quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Manaus das Catraias

O texto a seguir foi publicado entre 23 e 24 de outubro de 2005 no Jornal do Comércio pelo escritor, artista plástico e imortal da Academia Amazonense de Letras Moacir Andrade (1927-2016), por ocasião do aniversário da cidade. Em Manaus das Catraias, Moacir Andrade, através de pesquisas e de memórias que vão da década de 1940 até 1980, tece um breve histórico desse antigo meio de transporte que por séculos fez parte do cotidiano da cidade.

Moacir Andrade


Passageiros em uma catraia. Foto de 1964.

Dois grandes igarapés cortam a cidade no sentido norte sul; o igarapé de São Raimundo, que separa aquele populoso bairro por uma largura de aproximadamente duzentos metros, próximo a sua foz, segundo, o igarapé de Educandos que tem três tributários, o da primeira ponte, também conhecido como igarapé de Manaus, cuja nascente despontava nas proximidades da rua Tarumã e desembocava ao lado do Palácio Rio Negro, no chamado de igarapé da segunda ponte, teve o seu curso interrompido várias vezes, ao longo de seu comprimento por aterros executados pela Prefeitura de Manaus, para dar lugar ao procedimento das ruas Apurinã, Tarumã, Leonardo Malcher, cujo trecho se chamava "Buraco do Pinto", Ramos Ferreira, avenida Ipixuna e finalmente a avenida 7 de Setembro, por onde desliza sob uma ponte de pedra em estilo romano. A segunda a partir da sua foz, no entroncamento com os igarapés da segunda ponte, também denominado de igarapé da rua Jonathas Pedrosa, e o igarapé da Cachoeirinha, o trecho até a sua confluência com o Rio Negro, que era livre de pontes ou aterros, daí, a necessidade dos catraieiros. A palavra catraia é de origem portuguesa e veio para Manaus, com os primeiros navios a vela que aportaram aqui, com a abertura dos nossos portos para o mundo. Originalmente a catraia era um pequeno barco a vela que servia os transportes fluviais em Portugal e colônias. Possuía um mastro central com velas de painel em um mastro e outro mastro na popa para vela catita, onde se içava também a bujarrona.

O uso efetivo da catraia tornou-se necessidade imperiosa a partir da grande e permanente afluência de navios estrangeiros que mensalmente aportavam as águas das nossas praias fronteiras no fim do século passado, para transportar borracha, castanha e madeira, couro e óleos vegetais produzidos no chamado ciclo áureo da borracha.

Aí por volta de 1885 não havia ancoradouro, nem muros de arrimo, de cais flutuantes, e os navios que chegavam a Manaus para receber a borracha baixavam a âncora muito distante das praias livres que contornavam a margem esquerda do Rio Negro em toda sua extensão desde o igarapé dos Educandos até São Raimundo.

No princípio do século , todos ou quase todos os catraieiros eram portugueses da província da Póvoa de Varzim, de onde trouxeram esse tipo característico de veículos e se aglomeravam na antiga praia da Imperatriz, em frente a Igreja da Matriz, onde hoje está construído o cais flutuante da Portobras, antiga Manáos Harbour. Naquela época as catraias eram de extrema necessidade, pois os passageiros e cargas só poderiam desembarcar através desses veículos fluviais que eram pequenos barcos com aproximadamente 8 metros de comprimento, dotados de um banco inteiriço de mais ou menos 35 centímetros de largura em volta do barco, onde os passageiros se acomodavam sentados. A popa era adornada com uma placa de madeira, de forma semi-circular, onde estavam escritos os nomes das pequenas embarcações, geralmente de origem portuguesa, talvez como recordação da terra distante. Todos os barcos portavam uma bandeirinha com nome do proprietário ou da entidade que servia, eram pintados de cores múltiplas lembrando barcos que singram o rio Tejo, ou barcos pesqueiros das praias de Póvoa de Varzim e Nazaré em Portugal. As catraias originais ficavam esperando os seus eventuais fregueses ao longo da praia fronteiriça à Igreja da Matriz até o aterrado igarapé do Espírito Santo, exatamente no trecho onde ancoravam os navios que aqui aportavam. Com a construção do muro de arrimo e também do lado da ponte do igarapé em que o povo chegava rente as catraias, e do cais flutuante, pela antiga Manáos Harbour, as catraias se aglomeravam ao longo do trecho do cais que liga a parte que recebe os grandes navios e o continente. Aí se podiam ver as pequeninas e policrômicas embarcações balouçarem ao sabor das ondas do Rio Negro, num bonito espetáculo de balé aquático.

Seus tripulantes e proprietários, todos portugueses, usavam camisa de mangas compridas e geralmente quadriculadas, à moda dos pescadores de Póvoa de Varzim, com a cabeça sempre coberta com um boné de lã portuguesa. A construção do moderno cais pelos ingleses determinou a extinção dos catraieiros, porque já não necessitavam mais desse pequeno barco que tanto e inestimáveis serviços prestaram ao Amazonas e ao Brasil, no tempo em que no Amazonas se "amarrava cachorro com linguiça" e se "acendia charuto com nota de 100.000 réis". Eu mesmo cheguei a conhecer muitos portugueses que trabalharam nesse meio de transporte no ano de 1946, entre eles: Maravalhas Campos, Aurélio e Milhases, alguns já na quarta geração trabalhando no mesmo serviço, o Maravalhas e o Campos, só que agora a prestação de serviços é feita somente para firmas como Abraham Pazuello, Isaac Benzecry Serfaty, Sefair J. A. Leite, JG Araújo, J. S. Amorim, Abrahim & Irmãos e Booth Line, entre outras. Os remanescentes dos antigos barcos são: "Luz do dia", "Sempre Federal", "União", "Maravalhas", "Campos", "Aurélio", "Portugal", "Brasil", entre outros que continuam levando e trazendo trabalhadores para o serviço de estivas em navios ancorados e onde é feito o serviço de escolha e seleção de castanha para embarque.

Outro tipo de serviço de catraia que agora está se extinguindo, é o feito diariamente nos igarapés de São Raimundo e Educandos, trazendo principalmente trabalhadores para o Centro da cidade, e do Centro da cidade para os referidos bairros. Muita gente pensava que com a construção da ponte de São Raimundo que liga a cidade ao bairro de Santo Antônio através da avenida Leopoldo Neves, o serviço de catraia iria desaparecer, o que não aconteceu, embora tenha diminuído muito com a quantidade de pessoas que se deslocam utilizando esse tipo de transporte. No bairro de São Raimundo o serviço de catraia é ininterrupto, se desloca da rua 5 de Setembro sobre o igarapé de mesmo nome até a rua Doutro Aprígio do lado norte da serraria Hore. Os catraieiros se revezam trabalhando 24 horas por dia numa escala determinada por portaria da Capitania dos Portos do Amazonas, Acre e territórios federais de Rondônia e Roraima.

No bairro de Educandos, embora a Prefeitura Municipal de Manaus tenha construído recentemente uma ponte de concreto armado sobre o referido igarapé, ligando a rua Quintino Bocaiuva, no Centro de Manaus, ao bairro de Educandos, o serviço de catraia continua da Manoel Urbano até a rua dos Andradas ao lado da cidade, também nas mesmas condições, isto é, revezando-se ininterruptamente de acordo coma determinação da Capitania dos Portos.

O pagamento de cada passagem custa um terço do preço da passagem de ônibus, a razão por que da escolha do grande público que prefere se transportar em catraia ao utilizar o serviço de ônibus, três vezes mais caro, principalmente para os que moram nas proximidades dos igarapés de Educandos e São Raimundo.


FONTE:

ANDRADE, Moacir. Manaus das Catraias. Manaus, Jornal do Comércio, 23 e 24 de outubro de 2005.

CRÉDITO DA IMAGEM:

Instituto Durango Duarte

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