Em
1969, ano que ficou consagrado pelos festejos do tricentenário de
Manaus, o renomado geógrafo, historiador e professor amazonense
Agnello Bittencourt (1876-1975) publicou o trabalho ‘Fundação
de Manaus – Pródromos e Sequências’, uma síntese da
história da cidade de seus primeiros anos até a década de
1960.
Agnello
Bittencourt inicia seu texto abordando os empreendimentos espanhóis
e portugueses na América entre fins do século XIV e início do
século XV, ou como ele diz, “o estado de espírito dos
conquistadores lusos e espanhóis” (BITTENCOURT, 1969, p. 23).
Por estado de espírito ele não se refere apenas à conquista
territorial e material, mas, principalmente, à influência dos mitos
e lendas na mentalidade daqueles homens recém-saídos do período
medieval. Para o historiador a penetração do território que viria
a ser conhecido como Amazonas é fruto da “cobiça europeia
embalada nos mitos que se divulgaram” (BITTENCOURT, 1969, p.
24). A Expedição de Pedro Teixeira, realizada em 1637, durante o
domínio da Coroa Espanhola sobre Portugal, foi de extrema
importância para uma ocupação mais efetiva dos lusitanos na
Amazônia.
Como
um dos historiadores de Manaus da geração mais tradicional, Agnello
Bittencourt não pôde deixar de citar o célebre episódio da
construção, em 1669, pelo Capitão Francisco da Mota Falcão, da
Fortaleza de São José do Rio Negro, vinda à luz para pôr fim às
pretensões conquistadoras de ingleses, franceses e holandeses na
região, bem como para estimular o povoamento daquela parte da
Amazônia. Ao redor da construção fixaram-se indígenas das tribos
Manaus, Barés, Banibas e Passés. Como vestígio da Fortaleza, o
autor cita o Cemitério Indígena encontrado durante as obras
realizadas na Praça Dom Pedro II, afirmando que “a atual
geração que hoje habita Manaus ignora o fato, mal podendo avaliar
que ali foram sepultados muitos antepassados nossos, de raça e mesmo
de sangue” (BITTENCOURT, 1969, p. 34).
Seguiu-se
à criação da Capitania de São José do Rio Negro, em 1755, a
mudança de sua sede, até então em Mariuá (Barcelos), para o Lugar
da Barra, ocorrida em 1791 durante a administração do Brigadeiro e
engenheiro militar Manuel da Gama Lobo D’ Almada. A mudança foi
gestada pela melhor localização, na confluência dos rios Negro e
Amazonas, daquele tímido burgo. A medida não agradou D. Francisco
de Souza Coutinho, Capitão-General do Grão-Pará, temeroso do
prestígio que tal mudança garantiu a Lobo D’ Almada, pois este,
em seu governo, dinamizou o Lugar da Barra, introduzindo nele várias
melhorias como fábricas, olarias, padarias etc. Com a ajuda de seu
irmão, Rodrigo de Souza Coutinho, Ministro em Portugal, iniciou “[…]
sua campanha contra a nova sede da Capitania e, como consequência,
em 1799 retorna esta para Barcelos, nos têrmos da Carta Régia de 22
de agôsto de 1798” (BITTENCOURT, 1969, p. 35-36). O Lugar
volta a ser sede da Capitania de São José do Rio Negro em 1808,
passando a categoria de Vila em 1832, com o nome de Manaus, sendo
elevada à Cidade da Barra do Rio Negro em 1848 e, em 1856, “recebeu
a designação definitiva de Cidade de Manaus, já então com 4.000
habitantes” (BITTENCOURT, 1969, p. 37).
Reconhecendo
que as mudanças de status (Lugar, Vila e Cidade) não alteram
profundamente, de forma imediata, os aspectos de Manaus, e que essas
transformações dependem de fatores econômicos e sociais que se
processam lentamente ou em surtos, Agnello Bittencourt propõe três
etapas em que se pode observar, do ponto de vista dos aspectos
físicos, a cidade de Manaus: “a primeira, que vai da fundação
do Forte até meados do último quartel do século passado; a
segunda, indo dessa época até quase da Segunda Guerra Mundial; e a
terceira, a Manaus de hoje” (BITTENCOURT, 1969, p. 38-39).
Da
primeira fase, entre fins do século XVIII até a segunda metade do
século XIX, o historiador recupera os relatos dos viajantes que,
durante suas expedições, passaram por Manaus, e os relatórios dos
primeiros Presidentes da Província do Amazonas: Alexandre Rodrigues
Ferreira (1787), Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von
Martius (1819), Alfred Russel Wallace (1849), Richard Spruce
(1850-51), Lourenço da Silva Araújo e Amazonas (1852), João
Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha (1852), Herculano Ferreira Pena
(1853), A. Belmar (1860), Louis e Elizabeth Agassiz (1865) e Franz
Keller-Leuzinger (1867). É do casal Agassiz a famosa impressão de
que “insignificante
hoje (1865),
Manaus se tornará, sem dúvida, um grande centro de comércio e
navegação”
(AGASSIZ,
2000, p. 196). Esses
diversos relatos e impressões dão notícia de uma cidade com
população diminuta, sem maior expressão econômica e com seus
limites urbanos definidos pelo terreno tortuoso, pelas matas e
igarapés. A
partir do final do século XIX, a narrativa se torna mais pessoal,
baseada no que o autor viu ao longo de 92 anos de vida, “setenta
dos quais passados em Manaus”
(BITTENCOURT, 1969, p. 55). São
frequentes os termos ‘vi’, ‘andei’, ‘conheci’: “Esta
Manaus que conheci era limitada ao norte pela rua Monsenhor Coutinho,
ao Sul pelo Rio Negro, a leste pela rua Joaquim Nabuco e a oeste pelo
igarapé de São Vicente. Além daí era os bairros de Educandos,
Cachoeirinha, Campinas e São Raimundo”
(BITTENCOURT, 1969, p. 63-64).
Ao
fim do período provincial surgem prédios de arquitetura mais
refinada, destacando-se o Paço Municipal, a Catedral de Nossa da
Conceição, a Santa Casa de Misericórdia, o Gymnasio Dom Pedro II,
o Asilo Elisa Souto, o Mercado Público, o Quartel de Artilharia, a
Cadeia Pública, a Assembleia Legislativa e a Delegacia Fiscal. “Era
assim a cidade que, a 3 de junho de 1889, recebeu a visita de S. A.
I. o Conde d’Eu, a cujo desembarque tive a oportunidade de
assistir”
(BITTENCOURT, 1969, p. 64). Findada a Monarquia e instalada a
República, tem início a segunda etapa de Manaus, que
será marcada pelo frenesi da economia gomífera.
Agnello
Bittencourt
foi testemunha dessas mudanças, vendo de perto as administrações
de Eduardo Gonçalves Ribeiro, Fileto Pires Ferreira, José Cardoso
Ramalho Júnior, Silvério Nery, Constantino Nery e Antônio Clemente
Ribeiro Bittencourt, apenas para ficarmos no período que vai de 1890
a 1912, do apogeu ao início da desestruturação do sistema
gomífero. De forma saudosista, lembra que a cidade atingiu “[…]
o
apogeu da (também muito sua) “belle époque” - lindos prédios,
ruas bem pavimentadas com seus batentes e calçadas em mármore de
Lioz, iluminação feérica, luxo e até esbanjamento”
(BITTENCOURT, 1969, p. 69). Tais afirmações reforçaram a
ideia de uma cidade plenamente próspera, também presente em outros
autores
da
mesma geração, quando
já se sabe, por estudos feitos desde a década de 1980, que
paralelamente a esse enriquecimento houve um forte processo de
exclusão das camadas populares. Como
membro de uma família tradicional da elite local, tendo ele próprio
estado a frente da Prefeitura de Manaus entre 1909 e 1910, não é
estranho que
faça afirmações como a de que, em Manaus, “a
população vivia à europeia, viajando para o Velho Mundo,
especialmente Paris”
(BITTENCOURT, 1969, p. 69).
A
partir de 1913 até a Segunda Guerra Mundial, com exceção da
expansão ao Norte pela criação do bairro da Vila Municipal
(Adrianópolis), em
1912, a
cidade pouco cresceu
materialmente. Agnello Bittencourt cita a compra, pelo Estado, do
Palacete Scholz, transformado em Palácio Rio Negro (1918) e a
construção do Relógio da Avenida Eduardo Ribeiro durante a
administração municipal de Araújo Lima (1926-1930). Termina
assim a segunda etapa.
A
cidade começa a ganhar novo fôlego a partir da terceira etapa.
Entre o final da década de 1930 e início da década de 1940 surgem
o Parque 10 de Novembro (1938-1943), vários grupos escolares, o
Departamento de Saúde Pública e o Instituto de Educação do
Amazonas. Nos governos de Leopoldo Amorim da Silva Neves, Plínio
Ramos Coelho e Gilberto Mestrinho de Medeiros Raposo, “novas
estradas e avenidas rasgaram a cidade, muitas ruas foram asfaltadas e
solucionou-se o problema crucial que havia anos afligia a população:
voltou a haver iluminação elétrica”
(BITTENCOURT, 1969, p. 81). Vale
lembrar que, apesar dessa aparente recuperação, o município, ao
longo de toda a década de 1950, enfrentaria sérios problemas de
déficit orçamentário.
A
terceira etapa, a Manaus de hoje (1960), é coroada com a criação e
instalação da
Zona Franca. Esse
novo modelo econômico possibilitou a entrada da cidade em uma nova
era de crescimento, expansão e integração. Agnello Bittencourt
finaliza seu texto desejando um bom futuro para a cidade e para seus
administradores naquele momento do tricentenário, o Governador
Danilo Duarte de Mattos Areosa e o Prefeito Paulo Pinto Nery.
‘Fundação
de Manaus – Pródromos e Sequências’,
é um singelo trabalho de síntese histórica comemorativa ao
aniversário da cidade, produzido, em grande parte, através de
reminiscências da Manaus
que o autor viu crescer aos poucos, atravessando
surtos econômicos e crises. O
livro
se tornou um clássico que não deve ser olvidado por aqueles que
desejam conhecer melhor a cidade e analisar criticamente sua
historiografia tradicional,
da qual este faz parte.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
AGASSIZ,
Louis; AGASSIZ, Elizabeth.
Viagem
ao Brasil: 1865-1866.
Brasília, DF: Senado Federal, 2000, p. 196. (Coleção o Brasil
visto por estrangeiros). [original: 1868].
BITTENCOURT,
Agnello. Fundação
de Manaus – Pródromos e Sequências.
Manaus: Editora Sérgio Cardoso, 1969.
CRÉDITO DA IMAGEM:
estilousado.com.br
Meu problema com o obelisco erguido na Matriz inaugurado em 24 de outubro de 1948, fazendo referencia a data histórica de mudança de vila para cidade em 24 de outubro de 1848. Então, temos ai um centenário, com dia mês e ano. Entretanto, depois de 20 anos, em 1969 comemorava-se o Tricentenário de Manaus. Portanto, obelisco não tem sentido, pois não tem como determinar dia e mês do ano de 1669, para comemorar um aniversário.
ResponderExcluirAgora, com esta obra maravilhosa que em 1969 comemora os 300 anos de Manaus, começo a entender melhor a confusão do obelisco de um centenário.
Posso dizer agora olhando pro bendito obelisco. Parabéns Manaus pelos 170 anos em 2018. (Agora o Obelisco faz sentido, Srs. iluminats..kkk)