Mostrando postagens com marcador história oral. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador história oral. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Manaus: Pequena Coletânea de Histórias e Estórias



Reúno, nesse texto, quatro histórias ou estórias de Manaus, algumas ocorridas em períodos incertos e outras entre as décadas de 1960 e 1980. São elas: São Lázaro aparece ao assassino de cachorros; A velha que virava porca; O morto-vivo do Morro da Liberdade; e O Diabo na casa de dança do São Francisco. Ambas tem fortes laços com o catolicismo popular, através da aparição de santos, da realização de orações e milagres, e do medo de seres sobrenaturais. Com exceção do caso do morto-vivo do Morro da Liberdade, amplamente divulgado nos jornais da época, e também o melhor trabalhado, todos os outros foram recuperados através da oralidade.


I: São Lázaro aparece ao assassino de cachorros

Poucos sabem que, no local onde hoje está localizado o Grêmio Recreativo da Escola de Samba Mocidade Independente de Aparecida, em bairro homônimo, na Avenida Ramos Ferreira, funcionou até 1950 um forno de incineração de lixo. Ele era uma grande estrutura construída em 1913 na administração do prefeito Jorge de Moraes. Mas não nos interessa aqui a história dessa construção, mas sim uma estória antiga, de origem imprecisa, relacionada ao local, transmitida por Moacir Andrade (1927-2016) à pesquisadora e jornalista Elza Souza (65).

Diariamente os funcionários do forno de incineração recolhiam o lixo para ser eliminado. Em carros coletores ou carroças, o trabalho era realizado nas principais ruas da área central da capital. Crescia a necessidade da limpeza e da higiene pública.

Um desses funcionários, de nome não identificado, levou ao pé da letra a questão da limpeza e da higiene: Além de recolher o lixo, também recolhia cachorros de rua. Chegando no forno do bairro de Aparecida, possivelmente ainda dos Tocos, eliminava, de forma sádica, os animais nas chamas. Repetiu esse processo inúmeras vezes, sem ser, no entanto, repreendido por suas ações.

Em mais um dia de eliminação do lixo e dos animais, contam que São Lázaro, padroeiro dos pobres e protetor dos cachorros, apareceu diante desse funcionário, que desde esse acontecimento se arrependeu e parou de matar os animais. O forno foi desativado em 1950, sendo incerto o destino desse personagem.


II: A velha que virava porca

Uma das estórias mais conhecidas na cidade de Manaus, talvez com origem na região Nordeste, com registro nos estados do Maranhão, Ceará e Piauí, é a da velha que virava porca. O relato a seguir é de uma senhora de 66 anos, que afirma ter sido atacada pela mulher já transformada no animal: 

“Isso aconteceu quando eu tinha 15, 16 anos… morava na Comunidade do Barro Vermelho, hoje bairro de São Lázaro. Todo dia, de manhã e de tarde, na rua 09 de Maio, uma senhora bastante idosa, de baixa estatura, perambulava de um canto para o outro. Quando ela passava, as pessoas diziam: “Lá vai a velha que vira porca”. Quando meu pai via, dizia bem baixinho: olha a velha que vira porca”. Todos tinham medo dela. 

Um dia, já pela parte da noite, a velha passou em direção a uma poça de lama que existia no final da rua. Eu estava na porta de casa com uma amiga, quando começamos a ouvir, vindo de longe, um barulho forte de casco de animal batendo na terra. De repente, vimos uma porca muito grande, de cor preta, vindo em nossa direção. Ela saiu correndo atrás da gente, correndo, correndo... Pulamos o portão da casa e a trancamos. Mas a porca passou direto e sumiu na noite. No outro dia, a senhora passou em direção ao mesmo lugar (a poça de lama) como se nada tivesse acontecido... 

Continuamos vendo a velha, mas, com o passar dos anos, ela passou a aparecer cada vez menos, até que um dia desapareceu..." 

(Relato concedido a Fábio Augusto de C. Pedrosa em 02/05/2017) 

Assim como em outros estados, estando aí incluído o Pará, a “velha” se transformava na madrugada de quinta para sexta-feira. Dentro da tradição católica, as pessoas fazem orações como o Pai Nosso e Ave Maria para pedir proteção pessoal e para terceiros. A mulher que virava porca, no entanto, fazia essas orações ao contrário para pedir a infelicidade, o mal estar e até mesmo a destruição de outra (s) pessoa (s). Como consequência, contam os mais velhos, acabava, por forças ocultas associadas ao Diabo, se transformando no suíno, animal de casco fendido abominável na Bíblia (Deuteronômio 14).


III: O morto-vivo do Morro da Liberdade

Houve um tempo em que as pessoas tinham medo dos mortos, tempo esse em que a religião e o sobrenatural tinham maior relevância no cotidiano. Hoje, a abordagem de um vivo, um tudo bem ou um bom dia, causa certo espanto, dada a constante insegurança que nos ronda. O caso a seguir ocorreu no bairro Morro da Liberdade, na zona Sul de Manaus, em 1980. Acredito que a maioria dos leitores não o conhece, pois foi algo local, mas os elementos que nele estão inseridos, revelando parte da mentalidade de uma sociedade de determinada época, o torna digno de nota. 

Era sexta-feira, 08 de agosto de 1980. No Cemitério de São Francisco, no Morro da Liberdade, às 9:00 da manhã, um mausoléu começou a tremer, causando espanto nos presentes do local. No bairro e adjacências, espalhou-se o boato de que um homem tinha ressuscitado. Nesse mesmo dia, o Jornal do Comércio noticiava que cerca de 5 mil pessoas lotaram o Cemitério para ver esse "morto-vivo", sendo necessário o deslocamento de guarnições do Choque da Polícia Militar para conter a multidão. 

Nesse mausoléu, de n° 4642, localizado na quadra 10, estava enterrado Itamar Aristides da Silva, vítima de um atropelamento em 19 de junho de 1976. Tinha 36 anos quando do ocorrido. Sua esposa, Maria José da Silva, sabendo dessas manifestações na sepultura do marido, solicitou que um padre do bairro São Lázaro, possivelmente o Padre Bernardino Micce, rezasse uma missa no local. A presença do padre apenas fez aumentar o furor dos que observavam atentos qualquer movimento da sepultura. 

Alguns achavam que esse era um aviso divino. Outros, um tatu dos grandes a fazer seus buracos. O mais estranho foi o momento em que o padre terminou a missa, saindo de cabeça baixa e sem falar qualquer palavra. Até a noite, segundo consta no Jornal do Comércio, pelo menos mais 20 pessoas viram a sepultura se mexer. 

Milton Tavares da Silva, morador da rua Amazonas, no bairro onde ocorreu esse evento "sobrenatural", foi coveiro no São Francisco por 10 anos. Em entrevista ao Jornal, afirmou que aquela foi a primeira vez em décadas que se sentiu assombrado, pois foi uma das pessoas que viu a sepultura tremer. 

No dia 10 de agosto de 1980, o Jornal do Comércio noticiava que "continuava a romaria ao Cemitério de São Francisco", onde várias pessoas começavam a pedir graças ao túmulo, afirmando ser aquele evento um milagre. 

Ao que tudo indica, para o administrador do campo santo, José Maria da Silva, a COSAMA estava realizando obras perto do Cemitério, o que pode ter ocasionado o tremor nessa sepultura, não tendo o evento qualquer relação com o plano sobrenatural. Causos de outras épocas, quando o sobrenatural espantava mais que o terreno... 

FONTES: 

Jornal do Comércio, 09/08/1980
Jornal do Comércio, 10/08/1980
História da Paróquia São Lázaro (1956-1991) - Documento recuperado.


IV: O Diabo na casa de dança do São Francisco

A estória abaixo foi recuperada por meu amigo Maurício Castelo Branco, dono do blog São Francisco Bairro, no qual interage e divulga informações variadas com a população desse bairro da capital.

Em meados de 1985 existia uma casa de festas chamada Telhadão, que era localizada na Praça de São Francisco, por trás de onde hoje funciona uma loja de materiais de construção. Segundo relatos, na época, pessoas do Cafundó, Morro, Mossoró, Vila Mamão, gente de todos os cantos do bairro se reunia nos fins de semana no local para a diversão ao som de músicas eletrônicas, flashback, house e outros gêneros. 

Em decorrência disso o ápice do sucesso do lançamento de Thriller, de Michael Jackson, não parava de tocar em qualquer casa de festas em Manaus. Bem como dizia, no Telhadão não era diferente, mas, em uma noite de fim de semana, uma aparição de uma criatura/demônio/capeta/etc/ se deu justamente no decorrer da dita música. 

O monstro tinha o rosto semelhante ao de um dragão, com olhos vermelhos, nariz com focinho de cachorro, alguns furos perto da boca e com um par de chifres na altura da testa. A estatura juntamente com o corpo era de um homem, mas as mãos e pés eram iguais as patas de um boi. No momento da aparição, a correria foi intensa dentro do local, as pessoas desesperadas se entupiram na saída que era apenas uma porta pequena. Alguns gritavam por socorro. Enquanto isso a criatura permanecia parada, mas durante um tempo teve muita fumaça ao seu redor, ficou quase impossível de enxergá-la. No fim da confusão ninguém conseguiu explicar o que houve, alguns dizem que o boato foi para prejudicar o evento, outros dizem que o que aconteceu foi real.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Encyclopédie du Paranormal
Jornal do Comércio, 09/08/1980
www.wjhirten.com

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

História da Criminalidade: O Caso Jairzinho

A atual Paróquia do bairro de São Francisco.

Esse é um daqueles casos cujos desdobramentos se arrastam por anos e, de forma abrupta, desaparecem dos noticiários. O Caso Jairzinho, diferente de casos como o do Monstro da Colina, tem uma construção narrativa mais difícil, pois até hoje, de acordo com aqueles que foram contemporâneos ao crime, teve uma conclusão envolta de incertezas.

Bairro de São Francisco, 28 de dezembro de 1991. O natal já tinha passado e esperava-se o ano novo. Mal sabiam os moradores daquele bairro que o início do novo ano seria macabro: No dia 01 de janeiro de 1992 o corpo de Jair de Figueiredo Guimarães, o ‘Jairzinho’, uma criança de oito anos, foi encontrado em uma cova rasa nas proximidades do pátio da Igreja de São Francisco. Esse crime juntava-se a outros infanticídios registrados naquela última década, deixando a população do bairro de São Francisco em alerta. Manoel Brandão Neto (32), antigo morador do bairro, lembra que os “avós, pais e demais responsáveis não deixavam que se brincasse no local onde o corpo foi achado”. Os adultos, ainda de acordo com esse depoente, diziam para as crianças que aquela situação era como na novela Carrossel, uma fantasia, para tentar minimizar o terror que passou a reinar naquele local.

Marizete Brandão, moradora do bairro há mais de 50 anos, lembra bem desse dia:

lembro como se fosse hoje, dia 31 de dezembro. Passei na rua ao lado por volta de 13.00 hrs, era um mal cheiro horrível. Falei para meu marido que parecia carniça. Dia primeiro foi o maior alvoroço, tinham achado o corpo. O pavor era tão grande que minha filha não quis mais ir para a igreja. Mães já não deixavam seus filhos brincarem na rua”.

Após as análises do perito da Universidade de Campinas, o médico Nelson Mansini, o mesmo que realizou a perícia do assassinato de Chico Mendes, foi constatado que Jair de Figueiredo Guimarães foi morto estrangulado pelo método do torniquete, processo bastante utilizado para estancar hemorragias. Antes, um dos suspeitos afirmara que matou a criança com um forte golpe na cabeça. Outras pessoas, como Sullivan Nascimento, afirmavam que o garoto fora estuprado e teve o órgão genital cortado, e que seu assassino jogou soda cáustica ou ácido para disfarçar o odor do cadáver. Foi “um dia sinistro”, conta Anderson P. de Souza. Ainda de acordo com a perícia, no dia em que o corpo foi encontrado já haviam se passado 11 ou 12 dias do assassinato.


OS SUSPEITOS


No Jornal do Comércio de 07 de fevereiro de 1992, a principal manchete informava que 'o suspeito do crime está preso'. Era o lanterneiro Afrânio Cardoso de Moraes, de 19 anos. Ele foi preso em uma blitz de rua após ter comentado com uma pessoa que tinha sido o autor do golpe que matou Jairzinho. Levado à Delegacia, confessou que cometeu o crime a mando de Frei Silvestre, da paróquia daquele bairro.

Afrânio disse que, passando em frente a Igreja de São Francisco, foi chamado pelo Frei que perguntou se este não queria ganhar algum dinheiro. Perguntando qual era o serviço, ouviu do religioso que era para pegar um garoto que estava jogando bola e levá-lo para os fundos da Igreja. Afrânio afirmou que, quando recebeu aquele pedido, estava embriagado, aceitando-o sem qualquer objeção. Chegando ao local, disse que o Frei disse o seguinte para a criança: “Eu não disse que você estava me devendo uma”? Jairzinho disse que não sabia de nada. Foi nesse momento que Frei Silvestre ordenou que Afrânio golpeasse o menor. O lanterneiro disse que não bateu com força, saindo correndo da cena do crime. Soube dias depois que Jairzinho tinha morrido. Ao delegado, dizia-se arrependido e que não tinha intenção de matar.

O possível envolvimento de um membro do clero causou grande reboliço nas lideranças católicas da cidade, com o monsenhor da capital afirmando que “há alguém por trás fazendo com que a Igreja Católica seja desacreditada”. O Arcebispo Metropolitano de Manaus não quis se pronunciar a respeito do caso. Dias após essa matéria, a Arquidiocese de Manaus, O Centro de Defesa dos Direitos Humanos da CNBB Norte I e outras entidades da Igreja Católica se manifestaram sobre os rumos que as investigações estavam tomando. Para esses grupos, elas atingiram “pessoas e instituições, causaram prejuízos morais, retardando a elucidação do crime e confundindo a opinião pública”. Afirmavam também que estavam sendo forjados suspeitos e culpados.

Também foi investigado um senhor dono de um mercado próximo ao local do crime, mas contra ele nada foi comprovado.

Em 29 de dezembro de 1994, após três anos do assassinato de Jairzinho, mais um suspeito era investigado: Jair de Figueiredo Guimarães, técnico em eletrônica, morador da rua Valério Botelho de Andrade, em frente a Igreja. Quem era ele? O pai da criança assassinada. Nesse mesmo dia, os moradores do bairro protestavam em frente a sua casa, fixando faixas e cartazes pedindo justiça. 

Jair Guimarães, negando a todo momento o crime, teve decretada a prisão preventiva, sendo levado para a Cadeia Pública Raimundo Vidal Pessoa. Mas como se chegou a mais esse suspeito? O frei Silvestre foi ouvido pela Polícia, sendo constatado que nada havia contra ele. O que levou Jair Guimarães à prisão foi a existência de uma carta na qual o pai da criança pedia uma grande soma de dinheiro para sequestrar o próprio filho. Desconfiado, o titular da Delegacia Especializada de Homicídios e Sequestros solicitou um exame grafológico, no qual foi confirmado que aquela carta fora escrita pelo pai de Jairzinho. Dessa forma, o representante do Ministério Público do 1° Tribunal do Júri Popular, ao denunciar Jair Guimarães, enquadrou-o nas sanções de homicídio qualificado com o agravante da ocultação de cadáver. Moradores de São Francisco afirmavam que ele era alcoólatra e viciado em drogas. Em 1995 o Promotor João Bosco Valente reviu o caso, pensando seriamente em pedir o arquivamento do processo pela confusão e falta de provas. Uma pessoa, que não quis se identificar, afirma que, anos depois, ouviu por uma rádio que uma pessoa tinha se entregado, afirmando ter matado a criança porque seu pai lhe devia dinheiro. 

Falta de paciência de um Frei, por causa das brincadeiras de uma criança? As ações de um comerciante, com motivações ainda não esclarecidas? Um pai em um momento de descontrole? Acerto de contas? Quem, de fato, matou Jairzinho naquele final de ano de 1991? Essa é uma de várias perguntas cujas respostas nem o tempo foi capaz de dar…

FONTES: 

Jornal do Comércio, 07 de fevereiro de 1992.
Jornal do Comércio, 29 de dezembro de 1994.
Jornal do Comércio, 29 de abril de 1995.

DEPOIMENTOS:

Manoel Brandão, 18/06/17.
Marizete Brandão, 18/06/17.
Anderson P. de Souza, 18/06/17.
Sullivan Nascimento, 18/06/17.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Rederiomar.com.br

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

De Boca do Acre para Manaus: A vida de uma migrante entre 1960 e 1980

Entrevista com a Sra. Maria Hortência Rodrigues de Carvalho
Entrevista realizada entre 12/01/2017 e 13/01/2017

DEPOENTE: Maria Hortência Rodrigues de Carvalho, 66 anos, natural do município de Boca do Acre (AM), há 54 anos moradora de Manaus.
TEMÁTICA: História Oral de vida

1° Imagem: Principal rua comercial de Boca do Acre, 1974. 2° Imagem: Av. Eduardo Ribeiro, Manaus, 1960.

“Eu tinha 12 anos quando sai de Boca do Acre. Fui obrigada. Meu pai foi obrigado a deixar a cidade porque trabalhava em uma empresa federal que lhe deu a ordem de vir para Manaus com a família. Chorei muito, eu era uma criança. Tenho muitas saudades de Boca do Acre, cidadezinha linda. Chegamos em Manaus de tarde. Era muito diferente de Boca do Acre. Achei a cidade feia porque nós fomos morar em uma região de mata onde existiam algumas casas da Base Aérea. Ficamos em uma onde já existia um casal e outra pessoa. O casal nos recebeu bem, o outro morador, não. Ele era estranho. Quem nos recebeu foi o seu Agostinho e a dona Raimunda Araújo. Fizeram um jantar, comemos e conversamos. Sabe o que era o jantar? Dois quartos de paca1 assada, uma delícia. No outro dia dona Raimunda nos convidou para ir no mercado fazer compras. Comprar comida porque aqui tudo era comprado. 
Aqui em Manaus meu pai continuou exercendo a mesma profissão de Boca do Acre, a de construtor de pistas para avião. Ele recebia as pedras para o trabalho de Santarém. Minha mãe sempre foi dona de casa, mãe e companheira. Zacarias Rodrigues Vieira e Maria Raimunda Rodrigues foram bons pais. Naquela época era no chicote (risos), qualquer erro apanhava, mas eram muito bons, me criaram com muito carinho.(Aponta para um grande quadro antigo da família, na sala) Esse quadro é uma das poucas lembranças que tenho deles. Ele é de 1969. Os retratistas vinham de casa em casa e perguntavam se não queríamos fazer um quadro, aí a gente dava uma foto, eles faziam o quadro e tal dia vinham entregar. Foi minha mãe que contratou o serviço. Ela tinha 41 anos e o meu pai 47. Eu não estava em casa, estava na escola. Quando eu cheguei de lá ela me falou. Os retratistas falaram que iam diminuir a careca do meu pai (risos) e, como eu era muito nova, me fizeram com a aparência mais velha. Meu filho tinha 3 anos de idade, e era muito amado por meus pais. Eles que escolheram as roupas da pintura, suas cores e desenharam penteados para mim e minha mãe. Para mim é muito importante ter o quadro, pois sinto muitas saudades dos meus pais o vendo. 
Eu e meus pais moramos nas casas da Base Aérea e depois fomos para a Betânia2, que estava sendo fundada. O dono daquelas terras limpou o lugar e construiu um escritório de venda de terrenos. Papai foi lá e comprou um, que ficou 10 meses pagando. Nele construiu uma palhoça onde ficamos morando. Depois, a prefeitura estava abrindo a rua Nova em São Lázaro. Era tudo propriedade da Base Aérea. Ela determinou que a área fosse loteada e que fosse dado um terreno para cada funcionário seu. Nós ganhamos e desde então passamos a morar no São Lázaro. Me lembro que meu pai estava construindo uma casa de madeira na rua Nova. Nós tínhamos uma também de madeira na rua 09 de Maio. Um dia vieram nos avisar que a casa da 09 de Maio estava pegando fogo. Quando chegamos lá alguns moradores, o Braga e a Nasa, já estavam apagando o fogo. Nos mudamos definitivamente para a Rua Nova. Em Boca do Acre eu estudava no Patronato Nossa Senhora de Nazaré. Quando viemos para Manaus eu fui estudar no Patronato Santa Terezinha. Nele estudei até começar os namoricos (risos) e me casar, ainda jovem. 
Na minha infância e adolescência Manaus era uma cidade linda. Não tinha tanto crime, era calma, boa para se morar. Lembro dos ônibus de madeira, das praças, a praça em frente ao Colégio Dom Pedro II, a da Polícia. Aos domingos todos levavam os filhos para brincar. Tinha alguns animais, na Praça da Matriz. Tinha tartaruga e peixe-boi. No Centro tinha arraial, mas acabou. A Cidade só ficava acesa até as 22:00 hrs, depois a energia era desligada e só voltava no outro dia. Os crimes eram muito raros. Quando acontecia, investigavam, assassinatos e outros tipos. Lembro do crime da Pensão Maranhense, na Avenida Eduardo Ribeiro, ocorrido em 1968. Era uma pensão, tinha restaurante. Era um recinto como outro qualquer. Um garoto, Waldegrace, que era engraxate, ficava trabalhando em frente a pensão. O dono dela, José Figueiredo, ficava observando ele. Um dia ele chamou o garoto e perguntou: Tu queres umas roupas usadas? O garoto disse que sim e ele falou: Então vamos lá em casa pegar. Fez isso só para assassinar o rapaz. No dia do julgamento, o pai de Waldegrace tentou matar o assassino. Só não matou porque o calibre era 22 e não fez muito efeito. O pai do menino foi para o presídio. 
Para se divertir nós tínhamos festas. Eu era muito nova e só ia para a Tarde Dançante. Eram a Manhã de Sol, a Tarde Dançante e a Noite Noturna. Era aqui no São Lázaro, organizadas pelos moradores. De noite também tinha cinema, de dia, muitas festas e, de tarde, muitas danças. Lá no Morro da Liberdade (apontando para cima) tinha o Libermorro. Nunca cheguei a ir. No Centro, o Ideal Clube era para os ricos. No São Jorge tinha o Arauto, casa de dança. E tinha uma no São Raimundo. As mulheres solteiras só saíam de casa a noite. De dia ficavam na “toca”, na casa delas. Só de noite podiam sair. 
Pela cidade nos locomovíamos de ônibus. Eles eram de madeira, pequenos. Não tinha cadeira para o cobrador, que ia em pé, segurando o dinheiro e procurando os passageiros que ainda não tinha pagado. Não lembro o preço da passagem, não lembro não. Tinha carroça, mas era para carregar rancho, madeira e palha para cobrir as casas. Tinha carro, tipo táxi. Não lembro do ano da instalação da Zona Franca, só sei que foi nos anos 70. A cidade ficou um alvoroço. Eu também gostei, pois podia comprar as coisas com facilidade. Tudo tinha aqui. Antes tinha que mandar buscar de longe. Depois que ela foi instalada, o ritmo de vida mudou, acelerou. Ninguém tinha mais tempo para nada. 
Existiram bons governos, que trabalhavam muito. Mas era Ditadura Militar. Foi pesada aqui. Daquela época eram bons os preços, aqui, no Morro da Liberdade e em qualquer lugar. No Centro a gente via aqueles senhores conversando na Praça, falando sobre o governo. A Polícia ficava vigiando e pegava eles, que eram presos ou sumiam. Disso eu não gostava. Ninguém podia ficar conversando muito tempo junto, vadiando, que a polícia vinha para cima. A política atual não é boa, não, tem muita corrupção. Não é bom para ninguém entrar na política hoje. 
Eu me casei com 14 anos, mas ele foi embora para Belém. Mandou me buscar mas meus pais não deixaram. Fui tendo meus filhos. Com ele tive apenas um. No meu segundo casamento eu já tinha 20 anos e fui tendo mais filhos. Tive quatro. Esse foi um bom casamento, que durou até ele falecer no ano passado, com 74 anos. O nome dele era João Augusto de Carvalho. Não estudou, mas eu também tinha pouco estudo, terminei eles com 62 anos. Era um bom marido, carinhoso. Com o primeiro marido eu tive o Leomar Rodrigues da Silva. Com o segundo, Giovana Rodrigues de Carvalho, Gerivan Rodrigues de Carvalho, Trissimara Rodrigues de Carvalho e Maralice Rodrigues de Carvalho, gêmeas. 
Eu já tinha 30 anos quando comecei a trabalhar e não parei mais, até me aposentar. Trabalhei na Caloi, onde hoje é outra loja, mas não gostei. Era um trabalho chato em uma fábrica de meias e tapetes. Depois fui trabalhar em uma fábrica de relógios, a Nelima. Trabalhei, trabalhei, mas não gostei. Resolvi estudar. Estudava, estudava mais, fazia cursos para cá e para lá. Fiz primeiros socorros e enfermagem. Fiz o concurso e entrei na SEMSA3. Fiz outro concurso e entrei na SUSAM4. Nela eu entrei como auxiliar mas também era técnica. Depois de uns anos, me convidaram para trabalhar na FUNAI5. Queria me aposentar pela SUSAM. Consegui. Na FUNAI era CLT, órgão federal que pagava bem. Fiquei trabalhando lá por 32 anos. Tinha vontade de fazer faculdade de Medicina, mas não fiz porque não tinha terminado os estudos. Depois estudei, mas aí já trabalhava em três empregos (mostra com os dedos) e estava cansada. Antes de trabalhar eu era doméstica. Ajudava a minha mãe a limpar a casa. Ajudar com dinheiro eu ainda não podia, pois meu marido ganhava muito pouco e também não deixava eu sair de casa para trabalhar. 
Ah, a melhor época da minha vida foi nos anos 60. Eu namorava muito (risos), muito mesmo, ia para muitas festas. Inventei de casar aí acabou (risos). Apesar da política suja, ainda espero uns bons anos para mim, para meus filhos, netos e tudo mais. Espero que minha cidade melhore bastante. Não tenho vontade de sair daqui, amo essa cidade. Assim como eu chorei quando sai da minha cidadezinha para vir para cá, se um dia eu precisar sair daqui, vou chorar muito mais...

NOTAS:
1 Espécie de roedor predominante em regiões de clima tropical
2 Bairro da Zona Sul de Manaus, vizinho do Morro da Liberdade, São Lázaro e Crespo.
3 Secretaria Municipal de Saúde.
4 Secretaria de Estado da Saúde do Amazonas.

5 Fundação Nacional do Índio.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

Manaus de Antigamente
Hernondino Chagas, IBGE.