domingo, 13 de agosto de 2017

As rezas e os rezadores de Manaus

Esse texto foi originalmente publicado pelo Professor Dr. Júlio César Schweickardt na Série Memória, da Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto do Amazonas, em 2002. Nele são analisadas as práticas de benzedeiras e rezadores da capital (práticas de forma geral, não a trajetória de cada uma das personagens) e os significados de suas ações no universo da religiosidade popular brasileira.

Júlio César Schweidckardt


Quem não conheceu alguém que rezou ou reza? Quem não levou seus filhos para rezar quebranto? Quem nunca ouviu falar de mau-olhado, erizipela, cobreiro, rasgadura? As benzedeiras e os rezadores fazem parte do cotidiano dos bairros da cidade de Manaus. A imagem que nos vem à mente são de pessoas idosas que estão em suas casas aguardando a chegada de um pai ou mãe para rezar o seu filho.

A reza é uma coisa antiga, vem dos tempos da Idade Média na Europa, e faz parte do catolicismo popular. Algumas vezes teve a aprovação da Igreja e outras foi combatida como sendo superstição. Mas os problemas quase sempre foram com a medicina que estava se firmando como uma ciência objetiva e certa, e a reza representava uma coisa do passado que se utilizava da magia para produzir os seus efeitos. Atualmente, este conflito não existe mais porque essas mulheres e homens não representam mais uma ameaça.

Após cinco séculos de colonização a reza e o benzimento ganharam novas fórmulas e novas formas a partir das tradições africanas e indígenas, ou mesmo com os novos movimentos religiosos. Montero explica que a preservação de um catolicismo popular é porque os imigrantes portugueses que se instalaram no interior em zonas de pecuária e pequena agricultura de subsistência eram oriundos das camadas populares da Península Ibérica. Devido ao isolamento, esses grupos puderam conservar, de modo relativamente intacto, o catolicismo popular de que já era uma prática em Portugal. Essas zonas se constituíam "um depósito e reservatório de elementos religiosos tradicionais e arcaicos portugueses e brasileiros. Esse catolicismo popular, mais voltado para o culto dos santos, caracterizava-se, e caracteriza-se ainda hoje, por estar essencialmente ligado às necessidades práticas da vida". Como no interior não havia sacerdotes e médicos os rezadores eram pessoas de muito prestígio. Inclusive muitas eram procuradas também para rezar sobre uma plantação ou sobre um animal que estava doente.

Dissemos acima que a reza se encontra no contexto da magia, mas o que entendemos como magia? Em poucas palavras, magia é o entendimento de que palavras e gestos irão interferir no processo natural das coisas, ou seja, há uma relação entre fatos distintos que aparentemente não têm nenhuma relação relação, mas que se relacionam por meio da magia. Assim, as palavras certas sendo ditas pela pessoa certa e no momento certo pode fazer o sangue parar: "tomar o sangue pela palavra".

As fórmulas mágicas não foram reveladas pelas pessoas que as ainda usam, pois afirmam que se revelado pode perder a eficácia, ou elas podem ser penalizadas pela revelação. As fórmulas das rezas só podem ser passadas para pessoas do mesmo parentesco, ou se não há interesse por esses, podem ser passadas a uma pessoa que tem o dom. O ritual de iniciação é um elemento importante, e nesse está o aprendizado das fórmulas. Mauss confirma isso, dizendo que "o conhecimento da receita, o acesso da tradição, para emprestar, àquele que a segue, uma qualificação mínima". A tradição é um dos elementos que dá autoridade ao mágico.

A iniciação dá legitimidade para quem reza, mas não é qualquer um que pode ser rezador, pois precisa reunir algumas condições especiais para que possa exercer essa atividade. Mauss é categórico quando diz: "Não é mágico quem quer: há qualidades cuja posse distingue o mágico do comum dos homens. Umas são adquiridas, outras são congênitas; há as que lhe são atribuídas e outras que ele possui efetivamente". A pessoa que passou pela experiência de receber o dom já não é a mesma, ou seja, a torna uma pessoa diferente no seu meio social, pois possui as características do sagrado, e é reconhecida como tal.

A partir do momento que a sua prática se torna social, ela se torna uma obrigatoriedade, ou seja, a pessoa está amarrada ao dom. A doença ou a morte são interpretadas pela negação de se continuar a rezar. O sagrado envolve situações de perigo, pois a pessoa não é mais livre propriamente dita, pois a sociedade a identifica como sendo portadora de características especiais.

O mau-olhado nos adultos o quebranto nas crianças é um dos problemas centrais na reza, pois relaciona o olhar com o falar. O grande público que frequenta os rezadores é de crianças, crianças que receberam o mal através de palavras de agrado. É uma contradição dizer que o mal vem pelo elogio e pelo agrado. A explicação dada é que a inveja e a competição é que cria o mal, mas em outros isso pode ser uma característica da própria pessoa como é o caso do sobrinho que sabe, mas que não pode fazer nada para evitar senão que os outros devem esconder dele os animais e proteger as crianças. Por outro lado, a própria fala pode curar através da reza, mas isso não conduz a uma relação dicotômica entre o diabo como representando o mal e Deus o bem. Isso vai aparecer no conflito entre os diferentes tipos de mágicos, onde um acusa o outro de provocar o mal voluntariamente através do ritual. Em geral, o mal é ocasionado pelo olhar e pela fala sem que necessariamente a pessoa seja má, é como se houvesse uma autonomia desses dois elementos, que agiriam involuntariamente na pessoa.

Por isso que conhecer a magia é compreender a sociedade que cria os elementos simbólicos necessários para dar forma e presença ao fenômeno mágico. Em outras palavras, a magia existe intencionalmente na consciência das pessoas, tornando-se uma realidade prática para aqueles que compartilham da mesma interpretação e fazem parte do mesmo universo simbólico. É a própria no interior do grupo social que forma a consciência das coisas das coisas na vida das pessoas.

Ainda uma última questão: a magia funciona? Sim, ela tem uma eficácia que se mostra exatamente no momento em que as pessoas ao dizerem o que têm já estão dando um sentido e ordem à desordem. Então ela acredita que aquilo que está acontecendo é possível de acontecer e que somente há uma forma de cura: a reza.


BIBLIOGRAFIA:

MONTERO, Paula. Da Doença à desordem: a magia na umbanda. Rio de Janeiro, Graal, 1985.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Vol. 1. São Paulo, EPU, 1974.
SCHWEICKARDT, Júlio César. Magia e religião na modernidade: os rezadores em Manaus. Manaus, EDUA, 2002.

FONTE:

SCHWEICKARDT, Júlio César. As rezas e os rezadores. Série Memória. Manaus, Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto, 6° ed, n°86, novembro de 2002

CRÉDITO DA IMAGEM:

Portal das Missões

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