quinta-feira, 31 de agosto de 2017

São Raimundo: Um bairro rodeado de beleza e muitas histórias

Por Elza Souza

Vista parcial do bairro de São Raimundo. Foto de 1960.

O registro da história de São Raimundo, zona oeste da cidade de Manaus, começa em 1849 quando foi feita a doação das terras ao Seminário São José. Por ali já havia alguns moradores vindos do Nordeste. E foram chegando cada vez mais. No lugar, uma pequena colina quase toda cercada pelo rio Negro, azulado às vezes, havia uma densa floresta com grandes árvores frutíferas, palmeiras e olhos d’água pra todo lado onde se formaram as cacimbas usadas pela população. Era a época das epidemias e, portanto, o governo fez daquele lugar “distante” do berço da cidade, um isolamento de doentes que por lá eram enterrados.

Em 1879 o conhecido e atuante padre amazonense Raimundo Amâncio de Miranda, nascido em Maués, que prestava seus serviços na igreja dos Remédios, começou os trabalhos religiosos no bairro trazendo a primeira imagem de São Raimundo Nonato. O padre emprestava os paramentos para as celebrações da Matriz e durante um ano organizou a igreja e orientou os moradores para o prosseguimento das atividades após sua saída. No topo da colina ficava o hospital e depois a igreja que iniciou num pequeno depósito de ferramentas onde hoje é mais ou menos a sacristia. A imagem resistiu até a época do padre Carlos Flhur, anos 1930. Depois sumiu tirando da História importante registro do bairro.

Entre 1892 e 1896 Eduardo Ribeiro, atento as necessidades urbanas, “enxergou” o bairro, que sempre foi esnobado por todos, autoridades e moradores do outro lado do rio, até então área nobre da cidade. No máximo ali se via uma aldeia. Mas que lugar lindo era aquela colina com uma imensidão de rio ao redor, com aquela praia, com aquelas árvores frondosas? Dizem que do alto daqueles barrancos o Ajuricaba, líder indígena dos Manáos, observava a passagem de seus opositores. Em 1928, Raimundo de Menezes, em seu livro Nas Ribas do Rio Mar, descreve o passeio que fez na cidade e cachoeira do Tarumã com o médico Araújo Lima e Raimundo Moraes: “Ao longe surgiu o bairro de São Raimundo, refletindo-se na água de um igarapé. É o subúrbio dos operários. Arruados enormes de casas. Uma capela. Um grupo escolar. Iluminação elétrica. Do outro lado a cidade imensa com o seu casario a rebrilhar ao sol. Bem pertinho o edifício enorme da fábrica de cerveja com os seus oito andares. Em São Raimundo está a estação rádio telegráfica do Estado...”

O bairro mudou muito. A floresta se reduziu a quintais que hoje não existem mais. As ruas e becos por onde a gente se perdia nas brincadeiras entre as árvores, estão asfaltadas e movimentadas e não são mais lugar pra criança brincar. A praia infinitamente bela que cercava toda a colina, foi aterrada, virou orla. As palafitas foram retiradas, alguns flutuantes teimam em ficar com negócios que não se sabe exatamente quais. As pedras jacaré que enfeitavam a área, no meu olhar, e serviam fragmentadas para as brincadeiras de “pedrinhas”, foram arrancadas dos barrancos. Como as árvores. O que vai evitar a queda das terras altas se retiraram a proteção natural que de fato seguravam os barrancos? Vão surgindo indagações para as quais não temos resposta. Uma coisa ninguém tira daquela colina. Foi o mirante do Ajuricaba e é o ponto de observação dos cenários mais lindos de Manaus. No fim do passeio do escritor Menezes, ele anotou que “o sol morria, num crepúsculo ensanguentado, a beijar docemente, suavemente, a linda cidade dos sorrisos”. Pois é.

Do alto da colina dá para apreciar o nascer e o pôr do sol e seus reflexos inebriando o rio e o igarapé que ali se juntam e formam paisagens que só os moradores têm o privilégio de ver e clicar a melhor foto. Se olharem para o além-rio e não para seu próprio umbigo. Os muros da Compensa (que já fez parte do velho São Raimundo) impedem qualquer olhar de afeto para o Negro e seus reflexos. Daquelas beiradas se observa a cidade, de longe uma beleza. De perto a cervejaria do outro lado e a Vila Aprígio estão decadentes como qualquer prédio que remonte a nossa história. Não tem mais praia. A festejada orla não tem dono. O projeto de governo que pintou e bordou por lá aterrando nascentes e histórias, calou perante o serviço mal feito. Mas o bairro continua lindo. Encolheu. As terras foram divididas em outras comunidades. Compensa, Santo Antônio, Glória. O povo foi bem-educado pelos padres e a partir dos anos de 1950 com as freiras que se esforçaram por deixar um conteúdo não só religioso, mas cultural e de boas maneiras. Rio e colina ninguém separa. E a igreja do alto ninguém derruba.

Nada, porém foi capaz de evitar o avanço das drogas que corrompeu mentes e corações de parte da juventude local que antes se envolvia com grupos de convivência, com teatro, com esportes, com música (coral, serenata, bailes). A luta continua para preservar o que restou. A igreja católica faz a sua parte junto com a maioria dos moradores, mas o mundo mudou, o bairro mudou, as pessoas mudam. A esperança continua inabalável. A união de todos vai fazer do São Raimundo, aquele lugar da minha infância onde o sorriso era constante e as portas não tinham grades, onde o violão vivia embaixo dos braços dos jovens para encantar as namoradas, um bairro de paz, de amor, de infinita beleza. Deus o criou assim. Vamos manter isso. E viva o Bairro de São Raimundo que está em festa com quase 168 anos.


Elza Maria Pereira Souza é Jornalista formada pela UFAM (Universidade Federal do Amazonas), com vários cursos na área de produção de rádio, Televisão e roteiro para cinemas. É autora dos livros São Raimundo: Do "alto" da minha colina - sem os bucheiros o bairro de São Raimundo perdeu o encantamento, publicado em 2008; Moacyr de todas as cores, 2010, e Palafitas, 2016.










CRÉDITO DA IMAGEM:

Instituto Durango Duarte


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