quinta-feira, 15 de novembro de 2018

'Homens, Cousas e Fatos' – Etelvina D’ Alencar (1956)

Mausoléu de Etelvina D' Alencar (1884-1901). FOTO: Fábio Augusto de C. Pedrosa, 2018.

A História da jovem Etelvina D’ Alencar (1884-1901), popularmente conhecida como Santa Etelvina, até hoje, passados 117 anos de seu assassinato, desperta a curiosidade de leigos e pesquisadores. Seu mausoléu no Cemitério São João Batista, para onde concorre grande número de católicos em busca de graças ou agradecimentos ao que já foi alcançado, seja a aprovação em um concurso ou a cura de uma enfermidade, é o mais visitado daquela necrópole. Reproduzo, abaixo, o texto referência sobre o caso, escrito pelo jornalista Julio Uchôa em 1956 e publicado no Jornal do Comércio.


HOMENS, COUSAS E FATOS

Julio UCHÔA
(Da Asoc. Amaz. de Imprensa)


Escrevemos, em 1947, algumas notas sôbre Etelvina de Alencar, jovem nordestina, de 17 anos de idade, sacrificada às mãos de um conterrâneo seu, o qual se deixou dominar por estranha e mórbida paixão. Isso em princípios de 1901. Descreveu o doloroso acontecimento, de extraordinária repercussão em todo o país, um inspirado bardo popular que enfeixou, em um folheto, sua magnífica produção. Muitos anos volvidos, após sua divulgação, caiu sob nossas vistas um exemplar dêsse livrinho1. E, foi, assim, que ao historiador forneceu o poeta os elementos indispensáveis à elaboração do citado trabalho, conservando aquêle, desta feita, como da vez anterior, o mesmo sentido trágico e humano, dado por êste à sua impressionante narrativa.

Filha de Cosme José de Alencar e de dona Antônia Rosalina de Alencar, Etelvina nasceu em Boa Vista do Icó (Ceará), em 1884, vindo para Manaus em companhia de sua genitora, já, então, viúva, e de três irmãs, sendo uma destas casada. Desta capital se transportou a família à Colônia “Campos Sales”, inaugurada dois anos antes, onde se ia dedicar aos labores agrícolas.

Na Colônia, Etelvina veio a conhecer o colono de nome José, que logo a primeira vista por ela se apaixonou, seguindo-se o ajuste de casamento. Cedo, porém, a desilusão: a jovem fez saber a José não mais desejava casar-se com êle, desfazendo-se, dêste modo, os compromissos assumidos anteriormente.

Grande abalo produziu no espírito de José o rompimento do noivado. Meio pequeno, constituído como que de uma família, a notícia provocou sensação. Houve mesmo quem afirmasse que Etelvina possuía três namorados: Antônio, Estevam e Henrique. Tudo isso ouvira José, e dando crédito às intrigas que lhe contavam, jurou vingar-se, não só da ex-namorada, mas, igualmente, dos três rapazes que imaginava causadores de sua infelicidade. E tudo planejou, fria demoradamente.

Veio à cidade, onde adquiriu um rifle e farta munição. Mataria a todos, dissera ele a amigos. Estávamos em março de 1901.

E, assim, aconteceu. Mal entrava na área da Colônia, alvejava a tiro a Estevam, que descuidado não esperava a agressão; ao primeiro disparo êle corre, procurando desvencilhar-se do assassino; um segundo tiro, porém, prostrou-o sem vida. Mais adiante estava Henrique, com quem José trava violenta luta corporal; subjugado o adversário, abateu-o a tiro. Um pobre caboclo que dormia à sombra de uma árvore próximo à casa da Administração, é a terceira vítima da fúria sanguinária do celerado…

Cometidos os três crimes, José se dirige à residência de Etelvina, e, valendo-se do coice do rifle, pôs abaixo a porta da casa. Nessa ocasião aparece-lhe Versoli, administrador da Colônia, que procura interceptar a entrada do criminoso, sendo morto, por êste. Suspeitando das intenções do bandido, a moça tenta fugir, no que é obstada por êle que conseguiu alcançá-la e “quase nua, pés descalços em camisão” (diz o poeta), a desventurada Etelvina é arrastada para a densa floresta que se estendia às proximidades da casa.

Infrutíferas foram as buscas nos primeiros dias. E, somente a 8 de março é encontrado o local, em que se consumara o derradeiro ato do imenso drama, misto de amor e ódio. Os urubús, em grupos simétricos, voejavam alto, sinal evidente de que lauto fôra o repasto. E, ali, o quadro punjente, que a todos estarreceu: duas caveiras se defrontavam, numa evocação sinistra dos últimos instantes, de pavor e de alucinação, que viveram aquelas duas criaturas. O rifle, entre os dois esqueletos, explicava a cena final: José matara a infeliz Etelvina, suicidando-se, a seguir.

Repousam os restos mortais de Etelvina de Alencar, ou “Santa Etelvina”, como é por todos reverenciada, no cemitério de São João, em sepultura perpetuada por lei municipal n° 233, de 30 de agôsto de 1901, à sombra do jazigo que o Povo Amazonense ergueu à sua memória. E, desde então as visitas ao seu túmulo se sucedem, ininterruptamente, durante o dia: são os devotos da meiga “Santinha”, que ali vão levar suas oblatas, ou acender um círio votivo pelo atendimento às suas súplicas e orações…


FONTE:


JORNAL DO COMÉRCIO, Ano 52, N° 13.971, 15/01/1956.


NOTAS:

1 Julio Uchôa refere-se ao livreto ‘Os Horrores de Manaus’, do poeta popular potiguar Antônio Mulatinho. Com primeira edição possivelmente publicada em 1905, foi produzido em homenagem a Etelvina D’ Alencar. O dinheiro arrecadado com a venda desse trabalho foi utilizado em melhoramentos no seu túmulo. Além do assassinato da jovem, que leva o título ‘A infeliz Etelvina em março de 1901’, Antônio aborda mais três crimes, todos narrados em forma de prosa: 'Tiroteio de 26 e 27 de fevereiro, em 1893'; 'A morte de 4 creanças no bairro do Mocó, em setembro de 1895'; e 'O crime do Barba Azul, em junho de 1901'. A trova final, ‘Saudades do meu sertão’, é um poema saudosista em lembrança ao Nordeste, região de onde o autor veio.



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