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sábado, 17 de setembro de 2022

Receitas tradicionais de tartaruga por Dona Chloé Loureiro

FOTO: Marcelo Ferrari.

Concluí há alguns dias a leitura de Doces Lembranças, de Chloé Loureiro (1988). É um livro de memórias do tempo de infância da autora, vivida entre o Acre e o Amazonas entre as décadas de 1920 e 1930. Apesar da crise que se abateu sobre a região naquele período, a vida não deixou de pulsar na Amazônia. O texto é simples e encantador, principalmente quando se fala de Manaus, a Cidade Sorriso, que "tinha o cheiro característico da pescada e do tucunaré frescos, misturado ao forte perfume do cupuaçu" (p. 113). Os relatos são intercalados com receitas de família de encher os olhos e estimular o paladar. Nele se aprende a fazer a tradicional tartarugada, a galinha e o pato a cabidela, o pirarucu de casaca, os doces de cupuaçu e caju e os chás, caldos e mingaus fortificantes. Cada memória faz emergir um ou mais pratos que se degustava em determinado momento, fosse de alegria ou de tristeza. Em certas passagens me vi diante de minhas memórias de infância, de uma comida especial, da família reunida na mesa, dos risos e abraços fraternos. Dentre as várias receitas, é impossível não se deter nas de tartaruga, pois só quem provou sabe do sabor único que ela possui. Reproduzo abaixo as receitas de tartarugada, guisado das mãos, guisado de carne, picadinho, sarapatel e a farofa do casco.

Tartarugada

A tartarugada não é um prato, é um banquete, no qual a tartaruga é apresentada de diversas maneiras, com sabores diferentes e aproveitando carnes, vísceras e sangue do animal, nada sobrando.

Não é difícil de ser preparada. O guisado é feito como o de carne de vaca ou ragu de carneiro. O picadinho, também, embora o sabor seja totalmente diferente. Vivendo na água, não tem gosto de peixe sendo, por isso mesmo, sui generis.

O sacrifício do animal é triste, deprimente. Custa muito a morrer e mesmo depois de horas, escaldado, cortado, a sua carne ainda pulsa na panela. Dá pena.

Depois de morta a tartaruga é sangrada e retirada de sua carapaça, o que exige uma pessoa especializada para fazê-lo. O sangue é colhido e misturado com vinagre, limão e sal, batendo-se bem, para não talhar. O cuidado maior é o da retirada das vísceras, para não espocar a bolsa do fel, ao lado do fígado, pois a bile deixa um sabor amargo aonde pega. Tudo deve ser escaldado e limpo, pois da tartaruga nada se perde.

Coloca-se então os quartos em água fervente, para se retirar a pele das patas. Cortam-se as mãos pelas juntas, arrancando-se as unhas. A carne mais branca é para fazer o picadinho; a escura, para o guisado, o sarapatel e o paxicá. Se estiver muito gorda, tire o máximo de gordura antes de escaldar as carnes.

Guisado das mãos

Corte as mãos em pedaços, tempere com sal, pimenta do reino, alho, colorau e cominho. Tire pedaços de gordura e derreta numa panela. Junte cebolas e cheiro verde, e refogue. Coloque pedaços de tartaruga e deixe refogar. Deite, em seguida, água quente à panela, e deixe cozinhar até amolecer o couro das mãos. Adicione, se gostar, um pedaço de pimenta murupi e uma boa quantidade de folhas de alfavaca cortada. Abafe a panela e logo em seguida feche o fogo.

Guisado de carne

Corte pedaços de carne mais escura e dos ossos que a acompanham, logo acima das mãos. Tempere com sal, pimenta do reino, colorau, cominho, alho socado e uma folha de louro. Refogue tudo com um pouco de gordura, se precisar, pois geralmente há gordura nestes pedaços. Leve ao fogo, junte água quente, e deixe amaciar bem. Junte em seguida boa porção de cebolas, cheiro e alfavaca, tudo bem cortadinho. Quando a carne já estiver quase macia, coloque batatas descascadas, cruas no caldo ou molho, para cozinhar, em fogo brando. Sirva quente.

Picadinho

Moa uma boa quantidade de carne branca. Passe junto um pouco de gordura.

Tempere com todos os temperos, sem excesso, para não tirar o sabor especial. Os melhores temperos são o cheiro verde, a cebola, a cebolinha e o colorau. Não use tomate. Moa também os temperos, pois fica mais gostoso. Refogue tudo junto, deixe cozinhar em fogo lento, desprendendo a água da própria carne. Pode ficar molhadinho mas não aguado.

Para acompanhar faça uma farofa com farinha d'água, na gordura da tartaruga, com cebola, cheiro verde e cebolinha, deixando ficar bem torrada.

No peito da tartaruga, limpo e assado na brasa, coloque o picadinho, e cubra com a farofa, enfeitando com ovos cozidos e azeitonas.

Sarapatel

Corte miúdo o bucho, o fígado, as tripas e alguns pedacinhos de carne (isto depois de tudo limpo e lavado com limão). Tempere com os mesmos temperos dos pratos anteriores. Leve ao fogo e deixe cozinhar bem. Quando tudo estiver bem macio, bata bem o sangue com um pouco de água, e despeje na panela. Mexa bem, para não pegar no fundo. Deixe engrossar e apague o fogo. Sirva quente.

Farofa do casco

Lave e tempere o casco da tartaruga e asse-o na brasa, com cuidado para não queimar. Vá raspando com uma colher, a carne e a gordura presa no mesmo. Fogo baixo para não queimar muito rápido.

Quando tudo estiver bem fritinho, coloque cebola, cebolinha, cheiro verde cortadinho, e vá juntando a farinha da sua preferência, para fazer uma farofa molhadinha.

Estes pratos são todos acompanhados com molho de pimenta murupi, feita com o caldo do guisado, suco de limão e temperos verdes bem batidinhos. Estes pratos são os principais.

O paxicá é feito com os miúdos e mais a cabeça cortada em pedaços, do mesmo modo que o sarapatel, mas sem usar o sangue.

Se a tartaruga estiver magra, não use óleo de qualquer espécie, nem margarina. Apenas manteiga ou banha de porco. Caso contrário o gosto fica horrível.

O filé pode ser assado ou frito na gordura.

Todos esses pratos são demorados, pois a carne é muito dura. Use panela de pressão para o guisado das mãos para maior rapidez.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Resenha: O Tigreiro, de Mário Ypiranga Monteiro (1997)

O livro O Tigreiro foi publicado em 1997 pelo historiador amazonense Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004). Ele nos apresenta nesse trabalho as origens e o funcionamento do sistema de coleta e eliminação de dejetos humanos e animais entre os séculos XIX e XX. A figura central é o tigreiro, tipo social de origem escrava, indígena ou mestiça, que ficava encarregado do trabalho diário de recolhimento das impurezas produzidas pela cidade. É mais um trabalho de História Social, juntando-se ao aguadeiro, a lavadeira, o arruador, o homem da matraca e o regatão.

No período Colonial, em que Manaus era o Lugar da Barra, o sistema de esgoto era inexistente, se tornando uma realidade apenas na segunda metade do século XIX, com a Província. O lixo doméstico e os excrementos eram recolhidos pelos tigreiros, que com seus barris, carregados na cabeça, despejavam toneladas de impurezas em locais destinados para esse fim: "[...] os esvãos litorâneos, as pontas de terra que eram então as dos Remédios e de São Vicente-de-Fora, ou os baixios da Fortaleza, à causa da corrente" (MONTEIRO, 1997, p. 08). Era costume, também, atirar pelas janelas das casas as águas servidas, o que causava transtorno aos transeuntes, que vez ou outra eram atingidos. Surgem, junto aos tigres, os arrendadores do serviço de coleta, utilizado carros de condução de duas rodas.

Mário Ypiranga afirma que tigre era o nome do barril utilizado no transporte dos excrementos, enquanto tigreiro era o carregador (MONTEIRO, 1997, p. 40). Por outro lado, os escravos ficavam conhecidos como tigres porquê os dejetos, ao escorrerem pelas frestas dos barris, marcavam suas peles, que ficavam listradas.

Mário Ypiranga chama atenção para as formas e meios utilizados por nossos antepassados para satisfazer suas necessidades fisiológicas. As famílias de baixa renda, explica, utilizavam as margens dos igarapés ou as áreas de mata como banheiros. Dizia-se "vou ao mato", "vou na casinha". Por conta desse costume os banheiros passaram a ser construídos não anexos à residência, mas à parte destas. Os utensílios utilizados eram variados  e para diferentes classes: "coronel", "capitão", "furriel", iamaru ou jamaru, cabungo, capitari e também bacio e noutra extensão comadre" (MONTEIRO, 1997, p. 14). Os banheiros domésticos, com latrinas e bacio de louça, eram privilégio de poucos. A falta de higiene e o despejo de lixo, fezes e urina nos igarapés eram responsáveis pela insalubridade e o consequente aparecimento de doenças.

No período Provincial, com o aumento das rendas públicas, surgem alguns melhoramentos, como o primeiro esgoto, construído em 1866, que saía da Praça da Imperatriz e ia em direção ao Rio Negro (MONTEIRO, 1997, p. 17). Apesar dessa mudança, o tigreiro continuou atuando com seus barris, indo de casa em casa e de repartição em repartição, sendo uma figura extremamente importante naquele período em que ainda eram dados os primeiros passos na construção de um sistema de esgotos apropriado. Os igarapés e o Rio Negro continuavam sendo o destino dos detritos residenciais.

Do ponto de vista cronológico, Mário Ypiranga, retrocede e avança no tempo, sem limites temporais estabelecidos, o que confere ao trabalho uma característica de ensaio. Por exemplo, ao discorrer sobre algumas ações de administradores públicos do passado, que tentaram sanear a cidade, afirma que mesmo com essas lições antigas as autoridades do presente se mostram ineptas no que tange a urbanização:

"Nos dias atuais as autoridades simplesmente são omissas ao proliferamento de casebres imundos à margem dos igarapés centrais e até dentro deles, ali mesmo onde será despejado o lixo e a matéria fecal dos próprios residentes, de vez que essas construções precárias ficam isoladas do sistema de fornecimento d' água potável e de derivação de esgotos!" (MONTEIRO, 1997, p. 40).

É somente entre o final do século XIX e o início do século XX que Manaus, agora enriquecida pela exportação da borracha, é dotada, pela empresa inglesa Manáos Improvements Limited, concessionária do serviço de águas e esgotos, de um sistema eficiente de eliminação de resíduos residenciais e comerciais. Foram construídas galerias subterrâneas, aterrados igarapés, instalados banheiros públicos, importados carros de limpeza, construído um forno crematório no bairro dos Tócos, no Plano Inclinado, criado um sistema de coleta de lixo eficiente e organizado e os Códigos de Posturas tornaram-se mais rígidos nos artigos sobre a limpeza pública. O autor afirma que "O sistema implantado pela Manaus Improvements era no tempo um dos melhores do mundo, similar ao inglês e australiano no dizer de algumas pessoas credenciadas" (MONTEIRO, 1997, p. 70).

Estudando os orçamentos da cidade entre os anos de 1834 e 1906, mostrou como os gastos com limpeza pública (limpeza de ruas, praças, remoção de lixo, capinação etc) foram evoluindo, iniciando de forma tímida até ganharem grandes proporções entre 1850 e 1900. "Isto basta", afirma, "para exemplificar um critério administrativo, progressivamente firmado no desenvolvimento da cidade, com a aplicação de meios na solução do grave problema de saúde e higiene públicas" (MONTEIRO, 1997, p. 99-114). A Manaus dos tigreiros ficou no passado, apesar de alguns hábitos, como o uso do igarapé como banheiro ou a latrina como sanitário, persistam na cidade e no interior.

O Tigreiro é mais um interessante trabalho de História Social que deve ser lido, pois nos mostra as transformações do sistema de coleta e descarte de lixo na cidade, bem como os personagens ligados à essas atividades.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:


MONTEIRO, Mário Ypiranga. O Tigreiro. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1997.

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Resenha - nos caminhos da alegria: roteiro histórico e sentimental da boemia de Manaus, de Aguinaldo Nascimento Figueiredo

Nos caminhos da alegria: roteiro histórico e sentimental da boemia de Manaus, de Aguinaldo Nascimento Figueiredo.

O livro Nos caminhos da alegria: roteiro histórico e sentimental da boemia de Manaus (2021) foi escrito pelo Professor e Historiador Aguinaldo Nascimento Figueiredo, membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA). Foram necessários anos de pesquisas para que viesse à luz. Aguinaldo, como bom historiador que é, debruçou-se sobre documentos históricos, jornais, revistas, livros, romances históricos, blogs, sites e, principalmente, relatos orais que coletou em diferentes momentos e de diferentes pessoas.

Nesse trabalho histórico-antropológico Aguinaldo reconstituiu as trajetórias da boemia manauara, narrando as origens de diferentes estabelecimentos, tais como pensões, prostíbulos, hotéis, bares, clubes, associações e espaços de lazer naturais como praias e igarapés. E os componentes humanos que trilharam esses caminhos? São os frequentadores, membros da elite, da classe média e populares, as prostitutas, as cafetinas, os cafetões, os valentões, os músicos e personalidades locais e nacionais.

Possui onze capítulos. No primeiro são analisadas as expressões boêmia e boemia. A primeira diz respeito à uma região da Europa Central pertencente à República Checa, famosa pela produção de cristais e cervejas. A boemia, por outro lado, é um movimento que surgiu na França no século XIX em contraponto ao Romantismo e à dominação da aristocracia. Tinha como principais característica a valorização da criatividade e o desprendimento de regras e padrões clássicos. O boêmio, habitante da Boêmia, tornou-se, com o passar dos séculos, o indivíduo materialmente desapegado, despreocupado com a vida, amante das artes e da vida (p. 13-16).

No capítulo seguinte o Professor discorre sobre o primeiro estabelecimento dedicado aos divertimentos instalado em Manaus, ainda no período em que a cidade era o insípido Lugar da Barra, dando início ao roteiro histórico e sentimental: o boteco do português conhecido como "Séo Melgaço", naqueles longínquos tempos localizado na zona portuária, no lugar denominado Ribeira das Naus (p. 16-17). Em um lugar com pouco mais pouco menos de 3.000 habitantes, constituía-se no principal centro de lazer e circulação de informações sobre a vida cotidiana, os escândalos e a política reinol. Com o tempo e crescimento da Barra, foram surgindo outros espaços, desaparecendo o boteco do português Melgaço (p. 17-18).

Saindo da Manaus Colonial, no terceiro capítulo é abordada a boemia no período da borracha, entre fins do século XIX e início do XX. Nele são traçadas as origens de cinco locais marcantes nesse período de crescimento econômico e transformações urbanas: Hotel Cassina, Bar e Café dos Terríveis, Pavilhão Universal, Bolsa Universal e Hotel Restaurant Français. Contrastando com esses lugares, luxuosos e bem frequentados, estavam os cortiços e botequins de terceira categoria, alvos frequentes das investidas das autoridades policiais e sanitárias (p. 18-29).

Com a crise do sistema de produção gomífera a boêmia se reinventou. Surgiram as pensões, onde trabalhavam como prostitutas jovens e senhoras, sem maiores perspectivas dado o estado de calamidade em que se encontrava a cidade (p. 31). Nesse quarto capítulo conhecemos as pensões do período da borracha, destacando-se a Pensão Floreaux, na Avenida Epaminondas, que funcionava como bar, casa de jogos e casa de prostituição frequentada por ricos comerciantes e profissionais liberais (p. 31-35). Com o declínio da economia surgem pensões de menor requinte, mas que ainda prestavam bons serviços. A principal foi a Pensão da Lola, instalada em um sobrado na rua Saldanha Marinho, funcionando com bar, restaurante, salão de dança e quartos para a prática do lenocínio (p. 37-39).

Terminado esse período, Aguinaldo destaca, no quinto capítulo, que Manaus viveu, entre as décadas de 1950 e 1960, o período de ouro da boemia, quando foram instalados os bares, bordéis, prostíbulos e clubes que marcaram gerações. Dos bares, elenca o Bar Avenida, Bar do Quintino, Bar Sibéria, Bar Americano, Bar São Domingos, Bar e Choperia São Marcos, Mandy's Bar, Bar do Carvalho, Bar Jangadeiro, Bar Caldeira, Bar do Armando e Bar Balalaica. Entre os bordéis destacam-se o Cortina de Ferro, Bar do Orlando, Big Bar, Restaurante e Bar Jupaty, Bar Tropical, Dancing Fortaleza, Brasília Bar, Nosso Bar, Copacabana Bar, Bolero Bar, Globo de Ouro e a Pensão Jesus (p. 39-98).

Eram tempos de valentões, cafetões, cafetinas e mulheres famosas, temas do sexto capítulo. Os valentões, heróis e anti-heróis, registra o autor, eram partícipes de brigas memoráveis, pelas quais ficavam famosos. Eram eles os Irmãos Paixão, Tamborete, Cavalo do Cão, Cachoeirinha, Nego Milton, Vinte e Oito, Cabete, Segadilha, Americola e Otinha. Todos eram conhecidos pelas proezas em brigas e arruaças, aparecendo frequentemente nas páginas policiais. Além de valentão, Cavalo do Cão, cujo verdadeiro nome era Valdemar Oliveira, também era cafetão, o mais conhecido da cidade. Já a cafetina mais conhecida foi dona Valdomira, proprietária de vários bordéis pela cidade (p. 98-103). As mulheres mais requisitadas para as práticas sexuais tinham nomes curiosos: Xib*u Venenoso, Maria Jiquitaia, Maria Batalhão, Nise, Maria Tostão, Faricão, Zaira Pé de Pato, Jacaré Ti Pega, Pitioca, Graçona, Peruana, Maria Bangu e Jercina (p. 101-103).

O sétimo capítulo é dedicado aos lupanares, casas de prostituição que muitas vezes funcionavam sob a fachada de bares. Os mais famosos foram o Bar Bom Futuro, Shangri-lá, Lá Hoje, Boate Verônica, Ângelo's, Iracema, Rosa de Maio, Piscina, Chica Bobó, Saramandaia, Selvagem, Patrícia's Bar, Maria das Patas e Poço de Caldas (p. 103-132). Destaca-se a predileção para a abertura deles na Estrada de Flores, dada sua localização, distante da área urbana, permitindo a tranquilidade e discrição entre os frequentadores.

Os clubes e associações recreativas movimentavam a cidade com seus bailes de carnavais e outros bailes temáticos, recebendo atrações artísticas locais e nacionais. No oitavo capítulo figuram o Acapulco Night Club, Maloca dos Barés, Associação Atlética de Constantinópolis e Grêmio Social e Recreativo de Educandos (p. 133-144).

Além dos lugares construídos, Manaus contava com recantos naturais, paragens bucólicas rodeadas de verde e geralmente com igarapés de águas límpidas que os tornavam ainda mais especiais. No nono capítulo conhecemos como se tornaram frequentadas a Ponta Negra, Praia da Ponta Branca (Praia do Canela), Ponte da Bolívia, Tarumã, Tarumanzinho e a Cachoeira das Almas (p. 145-153).

O penúltimo capítulo possui um tom romântico, pois trata das serenatas, dedicadas às jovens da cidade e realizadas por grupos de amigos, os seresteiros. Os seresteiros mais famosos foram Iran e Roberto Caminha, Gebes de Medeiros, Carlos Alberto Maciel, Wilson Campos, irmãos Verçosa, Orsine Marques, Roque Souza, Hélio Trigueiro, Josaphat Pires, Jaime Rebelo, Índio do Brasil, Jorge Santos, Demóstenes Carminé, Toscano, Américo, Elson Farias, José Braga, Estevam Santos, Sebastião Gomes de Medeiros, Normando, Paulo Sadi, Carlinho Chinoca e Paulo Timóteo. Atividade exercida majoritariamente por homens, a partir da década de 1960 aparecem mulheres seresteiras como Kátia Maria, Ilka de Souza, Maria Neide e Guiomar Cunha (p. 154-156). Também despontam os trios musicais e os conjuntos. Dos primeiros cita-se o Ajuricaba, Três Brilhantes e Trio Iraúna. Os conjuntos foram os Embaixadores, The Sunshine e Blue Birds Band, este último fundado em 17 de junho de 1967 e ainda em atividade (p. 156-158).

O último capítulo é uma pequena galeria de artistas que fizeram e ainda fazem parte da boemia manauara. São eles Nelson Gonçalves (1919-1998), Salim Gonçalves (1935-2007), Abílio Farias (1947-2013), Ludimar Teixeira, o Teixeira de Manaus, José Costa de Aquino, o Carrapeta (1936-2019), Cleonice Galvão do Nascimento, a Kátia Maria (n. 1940), e Celestina Maria (p. 158-166).

Faltava em nossa historiografia um trabalho de peso, escrito de forma bem humorada, como pede o tema, que desse conta de reconstituir essa parte da História de Manaus, até então tratada de forma pontual em trabalhos memorialísticos. 


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:


FIGUEIREDO, Aguinaldo Nascimento. Nos caminhos da alegria: roteiro histórico e sentimental da boemia de Manaus. Manaus: edição do autor, 2021.



terça-feira, 22 de setembro de 2020

Manaus: amor e memória, de Thiago de Mello (1984)


Me acompanhou na última semana o livro ‘Manaus: amor e memória’, do poeta Thiago de Mello. Nele o escritor nos leva para a Manaus de sua juventude, entre as décadas de 1930 e 1940 (vez ou outra regredindo à década de 1920 e avançando até a de 1950), a cidade que vivia tempos amargos mas que continuava risonha, à espera de dias melhores. É um trabalho memorialístico, mas não da forma tradicional que conhecemos, em que se tenta afirmar um passado idílico, como o autor deixa claro: “Advirto que aqui não entra nem sombra de sentimento saudosista. Quem me conhece, de conversa e de leitura, sabe que a minha preocupação maior, e também a minha esperança mais pelejada, está no futuro” (p. 22). Nos são apresentadas as alegrias e as dificuldades daquele jovem nascido em Barreirinha, de infância humilde e apaixonado pela terra.

Thiago de Mello idealizou o livro em 1973, durante seu exílio no Chile. Prometeu redigi-lo quando retornasse ao Brasil. O escreveu entre outubro de 1981 e outubro de 1982, quando já era um jovem senhor de 55, 56 anos, com muito para contar sobre sua infância em Manaus.

Por ser tratar de um livro de memórias, ele começa a falar sobre o tempo, tempo esse que dava e sobrava. Não era ainda a nossa unidade de medida que nos deixa todos os dias aflitos. Conversava-se sem se preocupar com atrasos. “Uma das esplêndidas instituições culturais de Manaus daquele tempo era a conversa de calçada. Aberta a boca da noite, em tudo quanto era rua, as conversas começavam, bem defronte do portão. Uma das tarefas caseiras, logo depois da janta, era colocar na calçada as cadeiras da conversa. De preferência, cadeiras de embalo. Melhor ainda se fossem de palhinha. Crescemos no meio dessas práticas diárias, ouvindo fascinados grandes conversadores, excepcionais contadores de casos e estórias do rio e da floresta, de onças e de serpentes, de febres e naufrágios, de assombrações e magias” (p. 33). Tempo de visitas, de passar o dia na casa dos amigos e vizinhos. Tempo da sesta depois do almoço, do respeito pelo sono alheio. Tempo de tomar benção aos pais. Costumes que muitos de nós ainda preservamos.

Ainda sobre a memória, é bom pontuar que Thiago de Mello não recorreu apenas às suas. Para a feitura do livro ouviu várias pessoas de sua geração e mais velhas, como sua mãe, dona Maria, Ulysses Bittencourt, Mário Ypiranga Monteiro, Luiz Bacellar, Emídio Vaz de Oliveira, Eldah Bitton, José Franco de Sá, Moura Tapajoz, Ruy Lins, Samuel Benchimol, Aderson Dutra e tantos outros amigos de infância, vizinhos e colegas de trabalho.

Como dito anteriormente, eram tempos difíceis. Ajudava a enfrentar os dissabores da vida a cordialidade entre as pessoas, umas ajudando as outras como podiam, fosse com um cumprimento, um pouco de açúcar, uma tigela de mingau de tapioca. “Isso não quer dizer”, registra Thiago, “que a vizinhança estivesse formada por pessoas excepcionais. Não. Eram pessoas comuns, mas com as triviais virtudes e imperfeições humanas, que é como deve ser. Só que sabiam valorizar a convivência” (p. 35). Foi dentro desse universo, formado pelas ruas Dr. Almínio, Isabel, José Paranaguá, Lima Bacury e Quintino Bocaiuva, que ele viveu intensamente, também se aventurando por outros lugares da cidade.

A cidade de dimensões geográficas bem definidas, dividida em pouquíssimos bairros naquele período, tinha sons e cheiros inconfundíveis. Aqui Thiago de Mello atua como um perspicaz antropólogo: Os sons dos apitos das fábricas anunciando o início das atividades, acordando seus funcionários, marcando o horário do almoço e do retorno, dos navios chegando e partindo, o badalar dos sinos das igrejas nos dias santificados, as músicas dos vendedores de comidas e miúdos, dos hidroaviões da PanAir, das casas onde se cantava e tocava piano e violino, dos alto-falantes dos cinemas e dos que informavam o desenrolar da Segunda Guerra Mundial. Eram sons dos mais variados. (p. 43-72). Os cheiros, assim como os sons, eram diversos. De borracha e madeiras sendo cortadas, dos óleos e essências, do sangue e das vísceras do Matadouro, dos cheiros do Porto, da fumaça dos navios, da graxa e das mercadorias transportadas, dos produtos nobres das casas comerciais refinadas, do guaraná, dos peixes, frutas, verduras, mingaus e das tartarugas do Mercado Municipal, das flores, dos remédios vermífugos e fortificantes, dos cabelos das jovens caboclas (p. 75-81).

A última parte do livro é o ABC da cidade, ou como denominou o poeta, “ABCedário íntimo para uso público – um ABC que já perdeu a voz mas nos ensina a soletrar o tempo (p. 85-251). Em cada letra são abordadas memórias sobre praças, ruas, escolas, clubes, livrarias, cinemas, personagens e brincadeiras. É o A dos árabes, que chegaram sem um tostão no bolso mas que conseguiram prosperar, dos alfaiates e alfaiatarias com suas sedas e linhos; B de borracha, cortada ao meio nas casas exportadoras, dos bondes diários, onde se conversava, se via e namorava, das brincadeiras de roda embaladas por cantigas; C de Clube da Madrugada, já na década de 1950, ali na Praça do Ginásio (como ele chama a Praça da Polícia), das catraias que levavam e traziam trabalhadores do Educandos e São Raimundo, da Carmem Doida, muitas vezes incompreendida, a dançar nas ruas do Centro. É um abecedário que revela, instiga, emociona e diverte.

Além de ser um livro de leitura agradável, ‘Manaus: amor e memória’ é uma fonte rica de informações sobre a cidade entre os anos de 1930 e 1940, período pouco estudo em detrimento de outros recortes históricos (1890-1920 e 1960-1970) mas que nos últimos anos vêm despertando o interesse de pesquisadores das mais variadas temáticas, em cujos trabalhos, nas referências, entre os memorialistas, aparece o nome do presente trabalho resenhado.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

MELLO, Thiago de. Manaus: amor e memória. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1984 (Coleção Ofício de viver, 1).



sábado, 2 de fevereiro de 2019

Resenha: Folhas do Norte - Letramento e Periodismo no Amazonas (1880-1920), de Maria Luiza Ugarte Pinheiro


Os jornais, nos últimos anos, tem sido uma das fontes mais utilizadas nas produções acadêmicas no campo da História. Não é difícil encontrar trabalhos produzidos exclusivamente com eles, bem como aqueles em que foram a maior parte do material empregado. Essa guinada se deu entre as décadas de 1980 e 1990, período em que os periódicos passaram a ser vistos como fontes importantes na compreensão dos processos históricos, haja vista serem instrumentos de propagação ideologias, modos e modas, oferecendo muitas informações de outras épocas e se mostrando frutos desses contextos históricos. No Amazonas já existem algumas monografias, dissertações e teses alicerçadas nas páginas amareladas dos jornais, mas se comparado a outras regiões, ainda são poucas as pesquisas locais em que eles são utilizados como objetos ou fontes de estudo. Pode-se citar como trabalho pioneiro o catálogo ‘Cem anos de Imprensa no Amazonas (1850-1950)’, organizado na década de 1990 pelos professores do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). É um levantamento precioso sobre os jornais que foram publicados no Amazonas entre a segunda metade do século XIX e a segunda metade do século XX.

Foi pensando nessa lacuna em nosso Estado que a professora Maria Luiza Ugarte Pinheiro, do Departamento de História da UFAM, publicou, em 2015, ‘Folhas do Norte: Letramento e Periodismo no Amazonas (1880-1920)’, resultado de sua tese de Doutorado defendida em 2001 na PUC-São Paulo. Neste livro a historiadora Maria Luiza analisa o surgimento, desenvolvimento e expansão do letramento e da imprensa no Amazonas.

O livro é divido em duas partes, cada uma com três capítulos. No primeiro são abordadas a Oralidade e Letramento no Amazonas (1850-1880). Em uma região vasta e pouco povoada, de maioria indígena e com forte tradição oral, a cultura letrada fazia parte da realidade de poucas pessoas, em sua maioria ligadas à máquina burocrática e, ainda assim, de forma deficiente entre esse seleto grupo. A autonomia surgida com a criação da Província em 1850 não foi suficiente, pois as escolas criadas pelos Presidentes, tanto na capital quanto no interior, sofrem com a carência de profissionais para preencher os quadros de professores de primeiras letras.

É nesse contexto, em que a língua portuguesa ainda não estava consolidada entre a população, que surge a imprensa no Amazonas. Maria Luiza foge da tradicional polarização oralidade x letramento, mostrando “[…] como a utilização de novas linguagens – o humor, a charge e a caricatura – no interior do periodismo pode se constituir em mecanismos que expressam não só tensões, mas também mediações com o universo oral local” (p. 71). Dessa forma, o surgimento de periódicos em uma região deficitária no domínio das letras é fruto de uma relação de trocas, penetrações, submissões e concessões entre o dito e o escrito.

Em Feição e feitura dos primeiros jornais do Amazonas são analisados os primeiros passos dos jornais no Amazonas (1851), os oficiais e ligados a partidos políticos, produzidos em tipografias e financiados pelo Estado; e os manuscritos e datilografados, de baixa tiragem, pequenos empreendimentos de pessoas sem especialização na área. Estes últimos, a “pequena imprensa”, compõe o grosso da obra. Os jornais enfrentaram dificuldades de diferentes tipos, tais como um público acostumado mais com a oralidade que a leitura, a falta de mão de obra especializada (tipógrafos), de oficinas tipográficas bem montadas, de material (papel, tinta) e perseguições políticas, com a destruição de redações e ataques a jornalistas.

Por volta de 1880-1900, a circulação de capitais surgida com o sistema econômico gomífero propiciou a importação de máquinas de impressão, de materiais e atraiu profissionais estrangeiros altamente qualificados para trabalhar nas oficinas tipográficas. Ainda assim, uma gama de pequenos jornais, feitos em sua maioria de forma artesanal, continuavam a surgir, mostrando como o acesso às novas técnicas era restrito e oneroso e a existência de pessoas obstinadas em deixar registradas suas visões da sociedade. São periódicos com nomes curiosos que evidenciam seu caráter popular: KCT, A Matraca, A Marreta, O Raio, A Mutuca e O Chicote, apenas para ficarmos em alguns exemplos. Inúmeros foram publicados, tendo uma existência efêmera, evidenciando assim os problemas da empresa jornalística. O aparecimento de um novo jornal era geralmente celebrado, mas o clima de tensão entre a grande e a pequena imprensa era uma realidade, conforme assinala a autora: “Ao longo das duas primeiras décadas do século XX, as pequenas folhas, de estilo mais despojado e de linguagem coloquial, passam a ser cada vez menos toleradas no interior do periodismo e constantemente confrontadas por jornais que, projetando-se como portadores diletos do refinamento cultural e da vida civilizada, passaram a impor regras e convenções, defendendo a restrição da atividade jornalística à esfera da norma culta burguesa” (p. 105).

Intelectuais de renome regional e nacional como Thaumaturgo Sotero Vaz, Péricles Moraes, Álvaro Botelho Maia, Arthur Cézar Ferreira Reis, Agnello Bittencourt e Mário Ypiranga Monteiro, que fizeram parte da Academia Amazonense de Letras (AAL) e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), iniciaram suas carreiras nos jornais antes de atingirem o auge de compor os quadros de imortais e membros dessas instituições culturais. Aliás, uma tendência na maioria das cidades brasileiras na virada do século XIX para o XX. Foi através da imprensa que os homens de letras amazonenses externaram seus pensamentos, digladiaram-se em correntes literárias, traduziram obras, introduziram valores e ideologias na população e utilizaram a linguagem popular para manter esse contato. É isso que fica evidente em Do jornal à academia: Elites intelectuais e Periodismo no Amazonas.

Em uma região tida como culturalmente acanhada, distante dos centros letrados como Rio de Janeiro e São Paulo, que esterilizava seus grandes nomes, esses escritores, sociólogos, historiadores e professores vão criando nas páginas dos jornais diários, médios e pequenos, através de conferências e correspondências com autores da “corte literária”, uma fervilhante ambiência cultural que foi o núcleo, em 1909, da Universidade Livre de Manaus, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, em 1917 e, da instituição de maior relevo, a Academia Amazonense de Letras, em 1918. Essa elite intelectual não é apenas fruto de um novo momento do Amazonas, em que a economia gomífera permite a reestruturação de parte da vida urbana, do aparato jornalístico, da incorporação de mão de obra estrangeira e especializada. Maria Luiza Ugarte Pinheiro lembra que “tanto quanto instituída, a imprensa institui, instaura e dinamiza a cultura letrada e os valores da sociedade burguesa ocidental, ao mesmo tempo, que por eles é potencializada” (p. 153). Os articulistas locais discutem, traduzem os anseios diante das mudanças operadas, modificam o cenário influenciando a opinião pública.

A riqueza do “ciclo da borracha”, recuperada idilicamente pela historiografia mais tradicional, foi sendo construída em meio a contradições sociais características das áreas do globo incorporadas ao modelo capitalista como fornecedoras de matérias-primas. Tais contradições mostravam-se em diferentes aspectos cotidianos. O trabalho era o principal deles. Baixos salários, carestia e insalubridade faziam parte do dia a dia de operários, nacionais e estrangeiros, que garantiam o funcionamento de todo um sistema econômico. Foi através da imprensa que esses operários, ainda não plenamente organizados mas conscientes de suas condições, faziam reivindicações por melhores salários, planejavam greves, discutiam, em linguagem acessível, teorias sociais, e criticavam a indiferença do empresariado local. Jornais anarquistas, socialistas, de trabalhadores de diferentes áreas (caixeiros, gráficos, estivadores etc), produzidos sem maiores artifícios técnicos, vieram a luz no Amazonas entre 1890 e 1928, período marcado pela expansão e declínio da economia gomífera. Iam da simples defesa ao engajamento teórico mais elaborado. Essas são as Folhas Operárias, tema do quarto capítulo.

Não sendo diferente de outras realidades, no seio desses próprios jornais operários existia a contradição, pois muitas vezes, além do discurso endereçado às classes laboriosas, que davam sentido a essa modalidade jornalística, estava o elogio, implícito ou explícito, ou mesmo a submissão, ao patronato e às oligarquias políticas. Ainda assim, “suas páginas desnudam as contradições mais profundas de uma cidade que acabou idealizada como exemplo de progresso e civilização nos trópicos” (p. 173). Não raro sofriam, por parte dos grupos de poder anteriormente citados, represálias em que o empastelamento, invasão e destruição de tipografias e escritórios, bem como o ataque a líderes sindicais (que desempenhavam a função de redatores, diretores, repórteres), foram as principais formas de silenciamento.

O humor é uma forma diferenciada de se relacionar com o cotidiano, utilizando para tal a irreverência e a linguagem coloquial, que lhe dão o tom. Ele está presente em todas as sociedades e relacionado de forma inconteste aos contextos históricos pelos quais elas passam, tornando-se assim uma fonte valiosa para a compreensão de realidades passadas. A imprensa europeia, já no século XVIII, permitiu sua rápida propagação nas cidades, fosse em tempos de Revolução, em que prevalecia a ácida crítica política, fosse em épocas mais amenas. No Amazonas da virada do século XIX para o XX não foi diferente. Jornais humorísticos foram surgindo com a promessa de amenizar ou servir de alternativa a seriedade da imprensa mais tradicional. Enxergando diversas possibilidades de análises, a historiadora os recupera no quinto capítulo, O Humor no Periodismo Amazonense.

Foram identificados por Maria Luiza três tipos de jornais humorísticos: Os de entretenimento, que teciam críticas ao cotidiano; os de humor político, voltados para as críticas a política local e nacional; e os moralizadores e segregadores, em que os artigos eram verdadeiros ataques a homossexuais, prostitutas, negros e imigrantes nordestinos. “O jornal de humor, a propor o entretenimento, desafia e afronta o instituído, o consagrado e, ao fazê-lo, atrai a atenção de um conjunto de leitores que não só demandam atitudes de independência e de liberdade de pensamento e expressão, mas também desejam ver esgarçadas as contradições de uma sociedade que lhes parecia putrefata” (p. 234). Esses jornais atendem os anseios populares, dialogam com eles, assim como fazem parte de uma esfera burguesa que através do chiste criticava setores populares da sociedade considerados atrasados e indesejados no espaço urbano. As imagens, charges e caricaturas, de acontecimentos do dia a dia, de membros da elite, políticos e acontecimentos nacionais e internacionais, surgem de forma tardia, mas se fazem presentes no periodismo amazonense. Esses recursos visuais, em uma sociedade marcada por altos índices de analfabetismo, permitem a leitura e diferentes interpretações que não seriam possíveis apenas com textos escritos.

Uma das principais mudanças verificadas a partir da segunda metade do século XIX foi a condição da mulher. De submissa e encerrada na esfera privada do lar, ela passa a ocupar os espaços que antigamente lhe eram proibidos. As transformações econômicas e o acesso à instrução foram fatores decisivos para que as mulheres se tornassem cada vez mais membros ativos da sociedade, reivindicando a emancipação frente ao patriarcado. Essas vozes ecoaram, não sem dificuldades, pelos jornais. A Mulher no Periodismo – último capítulo – fez representar-se e foi representada de várias formas.

Assim como vinha ocorrendo na Europa e na América do Norte, as mulheres, no Amazonas, estavam ganhando espaço e maior visibilidade. De uma forma interessante e pouco vista na historiografia local, Maria Luiza as localiza através da iconografia (com destaque para as cenas do filme No Paiz das Amazonas, de Silvino Santos, produzido em 1922) desempenhando diferentes trabalhos, tais como os de lavadeiras, costureiras, operárias, coletoras de guaraná e de ovos de tartaruga. O mundo letrado, formado majoritariamente por homens, reagiu. Pelas páginas dos jornais, artigos e caricaturas criticavam a ascensão das mulheres, vista como uma forma de subversão da “ordem natural” que lhes outorgou a condição de donas de casa, e uma ameaça a predominância masculina, visto que elas começavam a ter ocupações anteriormente restritas a esse grupo. Na imprensa elas tinham pouco espaço. Apareciam nas notas do colunismo social, nos romances e crônicas nos rodapés das páginas, sempre associadas a assuntos superficiais. O final do século XIX, no entanto, viu surgir o Abolicionista do Amazonas (1884), formado por mulheres da alta sociedade que lutavam pela abolição da escravidão. Treze anos depois, aparecia em Codajás A Rosa (1897). Em 1909, o Grêmio, em Manaus. Os periódicos anteriormente citados tinham diferentes tipos de abordagem, indo da “aceitação” da condição da mulher como mãe e dona de casa até a luta pela equiparação salarial. A historiadora salienta que, “contudo, não se deve concluir que a ação das mulheres na imprensa demonstrasse sempre uma postura apática ou alienante e invariavelmente submissa. Embora difícil de aquilatar, não há como duvidar do fato de que os avanços atuais foram construídos lentamente nos rastros das centelhas lançadas por essas pioneiras” (p. 315).

O pioneirismo do trabalho da historiadora Maria Luiza Ugarte Pinheiro reside no uso que fez dos pequenos jornais, esquecidos ou ignorados pela antiga historiografia local em detrimento dos grandes jornais empresa. Os recuperando em arquivos precariamente organizados (com uma ou outra exceção) deu luz a um cotidiano mais popular, vívido, impregnado de contradições, abarcando a relação entre oralidade e letramento, o surgimento dos primeiros jornais, a atividade das elites intelectuais no periodismo, as dificuldades do nascente jornalismo operário, o humor e a presença da mulher no periodismo amazonense.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Resenha: Fundação de Manaus – Pródromos e Sequências, de Agnello Bittencourt (1969)


Em 1969, ano que ficou consagrado pelos festejos do tricentenário de Manaus, o renomado geógrafo, historiador e professor amazonense Agnello Bittencourt (1876-1975) publicou o trabalho ‘Fundação de Manaus – Pródromos e Sequências’, uma síntese da história da cidade de seus primeiros anos até a década de 1960.

Agnello Bittencourt inicia seu texto abordando os empreendimentos espanhóis e portugueses na América entre fins do século XIV e início do século XV, ou como ele diz, “o estado de espírito dos conquistadores lusos e espanhóis” (BITTENCOURT, 1969, p. 23). Por estado de espírito ele não se refere apenas à conquista territorial e material, mas, principalmente, à influência dos mitos e lendas na mentalidade daqueles homens recém-saídos do período medieval. Para o historiador a penetração do território que viria a ser conhecido como Amazonas é fruto da “cobiça europeia embalada nos mitos que se divulgaram” (BITTENCOURT, 1969, p. 24). A Expedição de Pedro Teixeira, realizada em 1637, durante o domínio da Coroa Espanhola sobre Portugal, foi de extrema importância para uma ocupação mais efetiva dos lusitanos na Amazônia.

Como um dos historiadores de Manaus da geração mais tradicional, Agnello Bittencourt não pôde deixar de citar o célebre episódio da construção, em 1669, pelo Capitão Francisco da Mota Falcão, da Fortaleza de São José do Rio Negro, vinda à luz para pôr fim às pretensões conquistadoras de ingleses, franceses e holandeses na região, bem como para estimular o povoamento daquela parte da Amazônia. Ao redor da construção fixaram-se indígenas das tribos Manaus, Barés, Banibas e Passés. Como vestígio da Fortaleza, o autor cita o Cemitério Indígena encontrado durante as obras realizadas na Praça Dom Pedro II, afirmando que “a atual geração que hoje habita Manaus ignora o fato, mal podendo avaliar que ali foram sepultados muitos antepassados nossos, de raça e mesmo de sangue” (BITTENCOURT, 1969, p. 34).

Seguiu-se à criação da Capitania de São José do Rio Negro, em 1755, a mudança de sua sede, até então em Mariuá (Barcelos), para o Lugar da Barra, ocorrida em 1791 durante a administração do Brigadeiro e engenheiro militar Manuel da Gama Lobo D’ Almada. A mudança foi gestada pela melhor localização, na confluência dos rios Negro e Amazonas, daquele tímido burgo. A medida não agradou D. Francisco de Souza Coutinho, Capitão-General do Grão-Pará, temeroso do prestígio que tal mudança garantiu a Lobo D’ Almada, pois este, em seu governo, dinamizou o Lugar da Barra, introduzindo nele várias melhorias como fábricas, olarias, padarias etc. Com a ajuda de seu irmão, Rodrigo de Souza Coutinho, Ministro em Portugal, iniciou “[…] sua campanha contra a nova sede da Capitania e, como consequência, em 1799 retorna esta para Barcelos, nos têrmos da Carta Régia de 22 de agôsto de 1798” (BITTENCOURT, 1969, p. 35-36). O Lugar volta a ser sede da Capitania de São José do Rio Negro em 1808, passando a categoria de Vila em 1832, com o nome de Manaus, sendo elevada à Cidade da Barra do Rio Negro em 1848 e, em 1856, “recebeu a designação definitiva de Cidade de Manaus, já então com 4.000 habitantes” (BITTENCOURT, 1969, p. 37).

Reconhecendo que as mudanças de status (Lugar, Vila e Cidade) não alteram profundamente, de forma imediata, os aspectos de Manaus, e que essas transformações dependem de fatores econômicos e sociais que se processam lentamente ou em surtos, Agnello Bittencourt propõe três etapas em que se pode observar, do ponto de vista dos aspectos físicos, a cidade de Manaus: “a primeira, que vai da fundação do Forte até meados do último quartel do século passado; a segunda, indo dessa época até quase da Segunda Guerra Mundial; e a terceira, a Manaus de hoje” (BITTENCOURT, 1969, p. 38-39).

Da primeira fase, entre fins do século XVIII até a segunda metade do século XIX, o historiador recupera os relatos dos viajantes que, durante suas expedições, passaram por Manaus, e os relatórios dos primeiros Presidentes da Província do Amazonas: Alexandre Rodrigues Ferreira (1787), Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius (1819), Alfred Russel Wallace (1849), Richard Spruce (1850-51), Lourenço da Silva Araújo e Amazonas (1852), João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha (1852), Herculano Ferreira Pena (1853), A. Belmar (1860), Louis e Elizabeth Agassiz (1865) e Franz Keller-Leuzinger (1867). É do casal Agassiz a famosa impressão de que “insignificante hoje (1865), Manaus se tornará, sem dúvida, um grande centro de comércio e navegação(AGASSIZ, 2000, p. 196). Esses diversos relatos e impressões dão notícia de uma cidade com população diminuta, sem maior expressão econômica e com seus limites urbanos definidos pelo terreno tortuoso, pelas matas e igarapés. A partir do final do século XIX, a narrativa se torna mais pessoal, baseada no que o autor viu ao longo de 92 anos de vida, “setenta dos quais passados em Manaus” (BITTENCOURT, 1969, p. 55). São frequentes os termos ‘vi’, ‘andei’, ‘conheci’: “Esta Manaus que conheci era limitada ao norte pela rua Monsenhor Coutinho, ao Sul pelo Rio Negro, a leste pela rua Joaquim Nabuco e a oeste pelo igarapé de São Vicente. Além daí era os bairros de Educandos, Cachoeirinha, Campinas e São Raimundo” (BITTENCOURT, 1969, p. 63-64).

Ao fim do período provincial surgem prédios de arquitetura mais refinada, destacando-se o Paço Municipal, a Catedral de Nossa da Conceição, a Santa Casa de Misericórdia, o Gymnasio Dom Pedro II, o Asilo Elisa Souto, o Mercado Público, o Quartel de Artilharia, a Cadeia Pública, a Assembleia Legislativa e a Delegacia Fiscal. “Era assim a cidade que, a 3 de junho de 1889, recebeu a visita de S. A. I. o Conde d’Eu, a cujo desembarque tive a oportunidade de assistir” (BITTENCOURT, 1969, p. 64). Findada a Monarquia e instalada a República, tem início a segunda etapa de Manaus, que será marcada pelo frenesi da economia gomífera.

Agnello Bittencourt foi testemunha dessas mudanças, vendo de perto as administrações de Eduardo Gonçalves Ribeiro, Fileto Pires Ferreira, José Cardoso Ramalho Júnior, Silvério Nery, Constantino Nery e Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt, apenas para ficarmos no período que vai de 1890 a 1912, do apogeu ao início da desestruturação do sistema gomífero. De forma saudosista, lembra que a cidade atingiu “[…] o apogeu da (também muito sua) “belle époque” - lindos prédios, ruas bem pavimentadas com seus batentes e calçadas em mármore de Lioz, iluminação feérica, luxo e até esbanjamento” (BITTENCOURT, 1969, p. 69). Tais afirmações reforçaram a ideia de uma cidade plenamente próspera, também presente em outros autores da mesma geração, quando já se sabe, por estudos feitos desde a década de 1980, que paralelamente a esse enriquecimento houve um forte processo de exclusão das camadas populares. Como membro de uma família tradicional da elite local, tendo ele próprio estado a frente da Prefeitura de Manaus entre 1909 e 1910, não é estranho que faça afirmações como a de que, em Manaus, “a população vivia à europeia, viajando para o Velho Mundo, especialmente Paris” (BITTENCOURT, 1969, p. 69).

A partir de 1913 até a Segunda Guerra Mundial, com exceção da expansão ao Norte pela criação do bairro da Vila Municipal (Adrianópolis), em 1912, a cidade pouco cresceu materialmente. Agnello Bittencourt cita a compra, pelo Estado, do Palacete Scholz, transformado em Palácio Rio Negro (1918) e a construção do Relógio da Avenida Eduardo Ribeiro durante a administração municipal de Araújo Lima (1926-1930). Termina assim a segunda etapa.

A cidade começa a ganhar novo fôlego a partir da terceira etapa. Entre o final da década de 1930 e início da década de 1940 surgem o Parque 10 de Novembro (1938-1943), vários grupos escolares, o Departamento de Saúde Pública e o Instituto de Educação do Amazonas. Nos governos de Leopoldo Amorim da Silva Neves, Plínio Ramos Coelho e Gilberto Mestrinho de Medeiros Raposo, “novas estradas e avenidas rasgaram a cidade, muitas ruas foram asfaltadas e solucionou-se o problema crucial que havia anos afligia a população: voltou a haver iluminação elétrica” (BITTENCOURT, 1969, p. 81). Vale lembrar que, apesar dessa aparente recuperação, o município, ao longo de toda a década de 1950, enfrentaria sérios problemas de déficit orçamentário.

A terceira etapa, a Manaus de hoje (1960), é coroada com a criação e instalação da Zona Franca. Esse novo modelo econômico possibilitou a entrada da cidade em uma nova era de crescimento, expansão e integração. Agnello Bittencourt finaliza seu texto desejando um bom futuro para a cidade e para seus administradores naquele momento do tricentenário, o Governador Danilo Duarte de Mattos Areosa e o Prefeito Paulo Pinto Nery.

Fundação de Manaus – Pródromos e Sequências’, é um singelo trabalho de síntese histórica comemorativa ao aniversário da cidade, produzido, em grande parte, através de reminiscências da Manaus que o autor viu crescer aos poucos, atravessando surtos econômicos e crises. O livro se tornou um clássico que não deve ser olvidado por aqueles que desejam conhecer melhor a cidade e analisar criticamente sua historiografia tradicional, da qual este faz parte.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AGASSIZ, Louis; AGASSIZ, Elizabeth. Viagem ao Brasil: 1865-1866. Brasília, DF: Senado Federal, 2000, p. 196. (Coleção o Brasil visto por estrangeiros). [original: 1868].

BITTENCOURT, Agnello. Fundação de Manaus – Pródromos e Sequências. Manaus: Editora Sérgio Cardoso, 1969.



CRÉDITO DA IMAGEM:

estilousado.com.br



quinta-feira, 12 de julho de 2018

Resenha: Carros e Carroças de Bois, de Mário Ypiranga Monteiro (1984)

Carros e Carroças de Bois, de Mário Ypiranga Monteiro. Manaus, 1984.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Carros e Carroças de Bois: Subsídios para a história social do Amazonas. Manaus, Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1984.

Carros e Carroças de Bois: Subsídios para a história social do Amazonas é um trabalho do historiador e folclorista Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004) publicado em 1984, sendo uma de suas produções voltadas para a história social do Amazonas, assim como O Aguadeiro (1947) e O Regatão (1958). Diferente de seus trabalhos anteriores, Mário Ypiranga enfrentou a dificuldade da escassez de fontes, de fontes que levassem pelo menos a uma origem remota da introdução desses veículos no Amazonas e em outros territórios, a qual atribuiu à "[...] característica singular da própria geografia regional, de vez que as estradas batidas são irrisórias" (MONTEIRO, 1984, p. 17). No entanto, ele afirma que essa característica singular "[...] condicionou o veículo ao estreito âmbito das sedes municipais e a um regime rural pobre de referências" (MONTEIRO, 1984, p. 17).

É nos interiores, nos interiores mais ou menos povoados na época em que o autor escrevia (apesar de ter sido publicado em 1984, as pesquisas de Mário Ypiranga ocorreram em diferentes momentos entre as décadas de 1940 e 1950), que foram encontrados registros materiais vívidos, ainda que de forma modesta, e alguns na capital. O autor estuda esses transportes em Manaus, Janauari, Coari, Manicoré, Tefé, Itacoatiara, Rondônia e Rio Branco. São 11 pequenos capítulos no total. Seus informantes e colaboradores foram os

"[...] senhores prefeitos capitão Alexandre Montoril, de Quari; Lourival Santana, de Manicoré; Francisco Antônio de Lima, antigo morador em Tefé; dr. Otaviano Soriano de Melo, Juiz de Direito em Tefé; Lúcio de Araújo Lima, os três últimos já falecidos; sr. Sebastião Lima, padre dom Atanásio de Aguiar e outros que porventura haja esquecido e que serão lembrados no texto" (MONTEIRO, 1984, p. 15).

Aos poucos documentos escritos soma, ainda que não seja um completo apreciador, a história oral. Sobre os dados oferecidos por um informante, diz o seguinte: "Todavia não aceito a lição histórica e por motivos também de natureza histórica, embora não me seja possível, no momento, apresentar documentos" (MONTEIRO, 1984, p. 83). Em alguns momentos recorre às memórias de sua infância, sobre os carros e carroças que viu em Manaus, no Centro ou na Aparecida, seu bairro de nascimento, e aos relatos de seu pai. 

A metodologia empregada na produção de Carros e Carroças de Bois pode ser caracterizada como uma história antropológica. Mário Ypiranga foi a campo, em todas as cidades e territórios em que soube da utilização desses veículos. Não fez simples descrições. Analisou os tipos de madeiras utilizados na confecção das carroças e carros, os bois empregados (de raça, importados ou naturais), seus nomes pitorescos, os preços do transporte, das carroças e dos bois, e os comandos utilizados pelos carroceiros para comandar as ações dos animais. Ainda mais detalhadas são as descrições das peças, os canzis, as cangas, os tampais, as brochas e as rodas. Da população das cidades e territórios por onde passou apreendeu um rico folclore sobre os carros e carroças de bois, com cantos e ditos populares. Em Rio Branco (Território Federal de Roraima, 1962) recolheu a seguinte letra de uma toada:

"Meu carro de madrugada
vai chegando perto de casa...
Esquenta o eixo para o patrão acordar
com o canto do boi estimado...
Desperta meu patrão,
que eu vou chegando em casa..." (MONTEIRO, 1984, p. 82)

Por que escrever sobre carros e carroças de bois? Mário Ypiranga enfrentou esse questionamento enquanto fazia suas pesquisas em Rondônia. Um funcionário da prefeitura, de forma irônica, surpreendeu-se ao saber da existência de um "doutor em carrologia bovina" (MONTEIRO, 1984, p. 53). Apesar de toda a fragmentação, das origens incertas, o autor conseguiu mostrar como os carros e carroças de bois formavam um universo cultural amplo e diversificado. Um carro de Itacoatiara não era igual ao de Coari, nem o de Manaus ao de Rio Branco. Em suas palavras, "o carro de bois conserva, portanto, um traço de união, que diríamos mágica, entre o homem e a terra" (MONTEIRO, 1984, p. 14).

Mário Ypiranga, à maneira do ensaísta, historiador e antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987), deu importância à cultura, à cultura material, aos elementos dispersos no espaço mas com significados importantes para a compreensão do homem amazônico, do meio em que vive, do espaço que criou, que se sujeitou, ao longo dos séculos. É na cultura e pela cultura que se compreende o sentido de sua obra.

domingo, 6 de maio de 2018

Resenha: Um Olhar pelo Passado, de Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha (1897)


Em 1990 a Prefeitura de Manaus reeditou o livro Um Olhar pelo Passado, publicado originalmente em 1897, pequeno trabalho de pouco mais de 20 páginas elaborado pelo jornalista Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha (1840-1919) e oferecido ao governador Fileto Pires Ferreira. A tiragem se esgotou rapidamente e o livro não voltou a ser reeditado, o que é uma pena. Apresento aos leitores uma breve resenha dessa obra:

O autor, filho de João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha (1798-1861), primeiro Presidente da Província do Amazonas, não tinha a pretensão de realizar um trabalho histórico, afirmando não "ter competência para fazer o histórico do desenvolvimento material da cidade de Manaus". No entanto, parte de seu trabalho é baseado no que viu durante a vida e do que foi encontrado "nos archivos públicos desta capital, Barcellos, Itacoatiara e Teffé" (ARANHA, 1897, p. 9).

O ponto de partida de seu livro é o ano de 1791, com a transferência, por iniciativa do governador Lobo D' Almada, da capital da Capitania de São José do Rio Negro de Barcelos para o Lugar da Barra, "por offerecer mais vantagens ao commercio e à administração dos negócios políticos e civis da Capitania" (ARANHA, 1897, p. 9). Bento Aranha lista os governadores da Capitania desde sua fundação em 1757: Joaquim de Mello e Póvoas, Gabriel de Souza Filgueiras (interino), Nuno da Cunha Athayde Vianna (interino), Valerio Corrêa Botelho d' Andrade (interino), Joaquim Tinoco Valente, posteriormente uma junta governativa formada por oito membros, Manoel da Gama Lobo d' Almada, José Antônio Salgado, José Joaquim Vitório da Costa e Manoel Joaquim do Passo.

Bento Aranha, agora, se dedica à fundação da cidade de Manaus, citando a criação, por Pedro da Costa Favela, auxiliado por um missionário e índios aruaquis, da primitiva aldeia onde hoje está localizada a capital do Amazonas. Posteriormente, padres carmelitas criaram uma Missão, cabendo a Manoel da Mota de Siqueira a construção da fortaleza. O autor cita a construção de outros fortes a partir da segunda metade do século XVIII: Os fortes de S. Gabriel da Cachoeira do Corucovi e de S. José de Marabitanas, construídos em 1763; o de S. Francisco Xavier de Tabatinga, em 1765; e o de S. Joaquim do Rio Branco, em 1775.


É dado destaque ao governo de Manuel da Gama Lobo D' Almada, que impulsionou a vida do Lugar da Barra, criando 


"1 padaria de pão de arroz moido em atafoma movida por bestas; 1 fabrica de panno de algodão (em rolos) tendo 18 teares e 10 rodas de fiar com 24 fusos cada uma; 1 cordoaria de cordas e amarras de piassaba e calabres; 1 fabrica de fecula de anil; 1 nora para distribuir agua para a fábrica de anil e para uma hora; 1 horta; 1 olaria com excellentes amassieiras, estendedouros, fornos calcinatorios e de torrefação de telha e ladrilho;1 fabrica de velas de cera; 1 açougue; 1 ribeira para a construcção de canoas; 1 fabrica de redes de fio d' algodão; 1 fabrica de redes de fibras de tucum, curauhá e murity; e muitos engenhos de moer canna e fabricar cachaça e mel"(ARANHA, 1897, p. 11-12).


Os anos finais do período colonial da Capitania de São José do Rio Negro foram administrados por uma junta provisória formada por Antonio da Silva Craveiro, Bonifacio João de Azevedo, Manoel Joaquim da Silva Pinheiro e João Lucas da Cruz. Em 9 de novembro de 1823 a Capitania de S. José do Rio Negro jura fidelidade à D. Pedro I. Uma junta governativa administraria a região até 1825, quando esta foi incorporada ao Grão-Pará na condição de Comarca.

Após citar a resolução de 1833 da Província do Grão-Pará que estabeleceu a divisão das comarcas e alterou os antigos nomes de suas vilas; e levantar alguns dados sobre o Lugar da Barra entre 1832 e 1852, Bento Aranha entra na segunda parte de sua obra, composta de reminiscências históricas, de  descrições de paisagens, ruas e caminhos de Manaus que viu entre 1852 e 1889:

"Era cortada a cidade da Barra, como a conheci em 1852, ao Norte pelo igarapé da Castelhana, que desagua no da Cachoeira Grande e pelo dos Remédios (Aterro), no logar denominado Mocó, cujas aguas lançam-se no Rio Negro. Este ultimo igarapé dividia o bairro da Republica do dos Remédios. Ao Occidente o igarapé da Cachoeira Grande limitava a cidade, e entre elle e o do Espirito Santo corriam os igarapés de S. Vicente, cuja fonte estava situada na extrema Occidental da rua da Palma, hoje denominada Saldanha Marinho; e o da Bica, seu affluente, que nasce na rua 10 de julho, ainda não existente nessa epocha, e cujo leito estende-se ao longo do largo da Polvora, formando com o igarapé da Cachoeira Grande o arrabalde denominado Cornetas e Sacco do Alferes. Abaixo do igarapé de S. Vicente desaguava no Rio Negro um outro que denominava-se do Seminário, cuja nascente era na rua Brazileira, tendo sido transformado depois na praça da Imperatriz. Estes dous igarapés formavam o bairro de S. Vicente, assim como o do Seminario e o do Espirito Santo o bairro que tomava o do deste nomes"(ARANHA, 1897, p. 15-16).

Rua da Palma, S. Vicente, Largo da Pólvora, Saco do Alferes, rua Brasileira, rua Feliz Lembrança, rua do Sol, rua da Lua, travessa do Cantagalo, rua das Flores e outros tantos nomes pitorescos de lugares há muito modificados ou desaparecidos. Casas cobertas de palha, protegidas por cercas de madeira, sobrados em construção e outros arruinados. Bento Aranha nos apresenta a geografia da cidade nos tempos provinciais, uma geo-história, sempre recorrendo à sua memória, como na passagem a seguir:

"Em 1865 existiam no igarapé de Manaus alguns sitios, sendo destes os mais longinquos o da Curiboca Mãe, de D. Maxima Alvarenga, da velha cabocla Patricia, do velho João Cuyabá, do velho Cidade, e da velha Clementina" (ARANHA, 1897, p. 16).

Das modestas transformações do período, cita a construção do Cemitério de S. José, a "[...] abertura das estradas Ramos Ferreira [...] e 7 de Dezembro" (ARANHA, 1897, p. 19) e de outras vias públicas. À essa descrição de logradouros públicos segue-se uma relação de construções existentes em Manaus antes de 1852, das quais destacavam-se o Palácio dos Governadores, o Quartel, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, o Forte de S. José da Barra do Rio Negro (em ruínas), o Hospital Militar, a Olaria e a Cordoaria. O livro termina com uma abordagem sobre os rios até então conhecidos e mais explorados, como o Madeira, Içana, Japurá e Purus, todos visados por comerciantes amazonenses, paraenses, portugueses, maranhenses e mato-grossenses.

Qual o lugar do autor e a importância de sua obra? Em um interessante texto publicado no Jornal do Comércio em 1949, o antropólogo Geraldo Pinheiro, traçando um breve panorama dos historiadores manauaras, afirma que inegavelmente o primeiro historiador da cidade foi Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, que se dedicava à pesquisa em arquivos, à organização de bibliotecas, ao uso da memória, e que escrevia textos de história em periódicos locais. Sobre um 'Um Olhar pelo Passado', diz o antropólogo que "[...] é sem favor algum a primeira contribuição à história topográfica da cidade, das suas ruas e nomenclaturas, tão bem explicada com amor e dedicação aí por volta de 1897" (PINHEIRO, 1949).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARANHA, Bento de Figueiredo Tenreiro. Um Olhar pelo Passado. Manaus: Prefeitura Municipal/GRAFIMA, 1990. [original de 1897].

PINHEIRO, Geraldo de Macedo. Manaus e seus historiadores. Jornal do Comércio, 26/02/1949.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Resenha: História do Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon


Os homens letrados do século XVIII tinham um enorme talento na arte da escrita, talento esse por nós conhecido através das obras de Montesquieu, Voltaire, Rosseau e Diderot. O inglês Edward Gibbon (1737-1794) faz parte desse hall de iluministas, posição alcançada pela produção da monumental História do Declínio e Queda do Império Romano.

Poucas são as obras que fazem sucesso imediato ao ser publicadas. Em 1776 o primeiro volume de Declínio e Queda foi recebido de forma ambígua, entre a crítica dos conservadores e o entusiasmo dos mais liberais, mas tornou-se um sucesso de vendas. O advogado e biógrafo escocês James Boswell (1740-1795) acusou Gibbon de ser um “fantoche incrédulo”. O motivo? Gibbon inovou a História moderna ao analisar o declínio do Império Romano do Ocidente sob o ponto de vista da ascensão do Cristianismo. O historiador inglês não era ateu (foi calvinista, converteu-se ao catolicismo e reconverteu-se ao calvinismo), mas, assim como outros escritores do período das Luzes, era crítico da superstição, da intolerância que gerava o fanatismo e cerceava a liberdade, condição altamente necessária aos burgueses liberais do setecentos.

Foi em Roma, em 1764, durante uma viagem, que surgiu a ideia de investigar as causas do declínio e queda do Império Romano: “[…] enquanto eu estava sentado a cismar entre as ruínas do Capitólio e os monges descalços cantavam as vésperas no Templo de Júpiter; que a ideia de relatar o declínio e a queda da cidade pela primeira vez me veio à mente” (p. 19). Da cidade, ampliou a investigação para o Império. A junção de diferentes elementos históricos vistos (monges, ruínas romanas e a cidade moderna) foi o norte de Edward Gibbon.

Durante a juventude ele teve contato com as obras de Heródoto, Tucídides, Xenofonte, Horácio, Virgílio, Terêncio, Ovídio e outros gregos e latinos; assim como leu obras de autores contemporâneos, no caso Considerações sobre as causas da grandeza e decadência dos romanos, de Montesquieu; e outros do final do século XVII, como Grotius, Pascal, Putendorf, Locke e Bayle. Foram 12 longos anos de leituras de fontes primárias, de grande erudição, até que a obra fosse concluída entre 1788-89, totalizando seis densos volumes.

Nós, leitores brasileiros, temos acesso às edições abreviadas, que giram em torno de 504-607 páginas (só o primeiro volume do original possui 628 páginas). A que tenho em mãos é a mais recente, de 2005, em formato de bolso, organizada em 1952 pelo jornalista e erudito norte-americano Dero A. Saunders e traduzida pelo poeta, crítico literário e ensaísta brasileiro José Paulo Paes, que também traduziu a mais antiga, de 1989. O compêndio de Saunders nos permite, mesmo que o texto não seja integral, ter uma noção da grandiosidade da obra do historiador inglês. Gibbon analisa mais de mil anos de história, indo do século II d.C. até o século XV. Sua pena é como um manto que cobre todos os acontecimentos desse período.

O gênio do autor não reside apenas em sua erudição, no manuseio de inúmeras fontes, mas em seu estilo literário. Ele penetra no íntimo das instituições, dos cultos, das administrações imperiais, do caráter dos imperadores, das guerras e dos conflitos internos. A impressão que passa é a de ter sido testemunha ocular da desestruturação do Império, de ter entrado pessoalmente nas catacumbas cristãs primitivas, de ter visto de perto as invasões de godos, francos, vândalos, saxões, hunos e outros povos bárbaros. A economia não é o seu ponto forte, sendo todas as atenções voltadas para aspectos políticos, sociais e culturais. Toda essa vivacidade e acuidade são acompanhadas por críticas, polêmicas e ironias que transitam entre o irreverente e a acidez. Na introdução de sua obra, sobre a extensão e o poderio militar do Império na época dos Antoninos, Gibbon pinta o seguinte quadro do Império Romano no século II d.C.:

No segundo século da Era Cristã, o império de Roma abrangia a mais bela parte da terra e o segmento mais civilizado da humanidade. As fronteiras daquela vasta monarquia eram guardadas por antigo renome e disciplinada bravura. A influência branda mas eficaz das leis e dos costumes havia gradualmente cimentado a união das províncias. Seus pacíficos habitantes desfrutavam até o ponto de abuso os privilégios da opulência e do luxo (p. 31).

Gibbon, em um tom moralizante, que pode ser visto em outras passagens de sua obra, critica a opulência e luxo desmedidos, elementos que em excesso podem ser nocivos ao homem. Superstições, milagres e outros eventos explicados de forma sobrenatural são criticados, buscando-se explicações naturais, físicas e racionais. Em nível de exemplo, quando o autor aborda o Imperador Constantino, a primeira coisa que faz é desmistificar as visões divinas sobre sua conversão ao Cristianismo, apontando os motivos políticos, e não religiosos, desse fato. Fé cega e espírito crítico, natureza humana e religião, são para ele termos opostos.

Uma religião que até então vivia na clandestinidade, na periferia do Estado Romano, sendo por diversas vezes perseguida, foi aos poucos penetrando em suas estruturas, se expandindo até as mais distantes províncias, sendo apropriada por imperadores, nobres e servos. Em poucos séculos, de religião periférica e perseguida passou a religião oficial e perseguidora de seus opositores. O Cristianismo triunfou, o antigo mundo romano tornou-se cristão. Para Gibbon, essa vitória desestabilizou a antiga hegemonia ideológica imperial, que tinha seus alicerces, no Paganismo, na imagem e semelhança da figura do imperador à figura da divindade, contribuindo para a sua crise. O Cristianismo, pelo menos em tese, permitiria que todos ficassem em pé de igualdade.

Além de História, Declínio e Queda está impregnado de filosofia, de reflexões, e possui uma ponte entre o passado e o tempo em que o autor escrevia. Como foi dito no início, Gibbon era calvinista, converteu-se ao catolicismo e, posteriormente, retornou ao calvinismo. Ao abordar o Imperador Flávio Cláudio Juliano, mais conhecido como Juliano, o Apóstata, único imperador romano que abandonou o Cristianismo e retornou ao Paganismo, Gibbon parece exprimir nele suas experiências pessoais: a insubmissão, o gosto pela liberdade, a denúncia da hipocrisia religiosa e o interesse por disputas religiosas. O período em que o livro é gestado é marcado por conflitos entre católicos e protestantes, pela transformação política, econômica, social e cultural das nações europeias, que despontavam como potências mundiais, e por revoluções. O pensamento humano estava mudando. Roma atingiu o ápice do crescimento civilizatório, mas, conquista após conquista, ficou imobilizada em seus próprios domínios, ruindo por fatores internos e externos. O mesmo poderia acontecer com a Inglaterra, a França e a Espanha. Não por acaso, mais de um século e meio depois a obra foi lida por vários políticos durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Ocidente e outras áreas do globo novamente entraram em um colapso político-social.

O que é o Império Romano para o historiador inglês? Me pergunto toda vez que o leio, mas sei que não é uma simples unidade política. Sua célebre frase ‘a história, esse quadro terrível dos crimes, das perversidades e das desgraças do gênero humano’ pode nos dar uma pista. O Império Romano surgiu por mãos humanas e ruiu por mãos humanas, é produto da força inventiva e destruidora do homem. Essa é a natureza humana. Segundo ele não devemos nos perguntar porque o Império caiu, mas sim porque durou tanto tempo. História do Declínio e Queda do Império Romano é um monumento da literatura e historiografia modernas, inovador em sua época pelo exame crítico das fontes primárias, pela leitura do Cristianismo como elemento influenciador da queda do Império Romano do Ocidente, pela contextualização e visão abrangente dos eventos históricos. Em um futuro não muito distante o livro de Edward Gibbon voltará ao topo das vendas, preenchendo estantes em todo o mundo, alavancado por nossa crescente necessidade de compreender o atual cenário político e seus possíveis desdobramentos. Sua leitura não é uma dica, mas uma agradável obrigação.


Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa.


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