve ser mascarada pela história da individualidade social, pelos eventos particulares a um século e a um país. A perfeição seria o manejo dos três sistemas: a história filosófica, a história particular, a história geral; admitir as reflexões, os quadros, os grandes resultados da civilização, rejeitando dos três sistemas aquilo que possuem de exclusivo e de sofístico.

Ademais, se é bom possuir alguns princípios fixados ao tomar da pena, é, parece-me, uma questão ociosa perguntar como a história deve ser escrita: cada historiador a escreve segundo seu próprio gênio; um a conta bem, outro a pinta melhor; este aqui é sentencioso, aquele outro, indiferente ou patético, incrédulo ou religioso: toda matéria é boa, desde que verdadeira. Juntar a gravidade da história ao interesse da memória, ser ao mesmo tempo Tucídides e Plutarco, Tácito e Suetônio, Bossuet e Froissard, e assentar os fundamentos de seu trabalho sobre os princípios gerais da escola moderna, que maravilha! Mas e aqueles aos quais o céu não atribuiu esse conjunto de talentos, dos quais um apenas serie suficiente para a glória de muitos homens? Cada um escreverá como vê, como sente; não se pode exigir do historiador senão o conhecimento dos fatos, a imparcialidade do julgamento e o estilo, se puder.


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quarta-feira, 27 de abril de 2016

Quando o Império Romano se torna Cristão

Por Pierre Maraval, historiador das religiões, especialista em Cristianismo Antigo, Antiguidade Tardia e professor emérito da Université Paris-Sorbonne.

A Visão da Cruz. Afresco de Rafael Sanzio, 1520-1524.

De Constantino a Teodósio
Da conversão do Imperador
à conversão do Império

Como muitos outros não-cristãos da sua época, o imperador Constantino parece ter sido, a princípio, simplesmente monoteísta, crendo num Deus criador supremo, conhecido por diferentes nomes e adorado de diversas maneiras. Assim, o Sol invictus aparece nas moedas depois de 308; só progressivamente é que ele virá a formular de maneira explícita, em textos provenientes da sua pena, sua adesão ao cristianismo. Não há por que contestar sua sinceridade, como fizeram vários historiadores, ainda que essa adesão lhe permita identificar-se como um instrumento escolhido pessoalmente por Deus e que essa relação pessoal adquira um alcance político: estava-se então num mundo em que pagãos e cristãos consideravam o imperador um indivíduo religiosamente marcado. Não se deve, de resto, imaginar uma conversão súbita, mas antes uma evolução, um despertar gradual: o próprio Eusébio de Cesareia, seu biógrafo, diz que o imperador recebeu várias vezes sinais de Deus.

Resulta em todo caso que, quando volta a Roma após a batalha da ponte Mílvio (312), Constantino encontra o denominador comum que garantirá tanto a unidade do seu Império - o reconhecimento de um Deus único -, como sua própria legitimidade, que ele faz proceder de uma missão pessoal recebida de Deus. Isso não o leva a uma atitude intolerante em matéria de religião. O "edito de Milão", de 313, exprime ao mesmo tempo a ideia de que a segurança do Império é assegurada pelo Deus supremo (e não mais pelos deuses da tetrarquia, Júpiter e Hércules) e o reconhecimento oficial do fato de que a religião não pode ser forçada. Constantino dá testemunho de uma política de consenso à qual cristãos e pagãos podem aderir, de um fundamento comum unitário: o monoteísmo, um monoteísmo que tolera as diferenças religiosas e rejeita a coerção. Pondo fim à Grande Perseguição lançada em 303 por Diocleciano, que fracassou em sua tentativa de erradicar o Cristianismo, Constantino tem em vista, portanto, conquistar os cristãos, incorporá-los ao Império e à sua política tradicional.

O caso é que, bem cedo, ele vai favorecer de forma manifesta a Igreja: doações de dinheiro, de terrenos, de palácios, financiamento de basílicas em Roma e em Jerusalém. Com isso, os bispos requerem que ele se envolva em seus assuntos internos e se, num primeiro, procura resolver os conflitos entre eles de maneira consensual, as resistências encontradas logo o levam a tomar medidas severas contra os dissidentes: donatistas e, mais tarde, arianos. Em compensação, em relação à religião tradicional, conserva uma atitude de tolerância (conquanto um pouco desdenhosa), contentando-se em proibir algumas práticas já recusadas por um paganismo esclarecido (os sacrifícios sangrentos, a magia, a adivinhação privada). Se não pôde conter os bispos e suas ásperas desavenças teológicas, soube, porém, durante seu reinado, neutralizar um cristianismo militante antipagão.

Os sucessores cristãos de Constantino (em particular Constâncio II, Valêncio e Teodósio) continuam a intervir nos assuntos da Igreja. Para tanto, podem se apoiar na teologia política elaborada por Eusébio de Cesareia em seus derradeiros escritos, em particular no Discurso para os trinta anos de reinado e na Vida de Constantino: se autor apresenta, neles, o modelo de um basileus cristão, posto à frente de um Império também cristão. Isso implica que ele "submeta os inimigos da verdade", proclame "as leis da verdadeira piedade" para todos, cuide de assegura  a salvação de todos. Investidos dessa missão de proteção, se não de vigilância, os imperadores cristãos, ao longo de toda a crise ariana, sustentam ou impõem fórmulas de fé diversas, concedendo seus favores aos que as aceitam, mas perseguindo os que as rejeitam (os dissidentes, sobretudo bispos, são depostos e banidos - é o caso de Atanásio de Alexandria e de Hilário de Poitiers). Ao cabo de cinquenta anos de controvérsias, a ascensão ao poder de Teodósio I (379-395) assinala o retorno definitivo à "ortodoxia". Definida no Concílio de Niceia de 325 e reafirmada no Concílio de Constantinopla de 381, recebe o apoio do imperador, que faz dela uma lei válida para todos. Uma série de leis, cada vez mais repressivas, restringem a liberdade de expressão e de culto de todos os dissidentes da ortodoxia, tidos como heréticos e perseguidos como tais.

Mas, entre os deveres do imperador, Eusébio incluía também o de combater o "erro ateu", o paganismo. Por isso, paralelamente às medidas de repressão das dissidências cristãs, os sucessores de Constantino tomam outras que vão restringir, depois proibir, a liberdade do culto pagão. Os filhos de Constantino são os primeiros a atacá-lo. Uma lei de Constante, de 341, declara: "Cesse a superstição, seja abolida a loucura dos sacrifícios." Ainda não se trata, porém, ao que parece, de uma proibição absoluta de todos os cultos pagãos já autorizados, mas de uma simples renovação das restrições impostas por Constantino. De fato, uma lei sua proíbe que se destruam templos, tolerados, "embora toda superstição deva ser totalmente destruída". Constâncio II vai mais longe, por motivos entre os quais parece ter estado a política: no período que vai de 353 a 357, depois da derrota do usurpador Magnêncio, que havia autorizado novamente os sacrifícios noturnos, várias leis ordenam o fechamento dos templos e tentam proibir totalmente o culto pagão: quem ousar sacrificar é ameaçado de ser "golpeado por um gládio vingador" e de confisco dos bens; a adoração de estátuas é proibida sob pena de morte. No entanto, essas medidas só foram parcialmente aplicadas. A política religiosa dos dois irmãos não resulta portanto na repressão sistemática do paganismo, mas somente num acentuado desfavorecimento.

O imperador Juliano, que nascera cristão mas voltara à religião tradicional, abole aquelas medidas e tenta reavivar esta; todavia, seu curto reinado (361-363) não lhe permite levar a cabo essa empreitada. Sua lei escolar, logo abolida por seu sucessor Joviano, havia tentado proibir que os professores cristãos difundissem a herança da cultura clássica, tida como um bem do paganismo. A política dos sucessores de Valenciniano e Valêncio é, no entanto, relativamente tolerante com este. Uma das suas principais leis, renovada em 370, declara manter a liberdade de culto. Mas, no final do seu reinado, Valêncio proíbe de novo os sacrifícios sangrentos.

A política religiosa de Graciano e Teodósio I - depois, com a morte do seu associado, deste último somente - adotará medidas muito mais decisivas, que acabarão pondo o paganismo fora da lei. Quando da sua ascensão ao poder, Teodósio rejeita o título e o manto de Pontifex maximus, e logo em seguida Graciano renuncia a ele. Os cristãos que voltam ao paganismo são objeto de vários editos, perdendo desde 381 o direito de fazer testamentos. Essa lei é renovada em 383: aplicando-se estritamente aos cristãos batizados que abandonam sua fé, considerados "excluídos do direito romano", ela deixa aos que foram apenas catecúmenos o direito de testar em benefício da família. Será endurecida por Teodósio em 391, a pretexto de que o abandono da comunhão cristã equivale a "apartar-se do resto dos homens". Por outro lado, velhas interdições visando as práticas religiosas tradicionais são renovadas: em 381 e 382, os sacrifícios sangrentos são proscritos, sob pena de deportação; em 385, as práticas de adivinhação, sob pena de morte. Os dois imperadores também vão investir contra as próprias instituições do culto pagão. No outono de 382, Graciano manda tirar do Senado a estátua e o altar da Vitória, depois suprime as imunidades das Vestais e dos sacerdotes pagãos, confisca seus rendimentos e subvenções; Teodósio ordena o fechamento dos templos: só podem permanecer abertos, com fins unicamente culturais ou para a realização de assembleias públicas, os que contêm obras de arte. Vários templos, em 384, são fechados ou demolidos.

Mas é uma série de leis emitidas de 391 a 394 que culmina essa investida, vedando qualquer manifestação do culto pagão: a lei de 24 de fevereiro de 391, proíbe-a para Roma; a de 16 de junho, para o Egito; a de 8 de novembro de 392, para todo o Império. Todos os sacrifícios, inclusive os modestos sacrifícios do culto doméstico, são desautorizados, seja em público, seja em particular, seja qual for o nível social, sob pena de multas pesadíssimas e até de punições mais graves. Essa lei é que faz do cristianismo a religião do Império, já que a religião tradicional perdeu todo direito legal de se exprimir: com Teodósio (e não com Constantino, como às vezes se diz), o Império Romano tornou-se oficialmente cristão.

FONTE:

MARAVAL, Pierre. Quando o Império Romano se torna cristão. In: CORBIN, Alain - (org.). História do Cristianismo. São Paulo, Martins Fontes, 2012.


CRÉDITO DA IMAGEM:

cleofas.com.br

terça-feira, 5 de abril de 2016

Animais e Seres Fantásticos da Idade Média

Por Viviane Huchard (1946-2005), historiadora francesa


Desde a narrativa do Gênesis, homem e animal caminham juntos em aventuras pela Terra. Na Antiguidade, o tempo era ritmado pelo zodíaco, e os animais eram alegorias de poderes superiores. No século II, foi publicada a primeira coletânea consagrada à descrição de bichos: o Physiologus. A obra se tornou a principal fonte do bestiário medieval.

Com a grande enciclopédia Etymologiae, de Isidoro de Sevilha, no século VII, o bestiário tomou forma "moral" e passou a servir como suporte de ensino doutrinal ou religioso. A partir do século XII, as obras em prosa de Pierre de Beauvais e o trabalho em verso de Guillaume le Clerc aumentaram a facilidade de assimilação dos simbolismos dos bestiário. Essa tendência continuou com a interpretação de Richard de Fournival, autor de Bestiários de amores, no qual os animais são usados para descrever comportamentos amorosos.

As principais coletâneas foram conservadas em bibliotecas de mosteiros e constituem repertório para escritores, ilustradores, escultores e pintores. A imaginação do homem, contudo, não se contentou com os bichos reais. Inventou "novas naturezas" para explicar o que não entendia. Assim surgiram os monstros semi-humanos, como a harpia e a mantícora, e bestas fabulosas, como o unicórnio.

Misturadas às figuras da Bíblia e aos heróis da Antiguidade, as representações de animais são exibidas nas fachadas das igrejas romanas e góticas, enfeitando seus portais ou capitéis. São Bernardo de Claraval cansou de clamar contra essas "figuras monstruosamente belas" das galerias do claustro de Saint-Denis, que só faziam distrair o monge de sua oração essencial.

O Combate de Alexandre

Alexandre da Macedônia inspirou uma epopeia fabulosa, traduzida e repetida em toda a Europa medieval. A ilustração figura na História do Grande Alexandre, um manuscrito francês do século XV (Museu Petit Palais, em Paris) que narra as aventuras do herói antigo (356 a.C. - 323 a.C.) em países exóticos, nos quais enfrenta animais fantásticos, como unicórnios e dragões. Imagem do cavaleiro valoroso, de espada e armadura, Alexandre enfrenta o lendário animal, cercado de seus fiéis escudeiros e de seu exército. A iluminura coloca o episódio como um combate da Guerra dos Cem Anos.



A Caça ao Unicórnio

O unicórnio não teme homem nenhum, e só é possível capturá-lo por meio de artifícios traiçoeiros. O caçador, depois de ficar longo tempo à sua espreita, escolheu uma jovem para seduzi-lo e pôde então capturá-lo. Na verdade, o desconfiado unicórnio só sossega sob os encantos de uma virgem. Despreocupado com sua segurança, adormece em paz sobre seus joelhos. As teologias vêem aí a prefiguração do Cristo, encarnando-se no seio da Virgem Maria. No coração de um jardim fechado, imagem do paraíso. A virgem radiante e aureolada está cercada de uma corte de santos e anjos.




O Basilisco

"Trata-se de uma besta com cabeça, pescoço e peito de galo, e corpo de serpente", diz o bestiário de Brunetto Latini. O basilisco ocupa um papel de rei dos répteis, podendo provocar a morte com apenas um sopro.








São Jorge e Lancelote

O dragão representa Satã, caçador infernal, que persegue os pecadores e os arrasta para o inferno. Segundo a lenda, Jorge, um capadócio nobre e rico, abateu os ídolos e destruiu o monstro que desolava a Líbia. No Ocidente, ele se tornou o patrono da cavalaria e das armas. É claro que o modelo dos cavaleiros, o valente Lancelote do Lago, personagem das lendas do rei Arthur, também não poderia deixar de enfrentar um dragão.












A Viagem de Alexandre

Entre as aventuras romanescas que a literatura medieval empresta ao conquistador antigo, tem lugar uma viagem ao paraíso terrestre, em que ele enfrenta animais fabulosos. Em um Oriente misterioso, javalis dividem espaço com unicórnios e dragões, hipopótamos carnívoros, morcegos gigantes e até serpentes com rosto de mulher. Em seu fogoso cavalo Bucéfalo, o herói grego segue um percurso vitorioso que o conduz de Tiro a Jerusalém, depois à Pérsia de Dario e até às Índias.

A Áspide

É um pequeno dragão, coroado por um carbúnculo, cuja mordida é fatal. Simboliza a prudência: quando teme estar sendo vítima de sortilégios de encantadores, ele aperta uma das orelhas contra o solo e tampa a outra com a cauda.






O Dragão

Síntese das invenções do homem medieval, ele reúne os poderes da serpente e do leão. É um dos maiores monstros do universo fabuloso, com uma cauda particularmente temível.











O Grifo

Corpo de leão com cabeça e asas de águia, o grifo pertence ao bestiário egípcio e persa, e também ao mundo medieval. O grifo toma formas múltiplas e instáveis, próprias para aterrorizar os homens. Ora leão, ora águia, ele alia as qualidades do rei dos animais às da rainha dos ares. Vivendo em um deserto rico em ouro, o grifo usa esse metal para construir seu ninho, escapando assim de todas as tentativas de captura. Essa lenda poderia ter suas origens nas minas de ouro encontradas na Rússia, principalmente nos Urais.



O voo de Alexandre

Os grifos têm a força de oito leões e de cem águias reunidos. Eles servem para puxar a nacela de Alexandre quando ele sobe em direção ao Sol, atraídos pelos pedaços de carne que o herói lhes oferece, na ponta de um bastão. Na mitologia grega, os grifos guardam os tesouros de Apolo na região lendária dos hiperbóreos, na Cítia.













A Mantícora antropófaga

Monstro de rosto quase humano, corpo de leão de pele vermelha e cauda de escorpião, a mantícora alimenta-se de carne humana. É um animal de uma crueldade assustadora, cujo nome vem de uma palavra persa que significa "comedor de homens". [...] O monstro assume o semblante de Satã, caçador de almas humanas.









FONTE:

HUCHARD, Viviane. O Fabuloso bestiário medieval. In: História Viva, n° 63, São Paulo, Duetto, 2009.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

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sexta-feira, 1 de abril de 2016

Voltaire - Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

François-Marie Arouet.

François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire (1694-1778), foi um dos mais importantes sábios de sua época, atuando nas áreas da Filosofia, epistolografia (escrita de cartas), dramaturgia, história e escrita de ensaios. O seu lado historiador é pouco conhecido por causa de uma cultura escolar que evidencia apenas o seu conhecimento filosófico, esquecendo como esse autor iluminista foi um dos historiadores mais talentosos do século XVIII.

O interessante em Voltaire é que este, diferente de seu contemporâneo Gibbon, teve uma produção histórica diversificada, indo desde o tema de grandes personagens (História de Carlos XII da Suécia, História de Pedro, o Grande da Rússia e O século de Luís XIV); passando pela escrita de cartas; e a construção de uma História Universal. Essa diversidade exige um exame delicado dessas obras, para que, através de uma síntese, seja feita a análise de seu pensamento historiográfico.

Tema de grandes personagens: Escrever sobre monarcas é um dos gêneros mais antigos entre os historiadores. Cortesãos criavam uma aura quase mística sobre essas personagens, pendendo mais para o lado fabuloso e bajulatório, registrando fatos da vida particular (na maioria das vezes, sem utilidade alguma). Voltaire inova esse gênero ao registrar fatos grandiosos, que trouxeram efeitos para seus respectivos reinos, e exemplos para se seguir ou não. Carlos XII, que, depois de uma insaciável sede de conquista foi derrotado, serve de exemplo para a “cura” da ambição. Pedro, o Grande da Rússia, é o civilizador de seu reino, introdutor das artes, das ciências, das leis e bons costumes no seu país que ainda tinha características bárbaras. Em O Grande Século de Luís XIV Voltaire apresenta o reinado desse monarca francês como um dos quatro grandes séculos da humanidade (Felipe e Alexandre, na Grécia; Augusto, em Roma; o Renascimento, na Itália; e, por último, a França de Luís XIV). O patrocínio das artes, a construção de academias, instituições científicas, manufaturas e outras tecnologias, são marcas civilizatórias. É no grande século que temos a concepção de filosofia da História e tempo de Voltaire: Particular e original, o autor acredita que a humanidade tende a avançar e se aperfeiçoar culturalmente, mas também afirma que recaídas na barbárie podem ocorrer.

A História, para nosso autor, é um conjunto dos desenvolvimentos produzidos pelo homem nas artes, ciências e técnicas; de transformações espirituais e morais. É uma concepção cultural da história humana. Diferente da ideia de Gibbon, que afirmava que a natureza humana era imutável, Voltaire acreditava que esta poderia mudar através de uma série de fatores (costumes, leis, religião etc). Assim como a época de Luís XIV teve seu apogeu, ela termina em declínio, com a perseguição aos protestantes e a repressão aos jansenistas.

As Cartas Filosóficas: As Cartas Filosóficas ou Cartas sobre os Ingleses, produzidas quando o autor estava exilado na Inglaterra, trazem três elementos fundamentais na vida e na abordagem histórica de Voltaire: tolerância, liberdade e diversidade. Na Inglaterra conviviam em paz diferentes religiões, diferente da França, onde reinavam as perseguições religiosas. A tolerância abria espaço para a superioridade da cultura inglesa em relação à francesa. A maior parte das cartas é dedicada às religiões dos ingleses, e as outras abordam o comércio, as artes, o governo, a ciência e a Filosofia. A liberdade que os ingleses têm aos escolher sua crença, a monarquia constitucional, que limita os poderes do monarca e a ilustração desse dirigente garantem a superioridade desse país.

As comparações entre as instituições romanas e inglesas fazem Voltaire afirmar que a tendência da humanidade é o progresso, e que esta não deve tomar a Antiguidade como referencial.

O Ensaio sobre os Costumes: É nessa obra, produzida em um trabalho de mais de 30 anos, que Voltaire apresenta uma história genuinamente universal. Sua História começa pela China, passa pelo Extremo Oriente, Ásia, África e a América. Ele começa pelas civilizações orientais afirmando que os historiadores cristãos ou não conseguiam dar conta delas ou, quando o faziam, cometiam erros grosseiros. Na abordagem das nações, Voltaire, por meio da reflexão filosófica, distingue o que é verossímil do que é lenda ou fábula. As fontes materiais devem ser analisadas sob a filosofia. Os relatos de viagem que chegavam do novo mundo eram um prato cheio para os intelectuais, que logo tratavam de comparar sua sociedade com essas que eram descobertas. O Ensaio também a marcado pelas comparações, críticas e diferenças entre culturas, mas sempre lembrando que Voltaire não era um relativista cultural.

Por exemplo, ao elogiar a evolução dos chineses na Antiguidade, o desenvolvimento de suas artes e tecnologias, Voltaire logo se lembra que, por mais que tenha sido grandiosos no passado, esse povo se encontrava, agora, parado no tempo. Por mais que se elogiassem outras sociedades, as grandes eras de Voltaire eram todas europeias (Grega, Romana, Italiana e Francesa). As críticas se dirigiam em peso às superstições, fé cega e religiões dominantes (tanto do lado europeu quanto do asiático), que, assim como eram para Gibbon, em Voltaire são exemplos da barbárie.

Filosofia da História: A Filosofia da História, em Voltaire, tem dois sentidos: o primeiro, é uma forma de conceber o processo histórico; o outro, um modo de reconstituir esse processo para os leitores do presente. A Filosofia age como instrumento de reflexão sobre a História e também como um conjunto de normas para a reconstituição do material historiográfico. A Filosofia da História é um ensaio sobre o mundo Antigo e sobre o que se produziu sobre ele. Voltaire ataca as concepções religiosas que fizeram da história das nações (muitas obras analisavam, dentro da matriz cristã, o povo hebreu e seu Deus como o centro dos acontecimentos), e também os mitos, lendas e fábulas dos outros povos, geralmente tomados como reais.

Feito este breve panorama sobre sua produção historiográfica, pode-se agora elencar seus principais elementos:

Voltaire, escritor do século XVIII, é um defensor do direito, da liberdade de pensamento, da pluralidade e da tolerância; crítico ferrenho do fanatismo e superstição, presentes por ele nos dogmatismos de uma autoridade maior (Igreja Católica) e em crenças sem fundamento. Somente a reflexão filosófica pode superar as superstições e dogmatismos. Voltaire era deísta, acreditava na existência de um Deus, pois este daria um sentido a realidade. O que esse autor quer, como ele mesmo afirma, é uma religião simples e uma fé racional. Era um crítico do otimismo, de que o homem sempre caminha em direção ao melhor, e acreditava que períodos de barbárie poderiam voltar. Tomar a Antiguidade como exemplo não é aceitável, pois está impregnado de mitos, lendas e histórias fabulosas que atrapalham o processo histórico. O poder político não é algo ruim, desde que esse se oriente pela razão, evitando dogmatismos. A Historiografia de Voltaire é crítica, secularizada, cultural e filosófica.


FONTES:

SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração e história: o pensamento sobre a história no Iluminismo francês. São Paulo, Discurso Editorial, 2001.

LOPES, Marcos Antônio. Ideias de História: tradição e inovação de Maquiavel a Herder. Londrina, EDUEL, 2007.



Este texto contou com a contribuição do acadêmico do curso de História na UFAM Wilton Abrahim Gomes Garcez.


CRÉDITO DA IMAGEM:

cultura.culturamix.com

quarta-feira, 30 de março de 2016

Giambattista Vico - Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Giambattista Vico. Quadro de Francesco Solimena.

Giambattista Vico (1668-1744) foi um filósofo, jurista, político, retórico e historiador italiano, considerado um dos principais nomes do Iluminismo, vindo, no entanto, a ser reconhecido como tal apenas no século XIX, quando suas ideias e obras passaram a influenciar pensadores como Hegel e Marx.

Vico nasceu no século XVII, período em que as ciências matemáticas estavam em alta e dominavam o pensamento de intelectuais das Ciências Naturais. Desde a segunda metade do século XVII, a Filosofia criada por René Descartes foi o principal referencial no estudo dessas ciências. Mas no que consistia o pensamento de Descartes? Para René Descartes a única verdade firme, certa e segura era que seus pensamentos existiam (penso, logo existo) e esta verdade deveria ser aplicada como princípio básico de toda a sua filosofia. Este penso abrange tudo o que afirmamos, negamos, sentimos, imaginamos, cremos e sonhamos. Eram ignoradas as percepções sensoriais, que poderiam nos levar ao erro. O conhecimento verdadeiro só poderia ser alcançado através do trabalho lógico da mente, trabalho esse que para Descartes teria sido alcançado pelos matemáticos.

Indo na contramão do domínio matemático, Vico se debruçou no estudo de Direito Romano, Filologia e História, conhecimentos sempre postos à dúvida pelos métodos matemáticos, que os colocava em segundo plano. Sua maior obra, a Ciência Nova, não fez muito sucesso em sua época, sendo preciso mais 100 anos para que isso ocorresse. Dela, tiramos as principais concepções de Vico sobre a História:

Ao escrever Ciência Nova, Vico pretendia criar uma forma de estudar as Ciências Humanas, principalmente a História, forma essa diferente da aplicada às Ciências Naturais. A História, para Vico, era um conjunto de fatos que segue determinadas leis e se desenvolve segundo alguns princípios.

Vico põe Filosofia e Filologia como duas disciplinas da História. Da primeira, aproveita-se a reflexão, as ideias e a sabedoria humana. Da segunda, tiramos o conhecimento da língua e das tradições dos povos. A união entre essas duas disciplinas (uma reflexiva e outra empírica) é um dos pontos-chave de sua obra. Em síntese, a Filosofia oferece o arcabouço teórico, e a Filologia o concreto, tangível, fragmentos das produções humanas. Vico, em oposição a Descartes, afirma que para verdadeiramente se conhecer algo é necessário que seu conhecedor a tenha criado. As instituições, construções, leis e demais técnicas foram criadas pelo homem, e logo a História é objeto do conhecimento humano.

Os períodos históricos ou eras são outro ponto do pensamento de Vico. Existem três eras históricas: a Era dos Deuses; a Era dos Heróis; e a Era dos Homens. A Era dos Deuses corresponde ao tempo imemorável, quando os homens, diante da grandeza da natureza, a endeusavam. A segunda era, a dos Heróis, ainda mantém os traços de aspectos sobrenaturais, mas já abre espaço para o surgimento de instituições políticas e a formação de classes sociais. A terceira e última, a dos Homens, levou bastante tempo para se firmar, e se caracteriza por lutas internas, pela construção de Impérios grandiosos como o romano e do surgimento da Filosofia.

Vico afirma que o homem não caminha necessariamente para o progresso do pensamento racional, e que o retorno ao pensamento da era dos deuses é uma possibilidade. Um exemplo que ele nos dá é a decadência cultural durante a Idade Média. Essa é a teoria dos avanços e dos retornos, também presente em Voltaire. O movimento cíclico não é circular e de fases fixas, é, na verdade, espiral, pois as fases históricas nunca se repetem como foram no passado. Ele afirma que as barbáries da Idade Média foram diferentes das barbáries dos tempos homéricos.

A providência existe em Vico, e este afirma que a História tem uma parte construída pelo homem, e outra por Deus. Deus seria o arquiteto da História, enquanto o homem seria o construtor dessa obra (um projeta, o outro constrói). Essa providência é mais racional que as elaboradas em séculos anteriores, pois as religiões, leis, instituições, construções etc, são criações essencialmente humanas, podendo ser explicadas de forma natural. A Providência surge apenas para dar um sentido à caminhada do homem em sua história.

A produção histórica de Vico se destaca pelos seguintes pontos: Foi o primeiro historiador da Idade Moderna a tentar garantir a cientificidade da História e de outras disciplinas humanas; não se submete aos métodos matemáticos e cartesianos; une a reflexão filosófica, oferecendo um arcabouço teórico, com o empirismo característico da Filologia, que estuda os fragmentos e linguagens deixados pelo homem; e leva em conta, de forma universal, o fato de que o homem, de acordo com o seu grau de desenvolvimento histórico, tem sua forma de ser, pensar e agir.


FONTES:

HADDOCK. B. A. Uma introdução ao pensamento Histórico. Tradução de Maria Branco. Lisboa, Gradiva, 1989.

MARANGON, Rosa Maria. A evolução da História do Homem segundo Giambattista Vico. Juiz de Fora, UFJF, 2007.



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