Os
jornais, nos últimos anos, tem sido uma das fontes mais utilizadas
nas produções acadêmicas no campo da História. Não é difícil
encontrar trabalhos produzidos exclusivamente com eles, bem como
aqueles em que foram a maior parte do material empregado. Essa
guinada se deu entre as décadas de 1980 e 1990, período em que os
periódicos passaram a ser vistos como fontes importantes na
compreensão dos processos históricos, haja vista serem instrumentos
de propagação ideologias, modos e modas, oferecendo muitas
informações de outras épocas e se mostrando frutos desses
contextos históricos. No Amazonas já existem algumas monografias,
dissertações e teses alicerçadas nas páginas amareladas dos
jornais, mas se comparado a outras regiões, ainda são poucas as
pesquisas locais em que eles são utilizados como objetos ou fontes
de estudo. Pode-se citar como trabalho pioneiro o catálogo ‘Cem
anos de Imprensa no Amazonas (1850-1950)’, organizado na década
de 1990 pelos professores do Departamento de História da
Universidade Federal do Amazonas (UFAM). É um levantamento precioso
sobre os jornais que foram publicados no Amazonas entre a segunda
metade do século XIX e a segunda metade do século XX.
Foi
pensando nessa lacuna em nosso Estado que a professora Maria Luiza
Ugarte Pinheiro, do Departamento de História da UFAM, publicou, em
2015, ‘Folhas do Norte: Letramento e Periodismo no Amazonas
(1880-1920)’, resultado de sua tese de Doutorado defendida em
2001 na PUC-São Paulo. Neste livro a historiadora Maria Luiza
analisa o surgimento, desenvolvimento e expansão do letramento e da
imprensa no Amazonas.
O
livro é divido em duas partes, cada uma com três capítulos. No
primeiro são abordadas a Oralidade e Letramento
no Amazonas (1850-1880). Em uma região vasta e pouco
povoada, de maioria indígena e com forte tradição oral, a cultura
letrada fazia parte da realidade de poucas pessoas, em sua maioria
ligadas à máquina burocrática e, ainda assim, de forma deficiente
entre esse seleto grupo. A autonomia surgida com a criação da
Província em 1850 não foi suficiente, pois as escolas criadas pelos
Presidentes, tanto na capital quanto no interior, sofrem com a
carência de profissionais para preencher os quadros de professores
de primeiras letras.
É
nesse contexto, em que a língua portuguesa ainda não estava
consolidada entre a população, que surge a imprensa no Amazonas.
Maria Luiza foge da tradicional polarização oralidade x letramento,
mostrando “[…] como a utilização de novas linguagens – o
humor, a charge e a caricatura – no interior do periodismo pode se
constituir em mecanismos que expressam não só tensões, mas também
mediações com o universo oral local” (p. 71). Dessa forma, o
surgimento de periódicos em uma região deficitária no domínio das
letras é fruto de uma relação de trocas, penetrações, submissões
e concessões entre o dito e o escrito.
Em
Feição e feitura dos primeiros jornais do Amazonas são
analisados os primeiros passos dos jornais no Amazonas (1851),
os oficiais e
ligados a partidos políticos,
produzidos em tipografias e
financiados pelo Estado; e os
manuscritos e datilografados, de baixa tiragem, pequenos
empreendimentos de pessoas sem
especialização na área.
Estes últimos, a “pequena imprensa”, compõe o grosso da obra.
Os jornais enfrentaram
dificuldades de diferentes tipos, tais como um
público acostumado mais com a oralidade que a leitura, a
falta de mão de obra especializada (tipógrafos), de oficinas
tipográficas bem montadas, de material (papel, tinta) e
perseguições políticas, com a destruição de redações e ataques
a jornalistas.
Por
volta de 1880-1900,
a circulação de capitais
surgida com o sistema econômico gomífero propiciou a importação
de máquinas de impressão, de materiais e atraiu
profissionais estrangeiros altamente qualificados para trabalhar nas
oficinas tipográficas. Ainda assim, uma gama de pequenos jornais,
feitos em sua maioria de forma artesanal, continuavam a surgir,
mostrando como o acesso às novas técnicas era restrito e oneroso e
a existência de pessoas
obstinadas em deixar registradas suas visões da sociedade. São
periódicos com nomes curiosos que evidenciam seu caráter popular:
KCT, A
Matraca, A Marreta,
O Raio, A
Mutuca e O Chicote,
apenas para ficarmos em alguns exemplos. Inúmeros
foram publicados, tendo uma existência efêmera, evidenciando assim
os problemas da empresa jornalística. O aparecimento de um novo
jornal era geralmente celebrado, mas o clima de tensão entre a
grande e a pequena imprensa era uma realidade, conforme assinala a
autora: “Ao longo das duas primeiras décadas do século
XX, as pequenas folhas, de estilo mais despojado e de linguagem
coloquial, passam a ser cada vez menos toleradas no interior do
periodismo e constantemente confrontadas por jornais que,
projetando-se como portadores diletos do refinamento cultural e da
vida civilizada, passaram a impor regras e convenções, defendendo a
restrição da atividade jornalística à esfera da norma culta
burguesa” (p. 105).
Intelectuais
de renome regional e nacional como Thaumaturgo Sotero Vaz, Péricles
Moraes, Álvaro Botelho Maia,
Arthur Cézar Ferreira Reis, Agnello
Bittencourt e Mário Ypiranga
Monteiro, que fizeram parte da Academia Amazonense de Letras (AAL) e
do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), iniciaram
suas carreiras nos jornais antes de atingirem o auge de compor os
quadros de imortais e membros dessas instituições culturais. Aliás,
uma tendência na maioria das cidades brasileiras na virada do século
XIX para o XX. Foi
através da imprensa que os homens de letras amazonenses externaram
seus pensamentos, digladiaram-se em correntes literárias, traduziram
obras, introduziram valores e ideologias na população e utilizaram
a linguagem popular para manter esse contato. É isso que fica
evidente em Do jornal à academia: Elites
intelectuais e Periodismo no Amazonas.
Em
uma região tida como culturalmente acanhada, distante dos centros
letrados como Rio de Janeiro e São Paulo, que
esterilizava seus grandes nomes,
esses escritores, sociólogos, historiadores e professores vão
criando nas páginas dos
jornais diários, médios e pequenos, através de conferências e
correspondências com autores da “corte literária”, uma
fervilhante ambiência cultural que foi o núcleo, em 1909, da
Universidade Livre de Manaus, do Instituto Geográfico e Histórico
do Amazonas, em 1917 e, da instituição de maior relevo, a Academia
Amazonense de Letras, em 1918. Essa
elite intelectual não é apenas fruto de um novo momento do
Amazonas, em que a economia gomífera permite a reestruturação de
parte da vida urbana, do aparato jornalístico, da incorporação de
mão de obra estrangeira e especializada. Maria Luiza Ugarte Pinheiro
lembra que “tanto quanto instituída, a imprensa
institui, instaura e dinamiza a cultura letrada e os valores da
sociedade burguesa ocidental, ao mesmo tempo, que por eles é
potencializada” (p. 153). Os
articulistas locais discutem, traduzem os anseios diante das mudanças
operadas, modificam o cenário influenciando a opinião pública.
A
riqueza do “ciclo da borracha”, recuperada idilicamente pela
historiografia mais tradicional, foi sendo construída em meio a
contradições sociais características das áreas do globo
incorporadas ao modelo capitalista como fornecedoras de
matérias-primas. Tais contradições mostravam-se em diferentes
aspectos cotidianos. O trabalho era o principal deles. Baixos
salários, carestia e insalubridade faziam parte do dia a dia de
operários, nacionais e estrangeiros, que garantiam o funcionamento
de todo um sistema econômico. Foi
através da imprensa que esses operários, ainda
não plenamente organizados mas conscientes de suas condições,
faziam reivindicações por
melhores salários, planejavam
greves, discutiam, em linguagem acessível, teorias sociais, e
criticavam a indiferença do empresariado local. Jornais
anarquistas, socialistas, de trabalhadores de diferentes áreas
(caixeiros, gráficos,
estivadores etc), produzidos
sem maiores artifícios técnicos, vieram
a luz no Amazonas entre 1890 e 1928, período
marcado pela expansão e declínio da economia gomífera.
Iam da simples defesa ao
engajamento teórico mais elaborado. Essas
são as Folhas Operárias,
tema do quarto capítulo.
Não
sendo diferente de outras realidades, no seio desses próprios
jornais operários existia a contradição, pois muitas vezes, além
do discurso endereçado às classes laboriosas, que
davam sentido a essa modalidade jornalística, estava
o elogio, implícito ou
explícito, ou mesmo a submissão, ao patronato e às oligarquias
políticas. Ainda assim, “suas páginas desnudam as
contradições mais profundas de uma cidade que acabou idealizada
como exemplo de progresso e civilização nos trópicos”
(p. 173). Não raro sofriam,
por parte dos grupos de poder anteriormente citados, represálias em
que o empastelamento, invasão e destruição de tipografias e
escritórios, bem como o ataque a líderes sindicais (que
desempenhavam a função de redatores, diretores, repórteres), foram
as principais formas de silenciamento.
O
humor é uma forma diferenciada de se relacionar com o cotidiano,
utilizando para tal a irreverência e a linguagem coloquial, que lhe
dão o tom. Ele está presente em todas as sociedades e relacionado
de forma inconteste aos contextos históricos pelos quais elas
passam, tornando-se assim uma fonte valiosa para a compreensão de
realidades passadas. A imprensa europeia, já no século XVIII,
permitiu sua rápida propagação nas cidades, fosse em tempos de
Revolução, em que prevalecia a ácida crítica política, fosse em
épocas mais amenas.
No Amazonas da virada do século XIX para o XX não foi diferente.
Jornais humorísticos foram surgindo com a promessa de amenizar ou
servir de alternativa a seriedade da imprensa mais tradicional.
Enxergando diversas possibilidades de análises, a historiadora os
recupera no quinto capítulo, O Humor no Periodismo
Amazonense.
Foram
identificados por Maria Luiza
três tipos de jornais humorísticos: Os de entretenimento, que
teciam críticas ao cotidiano; os de humor político, voltados
para as críticas a política local e nacional;
e os moralizadores e
segregadores, em que os artigos eram verdadeiros ataques a
homossexuais, prostitutas, negros e imigrantes nordestinos. “O
jornal de humor, a propor o entretenimento, desafia e afronta o
instituído, o consagrado e, ao fazê-lo, atrai a atenção de um
conjunto de leitores que não só demandam atitudes de independência
e de liberdade de pensamento e expressão, mas também desejam ver
esgarçadas as contradições de uma sociedade que lhes parecia
putrefata” (p. 234). Esses
jornais atendem os anseios populares, dialogam com eles, assim como
fazem parte de uma esfera burguesa que através do chiste criticava
setores populares da sociedade considerados atrasados e indesejados
no espaço urbano. As
imagens, charges e caricaturas, de acontecimentos do dia a dia, de
membros da elite, políticos e acontecimentos nacionais e
internacionais, surgem de forma tardia, mas se fazem presentes no
periodismo amazonense. Esses recursos visuais, em uma sociedade
marcada por altos índices de analfabetismo, permitem a leitura e
diferentes interpretações que não seriam possíveis apenas com
textos escritos.
Uma
das principais mudanças verificadas a partir da segunda metade do
século XIX foi a condição
da mulher. De submissa e encerrada na esfera privada do lar, ela
passa a ocupar os espaços que antigamente lhe eram proibidos. As
transformações econômicas e o acesso à instrução foram fatores
decisivos para que as mulheres se tornassem cada vez mais membros
ativos da sociedade, reivindicando a emancipação frente ao
patriarcado. Essas vozes
ecoaram, não sem dificuldades, pelos jornais. A Mulher
no Periodismo – último
capítulo – fez representar-se e foi representada de várias
formas.
Assim
como vinha ocorrendo na Europa e na América do Norte, as mulheres,
no Amazonas, estavam ganhando espaço e maior visibilidade. De
uma forma interessante e pouco vista na historiografia local, Maria
Luiza as localiza
através da iconografia (com
destaque para as cenas do filme No Paiz das Amazonas,
de Silvino Santos, produzido em 1922)
desempenhando diferentes trabalhos, tais como os de lavadeiras,
costureiras, operárias, coletoras de guaraná e de ovos de
tartaruga. O mundo letrado,
formado majoritariamente por homens, reagiu. Pelas páginas dos
jornais, artigos e caricaturas criticavam a ascensão das mulheres,
vista como uma forma de subversão da “ordem natural” que lhes
outorgou a condição de donas de casa, e
uma ameaça a predominância masculina, visto que elas começavam a
ter ocupações anteriormente restritas a esse grupo. Na imprensa
elas tinham pouco espaço. Apareciam nas notas do colunismo social,
nos romances e crônicas nos rodapés das páginas, sempre associadas
a assuntos superficiais. O final do século XIX, no
entanto, viu surgir o
Abolicionista do Amazonas
(1884), formado por mulheres da alta sociedade que lutavam pela
abolição da escravidão. Treze anos depois, aparecia em Codajás A
Rosa (1897).
Em 1909, o Grêmio, em
Manaus. Os periódicos
anteriormente citados tinham diferentes tipos de abordagem, indo da
“aceitação” da condição da mulher como mãe e dona de casa
até a luta pela equiparação salarial. A historiadora salienta que,
“contudo, não se deve concluir que a ação das mulheres
na imprensa demonstrasse sempre uma postura apática ou alienante e
invariavelmente submissa. Embora difícil de aquilatar, não há como
duvidar do fato de que os avanços atuais foram construídos
lentamente nos rastros das centelhas lançadas por essas pioneiras”
(p. 315).
O
pioneirismo do trabalho da historiadora Maria Luiza Ugarte Pinheiro
reside
no uso que fez dos pequenos jornais, esquecidos ou ignorados pela
antiga historiografia local em detrimento dos grandes jornais
empresa. Os recuperando em arquivos precariamente organizados (com
uma ou outra exceção) deu
luz a um cotidiano mais popular, vívido, impregnado de contradições,
abarcando a relação entre oralidade e letramento, o surgimento dos
primeiros jornais, a
atividade das elites intelectuais no periodismo, as dificuldades do
nascente jornalismo operário, o humor e a presença da mulher no
periodismo amazonense.
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