Os
homens letrados do século XVIII tinham um enorme talento na arte da
escrita, talento esse por nós conhecido através das obras de
Montesquieu, Voltaire, Rosseau e Diderot. O inglês Edward Gibbon
(1737-1794) faz parte desse hall de iluministas, posição alcançada
pela produção da monumental História
do Declínio e Queda do Império Romano.
Poucas
são as obras que fazem sucesso imediato ao ser publicadas. Em 1776 o
primeiro volume de Declínio
e Queda
foi
recebido de forma ambígua, entre a crítica dos conservadores e o
entusiasmo dos mais liberais, mas
tornou-se um sucesso de vendas.
O advogado e biógrafo escocês James Boswell (1740-1795) acusou
Gibbon de ser um “fantoche incrédulo”. O motivo? Gibbon inovou a
História moderna ao analisar o declínio do Império Romano do
Ocidente sob o ponto de vista da ascensão do Cristianismo. O
historiador inglês não era ateu (foi calvinista, converteu-se ao
catolicismo e reconverteu-se ao calvinismo), mas, assim como outros
escritores do período das Luzes, era crítico da superstição, da
intolerância que gerava o fanatismo e cerceava a liberdade, condição
altamente necessária aos burgueses liberais do setecentos.
Foi
em Roma, em 1764, durante uma viagem, que surgiu a ideia de
investigar as causas do declínio e queda do Império Romano: “[…]
enquanto eu estava sentado a cismar entre as ruínas do Capitólio e
os monges descalços cantavam as vésperas no Templo de Júpiter; que
a ideia de relatar o declínio e a queda da cidade pela primeira vez
me veio à mente” (p.
19).
Da cidade, ampliou a
investigação para
o Império. A
junção de diferentes
elementos
históricos vistos (monges, ruínas romanas e
a cidade moderna) foi o norte de Edward Gibbon.
Durante
a
juventude ele
teve contato com as obras de Heródoto, Tucídides, Xenofonte,
Horácio,
Virgílio, Terêncio, Ovídio e outros gregos e latinos; assim como
leu obras de autores contemporâneos, no caso Considerações
sobre as causas da grandeza e decadência dos romanos,
de Montesquieu; e
outros do final do século XVII, como Grotius, Pascal, Putendorf,
Locke e Bayle. Foram
12 longos anos de leituras de fontes primárias, de grande erudição,
até que a obra fosse concluída entre
1788-89, totalizando
seis densos
volumes.
Nós,
leitores brasileiros, temos acesso às edições abreviadas, que
giram em torno de 504-607 páginas (só o primeiro volume do original
possui 628 páginas). A que tenho em mãos é a mais recente, de
2005, em
formato de bolso, organizada
em 1952 pelo jornalista e erudito norte-americano Dero A. Saunders e
traduzida pelo poeta, crítico literário e ensaísta brasileiro José
Paulo Paes, que
também traduziu a mais antiga, de 1989. O
compêndio de Saunders nos permite, mesmo que o texto não seja
integral, ter uma noção da grandiosidade da obra do historiador
inglês. Gibbon analisa mais
de mil anos de história, indo do século II d.C. até o século XV. Sua pena é como um manto que cobre todos os acontecimentos desse período.
O
gênio do autor não reside apenas em sua erudição, no manuseio de
inúmeras fontes, mas em seu estilo literário. Ele penetra no íntimo
das instituições, dos cultos, das administrações imperiais, do
caráter dos imperadores, das
guerras e dos conflitos internos. A impressão que passa é a de ter
sido testemunha ocular da desestruturação do Império, de
ter entrado pessoalmente nas catacumbas cristãs primitivas, de
ter visto de perto as
invasões de godos, francos, vândalos, saxões, hunos e outros povos
bárbaros. A
economia não é o seu ponto forte, sendo todas as atenções
voltadas para aspectos políticos, sociais e culturais. Toda
essa vivacidade e acuidade são
acompanhadas por
críticas, polêmicas e ironias que transitam entre o irreverente e a
acidez. Na
introdução de sua obra, sobre a extensão
e o poderio militar do Império na época dos Antoninos,
Gibbon pinta o seguinte quadro do Império Romano no século II d.C.:
No
segundo século da Era Cristã, o império de Roma abrangia a mais
bela parte da terra e o segmento mais civilizado da humanidade. As
fronteiras daquela vasta monarquia eram guardadas por antigo renome e
disciplinada bravura. A influência branda mas eficaz das leis e dos
costumes havia gradualmente cimentado a união das províncias. Seus
pacíficos habitantes desfrutavam até o
ponto
de abuso os privilégios da opulência e do luxo (p.
31).
Gibbon,
em um tom moralizante, que pode ser visto em outras passagens
de sua obra, critica a opulência e luxo desmedidos, elementos
que em excesso podem ser nocivos ao homem. Superstições, milagres e
outros eventos explicados de forma sobrenatural são
criticados, buscando-se explicações naturais, físicas e racionais.
Em nível de exemplo, quando o autor aborda o Imperador Constantino,
a primeira coisa que faz é desmistificar as visões divinas sobre
sua conversão ao Cristianismo, apontando os motivos políticos, e
não religiosos, desse
fato. Fé
cega e espírito crítico, natureza humana e religião, são para ele
termos opostos.
Uma
religião que até então vivia na clandestinidade, na
periferia do
Estado Romano, sendo por diversas vezes perseguida, foi aos poucos
penetrando em
suas estruturas, se expandindo até as mais distantes províncias,
sendo apropriada por imperadores, nobres e servos. Em poucos séculos,
de religião periférica e perseguida passou a religião oficial e
perseguidora de seus opositores. O Cristianismo triunfou, o antigo
mundo romano tornou-se cristão. Para Gibbon, essa vitória
desestabilizou a antiga hegemonia ideológica imperial, que tinha
seus alicerces, no
Paganismo, na imagem e semelhança da figura do imperador à figura
da divindade, contribuindo para a sua crise. O Cristianismo, pelo
menos em tese, permitiria que todos ficassem em pé de igualdade.
Além
de História, Declínio
e Queda
está impregnado de filosofia, de reflexões, e
possui uma ponte entre o passado e o tempo em que o autor escrevia.
Como foi dito no início, Gibbon era calvinista, converteu-se ao
catolicismo e, posteriormente, retornou ao calvinismo. Ao abordar o
Imperador Flávio Cláudio Juliano, mais conhecido como Juliano, o
Apóstata, único
imperador romano que abandonou o Cristianismo e retornou ao
Paganismo, Gibbon parece exprimir nele suas experiências pessoais: a
insubmissão, o gosto pela liberdade, a denúncia da hipocrisia
religiosa e o interesse por disputas religiosas. O
período em que o livro é gestado é marcado por conflitos entre
católicos e protestantes, pela transformação política, econômica,
social e cultural das nações europeias, que
despontavam como potências mundiais, e
por revoluções. O
pensamento humano estava mudando. Roma
atingiu o ápice do crescimento civilizatório, mas, conquista após
conquista, ficou imobilizada em seus próprios domínios, ruindo por
fatores internos e externos. O
mesmo poderia acontecer com a Inglaterra, a França e a Espanha. Não
por acaso, mais
de um século e meio depois a
obra foi lida por vários políticos durante a Segunda Guerra
Mundial, quando o Ocidente e outras áreas do globo novamente
entraram em um colapso político-social.
O
que é
o
Império Romano para o historiador inglês? Me pergunto toda vez que
o leio, mas
sei que não é
uma simples unidade política.
Sua célebre frase ‘a
história, esse quadro terrível dos crimes, das perversidades e das
desgraças do gênero humano’
pode nos dar uma pista. O Império Romano surgiu por mãos humanas e
ruiu por mãos humanas, é produto
da força inventiva e destruidora do homem. Essa
é
a
natureza humana. Segundo
ele não devemos nos perguntar porque o Império caiu, mas sim porque
durou tanto tempo. História
do Declínio e Queda do Império Romano é
um monumento da literatura e historiografia modernas, inovador em sua
época pelo exame crítico das fontes primárias, pela leitura do
Cristianismo como elemento influenciador da queda do Império Romano
do Ocidente, pela contextualização e visão abrangente dos eventos
históricos. Em
um futuro não muito distante o livro de Edward
Gibbon
voltará ao topo das vendas, preenchendo
estantes em todo o mundo,
alavancado por nossa crescente necessidade de compreender o atual
cenário político e seus possíveis desdobramentos. Sua leitura não é uma dica, mas uma agradável obrigação.
Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa.
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