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quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Resenha: História do Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon


Os homens letrados do século XVIII tinham um enorme talento na arte da escrita, talento esse por nós conhecido através das obras de Montesquieu, Voltaire, Rosseau e Diderot. O inglês Edward Gibbon (1737-1794) faz parte desse hall de iluministas, posição alcançada pela produção da monumental História do Declínio e Queda do Império Romano.

Poucas são as obras que fazem sucesso imediato ao ser publicadas. Em 1776 o primeiro volume de Declínio e Queda foi recebido de forma ambígua, entre a crítica dos conservadores e o entusiasmo dos mais liberais, mas tornou-se um sucesso de vendas. O advogado e biógrafo escocês James Boswell (1740-1795) acusou Gibbon de ser um “fantoche incrédulo”. O motivo? Gibbon inovou a História moderna ao analisar o declínio do Império Romano do Ocidente sob o ponto de vista da ascensão do Cristianismo. O historiador inglês não era ateu (foi calvinista, converteu-se ao catolicismo e reconverteu-se ao calvinismo), mas, assim como outros escritores do período das Luzes, era crítico da superstição, da intolerância que gerava o fanatismo e cerceava a liberdade, condição altamente necessária aos burgueses liberais do setecentos.

Foi em Roma, em 1764, durante uma viagem, que surgiu a ideia de investigar as causas do declínio e queda do Império Romano: “[…] enquanto eu estava sentado a cismar entre as ruínas do Capitólio e os monges descalços cantavam as vésperas no Templo de Júpiter; que a ideia de relatar o declínio e a queda da cidade pela primeira vez me veio à mente” (p. 19). Da cidade, ampliou a investigação para o Império. A junção de diferentes elementos históricos vistos (monges, ruínas romanas e a cidade moderna) foi o norte de Edward Gibbon.

Durante a juventude ele teve contato com as obras de Heródoto, Tucídides, Xenofonte, Horácio, Virgílio, Terêncio, Ovídio e outros gregos e latinos; assim como leu obras de autores contemporâneos, no caso Considerações sobre as causas da grandeza e decadência dos romanos, de Montesquieu; e outros do final do século XVII, como Grotius, Pascal, Putendorf, Locke e Bayle. Foram 12 longos anos de leituras de fontes primárias, de grande erudição, até que a obra fosse concluída entre 1788-89, totalizando seis densos volumes.

Nós, leitores brasileiros, temos acesso às edições abreviadas, que giram em torno de 504-607 páginas (só o primeiro volume do original possui 628 páginas). A que tenho em mãos é a mais recente, de 2005, em formato de bolso, organizada em 1952 pelo jornalista e erudito norte-americano Dero A. Saunders e traduzida pelo poeta, crítico literário e ensaísta brasileiro José Paulo Paes, que também traduziu a mais antiga, de 1989. O compêndio de Saunders nos permite, mesmo que o texto não seja integral, ter uma noção da grandiosidade da obra do historiador inglês. Gibbon analisa mais de mil anos de história, indo do século II d.C. até o século XV. Sua pena é como um manto que cobre todos os acontecimentos desse período.

O gênio do autor não reside apenas em sua erudição, no manuseio de inúmeras fontes, mas em seu estilo literário. Ele penetra no íntimo das instituições, dos cultos, das administrações imperiais, do caráter dos imperadores, das guerras e dos conflitos internos. A impressão que passa é a de ter sido testemunha ocular da desestruturação do Império, de ter entrado pessoalmente nas catacumbas cristãs primitivas, de ter visto de perto as invasões de godos, francos, vândalos, saxões, hunos e outros povos bárbaros. A economia não é o seu ponto forte, sendo todas as atenções voltadas para aspectos políticos, sociais e culturais. Toda essa vivacidade e acuidade são acompanhadas por críticas, polêmicas e ironias que transitam entre o irreverente e a acidez. Na introdução de sua obra, sobre a extensão e o poderio militar do Império na época dos Antoninos, Gibbon pinta o seguinte quadro do Império Romano no século II d.C.:

No segundo século da Era Cristã, o império de Roma abrangia a mais bela parte da terra e o segmento mais civilizado da humanidade. As fronteiras daquela vasta monarquia eram guardadas por antigo renome e disciplinada bravura. A influência branda mas eficaz das leis e dos costumes havia gradualmente cimentado a união das províncias. Seus pacíficos habitantes desfrutavam até o ponto de abuso os privilégios da opulência e do luxo (p. 31).

Gibbon, em um tom moralizante, que pode ser visto em outras passagens de sua obra, critica a opulência e luxo desmedidos, elementos que em excesso podem ser nocivos ao homem. Superstições, milagres e outros eventos explicados de forma sobrenatural são criticados, buscando-se explicações naturais, físicas e racionais. Em nível de exemplo, quando o autor aborda o Imperador Constantino, a primeira coisa que faz é desmistificar as visões divinas sobre sua conversão ao Cristianismo, apontando os motivos políticos, e não religiosos, desse fato. Fé cega e espírito crítico, natureza humana e religião, são para ele termos opostos.

Uma religião que até então vivia na clandestinidade, na periferia do Estado Romano, sendo por diversas vezes perseguida, foi aos poucos penetrando em suas estruturas, se expandindo até as mais distantes províncias, sendo apropriada por imperadores, nobres e servos. Em poucos séculos, de religião periférica e perseguida passou a religião oficial e perseguidora de seus opositores. O Cristianismo triunfou, o antigo mundo romano tornou-se cristão. Para Gibbon, essa vitória desestabilizou a antiga hegemonia ideológica imperial, que tinha seus alicerces, no Paganismo, na imagem e semelhança da figura do imperador à figura da divindade, contribuindo para a sua crise. O Cristianismo, pelo menos em tese, permitiria que todos ficassem em pé de igualdade.

Além de História, Declínio e Queda está impregnado de filosofia, de reflexões, e possui uma ponte entre o passado e o tempo em que o autor escrevia. Como foi dito no início, Gibbon era calvinista, converteu-se ao catolicismo e, posteriormente, retornou ao calvinismo. Ao abordar o Imperador Flávio Cláudio Juliano, mais conhecido como Juliano, o Apóstata, único imperador romano que abandonou o Cristianismo e retornou ao Paganismo, Gibbon parece exprimir nele suas experiências pessoais: a insubmissão, o gosto pela liberdade, a denúncia da hipocrisia religiosa e o interesse por disputas religiosas. O período em que o livro é gestado é marcado por conflitos entre católicos e protestantes, pela transformação política, econômica, social e cultural das nações europeias, que despontavam como potências mundiais, e por revoluções. O pensamento humano estava mudando. Roma atingiu o ápice do crescimento civilizatório, mas, conquista após conquista, ficou imobilizada em seus próprios domínios, ruindo por fatores internos e externos. O mesmo poderia acontecer com a Inglaterra, a França e a Espanha. Não por acaso, mais de um século e meio depois a obra foi lida por vários políticos durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Ocidente e outras áreas do globo novamente entraram em um colapso político-social.

O que é o Império Romano para o historiador inglês? Me pergunto toda vez que o leio, mas sei que não é uma simples unidade política. Sua célebre frase ‘a história, esse quadro terrível dos crimes, das perversidades e das desgraças do gênero humano’ pode nos dar uma pista. O Império Romano surgiu por mãos humanas e ruiu por mãos humanas, é produto da força inventiva e destruidora do homem. Essa é a natureza humana. Segundo ele não devemos nos perguntar porque o Império caiu, mas sim porque durou tanto tempo. História do Declínio e Queda do Império Romano é um monumento da literatura e historiografia modernas, inovador em sua época pelo exame crítico das fontes primárias, pela leitura do Cristianismo como elemento influenciador da queda do Império Romano do Ocidente, pela contextualização e visão abrangente dos eventos históricos. Em um futuro não muito distante o livro de Edward Gibbon voltará ao topo das vendas, preenchendo estantes em todo o mundo, alavancado por nossa crescente necessidade de compreender o atual cenário político e seus possíveis desdobramentos. Sua leitura não é uma dica, mas uma agradável obrigação.


Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa.


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terça-feira, 19 de julho de 2016

Prefácio dos Estudos Históricos de René Chateaubriand (III)

François-René de Chateaubriand. Pintura de Anne-Louis Girodet de Roussy-Trioson.

Terceira e última parte da série de postagens Prefácio dos Estudos Históricos de René Chateaubriand, no qual o autor romântico discorre sobre os temas Escola Histórica da Alemanha, Filosofia da história e a história na Inglaterra e na Itália.

Escola Histórica da Alemanha. Filosofia da história. A história na Inglaterra e na Itália

Próximos a nós, enquanto fundávamos nossa escola política, a Alemanha estabelecia suas novas doutrinas e nos ultrapassava nas altas regiões da inteligência: ela fazia entra a filosofia na história, não essa filosofia do século XVIII, que consistia em lavrar sentenças morais ou antirreligiosas, mas essa filosofia que procura a essência dos seres; que, penetrando o envelope do mundo sensível, procura se não há ali sob esse envelope alguma coisa mais real, mais viva, causa dos fenômenos sociais.

Descobrir as leis que regem a espécie humana; tomar por base de operações as três ou quatro tradições disseminadas entre todos os povos da Terra; reconstruir a sociedade sobre essas tradições, da mesma maneira que se restaura um monumento a partir de suas ruínas, seguir o desenvolvimento das ideias e das instituições nessa sociedade; assinalar suas transformações, indagar à história se não existe na humanidade algum movimento natural, o qual, manifestando-se em épocas fixas nas posições dadas, pode fazer predizer o retorno desta ou daquela revolução, como se anuncia a reaparição dos cometas cujas curvas foram calculadas: esses são interesses imensos. Quem é o homem? De onde vem? Para onde vai? Que veio fazer aqui? Quais são seus destinos? Os arquivos do mundo forneceriam respostas para essas questões? Existe em cada origem nacional uma idade religiosa? Dessa época passa-se para uma época heroica? Dessa época heroica a uma época social? Dessa época social a uma época propriamente humana? Dessa época humana a uma época filosófica? Existe um Homero que canta em todos os países, em diferentes línguas, no berço de todos os povos? A Alemanha se divide sobre tais questões em dois partidos: o partido filosófico e o partido histórico.

O partido filosófico-histórico, à cabeça do qual se coloca Hegel, pretende que a alma universal se manifesta na humanidade por quatro modos: um substantivo, idêntico, imóvel, é encontrado no Oriente; outro individual, variado, ativo, encontra-se na Grécia; o terceiro se compõe do dois primeiros numa luta perpétua e existiu em Roma; o quarto sai da luta do terceiro para harmonizar o que estava diverso: existe nas nações de origem germânica.

Assim o Oriente, a Grécia, Roma, a Germânia oferecem as quatro formas e os quatro princípios históricos da sociedade. Cada grande massa de povos, colocados nessas categorias geográficas, tira de suas posições diversas a natureza de seu gênio, o caráter de suas leis, o gênero de eventos de sua vida social.

O partido histórico se atém somente aos fatos e rejeita toda fórmula filosófica. Niebuhr, seu ilustre chefe, cuja perda recente foi deplorada pelo mundo letrado, compôs a história romana que precedeu Roma; mas não reconstruiu seu monumento ciclópico em torno de uma ideia. Savigny, que seguiu a história do direito romano desde sua época poética até a época filosófica à qual chegamos, não procura mais o princípio abstrato que parece ter dado a esse direito uma espécie de eternidade.

A escola filosófico-histórica de nossos vizinhos procede, como se vê, pela síntese, e a escola puramente histórica, pela análise. Estes são os dois métodos naturalmente aplicáveis à ideia e à forma. A escola histórica diz que o fato coloca em movimento o espírito humano: esta última escola reconhece ainda um encadeamento providencial na ordem dos eventos. Essas duas escolas tomam na Alemanha o nome de sistema racional e sistema supranatural.

Afinadas com as duas escolas históricas, marcham duas escolas teológicas que se unem às duas primeiras segundo duas diversas afinidades. Essas escolas teológicas são cristãs; mas uma faz sair o cristianismo da razão pura; a outra, da revelação. Nesse país onde tantos altos estudos são levados tão longe, não ocorre a ninguém que a falta da ideia cristã na sociedade seja uma prova dos progressos da civilização. [...]


FONTE GERAL DA SÉRIE DE POSTAGENS:

MALATIAN, Teresa. Chateaubriand. In: MALERBA, Jurandir. Lições de história: o caminho da ciência no longo século XIX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. pp 113-131.

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sexta-feira, 13 de maio de 2016

A relação entre Filosofia e História e a busca da construção do sentido

Por Wilton Abrahim


A filosofia é a mãe das ciências, e é tão antiga quanto a História. Ela é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos. Desde os seus primórdios com os pré-socráticos até os dias atuais, é uma conduta da vida humana e do comportamento do homem na sociedade, por isso está filiada à sabedoria, que permite adquirir a capacidade de pensar, de agir e de participar da sociedade, assim fazendo uma relação com a História, que é a ciência do homem no tempo. A História soma-se à filosofia para apresentar uma finalidade na busca pela sabedoria; e dar um sentido à vida do homem e em sua capacidade intelectual. No decorrer dos séculos, vamos ter inúmeros filósofos da história.
Segundo Olinto A. Pegoraro: “a maior dificuldade das teorias do destino é o confronto com a liberdade. Sempre a liberdade humana transcendeu as leis da física e da biologia; sempre tivemos a possibilidade de agir contra as leis, de decidir entre levar uma vida justa ou injusta, de viver bem ou distribuir-nos1
Para Ricardo Timm, devemos nos perguntar “Qual o sentido de fazer filosofia, hoje, aqui e agora?”. Inúmeros historiadores fizeram esse questionamento, tais como: Giambattista Vico (1668-1744) foi um filósofo, jurista, político, retórico e historiador italiano, vindo a ser reconhecido apenas no século XIX. Escreveu Ciência Nova, obra em que pretendia criar uma forma alternativa de estudar as ciências humanas, principalmente a história, forma diferente da aplicada às ciências naturais.
Vico põe a filosofia e filologia como duas disciplinas auxiliares da História. Em filosofia, aproveita-se a reflexão, as ideias e a sabedoria humana; e na filologia, o conhecimento da língua e das tradições dos povos. A filosofia oferece o arcabouço teórico, e a filologia o concreto, tangível, fragmentos das produções humanas. Vico, em oposição a Descartes, afirma que para verdadeiramente se conhecer algo é necessário que seu conhecedor o tenha criado. Vico afirma que o homem não caminha necessariamente para o progresso do pensamento racional.
Para Olinto A. Pegoraro: “O Cristianismo, que surgiu em plena expansão do estoicismo e neoplatonismo, aos poucos substitui o férreo determinismo da providência estoica pela providência totalmente transcendente e extracósmica2”. Vico confirma a Providência Divina para dar um sentido à História; e este afirma que essa ciência tem uma parte construída pelo homem e outra por Deus. Neste ponto Deus é o arquiteto, enquanto o homem seria o construtor.
Um outro historiador muito polêmico que podemos abordar é o francês François-Marie Arouet, mas conhecido como Voltaire (1694-1778). Seu lado historiador é pouco conhecido, pois o que vemos mais é o filosófico. Para Voltaire, a História é um conjunto dos desenvolvimentos produzidos pelo homem, nas artes, ciências e técnicas, através das transformações espirituais e morais. Sua obra filosófica-histórica foi A Filosofia da História.
Em Filosofia da História temos dois sentidos: o primeiro é uma forma de conceber o processo histórico; o segundo está em um modo de reconstituir esse processo para os leitores do presente. A obra filosofia da história é um ensaio sobre o mundo Antigo e sobre o que se produziu sobre ele. Diferente de Vico, Voltaire atacava as concepções religiosas que se fizeram da história das nações e também lendas, mitos e fábulas. A Historiografia de Voltaire é crítica, secularizada, cultural e filosófica.
Este dois grandes historiadores filósofos fizeram o uso do sentido da filosofia, que mudou a mentalidade e a forma de pensamento. Contudo, nós estudantes acadêmicos temos o dever de nos aprofundarmos nas questões filosóficas, criando assim, um sentido para nossos projetos de pesquisa, de pós-graduação e entre os iniciantes, pois o sentido somos nós que construímos.

1 PEGORARO, Olinto A. “concepções do mundo”. In--------------------------- SENTIDOS DA HISTÓRIA. P 18. Petrópolis, RJ:Vozes, 2011.
2 Ibidem, p.20.


Wilton Abrahim Gomes Garcez é acadêmico da Licenciatura em História na Universidade Federal do Amazonas (UFAM).











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quarta-feira, 30 de março de 2016

Giambattista Vico - Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Giambattista Vico. Quadro de Francesco Solimena.

Giambattista Vico (1668-1744) foi um filósofo, jurista, político, retórico e historiador italiano, considerado um dos principais nomes do Iluminismo, vindo, no entanto, a ser reconhecido como tal apenas no século XIX, quando suas ideias e obras passaram a influenciar pensadores como Hegel e Marx.

Vico nasceu no século XVII, período em que as ciências matemáticas estavam em alta e dominavam o pensamento de intelectuais das Ciências Naturais. Desde a segunda metade do século XVII, a Filosofia criada por René Descartes foi o principal referencial no estudo dessas ciências. Mas no que consistia o pensamento de Descartes? Para René Descartes a única verdade firme, certa e segura era que seus pensamentos existiam (penso, logo existo) e esta verdade deveria ser aplicada como princípio básico de toda a sua filosofia. Este penso abrange tudo o que afirmamos, negamos, sentimos, imaginamos, cremos e sonhamos. Eram ignoradas as percepções sensoriais, que poderiam nos levar ao erro. O conhecimento verdadeiro só poderia ser alcançado através do trabalho lógico da mente, trabalho esse que para Descartes teria sido alcançado pelos matemáticos.

Indo na contramão do domínio matemático, Vico se debruçou no estudo de Direito Romano, Filologia e História, conhecimentos sempre postos à dúvida pelos métodos matemáticos, que os colocava em segundo plano. Sua maior obra, a Ciência Nova, não fez muito sucesso em sua época, sendo preciso mais 100 anos para que isso ocorresse. Dela, tiramos as principais concepções de Vico sobre a História:

Ao escrever Ciência Nova, Vico pretendia criar uma forma de estudar as Ciências Humanas, principalmente a História, forma essa diferente da aplicada às Ciências Naturais. A História, para Vico, era um conjunto de fatos que segue determinadas leis e se desenvolve segundo alguns princípios.

Vico põe Filosofia e Filologia como duas disciplinas da História. Da primeira, aproveita-se a reflexão, as ideias e a sabedoria humana. Da segunda, tiramos o conhecimento da língua e das tradições dos povos. A união entre essas duas disciplinas (uma reflexiva e outra empírica) é um dos pontos-chave de sua obra. Em síntese, a Filosofia oferece o arcabouço teórico, e a Filologia o concreto, tangível, fragmentos das produções humanas. Vico, em oposição a Descartes, afirma que para verdadeiramente se conhecer algo é necessário que seu conhecedor a tenha criado. As instituições, construções, leis e demais técnicas foram criadas pelo homem, e logo a História é objeto do conhecimento humano.

Os períodos históricos ou eras são outro ponto do pensamento de Vico. Existem três eras históricas: a Era dos Deuses; a Era dos Heróis; e a Era dos Homens. A Era dos Deuses corresponde ao tempo imemorável, quando os homens, diante da grandeza da natureza, a endeusavam. A segunda era, a dos Heróis, ainda mantém os traços de aspectos sobrenaturais, mas já abre espaço para o surgimento de instituições políticas e a formação de classes sociais. A terceira e última, a dos Homens, levou bastante tempo para se firmar, e se caracteriza por lutas internas, pela construção de Impérios grandiosos como o romano e do surgimento da Filosofia.

Vico afirma que o homem não caminha necessariamente para o progresso do pensamento racional, e que o retorno ao pensamento da era dos deuses é uma possibilidade. Um exemplo que ele nos dá é a decadência cultural durante a Idade Média. Essa é a teoria dos avanços e dos retornos, também presente em Voltaire. O movimento cíclico não é circular e de fases fixas, é, na verdade, espiral, pois as fases históricas nunca se repetem como foram no passado. Ele afirma que as barbáries da Idade Média foram diferentes das barbáries dos tempos homéricos.

A providência existe em Vico, e este afirma que a História tem uma parte construída pelo homem, e outra por Deus. Deus seria o arquiteto da História, enquanto o homem seria o construtor dessa obra (um projeta, o outro constrói). Essa providência é mais racional que as elaboradas em séculos anteriores, pois as religiões, leis, instituições, construções etc, são criações essencialmente humanas, podendo ser explicadas de forma natural. A Providência surge apenas para dar um sentido à caminhada do homem em sua história.

A produção histórica de Vico se destaca pelos seguintes pontos: Foi o primeiro historiador da Idade Moderna a tentar garantir a cientificidade da História e de outras disciplinas humanas; não se submete aos métodos matemáticos e cartesianos; une a reflexão filosófica, oferecendo um arcabouço teórico, com o empirismo característico da Filologia, que estuda os fragmentos e linguagens deixados pelo homem; e leva em conta, de forma universal, o fato de que o homem, de acordo com o seu grau de desenvolvimento histórico, tem sua forma de ser, pensar e agir.


FONTES:

HADDOCK. B. A. Uma introdução ao pensamento Histórico. Tradução de Maria Branco. Lisboa, Gradiva, 1989.

MARANGON, Rosa Maria. A evolução da História do Homem segundo Giambattista Vico. Juiz de Fora, UFJF, 2007.



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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

A atual Decadência da Civilização Ocidental

Massacre dos Inocentes, de Peter Paul Rubens (1611-1612)

Vamos imaginar o Ocidente como uma grande casa, imponente e bem construída. Toda construção de porte elevado se sustenta em sólidos pilares, construídos com materiais resistentes. Essa não é uma construção erguida de um dia para o outro. Ela levou milhares de anos para ser concluída, através de sacrifícios humanos e da formulação de fundamentos morais e éticos duradouros. Uma casa é feita para abrigar pessoas. Imaginemos, agora, que essas pessoas estão, aos poucos, destruindo sua proteção maior, desde a base até o teto. O resultado trágico será a queda da casa e o abandono/morte de seus moradores.

Com essa breve analogia, inicio aqui uma crítica à atual situação do Ocidente, que posso chamar de Decadência da Civilização Ocidental. A crítica irá levar em conta cenas que vemos se tornar cada vez mais frequentes: a perda do valor da vida; a destruição de valores morais e éticos; a ambição pelo poder político dentro das instituições públicas e privadas; o desinteresse pelas artes, leituras e reflexões críticas; o desrespeito aos mais velhos e às pessoas em geral, a destruição de instituições milenares que, mesmo com seus excessos durante a história, sustentam o Ocidente; e o ataque às liberdades individuais. Sabemos da importância e dos benefícios que a manutenção de fundamentos e instituições trazem para diferentes culturas. Não é atoa que temos uma História de mais de 2000 mil anos. O texto poderia ser intitulado A Decadência da Humanidade, mas, como faço parte do Mundo Ocidental, detentor de conhecimento de causa, prefiro não "opinar" em outras regiões do globo, que merecem ter suas particularidades culturais, políticas e econômicas respeitadas.

Por onde começar? Por dois dos pilares mais importantes e sólidos de qualquer civilização: suas manifestações culturais e religiosas. Não temos mais o ócio criativo do qual nossos antepassados desfrutavam. Temos apenas o ócio. Leituras densas e de qualidade ficam de lado, sendo preferíveis leituras rasas, fórmulas prontas, soluções imediatas. Nos tornamos mais sensíveis em relação ao conteúdo de obras e às verdades nuas e cruas do mundo. Recentemente, alunos da prestigiada universidade de Columbia, nos Estados Unidos, pediram a proibição de obras de autores clássicos como Hesíodo, Aristófanes e Ovídio, por abordarem temas como sexualidade, morte, violência e religião. A atual geração se tornou infantil, sem preparo para a dura realidade que é o mundo, realidade essa estudada e declamada pelos autores antigos.

O Cristianismo, sem dúvidas, teve e ainda tem um papel crucial na construção do Ocidente. Só em pensarmos nas Grandes Navegações da Idade Moderna, nas Universidades nascidas no seio das catedrais medievais e na criação do Método Científico, pelas mãos do monge Roger Bacon, vemos como a cristandade é um pilar a ser preservado. Devemos, claro, aprender a separar e reconhecer os pontos positivos e negativos de uma instituição como a Igreja de Roma, uma criação humana, passível de erros. Observamos, nos dias de hoje, como cresce, seja por interesses políticos ou ideológicos, o desejo por apagar as contribuições do Cristianismo na formação da Civilização Ocidental, seja por pessoas sem religião ou de outras crenças. A destruição desse legado teria um resultado desastroso do ponto de vista histórico. Obs: não sigo uma religião e nem tenho crenças em uma ou mais divindades, mas sei reconhecer e dar os devidos créditos para bons trabalhos. Isso lembra uma frase do meu professor de Historiografia Geral: Mesmo com todos os erros do passado, em suas instituições, o Ocidente ainda consegue, diferente de outras regiões, garantir a liberdade de pensamento para seus habitantes. O Cristianismo, para o Ocidente, é outro pilar que deve ser protegido.

O homem foi percebendo, ao passar dos milênios, seja através da auto reflexão ou da contenção dada pela religião, que tirar a vida de seu semelhante é errado. Apenas em guerras, quando sua própria vida está em jogo, é que a defesa se torna necessária. Ainda assim, com tantos ensinamentos morais e éticos, leis, punições severas e privações de liberdade, a vida, a deriva em um mar de subjetividade, é jogada em uma lata de lixo como uma simples embalagem. Como impedir que ela, um bem único, sem retorno quando retirado, não seja descartada?. Uma solução prática não existe: Em conversa com o historiador amazonense Coronel Roberto Mendonça, ele relatou que, durante sua juventude, as pessoas temiam duas instituições e suas figuras: O padre, autoridade religiosa; e o delegado, autoridade civil. Em síntese, o medo seria a fronteira que impediria o homem de cometer crimes, seja por causa da punição temporal ou por causa da punição espiritual.

O poeta romano Petrônio, em sua obra Satíricon (século I d. C.), exclamou: "Que podem as leis se o ouro é o senhor absoluto? E se a pobreza jamais consegue triunfar? E até mesmo aqueles que ostentam o magro alforje dos Cínicos, muitas vezes por belas moedas negociam a verdade. É, pois, um negócio o austero e civil tribunal, e o juiz não faz senão assinar o contrato". Uma denuncia do século I de nossa era parece ser capa de um jornal dos dias atuais. A busca por riquezas e poder avança sem freios dentro das instituições públicas e privadas. Escândalos em monarquias na Europa, em governos na América Latina e em instituições privadas nos fazem repensar na política que vem sendo aplicada no Ocidente. As partes interessadas nas facilidades oferecidas pelo Estado se valem de partidarismos e ideologias, que acabam cegando a coletividade, que prefere defender apenas um lado e esquece que o grupo que lhe rouba é bastante organizado. A política no Ocidente é um pilar que já deveria ter sido demolido e reconstruído, mas por favorecer certos interesses, continua o mesmo.

A formação de uma família, seja ela tradicional ou moderna, patriarcal, nuclear ou matriarcal, deve ser pautada em princípios como a cumplicidade e o respeito entre seus membros. A família Ocidental sobreviveu através de uma hierarquia, no qual os ensinamentos das gerações passadas é transmitido através das palavras dos mais velhos. Infelizmente, temos jovens que bradam por mais direitos e espaço dentre dessa unidade social doméstica, e esquecem de seus deveres. Uma família bem estruturada, sadia, com o cumprimento, entre seus membros, de direitos e deveres, é mais um pilar a ser mantido para o bom andamento e perpetuação da Civilização Ocidental.

O Ocidente vem passando por profundas transformações. Seus valores vem sendo abalados diariamente, seja por acomodação da população, cega por partidarismo, conivência ou ideologia; e pela nocividade que se instalou em suas instituições mais importantes. Nós, habitantes dessa parte do mundo, seja na Europa ou em alguma antiga colônia na América do Sul, Caribe e América do Norte, percebemos como esses abalos estão se tornando cada vez mais negativos. A manutenção e proteção dos pilares Cristianismo, Família, Propriedade, Moral e Ética, Respeito, Cultura e Liberdade permite a sustentação, como foi dito na introdução, de nossa moradia (o Ocidente).

Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos - Euclides da Cunha.



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terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Aristóteles e as diferenças entre Poesia e História

Aristóteles representado na pintura A Escola de Atenas, de Rafael Sanzio.

Aristóteles, um dos pais da Filosofia Ocidental, abrangia em seu pensamento conhecimentos em Física, Retórica, Poesia, Ética, Artes, Biologia etc. Nesse texto, especificamente, iremos conhecer um Aristóteles que formulou leis para a arte poética, largamente utilizada por filósofos, dramaturgos e outros intelectuais de sua época. Mas, antes de formular tais leis, era preciso distinguir esse gênero literário de outro também bastante em voga: o gênero histórico. A diferença entre esses dois gêneros é traçada na obra Poética, pioneira na distinção entre o real e o fictício. Para melhor compreendermos, irei utilizar recortes desse livro.

"É claro, depois do que foi dito, que a característica do poeta não é de relatar o passado real, mas antes o passado possível, levando em conta as possibilidades dos acontecimentos segundo as verossimilhanças e a necessidade dos encadeamentos. O historiador e o poeta, com efeito, não diferem pelo fato de um narrar em verso e o outro em prosa - poder-se-ia ter transcrito em versos a obra de Heródoto e ela não seria menos história em verso do que em prosa. A verdadeira distinção é a seguinte: um narra o que aconteceu, o outro aquilo que poderia ter acontecido".

O poeta e o historiador não se distinguem pela forma como escrevem, um em verso e o outro em prosa, respectivamente. O historiador narra eventos que aconteceram, fixo em um tempo, enquanto o poeta escreve sobre aquilo que poderia ter acontecido, tendo liberdade para criar seus eventos, pois este tira a inspiração da natureza e do mundo a sua volta.

"Além disso, a poesia é mais filosófica e de um gênero mais nobre que a história, pois a poesia se eleva até o geral, enquanto que a história não é senão a ciência do particular. O geral, aquilo que este ou aquele tipo de homem faria ou diria segundo toda verossimilhança ou necessidade: é a isto que visa a poesia, embora dando nomes individuais aos personagens. O particular, é o que fez Alcibíades, ou aquilo que lhe aconteceu".

A poesia é produzida seguindo a lógica e um fim específico determinado por seu autor, que como já foi dito, tem a "liberdade criativa". A poesia, que valoriza os sentimentos humanos e as ações destes, pende para o dramático. A narrativa histórica não é determinada pelo historiador, mas sim pelo tempo e uma sequência de eventos nele inseridos. Juntamos a isso o fato de que o historiador narra as ações de Alcibíades no tempo, não importando seus sentimentos.

"Inteiramente diversos são os relatos históricos habituais, nos quais, necessariamente, não se trata de mostrar uma unidade de ação, mas somente uma unidade de tempo, juntando todos os acontecimentos, os quais, num determinado tempo, interessaram um ou mais homens e que não mantêm entre si senão uma relação casual".

O elemento primordial na narrativa histórica é o tempo, no qual estão diferentes eventos, estes sem ligação causal ou fim determinado. A poesia é composta de forma harmônica, para que todos os "fatos" inspirados do poeta tenha uma conexão entre si e componham um todo. Como exemplo temos o poema épico Odisséia, no qual a abordagem é o regresso de Ulisses para Ítaca, que levou cerca de 17 anos, terminando com sua chegada e o restabelecimento da ordem na mesma cidade.

Portanto, percebemos que as diferenças estabelecidas por Aristóteles em sua obra Poética, não se referem à forma da escrita, mas ao pano de fundo e da forma como narram ou relatam cada um dos profissionais dos dois gêneros. O poeta tem a liberdade de criar e imitar o mundo à sua volta. O historiador é rigoroso ao narrar os eventos que já aconteceram e estão fixos no tempo, se possibilidade de alterá-los. A poesia é escrita com o objetivo de proporcionar prazer aos leitores, enquanto o relato histórico é produzido para fins de registro de fatos ou eventos memoráveis, como escreveram autores clássicos como Heródoto e Tucídides.


FONTES:

ARISTÓTELES, Poética, 1451 a 36; 1451b, II; 1459 a 21-24. In: PINSKY, Jaime. 100 textos de História Antiga. 4° ed. São Paulo: Contexto, 1988, p.144.

MACHADO, Ronaldo Silva. História e Poesia na Poética de Aristóteles. Mneme, Revista de Humanidades. Vol I, n.1. - ago/set. de 2000. Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).


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