Por Elza Souza
Vista parcial do bairro de São Raimundo. Foto de 1960.
O
registro da história de São Raimundo, zona oeste da cidade de
Manaus, começa em 1849 quando foi feita a doação das terras ao
Seminário São José. Por ali já havia alguns moradores vindos do
Nordeste. E foram chegando cada vez mais. No lugar, uma pequena
colina quase toda cercada pelo rio Negro, azulado às vezes, havia
uma densa floresta com grandes árvores frutíferas, palmeiras e
olhos d’água pra todo lado onde se formaram as cacimbas usadas
pela população. Era a época das epidemias e, portanto, o governo
fez daquele lugar “distante” do berço da cidade, um isolamento
de doentes que por lá eram enterrados.
Em
1879 o conhecido e atuante padre amazonense Raimundo Amâncio de
Miranda, nascido em Maués, que prestava seus serviços na igreja dos
Remédios, começou os trabalhos religiosos no bairro trazendo a
primeira imagem de São Raimundo Nonato. O padre emprestava os
paramentos para as celebrações da Matriz e durante um ano organizou
a igreja e orientou os moradores para o prosseguimento das atividades
após sua saída. No topo da colina ficava o hospital e depois a
igreja que iniciou num pequeno depósito de ferramentas onde hoje é
mais ou menos a sacristia. A imagem resistiu até a época do padre
Carlos Flhur, anos 1930. Depois sumiu tirando da História importante
registro do bairro.
Entre
1892 e
1896
Eduardo Ribeiro, atento as necessidades urbanas, “enxergou” o
bairro, que sempre foi esnobado por todos, autoridades e moradores do
outro lado do rio, até então área nobre da cidade. No máximo ali
se via uma aldeia. Mas que lugar lindo era aquela colina com uma
imensidão de rio ao redor, com aquela praia, com aquelas árvores
frondosas? Dizem que do alto daqueles barrancos o Ajuricaba, líder
indígena dos Manáos, observava a passagem de seus opositores. Em
1928, Raimundo de Menezes, em seu livro Nas Ribas do Rio Mar,
descreve o passeio que fez na cidade e cachoeira do Tarumã com o
médico Araújo Lima e Raimundo Moraes: “Ao longe surgiu o bairro
de São Raimundo, refletindo-se na água de um igarapé. É o
subúrbio dos operários. Arruados enormes de casas. Uma capela. Um
grupo escolar. Iluminação elétrica. Do outro lado a cidade imensa
com o seu casario a rebrilhar ao sol. Bem pertinho o edifício enorme
da fábrica de cerveja com os seus oito andares. Em São Raimundo
está a estação rádio telegráfica do Estado...”
O
bairro mudou muito. A floresta se reduziu a quintais que hoje não
existem mais. As ruas e becos por onde a gente se perdia nas
brincadeiras entre as árvores, estão asfaltadas e movimentadas e
não são mais lugar pra criança brincar. A praia infinitamente bela
que cercava toda a colina, foi aterrada, virou orla. As palafitas
foram retiradas, alguns flutuantes teimam em ficar com negócios que
não se sabe exatamente quais. As pedras jacaré que enfeitavam a
área, no meu olhar, e serviam fragmentadas para as brincadeiras de
“pedrinhas”, foram arrancadas dos barrancos. Como as árvores. O
que vai evitar a queda das terras altas se retiraram a proteção
natural que de fato seguravam os barrancos? Vão surgindo indagações
para as quais não temos resposta. Uma coisa ninguém tira daquela
colina. Foi o mirante do Ajuricaba e é o ponto de observação dos
cenários mais lindos de Manaus. No fim do passeio do escritor
Menezes, ele anotou que “o sol morria, num crepúsculo
ensanguentado, a beijar docemente, suavemente, a linda cidade dos
sorrisos”. Pois é.
Do
alto da colina dá para apreciar o nascer e o pôr do sol e seus
reflexos inebriando o rio e o igarapé que ali se juntam e formam
paisagens que só os
moradores têm
o privilégio de ver e clicar a melhor foto. Se olharem para o
além-rio e não para seu próprio umbigo. Os muros da Compensa (que
já fez parte do velho São Raimundo)
impedem qualquer olhar de afeto para o Negro e seus reflexos.
Daquelas beiradas se observa a cidade, de longe uma beleza. De perto
a cervejaria do outro lado e a Vila Aprígio estão decadentes como
qualquer prédio que remonte a nossa história. Não tem mais praia.
A festejada orla não tem dono. O projeto de governo que pintou e
bordou por lá aterrando nascentes e histórias, calou perante o
serviço mal feito. Mas o bairro continua lindo. Encolheu. As terras
foram divididas em outras comunidades. Compensa, Santo Antônio,
Glória. O povo foi bem-educado pelos padres e a partir dos anos de
1950 com as freiras que se esforçaram por deixar um conteúdo não
só religioso, mas cultural e de boas maneiras. Rio e colina ninguém
separa. E a igreja do alto ninguém derruba.
Nada,
porém foi capaz de evitar o avanço das drogas que corrompeu mentes
e corações de parte da juventude local que antes se envolvia com
grupos de convivência, com teatro, com esportes, com música (coral,
serenata, bailes). A luta continua para preservar o que restou. A
igreja católica faz a sua parte junto com a maioria dos moradores,
mas o mundo mudou, o bairro mudou, as pessoas mudam. A esperança
continua inabalável. A união de todos vai fazer do São Raimundo,
aquele lugar da minha infância onde o sorriso era constante e as
portas não tinham grades, onde o violão vivia embaixo dos braços
dos jovens para encantar as namoradas, um bairro de paz, de amor, de
infinita beleza. Deus o criou assim. Vamos manter isso.
E
viva o Bairro de São Raimundo que está em festa com quase 168 anos.
Elza Maria Pereira Souza é Jornalista formada pela UFAM (Universidade Federal do Amazonas), com vários cursos na área de produção de rádio, Televisão e roteiro para cinemas. É autora dos livros São Raimundo: Do "alto" da minha colina - sem os bucheiros o bairro de São Raimundo perdeu o encantamento, publicado em 2008; Moacyr de todas as cores, 2010, e Palafitas, 2016.
CRÉDITO DA IMAGEM:
Instituto Durango Duarte
CRÉDITO DA IMAGEM:
Instituto Durango Duarte
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