Esse texto foi originalmente publicado em 2002 na Série Memória da Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto (AM) pelo historiador e folclorista Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004), com o título O recheio das casas nos séculos XVII a XIX. Nesse texto o autor analisa o mobiliário das casas manauaras e a transformação deste através dos séculos, sendo um estudo do campo da História da cultura material, da relação cotidiana que os homens tem com os objetos que fazem parte do espaço onde vivem.
O recheio das casas nos séculos XVII a XIX
Mário Ypiranga Monteiro
O viajante francês Olivier Ordinaire, visitando Manaus ao derredor de 1870, achou divertida e embaraçosa a situação de acomodar-se na sala de visitas de uma casa de mediana renda. Só havia um triste baú de sola, daquele modelo taxiado cuja foto (1900) publiquei no segundo volume da minha História da Cultura Amazonense (1998). Diz ele que o visitante só poderia contar com um baú para sentar. Não discrimina a rede de dormir. Mas antes de fazê-lo, obrigava-se a saber "se havia santo no baú". Se houvesse era sacrilégio sentar-se. E o santo, no seu dizer, era São Benedito, "padroeiro de Manáos". Abstraída a referência ao orago, que é mesmo Nossa Senhora da Conceição, o retrato da pobreza imobiliária das moradas de casas era aquele, de que dão notícia as ilustrações de muitos livros da época. Os habitantes não privavam do luxo europeu, até então. Por duas razões: primeira - porque a tradição sustentada pelo natural excluía qualquer tipo de móvel que não fossem o banco monóxilo, a esteira e a rede de dormir, o leito suspenso de que o europeu logo se apropriaria, introduzido na Espanha por Cristóvão Colombo; segundo - porque não houve, desde logo, uma experiência instaurada pelo migrante europeu (portulhano), que só trazia na parafernália aquele triste baú, então todo de couro, onde ele arrecadava os trapos misturados com o pão negro e o chouriço. Foi o único móvel europeu (depois da mesa), introduzido com sucesso e franquia na cultura amazoníndia, que teve a graça de passar à aristocracia da sala de visitas brancarana e do colono. Depois desses vem o penico, mas esta é outra história. Da rede como móvel único fala Bates na p. 174 do volume primeiro de sua obra.
Barco a vapor indo de Belém para Manaus. Notem, no canto direito, um baú do tipo canastra e um banco de quatro pernas à esquerda, além das redes de dormir utilizadas pelos passageiros. Gravura de Édouard Riou na obra O Tour do Mundo (1858-1859).
A riqueza da casa amazonense entre os séculos XVII e XIX consistia em poucos haveres, que podem ser discriminados assim, pela hierarquia de merecimento e serventia: baú, arca, rede de dormir e canastra. Suas posições na casa, a partir da sala de visitas, eram cativas, determinadas pelas necessidades práticas e não pelo bom gosto: baú na sala (e rede de dormir, não raro); arca na alcova (e rede de dormir); esteira na sala, na alcova e na casa de refeições; rede de dormir (essencial) na alcova e na varanda; canastra na casa de refeições ou num quarto a mais se houver. O móvel seria um pouco mais alto do que a arca e só servia para guardar mantimentos secos do tipo pernil defumado, bolacha, farinha, pão negro; ou cozidos e assados, milho, tortas, pastelões, frutas e legumes. E talvez uma ou outra botelha de vinho. Para evitar-se a visita desabusada dos ratos coró, dos trêfegos quati, dos preás e das operosas formigas, dos macacos irrequietos, pois o que mais abundava era a criação doméstica, os xerimbabos, cão, macaco e papagaio, os três eternos representantes do franciscanismo do homem amazônico. Você poderá ver isto nas ilustrações de livros. O sábio viajante Louis Agassiz mostra macaco, cão, iabuti. Suínos e galináceos foram introduzidos pelos espanhóis, anos antes.
Mais tarde, quando as moradas de casas forem arquitetonicamente autonomizadas, o governo reinol mandaria distribuir ferramentas aos colonos e índios, em pequenas unidades do tipo enxó, plaina, serra, machado, terçado, facas, martelo, sucata de ferro para o ferreiro reduzir a forma de arganéis, correntes, barras, gargalheiras, bisagras, bedelhos, etc. Armas de fogo só a um ou outro, para caçar. Não havendo ainda a serra grande e nem mesteireiros capazes, não poderia haver móveis, e o especialista mais requisitado naqueles tempos era o ferreiro, uma personalidade estimada, respeitada, com assento nos concelhos, porque a ele caberia o trabalho de fundir as armas, canhões, mosquetes boca de sino, espadas, adagas, escudos, couraças, elmos e cuias, lanças, alabardas, adereços muito mais necessários e urgentes numa região adversa do que o luxo dos gabinetes solarengos, dos palácios.
Quando as residências apresentarem melhor aparência, em termos de testada, soalho de tijolos vermelhos e/ou mesmo de tábuas não macheadas, o móvel rústico começa a aparecer, da sala para a casa de refeições: tamboretes de quarto pernas, bancos, cadeira e mesa. Não há vestígio de armários, estantes, guarda petiscos, sofás, mas a rotineira canastra pode ser substituída pela credência de duas a quatro gavetas. O berço da criança é a rede e o macuru. No gineceu, invés do tálamo imponente de 1850 em diante, apenas o "toro" ou "estrado", ainda sem colchões, forrado pela macia esteira de palma inaiá. Ainda subsiste no interior do Estado. Foi a emancipação da Comarca do Rio Negro que modificou para melhor o embrutecimento nessa linha de comodidade doméstica e artística. João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha inaugurou a nova Província do Amazonas num ambiente saturado de comodidades, mas não de luxo, por isso teve de organizar todas as secretarias, dotando-as de mobiliário mais sofisticado do que as primitivas cadeiras de palha da Ilha da Madeira. No século XX as residências de estima foram equipadas com os modelos "austríaco" (móveis vergados), "Luís XV" e "chipendale". Nessa altura, a nova moda conhecida como tournant du siècle, as ferragens da moda Império invadem Manaus, na forma de cadeiras, mesas, escadas, camas, estatuetas, cofres de segurança, fogões monumentais de dez bocas, tudo o que a França era capaz de produzir. E nós, que exportávamos madeira para a Europa, desde o século XVI, não tínhamos uma fábrica de beneficiamento, porque o monopólio real açambarcava as madeiras de lei, ditas assim até hoje, porque leis rigorosas protegiam-nas: aguano, cedro, muirapininga, acaju, pau-amarelo, pau-rosa, pau--campeche (pau-brasil), copaíba, louro, mogno, etc. Os móveis importados da Europa eram de faia, carvalho, cedro, nogueira, pinho, sândalo, cerejeira, etc, dos quais os mais apreciados pelo aroma eram o pinho de Riga e o sândalo.
O cientista inglês sir Henry Walter Bates, no meado do século XIX, conta que viu o coronel Praia, de Tefé (avô do dr. Cleto Praia), almoçando (café da manhã) com o padre sobre esteira, mas não havia talheres, por isso que pediu desculpas. E em muitas outras residências os pratos eram substituídos por folhas de pacova sororoca e/ou da olorosa folha de arumã. A ilustração, de 1865, do livro de Louis Agassiz, mostra o interior de uma residência onde a mesa, na casa de jantar, já constitui referencial de prosperidade, mas não há cadeiras, que poderiam ser substituídas por bancos. Outra gravura no livro do francês Biard, daquela época, mostra só a mesa e macacos.
A sala de jantar de uma casa de Manaus retratada em uma gravura de Édouard Riou, na obra Dois Anos no Brasil (1862), de Riou Biard.
A introdução de móveis no Amazonas verificou-se, como primeira experiência, à época das Comissões de Limites e Demarcações, mas daí por diante sua influência foi obstada pela carência de tecnologia e de instrumentos apropriados. Por outro lado, a indústria artesanal da ferraria desenvolveu-se rapidamente. Torna-se compreensível: era mais necessária a lâmina de uma alabarda do que uma cadeira. Até mais ou menos a vinda do governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado, não havia serrarias manuais na colônia, portanto o miserável expatriado teria de contar com o parco inventário do índio, que possuía por assento apenas o ritualístico banco monóxilo em forma de iabuti, ou de ave, universal desde o mar dos Caraíba. Além deste ele poderia fazer rapidamente um assento rústico com três estivas ensarilhadas, sem auxílio de pregos ou cipós, proeza que o branco inventivo não consegue fazer e se fizer não se equilibra nele. Pode argumentar-se que a rede, a esteira e o jirau (estrado) foram os únicos recursos que o colono encontrou para acostar-se, mas nem mesmo o jirau é de influência europeia, pois dele existe documentação gráfica.
De maneira geral o móvel europeu é imitado numa linha de rusticidade que diz bem da inclinação do nativo pela alternativa, ou seja pela miscigenação: ele copia a utilidade, não as linhas estéticas. Na época em que floria o rococó não há exemplo de sua presença na Amazônia, em forma de imitação. O que havia, e era escasso, vinha do reino. Daqueles cadeirões de espaldar alto lavrados a bisel, torneados e pintados de ouro, forrados de damasco não ficaria senão a memória.
A época da aceitação da variada movelaria europeia coincide com o princípio de enriquecimento da burguesia, com a instituição do patriarcado do cacau. É quando aparecem as casas-grandes, as mansões cobertas de telha, assoalhadas ou apenas pavimentadas de tijolos vermelhos. Certos romances costumbristas do romantismo destacam alguns ambientes de respeitabilidade, mas infelizmente eles são em pequeno número, além de que rurais e não urbanos, e a documentação escrita ainda menos ajuda. Tem-se a impressão de que a abundância de peças utilizáveis que recheavam as moradas de casas era mais quantiosa e diversa no interior do que na capital onde a burguesia era mais de funcionários e comerciantes do que capitalistas. Terminado o ciclo do cacau, só iniciamos o ciclo da goma elástica depois de 1800, quando Dom João VI recebe do Amazonas, então mera Capitania subordinada ao Grão-Pará, os artefatos de borracha em que figurava uma bota. Essa que depois passou à indústria artesanal, ensinou o homem a andar calçado mas não lhe deu condições para adquirir uma cadeira.
FONTES: MONTEIRO, Mário Ypiranga. O recheio das casas nos séculos XVII a XIX. Manaus, Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto, 6° ed, n°88, novembro de 2002.
CRÉDITO DAS IMAGENS:
Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin
Getty Images
CRÉDITO DAS IMAGENS:
Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin
Getty Images
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