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segunda-feira, 26 de março de 2018

Amiano Marcelino: Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Escultura entalhada em madeira representando o historiador Amiano Marcelino (330 - 395/400 d. C.). Alfeld, Alemanha, século XVII.

Amiano Marcelino (330 - 395/400 d. C.) foi um militar e historiador nascido na cidade de Antioquia, atual Antáquia, na Turquia. Considerado um dos últimos grandes historiadores romanos (embora fosse grego de nascimento) e o último historiador pagão, escreveu em um período de profundas transformações do Império Romano, com destaque para a ascensão e oficialização do Cristianismo como religião de Estado através do Édito de Tessalônica, decretado pelo imperador Teodósio I em 380 d. C.

Tendo vivido nessa época, século IV, nos oferece, através de sua principal obra, Res Gestae (Os Feitos), que acredita-se ser uma tentativa de continuar a obra de Tácito, um panorama, ainda que de forma fragmentada (dos 31 livros que compunham a obra apenas 17 foram preservados), do processo de conturbação e decadência do Império. De acordo com Bruna Campos Gonçalves, "seu relato começa em 96 d. C. com o reinado do imperador Nerva (96 - 98 d. C.) e perpassa por todos os imperadores terminando sua narrativa com o governo de Valentiniano II (378 - 383 d. C.)" (GONÇALVES, 2008, p. 97). O grosso que sobreviveu de Os Feitos cobre os reinados de Constâncio II, Juliano, o Apóstata, e Valentiniano II.

O primeiro livro sobrevivente, de número 14, é dedicado, em um primeiro momento, às ações de César Galo, primo de Constâncio II. Galo foi um César extremamente cruel e violento, assim como seu primo, sobre quem recaem as atenções do historiador posteriormente. Além das descrições sobre Galo e Constâncio II, também é feita uma digressão sobre os costumes dos sarracenos. Roma, para Amiano, era uma cidade que atravessara todos os estágios da vida, passando do estado pueril para a maturidade, chegando à velhice com grande sabedoria. Os romanos do passado eram simples, desprendidos da ganância. A partir dessa imagem da cidade é apresentada uma outra, a da luxúria e ostentação de alguns habitantes, elementos já criticados por poetas e historiadores de tempos mais remotos. Alguns tem apelidos como "Barril", "Linguiça" e "Barriga de Porco". Esse é, de acordo com John Burrow, 

"o velho tema da luxúria contrastada com a virtude e a venerabilidade romanas antigas, mas apresentado aqui com vivacidade e riqueza de detalhes excepcionais, e uma forte sugestão de lembranças de desfeitas pessoais; é decerto particularmente penoso que, por ocasião de uma ameaça de escassez de alimentos, quando os estrangeiros foram expulsos da cidade, não tenha sido feita exceção aos professores de artes, mas sim a dançarinos e professores de dança" (BURROW, 2013, p. 190).

Ainda falando sobre Galo, Amiano utiliza metáforas animais para descrever esse César, que ora era como "uma cobra ferida por uma lança ou pedra" ou "um leão que experimentou o gosto da carne humana". São feitas algumas digressões sobre as Províncias do oriente. Por último, Galo teve um destino semelhante ao de muitos príncipes e imperadores predecessores: foi executado. Amiano invoca a justiça divina, Adrastia (Nêmesis), "que pune a maldade e recompensa as boas ações [...] Rainha das causas, árbitra e juíza de todas as coisas, ela controla a urna de onde se retira a sorte dos homens e regula suas vicissitudes de fortuna" (BURROW, 2013, p. 191). 

Boa parte dos elementos do pensamento histórico e prática historiográfica vistos no livro 14, segundo John Burrow, voltarão a aparecer nos fragmentos posteriores: 

"desconfiança e crueldade imperiais; digressões etnográficas e geográficas; veneração pelo passado de Roma e pela própria cidade, apesar das descrições satíricas da população; devoção aos deuses antigos; autoconsciência literária e alusão a exemplos históricos; excessos metafóricos na escrita e o acréscimo de imagens de bestas selvagens" (BURROW, 2013, p. 192).

Outro elemento marcante é a crença de Amiano em presságios e adivinhações, para ele conhecimentos inexatos e muitas vezes utilizados de forma indevida ou exagerada. Os deuses, a exemplo dos sinais dados por pássaros, controlavam esses animais para revelar aos homens diferentes tipos de acontecimentos. Na condição de militar, ficou ligado ao exército até 363 d. C., tendo sido testemunha ocular de inúmeras batalhas, acompanhando as campanhas dos imperadores no Oriente, na Gália e na Germânia. Nas campanhas de Juliano, observa e descreve as cenas dos campos de combate.

O interesse de Amiano pelo reinado de Juliano diz respeito a sua tentativa de reviver os cultos pagãos, abandonando o Cristianismo, tentativa essa que lhe reservou a alcunha de Juliano, o Apóstata. As ações de Juliano são violentas, com a proibição aos cristãos de ministrarem aulas, destruição de igrejas e inúmeros sacrifícios. Esses atos eram criticados por Amiano, pois seu paganismo era "[...] de um tipo mais contido e genial" (BURROW, 2013, p. 195). Amiano, ao contrário de outros historiadores como Tácito, que tinha uma visão depreciativa dos cristãos, demonstrava certa tolerância com os praticantes dessa religião.

Após a morte de Juliano, os governos seguintes são marcados por dois acontecimentos considerados críticos: a permissão da entrada de godos via Danúbio em territórios romanos (376) e a derrota e morte do imperador Valente na batalha de Adrianópolis (378). Roma era assediada, mas não estava em declínio. Era, antes disso, o centro do mundo, a Cidade Eterna. Amiano, grego, escreve em latim. Bruna Campos, citando o professor Ronald Mellor, apresenta duas prováveis causas para essa escolha:

"A óbvia razão literária era continuar a obra de Tácito, enquanto que a razão política era escrever, como chamou o retórico grego Temístio την διαλεκτον κρατουσαν (‘a língua dos nossos governantes’). Diferentemente do cortesão Temístio, Amiano não estava tentando alcançar os favores imperiais, mas estava profundamente comprometido com Roma e com sua herança politica. Seu orgulho de sua cidadania romana é evidente em toda sua obra". (MELLOR, 1999, p.126). 

Amiano Marcelino, considerado um  dos últimos grandes historiadores romanos (de origem grega) da Antiguidade Tardia e o último historiador pagão, escreveu sua obra em latim, obra essa cujos principais elementos são a desconfiança e crueldade imperiais; digressões etnográficas e geográficas; veneração pelo passado de Roma e pela própria cidade, apesar das descrições satíricas da população; devoção aos deuses antigos; autoconsciência literária e alusão a exemplos históricos; excessos metafóricos na escrita; o acréscimo de imagens de bestas selvagens; e a crença em presságios e adivinhações. Res Gestae é mais uma obra do último século de existência do Império Romano, que oferece, ainda que de forma incompleta, um panorama da desestruturação da unidade imperial.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BURROW, John. Uma História das Histórias. De Heródoto e Tucídides ao século XX. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, tradução de Nana Vaz de Castro, 2013.

GONÇALVES, B. C. . Amiano Marcelino e sua obra Res Gestae: tratamento documental e os livros XXV, XXVI e XXVII. In: XXIII Semana de Estudos Clássicos / V Encontro de Iniciação Científica em Estudos Clássicos Cultura Clássica: Inter-relações e permanência, 2008, Araraquara. Anais da XXIII Semana de Estudos Clássicos V Encontro de Iniciação Científica em Estudos Clássicos. Cultura Clássica: inter-relações e permanência, 2008. p. 95-102.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Falkensteinfoto/Alamy Stock Photo

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Resenha: História do Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon


Os homens letrados do século XVIII tinham um enorme talento na arte da escrita, talento esse por nós conhecido através das obras de Montesquieu, Voltaire, Rosseau e Diderot. O inglês Edward Gibbon (1737-1794) faz parte desse hall de iluministas, posição alcançada pela produção da monumental História do Declínio e Queda do Império Romano.

Poucas são as obras que fazem sucesso imediato ao ser publicadas. Em 1776 o primeiro volume de Declínio e Queda foi recebido de forma ambígua, entre a crítica dos conservadores e o entusiasmo dos mais liberais, mas tornou-se um sucesso de vendas. O advogado e biógrafo escocês James Boswell (1740-1795) acusou Gibbon de ser um “fantoche incrédulo”. O motivo? Gibbon inovou a História moderna ao analisar o declínio do Império Romano do Ocidente sob o ponto de vista da ascensão do Cristianismo. O historiador inglês não era ateu (foi calvinista, converteu-se ao catolicismo e reconverteu-se ao calvinismo), mas, assim como outros escritores do período das Luzes, era crítico da superstição, da intolerância que gerava o fanatismo e cerceava a liberdade, condição altamente necessária aos burgueses liberais do setecentos.

Foi em Roma, em 1764, durante uma viagem, que surgiu a ideia de investigar as causas do declínio e queda do Império Romano: “[…] enquanto eu estava sentado a cismar entre as ruínas do Capitólio e os monges descalços cantavam as vésperas no Templo de Júpiter; que a ideia de relatar o declínio e a queda da cidade pela primeira vez me veio à mente” (p. 19). Da cidade, ampliou a investigação para o Império. A junção de diferentes elementos históricos vistos (monges, ruínas romanas e a cidade moderna) foi o norte de Edward Gibbon.

Durante a juventude ele teve contato com as obras de Heródoto, Tucídides, Xenofonte, Horácio, Virgílio, Terêncio, Ovídio e outros gregos e latinos; assim como leu obras de autores contemporâneos, no caso Considerações sobre as causas da grandeza e decadência dos romanos, de Montesquieu; e outros do final do século XVII, como Grotius, Pascal, Putendorf, Locke e Bayle. Foram 12 longos anos de leituras de fontes primárias, de grande erudição, até que a obra fosse concluída entre 1788-89, totalizando seis densos volumes.

Nós, leitores brasileiros, temos acesso às edições abreviadas, que giram em torno de 504-607 páginas (só o primeiro volume do original possui 628 páginas). A que tenho em mãos é a mais recente, de 2005, em formato de bolso, organizada em 1952 pelo jornalista e erudito norte-americano Dero A. Saunders e traduzida pelo poeta, crítico literário e ensaísta brasileiro José Paulo Paes, que também traduziu a mais antiga, de 1989. O compêndio de Saunders nos permite, mesmo que o texto não seja integral, ter uma noção da grandiosidade da obra do historiador inglês. Gibbon analisa mais de mil anos de história, indo do século II d.C. até o século XV. Sua pena é como um manto que cobre todos os acontecimentos desse período.

O gênio do autor não reside apenas em sua erudição, no manuseio de inúmeras fontes, mas em seu estilo literário. Ele penetra no íntimo das instituições, dos cultos, das administrações imperiais, do caráter dos imperadores, das guerras e dos conflitos internos. A impressão que passa é a de ter sido testemunha ocular da desestruturação do Império, de ter entrado pessoalmente nas catacumbas cristãs primitivas, de ter visto de perto as invasões de godos, francos, vândalos, saxões, hunos e outros povos bárbaros. A economia não é o seu ponto forte, sendo todas as atenções voltadas para aspectos políticos, sociais e culturais. Toda essa vivacidade e acuidade são acompanhadas por críticas, polêmicas e ironias que transitam entre o irreverente e a acidez. Na introdução de sua obra, sobre a extensão e o poderio militar do Império na época dos Antoninos, Gibbon pinta o seguinte quadro do Império Romano no século II d.C.:

No segundo século da Era Cristã, o império de Roma abrangia a mais bela parte da terra e o segmento mais civilizado da humanidade. As fronteiras daquela vasta monarquia eram guardadas por antigo renome e disciplinada bravura. A influência branda mas eficaz das leis e dos costumes havia gradualmente cimentado a união das províncias. Seus pacíficos habitantes desfrutavam até o ponto de abuso os privilégios da opulência e do luxo (p. 31).

Gibbon, em um tom moralizante, que pode ser visto em outras passagens de sua obra, critica a opulência e luxo desmedidos, elementos que em excesso podem ser nocivos ao homem. Superstições, milagres e outros eventos explicados de forma sobrenatural são criticados, buscando-se explicações naturais, físicas e racionais. Em nível de exemplo, quando o autor aborda o Imperador Constantino, a primeira coisa que faz é desmistificar as visões divinas sobre sua conversão ao Cristianismo, apontando os motivos políticos, e não religiosos, desse fato. Fé cega e espírito crítico, natureza humana e religião, são para ele termos opostos.

Uma religião que até então vivia na clandestinidade, na periferia do Estado Romano, sendo por diversas vezes perseguida, foi aos poucos penetrando em suas estruturas, se expandindo até as mais distantes províncias, sendo apropriada por imperadores, nobres e servos. Em poucos séculos, de religião periférica e perseguida passou a religião oficial e perseguidora de seus opositores. O Cristianismo triunfou, o antigo mundo romano tornou-se cristão. Para Gibbon, essa vitória desestabilizou a antiga hegemonia ideológica imperial, que tinha seus alicerces, no Paganismo, na imagem e semelhança da figura do imperador à figura da divindade, contribuindo para a sua crise. O Cristianismo, pelo menos em tese, permitiria que todos ficassem em pé de igualdade.

Além de História, Declínio e Queda está impregnado de filosofia, de reflexões, e possui uma ponte entre o passado e o tempo em que o autor escrevia. Como foi dito no início, Gibbon era calvinista, converteu-se ao catolicismo e, posteriormente, retornou ao calvinismo. Ao abordar o Imperador Flávio Cláudio Juliano, mais conhecido como Juliano, o Apóstata, único imperador romano que abandonou o Cristianismo e retornou ao Paganismo, Gibbon parece exprimir nele suas experiências pessoais: a insubmissão, o gosto pela liberdade, a denúncia da hipocrisia religiosa e o interesse por disputas religiosas. O período em que o livro é gestado é marcado por conflitos entre católicos e protestantes, pela transformação política, econômica, social e cultural das nações europeias, que despontavam como potências mundiais, e por revoluções. O pensamento humano estava mudando. Roma atingiu o ápice do crescimento civilizatório, mas, conquista após conquista, ficou imobilizada em seus próprios domínios, ruindo por fatores internos e externos. O mesmo poderia acontecer com a Inglaterra, a França e a Espanha. Não por acaso, mais de um século e meio depois a obra foi lida por vários políticos durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Ocidente e outras áreas do globo novamente entraram em um colapso político-social.

O que é o Império Romano para o historiador inglês? Me pergunto toda vez que o leio, mas sei que não é uma simples unidade política. Sua célebre frase ‘a história, esse quadro terrível dos crimes, das perversidades e das desgraças do gênero humano’ pode nos dar uma pista. O Império Romano surgiu por mãos humanas e ruiu por mãos humanas, é produto da força inventiva e destruidora do homem. Essa é a natureza humana. Segundo ele não devemos nos perguntar porque o Império caiu, mas sim porque durou tanto tempo. História do Declínio e Queda do Império Romano é um monumento da literatura e historiografia modernas, inovador em sua época pelo exame crítico das fontes primárias, pela leitura do Cristianismo como elemento influenciador da queda do Império Romano do Ocidente, pela contextualização e visão abrangente dos eventos históricos. Em um futuro não muito distante o livro de Edward Gibbon voltará ao topo das vendas, preenchendo estantes em todo o mundo, alavancado por nossa crescente necessidade de compreender o atual cenário político e seus possíveis desdobramentos. Sua leitura não é uma dica, mas uma agradável obrigação.


Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa.


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domingo, 18 de setembro de 2016

Análise da expressão "Invasões Bárbaras"

Saque de Roma pelos Vândalos, em 455 d.C. Pintura de Heinrich Leutemann.

Bárbaro, sinônimo de incivilizado, rude e atrasado. Essa expressão, que nos leva à Idade Média, é consagrada no dia a dia, seja por meio da mídia ou, na maioria das vezes, pela herança etimológica que nos foi deixada. Quando se junta a essa palavra outra, invasões, temos um prato cheio para análises. As invasões bárbaras são pontuadas como uma das causas do declínio da parte Ocidental do Império Romano, como bem vemos no ensino básico e, agora, em mais uma série do canal History. Nos foi repassada através de livros didáticos e até mesmo alguns acadêmicos, uma imagem de violentas incursões de povos de vários lugares da Europa em direção ao Império Romano.

No entanto, não foi bem isso que aconteceu, pelo menos em parte. Jerôme Baschet, medievalista francês autor de A Civilização Feudal: do ano mil à colonização da América (2006), uma síntese de História Medieval para os calouros da UNACH (Universidad Autónoma de Chiapas), analisa essa expressão saindo da tradição de ver apenas o poderio militar bárbaro, dando foco para a organização desses povos e desmistificando alguns pontos de suas relações com Roma.

Baschet faz uma dupla crítica a essa expressão. Primeiro, ele analisa a palavra bárbaro, empregada, primeiramente, para designar os não-gregos e, depois, os não-romanos. A palavra ganhou uma conotação negativa, tornando Roma um modelo de civilização e os não-romanos exemplo de atraso técnico e cultural. Ao entrar em contanto com o Império, esses povos ignoraram elementos essenciais para a cultura urbana de Roma, como a prática da escrita, o Direito e a administração estatal. Mas, em contrapartida, esses povos, organizados em torno de um chefe tribal, tinham suas próprias técnicas, como o artesanato e o trabalho com metais, superior ao dos romanos e frequentemente requisitado pelos mesmos.

Invasões recebe a segunda crítica. O termo, quase que de forma automática, nos faz pensar em violentas incursões militares contra o Império. Elas existiram, claro, e foram bastante violentas, mas, paralelo a elas, existiu um lento processo de infiltração, no qual esses povos germânicos iam se instalando, na maioria das vezes, de forma pacífica. Os grupos menores se favoreciam das práticas artesanais e metalúrgicas, e também prestavam serviços ao exército romano. Grupos maiores faziam acordos com o Império e ganhavam deste o estatuto de Povo Federado, uma associação à Roma, na qual o Estado Romano garantia cidadania, subsídios e proteção em troca de contingentes militares.

Quando o Império entrou em colapso e sua estrutura fiscal desabou, os bárbaros souberam se favorecer com esse problema. As antigas cidades romanas e suas elites, que sofriam cada vez mais com o aumento de impostos, ganham dos reis germânicos privilégios fiscais maiores que o normal, fazendo a antiga estrutura fiscal cair de dentro para fora. O desaparecimento da antiga estrutura fiscal tornou o Ocidente um grupo de regiões sem relação entre si e bastante regionalizado. Os reinos germânicos não conseguem restaurar o imposto e controlar suas terras e as elites locais.

As elites locais das antigas cidades do Império tem seu papel no processo de integração dos povos bárbaros. Para manter suas posições, elas se aliam aos líderes germânicos, realizando casamentos, fundindo linhagens romanas e bárbaras. Os dois lados saem ganhando: os bárbaros, aos poucos, iam se integrando à sociedade romana, muitas vezes ascendendo como membros da aristocracia; enquanto que as antigas elites romanas se militarizaram, protegeram suas posições e passaram a controlar cada vez mais as cidades.

No campo jurídico são misturados elementos do Direito Romano e costumes de origem germânica, caracterizando a ausência de um poder real que possa ser aplicado. O poder do rei germânico emana de sua relação de fidelidade com sua corte, onde seus membros são recompensados com proteção e concessões públicas, numa prática de paternalismo que confunde o público com o privado. Com a ausência de uma estrutura fiscal que garanta o controle das regiões e suas elites; de uma codificação jurídica organizada, Baschet conclui que é impossível considerar estados os reinos germânicos da Alta Idade Média.

Portanto, as Invasões Bárbaras não devem ser vistas ou imaginadas apenas como ações violentas dos povos germânicos, mas também como um processo de infiltração lento, com duração de vários séculos, no qual os líderes dessas tribos souberam se aproveitar das fraquezas internas do Império Romano e se integrar a essa realidade. A fronteira, em certa medida, perde seu caráter de divisão e se torna o lugar das trocas comerciais e culturais, onde são mesclados elementos romanos e germânicos, dando luz a uma nova realidade na Europa, a realidade romano-germânica.


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terça-feira, 9 de agosto de 2016

O processo de conversão da Europa ao Cristianismo

Para falarmos do início da caminhada do Cristianismo na Idade Média, precisamos voltar um pouco ao passado, mais precisamente entre o início e o final do século IV. Nesse período, duas datas são importantes para que essa religião originária do judaísmo ganhe o status de que desfrutará séculos depois: O ano de 312, quando o imperador Constantino se converte, por razões políticas, ao cristianismo, e cessa as perseguições contra os praticantes desse culto; e 392, quando o imperador Teodósio torna o paganismo ilegal e transforma o cristianismo em única religião praticável no Império.

Paz e legalidade. O Cristianismo tinha, agora, um terreno favorável para se expandir pelo Império e outras áreas fronteiriças. Aproveitando-se das antigas estruturas imperiais, a Igreja vai se consolidando como um elemento de força local, por meio das dioceses, antiga unidade administrativa de uma cidade ou uma província governada pelo legatus. As dioceses, que possuem o aval do imperador para funcionar, são governadas pelo bispo, que tem em sua mão uma grande extensão urbana e rural. Em regiões que foram romanizadas no passado, como a Itália e a Gália do Sul, surgem redes densas de pequenas dioceses. Ao Norte, onde a malha urbana era mais antiga, as dioceses são menos numerosas e mais extensas.

Cristo retratado como um imperador, usando vestes militares. Mosaico em Ravena.

Politicamente e ideologicamente, os imperadores romanos passam a se favorecer com o novo culto, associando suas imagens com a de Jesus Cristo, igual como ocorria no culto pagão, com uma divindade principal do panteão. Dessa época, existe uma rica iconografia que atesta essa associação.

O Império já não é mais uma ameaça para os cristãos. Porém, surge um novo inimigo: os povos germânicos que começam a atravessar as fronteiras são, em sua maioria, pagãos. Mesmo os que já estavam convertidos representavam uma ameaça, como os Visigodos, ostrogodos e vândalos, seguidores do Cristianismo Ariano, considerado uma heresia pela população e pelo clero dos locais onde se instalavam. Clóvis, que unificou o povo franco sob um reino, converteu-se ao catolicismo em 508, recebendo, com isso, apoio dos bispos em suas campanhas militares contra os visigodos arianos. Recaredo, rei da Espanha visigótica, se converte ao catolicismo em 587.

São Patrício, missionário e padroeiro da Irlanda.

O paganismo perdura por um bom tempo no Noroeste da Europa. No século V foi realizada uma missão para evangelizar a ilha Irlanda. Mesmo penetrando a região nesse século, o Cristianismo só se tornará a religião oficial da ilha no final do século VI. No continente, o passado pré-cristão dá lugar a uma mistura original entre uma cultura romano-cristã (externa) e a uma cultura celta (local).

Pagão ganha o sentido que conhecemos nos dias de hoje. Mas, ainda sim, de acordo com os escritos Orósio, ele é o homem do campo. O paganismo é considerado um culto rural atrasado, visto com desprezo pelos homens da cidade. Para os cristãos, os deuses antigos existem, mas não são divindades, e sim demônios que precisam ser caçados. Essa associação marcará a propagação da nova religião contra o paganismo. O batismo funciona como uma das formas para renegar satã e expulsar essa forças diabólicas. O exorcismo é praticado em larga escala pelos clérigos. Soma-se a essas práticas a destruição de antigos templos politeístas.

É necessária a dessacralização da natureza e a valorização do elemento humano. O culto dos santos cumpre a função de substituir os antigos elementos pagãos presentes na natureza. O culto dos santos se mostra uma arma poderosa na luta contra o paganismo, pois torna o processo de conversão mais maleável, dessacralizando antigos símbolos pagãos e substituindo-os por imagens cristãs. São frequentes as iconografias de santos abatendo bestas.

O processo de conversão ocorre de forma lenta nos reinos anglo-saxões. A primeira missão evangelizadora foi enviada à região em 597, por ordens de Gregório, o Grande. O rei de Kent, Etelberto, assim como milhares de anglos, é batizado. O rei assemelha o momento à figura de Constantino, que se converte após receber um sinal de Deus na Batalha da Ponte Mílvia. O desafio da missão é encontrando em Edwin, rei de Northumbria, que se converte apenas em 628. Em 632, ano de sua morte, o Cristianismo entra em ruína em seu reino. Na História eclesiástica do povo inglês, de 731, o Venerável Beda relata que o processo de conversão da Bretanha insular foi concluído, ou seja, dois séculos após o início do processo.

O Batismo da Polônia, de Jan Matejko.

O avanço do Cristianismo no Norte é ainda mais lento. Vilibrodo, no fim do século VII, inicia a conversão dos frisões situados no Norte da Gália, consolidando uma zona fronteiriça para os soberanos francos. Bonifácio, com apoio dos reis francos e do pontífice romano, é enviado como bispo missionário das igrejas da Germânia, favorecendo-se das campanhas militares dos francos contra os saxões do Leste, pagãos. Consegue estabelecer a religião na Bavária e na renana, onde funda o monastério de Fulda. As conquistas de Carlos Magno vão assegurar de fato a conversão dos saxões.

O Cristianismo triunfa na Europa no século X, quando são convertidas as últimas regiões com focos de cultos pagãos. A Polônia é convertida em 966; o rei Estevão I, da Hungria, é batizado em 985; Haroldo Dente Azul, da Dinamarca, é batizado em 960; Olavo Tryggveson da Noruega em 995, e Olavo da Suécia em 1008. Por um referendo popular, a Islândia se converte no ano 1000.


FONTE:

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo Editora, 2006.


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commons.wikimedia.org
thehistoryofthebyzantineempire.com
http://polishpoland.com/




quarta-feira, 11 de maio de 2016

Viver à grega

Baco, de Caravaggio. 1593-1597.

Pargraecari é um termo de origem latina, que significa “viver à grega”. Era com este termo que alguns romanos, os mais conservadores, designavam o modo de vida de seus semelhantes. O modo de vida romano, entre os séculos III e II, recorte histórico feito pela autora, é marcado pela devassidão, pela ostentação, a vida galante e desregrada. Naquela época, a existência desses hábitos, que iam contra a moral estabelecida e defendida pelas elites, era atribuída à má influência grega. Mas como era esse estilo de vida grego? Uma fonte material pode ser utilizada como simples resposta: Vejam, abaixo. O mosaico da imagem, grego, data do século III a.C., e foi encontrado à duas semanas nas ruínas de Antioquia, na Turquia. Ele fazia parte de uma sala de jantar de uma residência, e nele se lê: “Seja alegre, viva sua vida”. Observem que, quem segura a tigela de bebida, ao lado da garrafa, é um esqueleto, lembrando da efemeridade da vida. Era assim que os gregos, e agora os romanos, em parte influenciados pelos vizinhos mediterrâneos e em outra, antigos praticantes, viviam.



As comédias de Plauto e Terêncio, as Sátiras de Petrônio Árbitro e os escritos de outros autores, legaram para nós as figuras das prostitutas que arruinavam famílias, os homens que, em avançada idade, ainda sentem os ardores do amor, e o militar fanfarrão. Plauto, em uma de suas comédias, exclama: “Bebam dia e noite, vivam à grega, comprem mulheres, libertem-nas, engordem os parasitas”. Por mais que se jogasse a culpa nos gregos, era difícil ocultar algo facilmente visível na sociedade romana muito antes do contato destes com seus vizinhos.

O contato entre romanos e gregos, citando Catherine Salles, e a introdução desses hábitos entre os latinos, se deu no século III a.C., quando as legiões romanas conquistam a Itália do Sul, e os habitantes do Lácio começam a se familiarizar com os hábitos desregrados dos habitantes da Campânia, na Magna Grécia. Francisco Oliveira e José Luís Brandão, em História de Roma Antiga. Vol I. - das origens à morte de César, citam que esse estilo de vida grego chegou à Roma de diferentes formas: “pela presença de gregos em Roma – reféns, escravos, imigrantes e embaixadores; a passagem de romanos pela Magna Grécia, pela Grécia e pelo mundo helenístico – militares, viajantes, comerciantes, embaixadores, jovens estudantes que aperfeiçoavam os seus estudos em grandes centros culturais, como Alexandria, Atenas, Nápoles, Pérgamo e Rodes. Nesta fase merece particular destaque a atração de intelectuais gregos por Roma: professores, médicos, retores, filósofos, geógrafos, historiadores e artistas”1.

Por mais que existissem tentativas, por parte das elites aristocráticas e burocráticas romanas, de esconder a realidade de devassidão dos habitantes da cidade, a vida dos prazeres à grega era indissociável para um romano do Aventino, dos lupanares e ruas do bairro Subura, das zonas do Grande Circo, povoadas por populações à margem da sociedade. Esses nomes de bairros, e a associação que carregam, revelam, nas palavras de Catherine, a existência de uma “geografia do prazer”. Os romanos, muito antes de terem contato com a “má influência” grega, já cultivavam hábitos considerados reprováveis pela moral citadina. “O mito do romano casto, corrompido por costumes estrangeiros, deve ser posto na lista dos acessórios de uma comédia que os partidários da castidade original do povo latino gostam de presentar”2

Jogar a culpa aos estrangeiros era um método não muito efetivo de diminuir a culpa pelo que se praticava na cidade, que era associada a todas as formas de prazer, principalmente os proibidos. Basta lembrar que, entre os antigos, Roma é o anagrama de Amor. A elite tentava omitir essas práticas, mas ela mesma os praticava. No Império, é bom enfatizar, existia uma relação intensa entre poder e sexo, a qual pode ser exemplificada com os altos impostos cobrados das lupas, prostitutas, bordéis e choupanas; e até em decisões políticas tomadas durante bebedeiras ou relações entre quatro paredes.


1OLIVEIRA, Francisco; BRANDÃO, José Luís. História de Roma Antiga: vol I: das origens à morte de César. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, p. 270.

2SALLES, Catherine. Nos submundos da Antiguidade. 2° ed. São Paulo, Brasiliense, 1983. p. 171.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

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Revista Aventuras na História

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Antigos Cemitérios Cristãos de Roma

Orante. Pintura sobre reboco do século III em uma Catacumba Romana, representando uma mulher em súplica e oração no que seria o Paraíso. Sob a pintura, os túmulos.

Em Roma, os cemitérios se situavam fora dos portões da cidade. Os romanos tinham os corpos cremados, e suas cinzas guardadas em urnas junto das de outros parentes. Os judeus que viviam no Império enterravam seus mortos em cemitérios subterrâneos, administrados pelas sinagogas. Os cristãos seguiam a mesma prática dos judeus referentes ao sepultamento, e seus cemitérios ficaram conhecidos como ''catacumbas''.

As catacumbas estavam localizadas em propriedades de cristãos ou de ricos protetores pagãos. Os cristãos que tinham algumas terras as doavam à comunidade cristã para os sepultamentos que iam crescendo. As catacumbas possuíam uma estrutura bastante complexa, divididas em ambulacra (passagem subterrânea), loculi (túmulos escavados na parede), pilae (túmulos um sob do outro), arcosolium (túmulos decorados com um nicho em arco), cubicula (câmaras particulares para os túmulos de uma família) e as cryptae (capelas decoradas com afrescos de motivos religiosos, dedicadas geralmente a pessoas importantes e santos). Os túmulos eram abertos dos dois lados da catacumba, e quando não existia mais a possibilidade de novas escavações, o piso dos corredores era escavado e recebia novos túmulos (formae).

Os cemitérios cristãos eram protegidos contra sacrilégios pela Lei Romana, que os considerava invioláveis. Os romanos tinham medo de violar os túmulos cristãos, pois acreditavam que poderiam ser incomodados pelos espíritos dos mortos. Quanto a nomenclatura, as catacumbas eram reconhecidas pelo nome do antigo proprietário onde foram escavados os túmulos; pela topografia onde estavam assentadas; e pelo nome de algum mártir ou santo.

Enterros em catacumba foram práticas em alta durante a época do Cristianismo Primitivo (séculos I, II, III e parte do IV d.C.); que passaram a entrar em declínio após a transformação do Cristianismo em religião estatal do Império Romano, através do Édito de Tessalônica de 380 d.C., realizado durante o governo de Teodósio I. Os corpos passaram a ser sepultados em cemitérios localizados nos terrenos das igrejas.

O mapa abaixo, retirado do livro A Idade Antiga – Curso de História da Igreja I, de Franco Pierini (Paulus, 2013), nos dá a localização de 41 cemitérios cristãos ao redor da cidade de Roma, espalhados pelas inúmeras vias que ajudavam na comunicação entre as cidades italianas.

Esses cemitérios, além de representarem um dos aspectos culturais dos cristãos que viviam em Roma, são o testemunho da Arte Cristã Primitiva, representada nos inúmeros afrescos com motivos religiosos que decoravam os corredores de túmulos.




FONTES: JEFFERS, James S. Conflito em Roma: ordem social e hierarquia no Cristianismo Primitivo. São Paulo, Edições Loyola, s. d. Págs 73,74 e 75.

O mapa foi entregue pela professora de História Antiga II, Maria Eugênia Matos, aos alunos da graduação em História da UFAM (Universidade Federal do Amazonas).


CRÉDITO DAS IMAGENS:

historiasevariaveis.blogspot.com
A Idade Antiga - Curso de História da Igreja I




segunda-feira, 11 de abril de 2016

Glossário Histórico sobre o Império Romano

Ruínas romanas. Giovanni Paolo Panini, século XVIII.

Os termos abaixo são de essencial importância para a compreensão histórica e social do Império Romano. Eles foram retirados do livro O Império Romano (1993), do historiador e latinista francês Pierre Grimal. O glossário foi entregue aos alunos da graduação de História da UFAM (Universidade Federal do Amazonas), sob o comando da professora de História Antiga II, Maria Eugênia Matos.

Academia: Jardim sagrado do herói Akadêmor, nos arredores de Atenas. Era ali que Platão, e depois os seus discípulos, ministravam o seu ensino.

Apocoloquintose: Esta palavra significa <<transformação em abóbora>>. Paródia da palavra (e da noção) de apoteose. Título de uma sátira redigida por Sêneca em 54, destinada a ridicularizar Cláudio, que acaba de morrer e é divinizado e, sobretudo, a prometer aos senadores que o jovem Nero não cometerá os excessos de que o Senado se queixara no reinado anterior.

Apoteose: Reconhecimento oficial, pelo Senado, da divinização de um imperador defunto. Origina, em cada caso, a organização de um culto, com um clero especial, e, muitas vezes, a construção de um templo consagrado ao novo deus.

Auctoritas: O fato de uma pessoa ou um grupo constituído possuir a eficácia necessária para assegurar o sucesso de uma empresa projetada. Assim, o Senado garante que determinada lei, apresentada ao povo, será boa. Autoridade moral.

Casa das Vestais: Edifício de peristilo existente no Fórum Romano, perto do Templo de Vesta. Ali se alojava o Colégio das Vestais (em número de sete durante o Império). Esta casa, muito aumentada com o decorrer dos séculos, remonta, no seu estado atual, ao reinado de Sétimo Severo.

Cicerianismo: Nome dado por S. Jerônimo à cultura pagã, simbolizada pela obra de Cícero, em que a preocupação com a forma literária prevalece sobre o conteúdo do pensamento.

Comícios curiata: A mais antiga assembleia, formada por membros das cúrias e representando o populus, fonte de poder, exatamente como o Senado. São estes comícios que conferem o imperium, primeiro aos reis, depois aos magistrados saídos da realeza, cônsules e pretores. Também tratam de casos de adoção. A sua natureza é de essência religiosa.

Congiário: Distribuição ao povo de vinho, trigo, azeite, etc. Por extensão, distribuição de dinheiro. Quando se trata de dinheiro dado aos soldados também se emprega o termo donativum.

Constituição serviana: Organização da cidade atribuída ao rei Sérvio Túlio, no século VI a.C. Divisão dos cidadãos em cinco classes censitárias, estas mesmas divididas em centúrias, em função do seu papel no exército.

Cônsul: Nome de dois magistrados supremos saídos do desmembramento do poder real, em 509 a.C. Estes magistrados ficaram inicialmente conhecidos por praetores (de prae-ire, ir à frente, preceder); a palavra cônsul realça a ideia de deliberação e também de previdência, de desígnio cuidadosamente premeditado. Os cônsules, primeiramente escolhidos pelos patrícios, possuem o imperium. Cada um deles tem o direito de se opor a uma decisão do outro.

Cúria: Na Roma arcaica, divisão do corpo dos cidadãos, espécie de <<paróquias>> que os reúnem. Havia dez cúrias por tribo. Por extensão, local onde se reúne uma cúria. Por fim, a cúria por excelência é o local onde se reúne o senado. É o sentido da palavra na época clássica e durante o Império.

Cursus honorum: Série de magistraturas que um Romano devia exercer no âmbito das instituições, antes de atingir o consulado. São a questura, a edilidade (patrícia ou plebeia), o tribunado da plebe (para os plebeus), a pretura, o consulado. Deve haver um intervalo de dois anos entre duas magistraturas consecutivas, de tal modo que, durante a República, não se podia ser cônsul antes dos quarenta e um anos. Durante o Império, o cursus devia ser precedido por um serviço militar e uma magistratura menor, seguindo-se a questura exercida aos vinte e cinco anos, dois anos mais tarde a pretura, e o consulado aos trinta e dois anos. A censura não está integrada no cursus.

Digesto: Coletânea de textos provenientes das obras dos jurisconsultos, criada em 533, por ordem de Justiniano.

Dioniso: Também chamado Baco (Bacchus em terras latinas). Assimilado ao itálico Liber Pater. Divindade grega da vegetação, em particular da vinha e, por conseguinte, do vinho. Preside ainda à fecundidade animal e humana. É apresentado rodeado de sátiros e de Bacantes (ou Ménades). O seu culto está na origem da tragédia. Uma lenda muito tardia apresentava-o como um triunfador vindo dos confins da Índia, onde teria sido educado pelas Ninfas, no monte Nisa. A sua presença na Grécia é muito remota, segundo a confirmação.

Donatismo: Cisma da Igreja Cristã de África, formada em redor do bispo de Cartago Donat (312). A questão estava em saber se seria necessário excluir aqueles que haviam traído a fé divulgando os livros sagrados durante a perseguição de Diocleciano. Donat e os seus partidários recusavam-se a admiti-los na Igreja. O donatismo foi por diversas vezes condenado, por um sínodo, depois por um concílio gaulês, finalmente por Constantino, mas os donatistas resistiram até ao fim da África Romana (invasão dos Vândalos, em 429).

Epicuristas: Discípulos do filósofo Epicuro (341-270). Nascido em Samos, ensinou em Atenas uma doutrina materialista, baseada numa física atomista. Mas a sua preocupação principal não consiste em fornecer uma explicação do mundo; é essencialmente moral. Trata-se de assegurar a felicidade dos homens. O Bem supremo é o prazer, menos o dos sentidos do que a tranquilidade da alma, isto é, a ausência de perturbações (ataraxia). Epicuro acredita que a alma humana é inteiramente material e que não contém nenhuma possibilidade de sobrevivência. Os relatos referentes ao além-túmulo não passam de fábulas ilusórias. Para ele, os deuses existem, mas só comunicam conosco através do sonho e não intervêm no comportamento do mundo nem nos assuntos humanos.

Filosofia do Jardim: Nome muitas vezes atribuído ao epicurismo, desde que o fundador da escola, Epicuro, se instalou num parque que comprara nos arredores de Atenas.

Gens: Grupo social que, na Roma arcaica, se considerava descendente de um antepassado comum. Com o decorrer do tempo, a gens dividiu-se em familiae, cada uma delas caracterizada por um cognomen (apelido) hereditário (por exemplo os Cornelli: além dos Cornelli Scipiones, existiam Cornelli Cethegi, Cornelli Lentuli, etc.). Mas entre os diferentes ramos subsistia um laço místico, o sentimento de um parentesco profundo.

Humanitas: Noção (a palavra deriva de homo, ser humano) que implica o reconhecimento das particularidades espirituais próprias do ser humano e, consequentemente, o respeito deste pelo outro. Esta noção parece ter existido, em Roma, antes da influência dos filósofos. Está implícita nas formas mais arcaicas do direito, em particular o ius gentium, que reconhecia direitos aos não-cidadãos.

Idos: Divisão do mês. O primeiro dia do mês tem o nome de calendas. Seguem-se as nonas, que são a 7 de Março, de Maio, de Julho e de Outubro, e a 5 nos restantes meses. Os idos, que são a 15 nos meses de Março, Maio, Julho e Outubro, e a 13 nos outros meses. As datas formulam-se em função dos dias que faltam para uma destas referências. Assim, diremos: o 5 antes das calendas (ou, mais frequentemente: o 5 das calendas), o 3 das nonas (o mesmo que o 5 ou o 3 consoante o mês).

Intercessio: Direito reconhecido aos tribunos da plebe que podem vetar as decisões de um magistrado, seja este quem for, e mesmo, eventualmente, de um senátus-consulto. Por este ato, o tribuno interpunha-se entre o magistrado e o cidadão em causa. O objetivo consistia em subtrair os cidadãos às arbitrariedades.

Ísis: Divindade egípcia, mulher de Osíris. Como este tivesse sido condenado à morte por Tifão (o deus das trevas) e o seu cadáver cortado em pedaços, Ísis tentou reconstituí-lo e restituiu-lhe a vida. Ísis é uma divindade do mar. Dedicaram-lhe um culto em todo o contorno do Mediterrâneo, em particular na Campânia, por onde penetrou no mundo itálico. Teve um templo no Campo de Marte. O seu culto é assegurado por um clero sujeito a obrigações muito precisas (vestes de linho, sem nenhuma matéria de natureza animal, alimentação, etc.), que cumprem cerimônias diárias. A religião isíaca parece ter exercido uma grande atração sobre as mulheres.

Ius Fetiale: Os Feciais eram um colégio de dois sacerdotes encarregados das relações, de ordem religiosa, com os povos estrangeiros. Estavam encarregados, em particular, de proceder às declarações de guerra, mas também da conclusão dos tratados de paz. O <<chefe>> dos Feciais usava o nome de Pater patratus. O conjunto das regras que presidia às suas atividades era o ius fetiale.

Jogos: Tradição itálica muito antiga, muito viva entre os Etruscos, em que dançarinos e mimos estão encarregados de evocar todo um mundo místico e, ao mesmo tempo, de provocar a alegria, o prazer de viver. Este cortejo forma-se para os funerais. Mas existem jogos em honra de todas as divindades (Flora, etc.). As divindades satisfeitas só podem ser favoráveis aos mortais. Havia jogos que consistiam em corridas de cavalos, de carros, que exaltavam uma religião da Vitória. Os Jogos da Vitória de César tinham por desígnio agradecer às divindades, saudar o novo deus e acompanhá-lo alegremente na subida ao céu.

Larário: Capela onde, em cada casa, se colocam as estatuetas representando as dividades que as protegem. Estas divindades começam por ser os Lares, antiga palavra etrusca que designava os <<Senhores>>, e depois todas aquelas por quem os habitantes da casa sentem uma devoção em particular. Esta capela encontrava-se, em geral, no tablinum (o compartimento que se abria ao fundo do atrium), e muitas vezes também na cozinha.

Legião: O termo significa um corpo de tropas formado entre os cidadãos (e só estes). Durante a República, compreende 4.200 homens; a partir de C. Mário (pelo ano 100. a.C.), é de 6.000 homens. A legião está dividida em centúrias reunidas duas a duas num manípulo. Desenvolve-se em três linhas: à frente, os hastati, seguem-se os príncipes, e, por fim, na terceira fila, os triarii. Importa acrescentar os vélites, mal armados e que combatem foram da legião assim formada, e uma cavalaria legionária de 600 homens.

Libertas: Palavra que designa a República, durante o Império.

Liceu: Pórtico consagrado a Apolo Liciano, em Atenas, e o ginásio contíguo, onde ensinaram Aristóteles e os discípulos. A doutrina do Liceu é o aristotelismo.

Liga Acaica: Confederação que compreende cidades do Peloponeso (na Acaia), depois da conquista macedônica, na segunda metade do século IV a.C. A capital é Corinto. As cidades acaicas eram hostis a Esparta, que favoreciam os Romanos. Mummius obteve uma vitória decisiva contra a Liga em Leucóptera, em 146. Corinto, capital da Liga, foi tomada e pilhada.

Limes: Literalmente <<passagem>> entre dois campos. Depois, zona defensiva estabelecida ao longo de uma fronteira em que consistia numa estrada paralela à linha de combates que ligava entre si fortalezas e campos. Base de partida para uma defesa efetiva. Existia um limes ao longo do Reno, outro na Síria, outro em África, etc.

Livros Sibilinos: Coletânea de receitas religiosas e mágicas encontrada, segundo constava, na sepultura do rei Numa, em Roma. Atribuída à Sibila de Cumes, personagem meio lendária. Conservada por um colégio de dez sacerdotes, era consultada em caso de crise ou quando se produzia algum prodígio. Augusto mandou encerrá-la no pedestal do Apolo Palatino.

Municípios: Cidades já existentes antes da conquista romana e que conservam as suas instituições tradicionais ou às quais foram atribuídos magistrados e assembleias análogas às de Roma. Na prática, designam-se por municípios as cidades de direito latino, que não possuem o direito de cidade romana, mas uma forma inferior. Só os magistrados destas cidades recebem o título de cidadão romano.

Olimpianos e Titãs: Antiga lenda, decerto vinda do Oriente, recolhida por Hesíodo na Teogonia. Os Titãs, nascidos da união do Céu (Urano) e da Terra (Gaia), personificam forças naturais. São em número de seis, com seis Titânides. O mais novo é Cronos, que será o pai de Zeus, origem dos Olimpianos. Os Titãs revoltar-se-ão contra Zeus, que os precipitará no Tártaro.

Ordo senatorius: Classe de cidadãos formada por pessoas que possuem o censo senatorial, isto é, a fortuna necessária para serem senadores; mas esta situação não dá lugar à entrada no Senado.

Otium: O fato de não sofrer nenhum constrangimento, nenhuma obrigação. Lazer (o contrário é negotium, <<negócio>>). Designa a paz no conjunto da cidade.

Poder tribunício: Conjunto dos poderes pertencentes aos tribunos da plebe, essencialmente a sacrossantidade e o direito de intercessio.

Pontifex Maximus: Sumo Pontífice, presidente do colégio dos pontífices, sacerdote de caráter arcaico, de origem e de funções obscuras. O Sumo Pontífice é eleito pelo povo, por toda a vida. Mora numa residência oficial, a Domus Publica, perto da Casa das Vestais. Controla o conjunto da religião, o que lhe confere um grande poder. Exerce uma autoridade absoluta no Colégio das Vestais.

Pretor: Magistratura desligada do consulado, a partir de 367 a.C., quando foi criado um pretor urbano, encarregado de <<dizer o direito>> na cidade (a urbs). Em 242 é criado um praetor peregrinus, cuja jurisdição se estende aos estrangeiros residentes em Roma (peregrini). Os pretores possuem o imperium, o que lhes confere o direito de promulgar editos (ius edicendi). A partir de 227, os pretores, eleitos para este fim, são encarregados de governar províncias recém-criadas. A partir de César, os pretores serão em número de dezesseis.

Procônsul: Cônsul prorrogado na sua magistratura e encarregado do governo de uma província.

Propretor: Pretor prorrogado, ao terminar o cargo, e a quem é confiado o governo de uma província.

Província: A palavra designa, em primeiro lugar, uma missão, de uma ordem qualquer, da qual é encarregado um magistrado, e depois, mais particularmente, o território no qual é exercida esta missão. Durante a República, um general vencedor tem como <<província>> o território que conquistou; com a ajuda de uma comissão senatorial, e sob o seu controlo, fica encarregado de estabelecer a lex provinciae, o estatuto jurídico da sua <<província>>.

Queruscos: Povo germano estabelecido na região do Hesse.

Quirites: Nome dado aos cidadãos romanos de condição privada. Opõe-se a milites (soldados). Segundo a tradição, foram primeiramente designados Sabinos, vindos da cidade de Cures e estabelecidos em Roma no tempo do rei Numa.

Res Gestae: Literalmente, <<ações cumpridas>>. Augusto estabelecera ele próprio o balanço da sua ação, capítulo por capítulo, e este texto foi afixado em frente do seu mausoléu, no Campo de Marte, por volta do ano I d.C. Contém uma justificação da sua política, desde a tomada do poder. A inscrição comportava uma versão em língua latina, outra em língua grega. Foi descoberto um exemplar em Ankara, a antiga Ancira. Tinham sido enviadas réplicas para todas as grandes cidades do Império.

Sacrossantidade: Caráter inviolável da pessoa de um magistrado, em princípio, durante a República, um tribuno da plebe. Qualquer tentativa de violência para com um tribuno coloca o culpado fora da lei.

Saepta: Conjunto de recintos ao ar livre, destinados a reunir, materialmente, por unidades de voto, os eleitores que, em seguida, passavam um a um sobre uma ponte para depor o seu boletim de voto. Dizia-se saepta ou, por vezes, ovilia, redis de carneiros.

Senátus-consulto: Decisão tomada oficialmente pelo Senado para resolver um problema particular como, por exemplo, tomar medidas policiais, cuja responsabilidade nenhum magistrado queria assumir. Estas medidas não podiam ser contestadas tão facilmente como o seria a decisão de um magistrado.

Sumo Pontífice: Ver Pontifex Maximus.

Tabularium: Grande monumento, ainda existente, destinado a guardar os arquivos oficiais (as tabulae, as tábulas), construído no tempo de Sila entre o Capitólio propriamente dito e o Arx, a Cidadela, fechando assim a depressão existente entre os dois cumes da colina.

Término: Divindade que assegura o caráter sagrado e inviolável dos limites legalmente estabelecidos: de uma propriedade privada, de uma fronteira, etc. O deus é figurado por uma pedra solidamente fixada ao solo.


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