segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

De Boca do Acre para Manaus: A vida de uma migrante entre 1960 e 1980

Entrevista com a Sra. Maria Hortência Rodrigues de Carvalho
Entrevista realizada entre 12/01/2017 e 13/01/2017

DEPOENTE: Maria Hortência Rodrigues de Carvalho, 66 anos, natural do município de Boca do Acre (AM), há 54 anos moradora de Manaus.
TEMÁTICA: História Oral de vida

1° Imagem: Principal rua comercial de Boca do Acre, 1974. 2° Imagem: Av. Eduardo Ribeiro, Manaus, 1960.

“Eu tinha 12 anos quando sai de Boca do Acre. Fui obrigada. Meu pai foi obrigado a deixar a cidade porque trabalhava em uma empresa federal que lhe deu a ordem de vir para Manaus com a família. Chorei muito, eu era uma criança. Tenho muitas saudades de Boca do Acre, cidadezinha linda. Chegamos em Manaus de tarde. Era muito diferente de Boca do Acre. Achei a cidade feia porque nós fomos morar em uma região de mata onde existiam algumas casas da Base Aérea. Ficamos em uma onde já existia um casal e outra pessoa. O casal nos recebeu bem, o outro morador, não. Ele era estranho. Quem nos recebeu foi o seu Agostinho e a dona Raimunda Araújo. Fizeram um jantar, comemos e conversamos. Sabe o que era o jantar? Dois quartos de paca1 assada, uma delícia. No outro dia dona Raimunda nos convidou para ir no mercado fazer compras. Comprar comida porque aqui tudo era comprado. 
Aqui em Manaus meu pai continuou exercendo a mesma profissão de Boca do Acre, a de construtor de pistas para avião. Ele recebia as pedras para o trabalho de Santarém. Minha mãe sempre foi dona de casa, mãe e companheira. Zacarias Rodrigues Vieira e Maria Raimunda Rodrigues foram bons pais. Naquela época era no chicote (risos), qualquer erro apanhava, mas eram muito bons, me criaram com muito carinho.(Aponta para um grande quadro antigo da família, na sala) Esse quadro é uma das poucas lembranças que tenho deles. Ele é de 1969. Os retratistas vinham de casa em casa e perguntavam se não queríamos fazer um quadro, aí a gente dava uma foto, eles faziam o quadro e tal dia vinham entregar. Foi minha mãe que contratou o serviço. Ela tinha 41 anos e o meu pai 47. Eu não estava em casa, estava na escola. Quando eu cheguei de lá ela me falou. Os retratistas falaram que iam diminuir a careca do meu pai (risos) e, como eu era muito nova, me fizeram com a aparência mais velha. Meu filho tinha 3 anos de idade, e era muito amado por meus pais. Eles que escolheram as roupas da pintura, suas cores e desenharam penteados para mim e minha mãe. Para mim é muito importante ter o quadro, pois sinto muitas saudades dos meus pais o vendo. 
Eu e meus pais moramos nas casas da Base Aérea e depois fomos para a Betânia2, que estava sendo fundada. O dono daquelas terras limpou o lugar e construiu um escritório de venda de terrenos. Papai foi lá e comprou um, que ficou 10 meses pagando. Nele construiu uma palhoça onde ficamos morando. Depois, a prefeitura estava abrindo a rua Nova em São Lázaro. Era tudo propriedade da Base Aérea. Ela determinou que a área fosse loteada e que fosse dado um terreno para cada funcionário seu. Nós ganhamos e desde então passamos a morar no São Lázaro. Me lembro que meu pai estava construindo uma casa de madeira na rua Nova. Nós tínhamos uma também de madeira na rua 09 de Maio. Um dia vieram nos avisar que a casa da 09 de Maio estava pegando fogo. Quando chegamos lá alguns moradores, o Braga e a Nasa, já estavam apagando o fogo. Nos mudamos definitivamente para a Rua Nova. Em Boca do Acre eu estudava no Patronato Nossa Senhora de Nazaré. Quando viemos para Manaus eu fui estudar no Patronato Santa Terezinha. Nele estudei até começar os namoricos (risos) e me casar, ainda jovem. 
Na minha infância e adolescência Manaus era uma cidade linda. Não tinha tanto crime, era calma, boa para se morar. Lembro dos ônibus de madeira, das praças, a praça em frente ao Colégio Dom Pedro II, a da Polícia. Aos domingos todos levavam os filhos para brincar. Tinha alguns animais, na Praça da Matriz. Tinha tartaruga e peixe-boi. No Centro tinha arraial, mas acabou. A Cidade só ficava acesa até as 22:00 hrs, depois a energia era desligada e só voltava no outro dia. Os crimes eram muito raros. Quando acontecia, investigavam, assassinatos e outros tipos. Lembro do crime da Pensão Maranhense, na Avenida Eduardo Ribeiro, ocorrido em 1968. Era uma pensão, tinha restaurante. Era um recinto como outro qualquer. Um garoto, Waldegrace, que era engraxate, ficava trabalhando em frente a pensão. O dono dela, José Figueiredo, ficava observando ele. Um dia ele chamou o garoto e perguntou: Tu queres umas roupas usadas? O garoto disse que sim e ele falou: Então vamos lá em casa pegar. Fez isso só para assassinar o rapaz. No dia do julgamento, o pai de Waldegrace tentou matar o assassino. Só não matou porque o calibre era 22 e não fez muito efeito. O pai do menino foi para o presídio. 
Para se divertir nós tínhamos festas. Eu era muito nova e só ia para a Tarde Dançante. Eram a Manhã de Sol, a Tarde Dançante e a Noite Noturna. Era aqui no São Lázaro, organizadas pelos moradores. De noite também tinha cinema, de dia, muitas festas e, de tarde, muitas danças. Lá no Morro da Liberdade (apontando para cima) tinha o Libermorro. Nunca cheguei a ir. No Centro, o Ideal Clube era para os ricos. No São Jorge tinha o Arauto, casa de dança. E tinha uma no São Raimundo. As mulheres solteiras só saíam de casa a noite. De dia ficavam na “toca”, na casa delas. Só de noite podiam sair. 
Pela cidade nos locomovíamos de ônibus. Eles eram de madeira, pequenos. Não tinha cadeira para o cobrador, que ia em pé, segurando o dinheiro e procurando os passageiros que ainda não tinha pagado. Não lembro o preço da passagem, não lembro não. Tinha carroça, mas era para carregar rancho, madeira e palha para cobrir as casas. Tinha carro, tipo táxi. Não lembro do ano da instalação da Zona Franca, só sei que foi nos anos 70. A cidade ficou um alvoroço. Eu também gostei, pois podia comprar as coisas com facilidade. Tudo tinha aqui. Antes tinha que mandar buscar de longe. Depois que ela foi instalada, o ritmo de vida mudou, acelerou. Ninguém tinha mais tempo para nada. 
Existiram bons governos, que trabalhavam muito. Mas era Ditadura Militar. Foi pesada aqui. Daquela época eram bons os preços, aqui, no Morro da Liberdade e em qualquer lugar. No Centro a gente via aqueles senhores conversando na Praça, falando sobre o governo. A Polícia ficava vigiando e pegava eles, que eram presos ou sumiam. Disso eu não gostava. Ninguém podia ficar conversando muito tempo junto, vadiando, que a polícia vinha para cima. A política atual não é boa, não, tem muita corrupção. Não é bom para ninguém entrar na política hoje. 
Eu me casei com 14 anos, mas ele foi embora para Belém. Mandou me buscar mas meus pais não deixaram. Fui tendo meus filhos. Com ele tive apenas um. No meu segundo casamento eu já tinha 20 anos e fui tendo mais filhos. Tive quatro. Esse foi um bom casamento, que durou até ele falecer no ano passado, com 74 anos. O nome dele era João Augusto de Carvalho. Não estudou, mas eu também tinha pouco estudo, terminei eles com 62 anos. Era um bom marido, carinhoso. Com o primeiro marido eu tive o Leomar Rodrigues da Silva. Com o segundo, Giovana Rodrigues de Carvalho, Gerivan Rodrigues de Carvalho, Trissimara Rodrigues de Carvalho e Maralice Rodrigues de Carvalho, gêmeas. 
Eu já tinha 30 anos quando comecei a trabalhar e não parei mais, até me aposentar. Trabalhei na Caloi, onde hoje é outra loja, mas não gostei. Era um trabalho chato em uma fábrica de meias e tapetes. Depois fui trabalhar em uma fábrica de relógios, a Nelima. Trabalhei, trabalhei, mas não gostei. Resolvi estudar. Estudava, estudava mais, fazia cursos para cá e para lá. Fiz primeiros socorros e enfermagem. Fiz o concurso e entrei na SEMSA3. Fiz outro concurso e entrei na SUSAM4. Nela eu entrei como auxiliar mas também era técnica. Depois de uns anos, me convidaram para trabalhar na FUNAI5. Queria me aposentar pela SUSAM. Consegui. Na FUNAI era CLT, órgão federal que pagava bem. Fiquei trabalhando lá por 32 anos. Tinha vontade de fazer faculdade de Medicina, mas não fiz porque não tinha terminado os estudos. Depois estudei, mas aí já trabalhava em três empregos (mostra com os dedos) e estava cansada. Antes de trabalhar eu era doméstica. Ajudava a minha mãe a limpar a casa. Ajudar com dinheiro eu ainda não podia, pois meu marido ganhava muito pouco e também não deixava eu sair de casa para trabalhar. 
Ah, a melhor época da minha vida foi nos anos 60. Eu namorava muito (risos), muito mesmo, ia para muitas festas. Inventei de casar aí acabou (risos). Apesar da política suja, ainda espero uns bons anos para mim, para meus filhos, netos e tudo mais. Espero que minha cidade melhore bastante. Não tenho vontade de sair daqui, amo essa cidade. Assim como eu chorei quando sai da minha cidadezinha para vir para cá, se um dia eu precisar sair daqui, vou chorar muito mais...

NOTAS:
1 Espécie de roedor predominante em regiões de clima tropical
2 Bairro da Zona Sul de Manaus, vizinho do Morro da Liberdade, São Lázaro e Crespo.
3 Secretaria Municipal de Saúde.
4 Secretaria de Estado da Saúde do Amazonas.

5 Fundação Nacional do Índio.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

Manaus de Antigamente
Hernondino Chagas, IBGE.

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