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segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Lugares Pitorescos de Manaus II


O espaço urbano, ao longo do tempo, não sofre mudanças apenas em sua fisionomia, no espaço construído, mas na relação que a sociedade mantêm com o meio. Nomenclaturas de origem popular, secularmente utilizadas como referência para praças, ruas, becos e formações geográficas, herança medieval longínqua, sucumbem às mudanças das ‘oficializações’, às integrações a outros bairros e ao esquecimento, subsistindo em alguns momentos na pena do jornalista ou do cronista de época. Nessa segunda parte do texto serão abordados os seguintes lugares: Costa D’ África, Beco do Rego da Maria Pia, Cidade das Palhas, Buraco do Pinto, Canto do Quintela, Bairro Preguiça, Bairro dos Bilhares e Curva da Morte.

Negros libertos fotografados em Manaus durante a Expedição Thayer (1865-1866), liderada por Louis e Elizabeth Agassiz.

Costa D’ África: A Costa D' África foi uma região existente em Manaus na época da província, com referências desde a década de 1860. Essa área, considerada um bairro na época, era habitada por africanos livres. Em 1866, Gustavo Ramos Ferreira, vice-presidente da Província do Amazonas, registrava que existiam no Amazonas cerca de "57 africanos livres, já de posse de suas respectivas cartas de emancipação" (SAMPAIO, 2005, p. 2). Os moradores desse bairro, já livres, conseguiram integrar-se, em parte, na sociedade da época, ocupando cargos públicos, militares e servindo de mão de obra em construções na capital. A Costa D' África estava localizada em terras ao Norte do antigo Cemitério de São José (área do Atlético Rio Negro Clube, em frente à Praça da Saudade), entre as ruas Leonardo Malcher e Luiz Antony. Os registros mais significativos desses africanos de Manaus foram feitos em uma casa da Estrada de Epaminondas durante a expedição de Louis e Elizabeth Agassiz e reproduzidas na obra Viagem ao Brasil (1865-66).

Passagem que leva ao Beco da Escola, atrás da E. E. Cônego Azevedo. Foto de 2014.

Beco do Rego da Maria Pia: De origem popular, o antigo Beco do Rego da Maria Pia está localizado no bairro de Aparecida, começando na rua Xavier de Mendonça e passando por trás da Escola Estadual Cônego Azevedo. Nesse beco, há décadas, morou uma avantajada senhora portuguesa de nome Maria Pia, que todos os dias, pela manhã, tinha o hábito de jogar os detritos de seu penico pela janela de casa. Adiciona-se o fato de que os detritos caiam em sua pequena horta, sendo que o que nela era plantado (frutas, legumes e verduras) era posteriormente vendido na feira do bairro. Esse beco também era chamado de Tapa-Guela e beco do Pai da Vida. O beco já não recebe mais essas nomenclaturas populares, sendo conhecido apenas como Beco da Escola.

Cidade das Palhas, atual bairro da Alvorada. Foto de 1974.

Cidade das Palhas: No início dos anos 1960, o Dr. Cezar Najar Fernandes, engenheiro agrônomo peruano, indignado com a situação dos moradores da Cidade Flutuante, grande favela fluvial existente desde a década de 1920, decidiu, junto de alguns amigos, criar um bairro em terras próximas do Estádio Vivaldo Lima, o qual ajudou a construir. Foram abertos caminhos, foi feita a topografia, o arruamento e a divisão dos lotes. Essas famílias que saíram da Cidade Flutuante começaram a construir casas de madeira e palha nesse local, que ficou conhecido como Cidade das Palhas.

Rua Ramos Ferreira, uma das vias que no passado formava o Buraco do Pinto. Foto de 2015.

Buraco do Pinto: O Buraco do Pinto foi uma depressão existente entre a rua Ramos Ferreira e as avenidas Joaquim Nabuco e Major Gabriel. Por essa depressão passavam os igarapés do Aterro e de Manaus. Por décadas essa região foi palco de acidentes de trânsito e de reclamação dos moradores do Centro, pois além de ser perigosa para o tráfego, servia de lixeira a céu aberto. Sobre a nomenclatura, diz o folclorista e historiador Mário Ypiranga Monteiro, existem duas versões sobre sua origem. A primeira, fantasiosa, seria a de que, em um dia de chuva, uma pessoa teria encontrado nessa depressão um pinto. A segunda seria a de que o nome teria origem em um taverneiro chamado Pinto, morador da Joaquim Nabuco. A nomenclatura, no entanto, ainda de acordo com Mário Ypiranga, teria por nome oficial Capitão Manuel Tomás Pinto Ribeiro, segundo Escriturário do Tesouro Estadual falecido em 02/06/1917. Coube à população dar o nome de ‘Buraco do Pinto’. A área sofreu um primeiro aterro em 1944, na administração municipal de Francisco do Couto Vale. Em 1957, na administração do governador Plínio Ramos Coelho, o Buraco do Pinto foi definitivamente aterrado e asfaltado.

Cruzamento das Avenidas Sete de Setembro e Joaquim Nabuco. Foto de 2017.

Canto do Quintela: O Canto do Quintela compreende o cruzamento das avenidas Sete de Setembro e Joaquim Nabuco, onde funcionou o primeiro supermercado CO (Casas do Óleo), da família Assayag. Bem antes de funcionar esse empreendimento, existiu nesse local a Mercearia Quintela, de proprietário português, que deu origem à nomenclatura popular. A referência mais antiga sobre essa mercearia data de 1906, através de um anúncio publicado no 'Almanaque Brinde Palais Royal (1906, p. 130), no qual lê-se o seguinte:

"Mercearia Quintella, de Quintella & Irmão - N' esta bem acreditada casa encontra-se sempre um repleto sortimento de todos os generos alimenticios quer nacionaes ou estrangeiros. Tem sempre em deposito grande sortimento de louças de barro como taes: FILTROS, TALHAS, POTES, BILHAS, vasos para plantas, etc. Variado e grande sortimento de louças finas de porcellana, pó de pedra, granito, como sejam: PRATOS, CHICARAS, TIGELLAS, etc. Especialidade em COPOS DE CHRYSTAL, VIDRO e CANDIEIROS DIVERSOS. Preços sem competência. Rua Municipal, 94 – Manáos".

Em notícia publicada no Jornal do Comércio, em 04/09/1917, dizia-se que “A rua Municipal, canto da mercearia Quintela, descia o bond numero oito, linha deavenida-circular1. Em outra notícia, de 25/01/1930, escrevia-se que “Por futil motivo Antonio Souza aggrediu hontem, ás dezenove horas, no canto do Quintela, a Manoel Sebastião da Silva”2. No Canto do Quintela viveu a violinista Ária Paraense Ramos, morta aos 19 anos em 17 de fevereiro de 1915 em um acidente no Ideal Clube.

Bairro do Preguiça: O bairro do/da Preguiça estava localizado entre as ruas Pico das Águas, Maceió e João Alfredo. A primeira versão de sua origem popular, diz Mário Ypiranga, é muito simples: em um afluente do Igarapé da Cachoeira Grande, passando pela parte de trás do Parque Amazonense, encontraram uma preguiça. O historiador, no entanto, após pesquisas, encontrou referências de que naquele local residiu um morador de nome José dos Santos Preguiça, operário pintor, tirador de goteiras e consertador de pontes, com referências de seus serviços desde 1899. Em 28 de julho de 1917, os moradores daquele bairro fizeram um abaixo-assinado pedindo que o nome fosse mudado para Nery da Fonseca3.

Atual Paróquia do bairro de São Geraldo. Foto de 2014.

Bairro dos Bilhares: O Bairro dos Bilhares corresponde ao atual bairro de São Geraldo, na zona Centro-Sul. O nome Bilhares fazia referência à Casa Bilhares, bar e casa de jogos propriedade do desembargador Floresta Bastos. O acesso se dava pelos bondes da Companhia de Transportes Villa Brandão (1893), que fazia a rota entre o Mercado Público e a Cachoeira Grande, no início do que viria a ser o bairro de São Jorge. O nome do bairro foi alterado para São Geraldo em 1950, por ação dos Padres Redentoristas. Em uma nota publicada no Jornal do Comércio em 07/10/1950 lê-se o seguinte: “Terá início, hoje, no bairro de São Geraldo, antigo Bilhares, a quermesse promovida pelos Padres Redentoristas, cujo produto reverterá em favor das obras da construção da capela”4. A Capela do Preciosíssimo Sangue foi inaugurada em 1953. Apesar da mudança, o nome Bilhares continuou sendo utilizado por um bom tempo como referência para aquele local, como atestam notícias até a década de 1980.

Avenida Castelo Branco com rua Ipixuna. Ano não identificado.

Curva da Morte: Existem menções à Curva da Morte pelo menos desde a década de 1950, sendo um indício de que os acidentes que popularizaram aquela parte do bairro da Cachoeirinha eram de longa data. O anúncio de uma peça teatral de 1959 informa que o espetáculo estava “situado na Av. Waupés, junto da Curva da Morte, bairro de Cachoeirinha, sob a direção de Walter Freitas”5. A Curva da Morte compreende o cruzamento da Av. Castelo Branco (antiga Waupés) e da rua Ipixuna. Por um bom tempo o bairro permaneceu sem pavimentação e entrecortado por igarapés, o que fazia os motoristas que vinham pela Castelo Branco, para evitar a Silves, ter que dobrar na Ipixuna, rua fechada e de difícil tráfego. Nesse cruzamento ocorreram graves acidentes com vítimas fatais entre as décadas de 1960, 1970 e 1980. Algumas eram vitimadas na frente de suas casas, tentando atravessar para a outra parte da via6. O número de mortos por acidentes de tráfego entre 1965 e a metade do ano de 1966 era de 67 pessoas7.

São vários os lugares pitorescos, de nomenclaturas curiosas, esquecidos ou não, que marcaram a população da cidade, que utilizava outras formas, um aspecto geográfico, um comércio, um morador ilustre, para se localizar no espaço e no tempo. Outros vão surgindo ao longo dos anos, como referência para ruas, becos, avenidas, praças e inúmeras invasões irregulares pela área urbana, que aos poucos tornam-se bairros. Daria para escrever um livro denso explicando as origens de cada um. São elementos de outras épocas, de outras mentalidades, de um cotidiano marcado por um ritmo mais lento de relações entre o homem e o meio.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SAMPAIO, Patrícia Melo. Escravidão e Liberdade na Amazônia: notas de pesquisa sobre o mundo do trabalho indígena e africano. 3° Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2005.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Manaus, Editora da Universidade do Amazonas, 1998.

BESSA, Roberto. Memorial Aparecida: síntese da história de um bairro. Manaus, Edições Muiraquitã, 2010.

ALLAN, Virgínia. São Geraldo – Uma História em duas conjugações: Passado e Presente. Manaus, Edições Muiraquitã, 2008.

FONTES:

Jornal do Comércio, 04/09/1917
Jornal do Comércio, 25/01/1930
Jornal A Capital, 28/07/1917
Jornal do Comércio, 07/10/1950
Almanaque Brinde Palais Royal, 1906

NOTAS:

1 Jornal do Comércio, 04/09/1917
2 Jornal do Comércio, 25/01/1930
3 Jornal A Capital, 28/07/1917
4 Jornal do Comércio, 07/10/1950
5 Jornal do Comércio, 19/12/1959
6 Maria Rejane Rocha, aos 13 anos, morreu ao ser atropelada pelo chofer Walmir Gonçalves Barros na frente de sua casa, na rua Ipixuna, n° 1081, enquanto tentava atravessar a via. Jornal do Comércio, 26/06/1972.
7 Mortos por acidentes de tráfego, 1966. A. Raposo & Cia.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Viagem ao Brasil (1865-1866)
Google Maps, 2014
Coronel Roberto Mendonça
Otoni Moreira Mesquita, 2015, 2017

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Manaus: Pequena Coletânea de Histórias e Estórias



Reúno, nesse texto, quatro histórias ou estórias de Manaus, algumas ocorridas em períodos incertos e outras entre as décadas de 1960 e 1980. São elas: São Lázaro aparece ao assassino de cachorros; A velha que virava porca; O morto-vivo do Morro da Liberdade; e O Diabo na casa de dança do São Francisco. Ambas tem fortes laços com o catolicismo popular, através da aparição de santos, da realização de orações e milagres, e do medo de seres sobrenaturais. Com exceção do caso do morto-vivo do Morro da Liberdade, amplamente divulgado nos jornais da época, e também o melhor trabalhado, todos os outros foram recuperados através da oralidade.


I: São Lázaro aparece ao assassino de cachorros

Poucos sabem que, no local onde hoje está localizado o Grêmio Recreativo da Escola de Samba Mocidade Independente de Aparecida, em bairro homônimo, na Avenida Ramos Ferreira, funcionou até 1950 um forno de incineração de lixo. Ele era uma grande estrutura construída em 1913 na administração do prefeito Jorge de Moraes. Mas não nos interessa aqui a história dessa construção, mas sim uma estória antiga, de origem imprecisa, relacionada ao local, transmitida por Moacir Andrade (1927-2016) à pesquisadora e jornalista Elza Souza (65).

Diariamente os funcionários do forno de incineração recolhiam o lixo para ser eliminado. Em carros coletores ou carroças, o trabalho era realizado nas principais ruas da área central da capital. Crescia a necessidade da limpeza e da higiene pública.

Um desses funcionários, de nome não identificado, levou ao pé da letra a questão da limpeza e da higiene: Além de recolher o lixo, também recolhia cachorros de rua. Chegando no forno do bairro de Aparecida, possivelmente ainda dos Tocos, eliminava, de forma sádica, os animais nas chamas. Repetiu esse processo inúmeras vezes, sem ser, no entanto, repreendido por suas ações.

Em mais um dia de eliminação do lixo e dos animais, contam que São Lázaro, padroeiro dos pobres e protetor dos cachorros, apareceu diante desse funcionário, que desde esse acontecimento se arrependeu e parou de matar os animais. O forno foi desativado em 1950, sendo incerto o destino desse personagem.


II: A velha que virava porca

Uma das estórias mais conhecidas na cidade de Manaus, talvez com origem na região Nordeste, com registro nos estados do Maranhão, Ceará e Piauí, é a da velha que virava porca. O relato a seguir é de uma senhora de 66 anos, que afirma ter sido atacada pela mulher já transformada no animal: 

“Isso aconteceu quando eu tinha 15, 16 anos… morava na Comunidade do Barro Vermelho, hoje bairro de São Lázaro. Todo dia, de manhã e de tarde, na rua 09 de Maio, uma senhora bastante idosa, de baixa estatura, perambulava de um canto para o outro. Quando ela passava, as pessoas diziam: “Lá vai a velha que vira porca”. Quando meu pai via, dizia bem baixinho: olha a velha que vira porca”. Todos tinham medo dela. 

Um dia, já pela parte da noite, a velha passou em direção a uma poça de lama que existia no final da rua. Eu estava na porta de casa com uma amiga, quando começamos a ouvir, vindo de longe, um barulho forte de casco de animal batendo na terra. De repente, vimos uma porca muito grande, de cor preta, vindo em nossa direção. Ela saiu correndo atrás da gente, correndo, correndo... Pulamos o portão da casa e a trancamos. Mas a porca passou direto e sumiu na noite. No outro dia, a senhora passou em direção ao mesmo lugar (a poça de lama) como se nada tivesse acontecido... 

Continuamos vendo a velha, mas, com o passar dos anos, ela passou a aparecer cada vez menos, até que um dia desapareceu..." 

(Relato concedido a Fábio Augusto de C. Pedrosa em 02/05/2017) 

Assim como em outros estados, estando aí incluído o Pará, a “velha” se transformava na madrugada de quinta para sexta-feira. Dentro da tradição católica, as pessoas fazem orações como o Pai Nosso e Ave Maria para pedir proteção pessoal e para terceiros. A mulher que virava porca, no entanto, fazia essas orações ao contrário para pedir a infelicidade, o mal estar e até mesmo a destruição de outra (s) pessoa (s). Como consequência, contam os mais velhos, acabava, por forças ocultas associadas ao Diabo, se transformando no suíno, animal de casco fendido abominável na Bíblia (Deuteronômio 14).


III: O morto-vivo do Morro da Liberdade

Houve um tempo em que as pessoas tinham medo dos mortos, tempo esse em que a religião e o sobrenatural tinham maior relevância no cotidiano. Hoje, a abordagem de um vivo, um tudo bem ou um bom dia, causa certo espanto, dada a constante insegurança que nos ronda. O caso a seguir ocorreu no bairro Morro da Liberdade, na zona Sul de Manaus, em 1980. Acredito que a maioria dos leitores não o conhece, pois foi algo local, mas os elementos que nele estão inseridos, revelando parte da mentalidade de uma sociedade de determinada época, o torna digno de nota. 

Era sexta-feira, 08 de agosto de 1980. No Cemitério de São Francisco, no Morro da Liberdade, às 9:00 da manhã, um mausoléu começou a tremer, causando espanto nos presentes do local. No bairro e adjacências, espalhou-se o boato de que um homem tinha ressuscitado. Nesse mesmo dia, o Jornal do Comércio noticiava que cerca de 5 mil pessoas lotaram o Cemitério para ver esse "morto-vivo", sendo necessário o deslocamento de guarnições do Choque da Polícia Militar para conter a multidão. 

Nesse mausoléu, de n° 4642, localizado na quadra 10, estava enterrado Itamar Aristides da Silva, vítima de um atropelamento em 19 de junho de 1976. Tinha 36 anos quando do ocorrido. Sua esposa, Maria José da Silva, sabendo dessas manifestações na sepultura do marido, solicitou que um padre do bairro São Lázaro, possivelmente o Padre Bernardino Micce, rezasse uma missa no local. A presença do padre apenas fez aumentar o furor dos que observavam atentos qualquer movimento da sepultura. 

Alguns achavam que esse era um aviso divino. Outros, um tatu dos grandes a fazer seus buracos. O mais estranho foi o momento em que o padre terminou a missa, saindo de cabeça baixa e sem falar qualquer palavra. Até a noite, segundo consta no Jornal do Comércio, pelo menos mais 20 pessoas viram a sepultura se mexer. 

Milton Tavares da Silva, morador da rua Amazonas, no bairro onde ocorreu esse evento "sobrenatural", foi coveiro no São Francisco por 10 anos. Em entrevista ao Jornal, afirmou que aquela foi a primeira vez em décadas que se sentiu assombrado, pois foi uma das pessoas que viu a sepultura tremer. 

No dia 10 de agosto de 1980, o Jornal do Comércio noticiava que "continuava a romaria ao Cemitério de São Francisco", onde várias pessoas começavam a pedir graças ao túmulo, afirmando ser aquele evento um milagre. 

Ao que tudo indica, para o administrador do campo santo, José Maria da Silva, a COSAMA estava realizando obras perto do Cemitério, o que pode ter ocasionado o tremor nessa sepultura, não tendo o evento qualquer relação com o plano sobrenatural. Causos de outras épocas, quando o sobrenatural espantava mais que o terreno... 

FONTES: 

Jornal do Comércio, 09/08/1980
Jornal do Comércio, 10/08/1980
História da Paróquia São Lázaro (1956-1991) - Documento recuperado.


IV: O Diabo na casa de dança do São Francisco

A estória abaixo foi recuperada por meu amigo Maurício Castelo Branco, dono do blog São Francisco Bairro, no qual interage e divulga informações variadas com a população desse bairro da capital.

Em meados de 1985 existia uma casa de festas chamada Telhadão, que era localizada na Praça de São Francisco, por trás de onde hoje funciona uma loja de materiais de construção. Segundo relatos, na época, pessoas do Cafundó, Morro, Mossoró, Vila Mamão, gente de todos os cantos do bairro se reunia nos fins de semana no local para a diversão ao som de músicas eletrônicas, flashback, house e outros gêneros. 

Em decorrência disso o ápice do sucesso do lançamento de Thriller, de Michael Jackson, não parava de tocar em qualquer casa de festas em Manaus. Bem como dizia, no Telhadão não era diferente, mas, em uma noite de fim de semana, uma aparição de uma criatura/demônio/capeta/etc/ se deu justamente no decorrer da dita música. 

O monstro tinha o rosto semelhante ao de um dragão, com olhos vermelhos, nariz com focinho de cachorro, alguns furos perto da boca e com um par de chifres na altura da testa. A estatura juntamente com o corpo era de um homem, mas as mãos e pés eram iguais as patas de um boi. No momento da aparição, a correria foi intensa dentro do local, as pessoas desesperadas se entupiram na saída que era apenas uma porta pequena. Alguns gritavam por socorro. Enquanto isso a criatura permanecia parada, mas durante um tempo teve muita fumaça ao seu redor, ficou quase impossível de enxergá-la. No fim da confusão ninguém conseguiu explicar o que houve, alguns dizem que o boato foi para prejudicar o evento, outros dizem que o que aconteceu foi real.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Encyclopédie du Paranormal
Jornal do Comércio, 09/08/1980
www.wjhirten.com

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Manaus das Catraias

O texto a seguir foi publicado entre 23 e 24 de outubro de 2005 no Jornal do Comércio pelo escritor, artista plástico e imortal da Academia Amazonense de Letras Moacir Andrade (1927-2016), por ocasião do aniversário da cidade. Em Manaus das Catraias, Moacir Andrade, através de pesquisas e de memórias que vão da década de 1940 até 1980, tece um breve histórico desse antigo meio de transporte que por séculos fez parte do cotidiano da cidade.

Moacir Andrade


Passageiros em uma catraia. Foto de 1964.

Dois grandes igarapés cortam a cidade no sentido norte sul; o igarapé de São Raimundo, que separa aquele populoso bairro por uma largura de aproximadamente duzentos metros, próximo a sua foz, segundo, o igarapé de Educandos que tem três tributários, o da primeira ponte, também conhecido como igarapé de Manaus, cuja nascente despontava nas proximidades da rua Tarumã e desembocava ao lado do Palácio Rio Negro, no chamado de igarapé da segunda ponte, teve o seu curso interrompido várias vezes, ao longo de seu comprimento por aterros executados pela Prefeitura de Manaus, para dar lugar ao procedimento das ruas Apurinã, Tarumã, Leonardo Malcher, cujo trecho se chamava "Buraco do Pinto", Ramos Ferreira, avenida Ipixuna e finalmente a avenida 7 de Setembro, por onde desliza sob uma ponte de pedra em estilo romano. A segunda a partir da sua foz, no entroncamento com os igarapés da segunda ponte, também denominado de igarapé da rua Jonathas Pedrosa, e o igarapé da Cachoeirinha, o trecho até a sua confluência com o Rio Negro, que era livre de pontes ou aterros, daí, a necessidade dos catraieiros. A palavra catraia é de origem portuguesa e veio para Manaus, com os primeiros navios a vela que aportaram aqui, com a abertura dos nossos portos para o mundo. Originalmente a catraia era um pequeno barco a vela que servia os transportes fluviais em Portugal e colônias. Possuía um mastro central com velas de painel em um mastro e outro mastro na popa para vela catita, onde se içava também a bujarrona.

O uso efetivo da catraia tornou-se necessidade imperiosa a partir da grande e permanente afluência de navios estrangeiros que mensalmente aportavam as águas das nossas praias fronteiras no fim do século passado, para transportar borracha, castanha e madeira, couro e óleos vegetais produzidos no chamado ciclo áureo da borracha.

Aí por volta de 1885 não havia ancoradouro, nem muros de arrimo, de cais flutuantes, e os navios que chegavam a Manaus para receber a borracha baixavam a âncora muito distante das praias livres que contornavam a margem esquerda do Rio Negro em toda sua extensão desde o igarapé dos Educandos até São Raimundo.

No princípio do século , todos ou quase todos os catraieiros eram portugueses da província da Póvoa de Varzim, de onde trouxeram esse tipo característico de veículos e se aglomeravam na antiga praia da Imperatriz, em frente a Igreja da Matriz, onde hoje está construído o cais flutuante da Portobras, antiga Manáos Harbour. Naquela época as catraias eram de extrema necessidade, pois os passageiros e cargas só poderiam desembarcar através desses veículos fluviais que eram pequenos barcos com aproximadamente 8 metros de comprimento, dotados de um banco inteiriço de mais ou menos 35 centímetros de largura em volta do barco, onde os passageiros se acomodavam sentados. A popa era adornada com uma placa de madeira, de forma semi-circular, onde estavam escritos os nomes das pequenas embarcações, geralmente de origem portuguesa, talvez como recordação da terra distante. Todos os barcos portavam uma bandeirinha com nome do proprietário ou da entidade que servia, eram pintados de cores múltiplas lembrando barcos que singram o rio Tejo, ou barcos pesqueiros das praias de Póvoa de Varzim e Nazaré em Portugal. As catraias originais ficavam esperando os seus eventuais fregueses ao longo da praia fronteiriça à Igreja da Matriz até o aterrado igarapé do Espírito Santo, exatamente no trecho onde ancoravam os navios que aqui aportavam. Com a construção do muro de arrimo e também do lado da ponte do igarapé em que o povo chegava rente as catraias, e do cais flutuante, pela antiga Manáos Harbour, as catraias se aglomeravam ao longo do trecho do cais que liga a parte que recebe os grandes navios e o continente. Aí se podiam ver as pequeninas e policrômicas embarcações balouçarem ao sabor das ondas do Rio Negro, num bonito espetáculo de balé aquático.

Seus tripulantes e proprietários, todos portugueses, usavam camisa de mangas compridas e geralmente quadriculadas, à moda dos pescadores de Póvoa de Varzim, com a cabeça sempre coberta com um boné de lã portuguesa. A construção do moderno cais pelos ingleses determinou a extinção dos catraieiros, porque já não necessitavam mais desse pequeno barco que tanto e inestimáveis serviços prestaram ao Amazonas e ao Brasil, no tempo em que no Amazonas se "amarrava cachorro com linguiça" e se "acendia charuto com nota de 100.000 réis". Eu mesmo cheguei a conhecer muitos portugueses que trabalharam nesse meio de transporte no ano de 1946, entre eles: Maravalhas Campos, Aurélio e Milhases, alguns já na quarta geração trabalhando no mesmo serviço, o Maravalhas e o Campos, só que agora a prestação de serviços é feita somente para firmas como Abraham Pazuello, Isaac Benzecry Serfaty, Sefair J. A. Leite, JG Araújo, J. S. Amorim, Abrahim & Irmãos e Booth Line, entre outras. Os remanescentes dos antigos barcos são: "Luz do dia", "Sempre Federal", "União", "Maravalhas", "Campos", "Aurélio", "Portugal", "Brasil", entre outros que continuam levando e trazendo trabalhadores para o serviço de estivas em navios ancorados e onde é feito o serviço de escolha e seleção de castanha para embarque.

Outro tipo de serviço de catraia que agora está se extinguindo, é o feito diariamente nos igarapés de São Raimundo e Educandos, trazendo principalmente trabalhadores para o Centro da cidade, e do Centro da cidade para os referidos bairros. Muita gente pensava que com a construção da ponte de São Raimundo que liga a cidade ao bairro de Santo Antônio através da avenida Leopoldo Neves, o serviço de catraia iria desaparecer, o que não aconteceu, embora tenha diminuído muito com a quantidade de pessoas que se deslocam utilizando esse tipo de transporte. No bairro de São Raimundo o serviço de catraia é ininterrupto, se desloca da rua 5 de Setembro sobre o igarapé de mesmo nome até a rua Doutro Aprígio do lado norte da serraria Hore. Os catraieiros se revezam trabalhando 24 horas por dia numa escala determinada por portaria da Capitania dos Portos do Amazonas, Acre e territórios federais de Rondônia e Roraima.

No bairro de Educandos, embora a Prefeitura Municipal de Manaus tenha construído recentemente uma ponte de concreto armado sobre o referido igarapé, ligando a rua Quintino Bocaiuva, no Centro de Manaus, ao bairro de Educandos, o serviço de catraia continua da Manoel Urbano até a rua dos Andradas ao lado da cidade, também nas mesmas condições, isto é, revezando-se ininterruptamente de acordo coma determinação da Capitania dos Portos.

O pagamento de cada passagem custa um terço do preço da passagem de ônibus, a razão por que da escolha do grande público que prefere se transportar em catraia ao utilizar o serviço de ônibus, três vezes mais caro, principalmente para os que moram nas proximidades dos igarapés de Educandos e São Raimundo.


FONTE:

ANDRADE, Moacir. Manaus das Catraias. Manaus, Jornal do Comércio, 23 e 24 de outubro de 2005.

CRÉDITO DA IMAGEM:

Instituto Durango Duarte

domingo, 13 de agosto de 2017

As rezas e os rezadores de Manaus

Esse texto foi originalmente publicado pelo Professor Dr. Júlio César Schweickardt na Série Memória, da Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto do Amazonas, em 2002. Nele são analisadas as práticas de benzedeiras e rezadores da capital (práticas de forma geral, não a trajetória de cada uma das personagens) e os significados de suas ações no universo da religiosidade popular brasileira.

Júlio César Schweidckardt


Quem não conheceu alguém que rezou ou reza? Quem não levou seus filhos para rezar quebranto? Quem nunca ouviu falar de mau-olhado, erizipela, cobreiro, rasgadura? As benzedeiras e os rezadores fazem parte do cotidiano dos bairros da cidade de Manaus. A imagem que nos vem à mente são de pessoas idosas que estão em suas casas aguardando a chegada de um pai ou mãe para rezar o seu filho.

A reza é uma coisa antiga, vem dos tempos da Idade Média na Europa, e faz parte do catolicismo popular. Algumas vezes teve a aprovação da Igreja e outras foi combatida como sendo superstição. Mas os problemas quase sempre foram com a medicina que estava se firmando como uma ciência objetiva e certa, e a reza representava uma coisa do passado que se utilizava da magia para produzir os seus efeitos. Atualmente, este conflito não existe mais porque essas mulheres e homens não representam mais uma ameaça.

Após cinco séculos de colonização a reza e o benzimento ganharam novas fórmulas e novas formas a partir das tradições africanas e indígenas, ou mesmo com os novos movimentos religiosos. Montero explica que a preservação de um catolicismo popular é porque os imigrantes portugueses que se instalaram no interior em zonas de pecuária e pequena agricultura de subsistência eram oriundos das camadas populares da Península Ibérica. Devido ao isolamento, esses grupos puderam conservar, de modo relativamente intacto, o catolicismo popular de que já era uma prática em Portugal. Essas zonas se constituíam "um depósito e reservatório de elementos religiosos tradicionais e arcaicos portugueses e brasileiros. Esse catolicismo popular, mais voltado para o culto dos santos, caracterizava-se, e caracteriza-se ainda hoje, por estar essencialmente ligado às necessidades práticas da vida". Como no interior não havia sacerdotes e médicos os rezadores eram pessoas de muito prestígio. Inclusive muitas eram procuradas também para rezar sobre uma plantação ou sobre um animal que estava doente.

Dissemos acima que a reza se encontra no contexto da magia, mas o que entendemos como magia? Em poucas palavras, magia é o entendimento de que palavras e gestos irão interferir no processo natural das coisas, ou seja, há uma relação entre fatos distintos que aparentemente não têm nenhuma relação relação, mas que se relacionam por meio da magia. Assim, as palavras certas sendo ditas pela pessoa certa e no momento certo pode fazer o sangue parar: "tomar o sangue pela palavra".

As fórmulas mágicas não foram reveladas pelas pessoas que as ainda usam, pois afirmam que se revelado pode perder a eficácia, ou elas podem ser penalizadas pela revelação. As fórmulas das rezas só podem ser passadas para pessoas do mesmo parentesco, ou se não há interesse por esses, podem ser passadas a uma pessoa que tem o dom. O ritual de iniciação é um elemento importante, e nesse está o aprendizado das fórmulas. Mauss confirma isso, dizendo que "o conhecimento da receita, o acesso da tradição, para emprestar, àquele que a segue, uma qualificação mínima". A tradição é um dos elementos que dá autoridade ao mágico.

A iniciação dá legitimidade para quem reza, mas não é qualquer um que pode ser rezador, pois precisa reunir algumas condições especiais para que possa exercer essa atividade. Mauss é categórico quando diz: "Não é mágico quem quer: há qualidades cuja posse distingue o mágico do comum dos homens. Umas são adquiridas, outras são congênitas; há as que lhe são atribuídas e outras que ele possui efetivamente". A pessoa que passou pela experiência de receber o dom já não é a mesma, ou seja, a torna uma pessoa diferente no seu meio social, pois possui as características do sagrado, e é reconhecida como tal.

A partir do momento que a sua prática se torna social, ela se torna uma obrigatoriedade, ou seja, a pessoa está amarrada ao dom. A doença ou a morte são interpretadas pela negação de se continuar a rezar. O sagrado envolve situações de perigo, pois a pessoa não é mais livre propriamente dita, pois a sociedade a identifica como sendo portadora de características especiais.

O mau-olhado nos adultos o quebranto nas crianças é um dos problemas centrais na reza, pois relaciona o olhar com o falar. O grande público que frequenta os rezadores é de crianças, crianças que receberam o mal através de palavras de agrado. É uma contradição dizer que o mal vem pelo elogio e pelo agrado. A explicação dada é que a inveja e a competição é que cria o mal, mas em outros isso pode ser uma característica da própria pessoa como é o caso do sobrinho que sabe, mas que não pode fazer nada para evitar senão que os outros devem esconder dele os animais e proteger as crianças. Por outro lado, a própria fala pode curar através da reza, mas isso não conduz a uma relação dicotômica entre o diabo como representando o mal e Deus o bem. Isso vai aparecer no conflito entre os diferentes tipos de mágicos, onde um acusa o outro de provocar o mal voluntariamente através do ritual. Em geral, o mal é ocasionado pelo olhar e pela fala sem que necessariamente a pessoa seja má, é como se houvesse uma autonomia desses dois elementos, que agiriam involuntariamente na pessoa.

Por isso que conhecer a magia é compreender a sociedade que cria os elementos simbólicos necessários para dar forma e presença ao fenômeno mágico. Em outras palavras, a magia existe intencionalmente na consciência das pessoas, tornando-se uma realidade prática para aqueles que compartilham da mesma interpretação e fazem parte do mesmo universo simbólico. É a própria no interior do grupo social que forma a consciência das coisas das coisas na vida das pessoas.

Ainda uma última questão: a magia funciona? Sim, ela tem uma eficácia que se mostra exatamente no momento em que as pessoas ao dizerem o que têm já estão dando um sentido e ordem à desordem. Então ela acredita que aquilo que está acontecendo é possível de acontecer e que somente há uma forma de cura: a reza.


BIBLIOGRAFIA:

MONTERO, Paula. Da Doença à desordem: a magia na umbanda. Rio de Janeiro, Graal, 1985.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Vol. 1. São Paulo, EPU, 1974.
SCHWEICKARDT, Júlio César. Magia e religião na modernidade: os rezadores em Manaus. Manaus, EDUA, 2002.

FONTE:

SCHWEICKARDT, Júlio César. As rezas e os rezadores. Série Memória. Manaus, Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto, 6° ed, n°86, novembro de 2002

CRÉDITO DA IMAGEM:

Portal das Missões

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Catolicismo Popular no Brasil

Imagens de Santo Antônio e São João Batista, santos populares no Brasil.

Esse pequeno texto faz parte do artigo Fragmentos de objetos, costumes e crendices antigas em Manaus, ainda não publicado.

O português e o espanhol trouxeram para a América o catolicismo. Nessa parte do Atlântico essa religião se desenvolveu de forma curiosa: mesclaram-se às raízes da tradição cristã ibérico romana, ainda com fortes traços medievais de influência pagã e maometana, as crenças dos nativos e, mais tarde, dos escravos africanos. Por mais que os conquistadores tentassem suprimir os credos dos outros dois grupos, o sincretismo, lentamente forjado em uma relação nem sempre amistosa de séculos, já havia ocorrido. Surgiu algo novo, outro catolicismo, o popular. Os moradores de povoados, vilas e poucas cidades existentes na América Portuguesa, distantes do centro de poder de Roma, se apegam mais à devoção do que ao sacramento.

O atual Rio de Janeiro um dia foi São Sebastião do Rio de Janeiro. A primeira cidade da colônia foi consagrada ao padroeiro de Lisboa, São Vicente. A fortaleza que deu origem à Manaus foi construída entre 1669-1670, sob a “invocação de Jesus, Maria e José” (MONTEIRO, 1995, p. 25), a Sagrada Família, e ficou conhecida como Fortaleza de São José da Barra. Em 1695, os padres carmelitas constroem uma pequena igreja ao lado do forte, consagrando o templo e a localidade à Nossa Senhora da Conceição. São Sebastião, São Vicente, Sagrada Família, São José da Barra e N. S. da Conceição da Barra, referências e oragos do catolicismo lusitano implantado no litoral e na região amazônica. De acordo com o Banco de Nomes Geográficos do Brasil, do IBGE, uma em cada 9 cidades brasileiras têm nome de santo, sendo 652 dos 5.565 municípios. Os mais citados, por ordem, são: São José (60), São João (54), Santo Antônio (38) e São Francisco (27)4.

O leigo (a) é a autoridade do culto popular. Existiam, claro, padres, freis e monges, mas o catolicismo foi transmitido por pessoas não ligadas ao poder eclesiástico, mas conhecedoras, ao seu modo rústico, das práticas religiosas. Herdeiras dos primeiros tempos da religião na América Portuguesa, são as rezadeiras e benzedeiras que ainda existem nas regiões Norte e Nordeste, que transitam entre a linha da religião, invocando os nomes de Jesus e santos, e do conhecimento nativo, buscando na mistura de ervas e plantas panaceias para todas as dificuldades. Iemanjá, divindade do Candomblé e da Umbanda, tem seu par na figura de Nossa Senhora dos Navegantes; e a lavagem das escadarias da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, na Bahia, é realizada por mães de santo e filhas de santo (RIBEIRO, 2012, p. 18). Essa é uma característica da ausência do poder institucionalizado, que permite o surgimento de uma religião maleável e mais acessível às massas. Semelhante aos cultos fenícios e greco-romanos é a prática do ex-voto suspecto, o voto realizado, que consiste em deixar objetos para os santos como agradecimentos por graças alcançadas.

O santo tem papel de destaque na vida religiosa. Tudo gira em torno de sua figura. Oratórios, capelas e santuários são construídos com a ajuda da comunidade para honrá-lo. Esses templos movimentam as massas devotas e concentram em si a vida econômica e social, com a realização de arraiais, feiras e quermesses em seus terrenos ou arredores. As principais cidades do Nordeste se transformam durante os festejos de junho para São João, São Pedro e Santo Antônio. Deus é o ser supremo, representado como Senhor Bom Jesus, Divino Pai Eterno e Divino Espírito Santo. Não existe um culto específico para ele, pois os santos cumprem o papel da intercessão divina. Jesus, filho do criador

[…] é o protótipo dos santos: bom e justo, ele sofre sem ter pecado, e por esse sofrimento ele ganha a misericórdia divina para com os homens. Sua representação popular é, pois, a representação do sofredor: o Crucificado, o Senhor morto, o Jesus da Paixão. Só a partir da ‘romanização’ se introduz a representação de Jesus glorioso, Cristo-Rei, do Jesus suave e manso, como o Menino Jesus e Sagrado Coração de Jesus. Basta lembrar que a grande festa do catolicismo popular não é a Páscoa e nem mesmo o Natal, mas a Sexta-Feira Santa, a Sexta-feira da Paixão. Assim como Jesus sofreu, aceitando como resignação as provações que Deus lhe mandou, também os santos sofreram cada qual as suas provações, tendo assim provado diante de Deus sua conformidade com o que lhes mandava. Também os homens têm que se conformar com a sorte que Deus lhe deu, vivendo em fidelidade aos mandamentos de Deus sem jamais amaldiçoar sua vida5.

A relação com as imagens sacras é íntima e mistura superstições variadas. Santo Antônio, o casamenteiro, quando intercede e não encontra um parceiro, é congelado e posto de cabeça para baixo em um copo d' água. São Longuinho ganha “três pulinhos” se ajudar a encontrar um objeto perdido. Quando ajudam são recompensados e, quando não, ficam de castigo. Em cantiga vinda da antiga freguesia de Monsanto, em Portugal, São José ajuda a embalar uma criança para o sono6: 

José, embala o Menino,
Com a mão, nanja co pé,
O menino que ali vês
É Jesus de Nazaré.
Cantai, anjos, ao Menino,
Que a Senhora logo vem,
Foi lavar os cueirinhos
À ribeira de Belém

São amigos próximos mas também podem ser tratados como crianças birrentas. Os santos curam e ajudam nos problemas do cotidiano, bem como protegem a casa, a rua e o comércio. O catolicismo popular é um dos exemplos mais significativos de como se desenvolveu a sociedade na América Portuguesa e, mais tarde, no Brasil. Uma religião milenar, já transformada em sua região de origem, se aclimatou nos trópicos, onde também recebeu outras influências e se transformou em algo novo, expressão de uma sociedade desigual e culturalmente multifacetada.

NOTAS:

4 Uma em cada nove cidades do país tem nome de santo. Disponível em g1.globo.com/brasil/noticia/2011/09/uma-em-cada-nove-cidades-do-pais-tem-nome-de-santo.html. Acesso em 17/01/2017.
5 OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Religião e dominação de classe: gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Vozes, Petrópolis, 1985, p. 112.
6 José embala o menino In: Pires, A. Tomás. Cantos Populares Portuguezes (em Português). 1 ed. Elvas: Tipografia Progresso, 1902. vol. I.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fundação de Manaus. São Paulo, Editora Metro Cúbico, 4° ed, 1995.

RIBEIRO, Josenilda Oliveira. Sincretismo religioso no Brasil: Uma análise histórica das transformações no catolicismo, evangelismo, candomblé e espiritismo. UFPE, 2012.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

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quarta-feira, 11 de maio de 2016

Viver à grega

Baco, de Caravaggio. 1593-1597.

Pargraecari é um termo de origem latina, que significa “viver à grega”. Era com este termo que alguns romanos, os mais conservadores, designavam o modo de vida de seus semelhantes. O modo de vida romano, entre os séculos III e II, recorte histórico feito pela autora, é marcado pela devassidão, pela ostentação, a vida galante e desregrada. Naquela época, a existência desses hábitos, que iam contra a moral estabelecida e defendida pelas elites, era atribuída à má influência grega. Mas como era esse estilo de vida grego? Uma fonte material pode ser utilizada como simples resposta: Vejam, abaixo. O mosaico da imagem, grego, data do século III a.C., e foi encontrado à duas semanas nas ruínas de Antioquia, na Turquia. Ele fazia parte de uma sala de jantar de uma residência, e nele se lê: “Seja alegre, viva sua vida”. Observem que, quem segura a tigela de bebida, ao lado da garrafa, é um esqueleto, lembrando da efemeridade da vida. Era assim que os gregos, e agora os romanos, em parte influenciados pelos vizinhos mediterrâneos e em outra, antigos praticantes, viviam.



As comédias de Plauto e Terêncio, as Sátiras de Petrônio Árbitro e os escritos de outros autores, legaram para nós as figuras das prostitutas que arruinavam famílias, os homens que, em avançada idade, ainda sentem os ardores do amor, e o militar fanfarrão. Plauto, em uma de suas comédias, exclama: “Bebam dia e noite, vivam à grega, comprem mulheres, libertem-nas, engordem os parasitas”. Por mais que se jogasse a culpa nos gregos, era difícil ocultar algo facilmente visível na sociedade romana muito antes do contato destes com seus vizinhos.

O contato entre romanos e gregos, citando Catherine Salles, e a introdução desses hábitos entre os latinos, se deu no século III a.C., quando as legiões romanas conquistam a Itália do Sul, e os habitantes do Lácio começam a se familiarizar com os hábitos desregrados dos habitantes da Campânia, na Magna Grécia. Francisco Oliveira e José Luís Brandão, em História de Roma Antiga. Vol I. - das origens à morte de César, citam que esse estilo de vida grego chegou à Roma de diferentes formas: “pela presença de gregos em Roma – reféns, escravos, imigrantes e embaixadores; a passagem de romanos pela Magna Grécia, pela Grécia e pelo mundo helenístico – militares, viajantes, comerciantes, embaixadores, jovens estudantes que aperfeiçoavam os seus estudos em grandes centros culturais, como Alexandria, Atenas, Nápoles, Pérgamo e Rodes. Nesta fase merece particular destaque a atração de intelectuais gregos por Roma: professores, médicos, retores, filósofos, geógrafos, historiadores e artistas”1.

Por mais que existissem tentativas, por parte das elites aristocráticas e burocráticas romanas, de esconder a realidade de devassidão dos habitantes da cidade, a vida dos prazeres à grega era indissociável para um romano do Aventino, dos lupanares e ruas do bairro Subura, das zonas do Grande Circo, povoadas por populações à margem da sociedade. Esses nomes de bairros, e a associação que carregam, revelam, nas palavras de Catherine, a existência de uma “geografia do prazer”. Os romanos, muito antes de terem contato com a “má influência” grega, já cultivavam hábitos considerados reprováveis pela moral citadina. “O mito do romano casto, corrompido por costumes estrangeiros, deve ser posto na lista dos acessórios de uma comédia que os partidários da castidade original do povo latino gostam de presentar”2

Jogar a culpa aos estrangeiros era um método não muito efetivo de diminuir a culpa pelo que se praticava na cidade, que era associada a todas as formas de prazer, principalmente os proibidos. Basta lembrar que, entre os antigos, Roma é o anagrama de Amor. A elite tentava omitir essas práticas, mas ela mesma os praticava. No Império, é bom enfatizar, existia uma relação intensa entre poder e sexo, a qual pode ser exemplificada com os altos impostos cobrados das lupas, prostitutas, bordéis e choupanas; e até em decisões políticas tomadas durante bebedeiras ou relações entre quatro paredes.


1OLIVEIRA, Francisco; BRANDÃO, José Luís. História de Roma Antiga: vol I: das origens à morte de César. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, p. 270.

2SALLES, Catherine. Nos submundos da Antiguidade. 2° ed. São Paulo, Brasiliense, 1983. p. 171.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

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Revista Aventuras na História