Entrevista
com a Sra. Maria Hortência Rodrigues de Carvalho
Entrevista
realizada entre 12/01/2017 e 13/01/2017
DEPOENTE:
Maria Hortência Rodrigues de Carvalho, 66 anos, natural do município
de Boca do Acre (AM), há 54 anos moradora de Manaus.
TEMÁTICA:
História
Oral de vida
1° Imagem: Principal rua comercial de Boca do Acre, 1974. 2° Imagem: Av. Eduardo Ribeiro, Manaus, 1960.
“Eu
tinha 12 anos quando sai de Boca do Acre. Fui obrigada. Meu pai foi
obrigado a deixar a cidade porque trabalhava em uma empresa federal
que lhe deu a ordem de vir para Manaus com a família. Chorei muito,
eu era uma criança. Tenho muitas saudades de Boca do Acre,
cidadezinha linda. Chegamos em Manaus de tarde. Era muito diferente
de Boca do Acre. Achei a cidade feia porque nós fomos morar em uma
região de mata onde existiam algumas casas da Base Aérea. Ficamos
em uma onde já existia um casal e outra pessoa. O casal nos recebeu
bem, o outro morador, não. Ele era estranho. Quem nos recebeu foi o
seu Agostinho e a dona Raimunda Araújo. Fizeram um jantar, comemos e
conversamos. Sabe o que era o jantar? Dois quartos de paca1
assada, uma delícia. No outro dia dona Raimunda nos convidou para ir
no mercado fazer compras. Comprar comida porque aqui tudo era
comprado.
Aqui em Manaus meu pai continuou exercendo a mesma
profissão de Boca do Acre, a de construtor de pistas para avião.
Ele recebia as pedras para o trabalho de Santarém. Minha mãe sempre
foi dona de casa, mãe e companheira. Zacarias Rodrigues Vieira e
Maria Raimunda Rodrigues foram bons pais. Naquela época era no
chicote (risos), qualquer erro apanhava, mas eram muito bons, me
criaram com muito carinho.(Aponta para um grande quadro antigo da
família, na sala) Esse quadro é uma das poucas lembranças que
tenho deles. Ele é de 1969. Os retratistas
vinham de casa em casa e perguntavam se não queríamos fazer um
quadro, aí a gente dava uma foto, eles faziam o quadro e tal dia
vinham entregar. Foi minha mãe que contratou o serviço. Ela tinha
41 anos e o meu pai 47. Eu não estava em casa, estava na escola.
Quando eu cheguei de lá ela me falou. Os retratistas falaram que iam
diminuir a careca do meu pai (risos) e, como eu era muito nova, me
fizeram com a aparência mais velha. Meu filho tinha 3 anos de idade,
e era muito amado por meus pais. Eles que escolheram as roupas da
pintura, suas cores e desenharam penteados para mim e minha mãe.
Para mim é muito importante ter o quadro, pois sinto muitas saudades
dos meus pais o vendo.
Eu e meus pais moramos nas casas da Base Aérea e depois fomos para
a Betânia2,
que estava sendo fundada. O dono daquelas terras limpou o lugar e
construiu um escritório de venda de terrenos. Papai foi lá e
comprou um, que ficou 10 meses pagando. Nele construiu uma palhoça
onde ficamos morando. Depois, a prefeitura estava abrindo a rua Nova
em São Lázaro. Era tudo propriedade da Base Aérea. Ela determinou
que a área fosse loteada e que fosse dado um terreno para cada
funcionário seu. Nós ganhamos e desde então passamos a morar no
São Lázaro. Me lembro que meu pai estava construindo uma casa de
madeira na rua Nova. Nós tínhamos uma também de madeira na rua 09 de
Maio. Um dia vieram nos avisar que a casa da 09 de Maio estava
pegando fogo. Quando chegamos lá alguns moradores, o Braga e a Nasa,
já estavam apagando o fogo. Nos mudamos definitivamente para a Rua
Nova. Em Boca do Acre eu estudava no Patronato Nossa Senhora de
Nazaré. Quando viemos para Manaus eu fui estudar no Patronato Santa
Terezinha. Nele estudei até começar os namoricos (risos) e me
casar, ainda jovem.
Na minha infância e adolescência Manaus era uma
cidade linda. Não tinha tanto crime, era calma, boa para se morar.
Lembro dos ônibus de madeira, das praças, a praça em frente ao
Colégio Dom Pedro II, a da Polícia. Aos domingos todos levavam os
filhos para brincar. Tinha alguns animais, na Praça da Matriz.
Tinha tartaruga e peixe-boi. No Centro tinha arraial, mas acabou. A
Cidade só ficava acesa até as 22:00 hrs, depois a energia era
desligada e só voltava no outro dia. Os crimes eram muito raros.
Quando acontecia, investigavam, assassinatos e outros tipos. Lembro
do crime da Pensão Maranhense, na Avenida Eduardo Ribeiro, ocorrido
em 1968. Era uma pensão, tinha restaurante. Era um recinto como
outro qualquer. Um garoto, Waldegrace, que era engraxate, ficava
trabalhando em frente a pensão. O dono dela, José Figueiredo,
ficava observando ele. Um dia ele chamou o garoto e perguntou: Tu
queres umas roupas usadas?
O garoto disse que sim e ele falou: Então
vamos lá em casa pegar. Fez
isso só para assassinar o rapaz. No dia do julgamento, o pai de
Waldegrace tentou matar o assassino. Só não matou porque o calibre
era 22 e não fez muito efeito. O pai do menino foi para o presídio.
Para se divertir nós tínhamos festas. Eu era muito nova e só ia
para a Tarde Dançante. Eram a Manhã de Sol, a Tarde Dançante e a
Noite Noturna. Era aqui no São Lázaro, organizadas pelos moradores.
De noite também tinha cinema, de dia, muitas festas e, de tarde,
muitas danças. Lá no Morro da Liberdade (apontando para cima) tinha
o Libermorro. Nunca cheguei a ir. No Centro, o Ideal Clube era para
os ricos. No São Jorge tinha o Arauto, casa de dança. E tinha uma
no São Raimundo. As mulheres solteiras só saíam de casa a noite.
De dia ficavam na “toca”, na casa delas. Só de noite podiam
sair.
Pela cidade nos locomovíamos de ônibus. Eles eram de madeira,
pequenos. Não tinha cadeira para o cobrador, que ia em pé,
segurando o dinheiro e procurando os passageiros que ainda não tinha
pagado. Não lembro o preço da passagem, não lembro não. Tinha
carroça, mas era para carregar rancho, madeira e palha para cobrir
as casas. Tinha carro, tipo táxi. Não lembro do ano da instalação
da Zona Franca, só sei que foi nos anos 70. A cidade ficou um
alvoroço. Eu também gostei, pois podia comprar as coisas com
facilidade. Tudo tinha aqui. Antes tinha que mandar buscar de longe.
Depois que ela foi instalada, o ritmo de vida mudou, acelerou.
Ninguém tinha mais tempo para nada.
Existiram bons governos, que
trabalhavam muito. Mas era Ditadura Militar. Foi pesada aqui. Daquela
época eram bons os preços, aqui, no Morro da Liberdade e em
qualquer lugar. No Centro a gente via aqueles senhores conversando na
Praça, falando sobre o governo. A Polícia ficava vigiando e pegava
eles, que eram presos ou sumiam. Disso eu não gostava. Ninguém
podia ficar conversando muito tempo junto, vadiando, que a polícia
vinha para cima. A política atual não é boa, não, tem muita
corrupção. Não é bom para ninguém entrar na política hoje.
Eu
me casei com 14 anos, mas ele foi embora para Belém. Mandou me
buscar mas meus pais não deixaram. Fui tendo meus filhos. Com ele
tive apenas um. No meu segundo casamento eu já tinha 20 anos e fui
tendo mais filhos. Tive quatro. Esse foi um bom casamento, que durou
até ele falecer no ano passado, com 74 anos. O nome dele era João
Augusto de Carvalho. Não estudou, mas eu também tinha pouco estudo,
terminei eles com 62 anos. Era um bom marido, carinhoso. Com o
primeiro marido eu tive o Leomar Rodrigues da Silva. Com o segundo,
Giovana Rodrigues de Carvalho, Gerivan Rodrigues de Carvalho,
Trissimara Rodrigues de Carvalho e Maralice Rodrigues de Carvalho,
gêmeas.
Eu já tinha 30 anos quando comecei a trabalhar e não parei
mais, até me aposentar. Trabalhei na Caloi, onde hoje é outra loja,
mas não gostei. Era um trabalho chato em uma fábrica de meias e
tapetes. Depois fui trabalhar em uma fábrica de relógios, a Nelima.
Trabalhei, trabalhei, mas não gostei. Resolvi estudar. Estudava,
estudava mais, fazia cursos para cá e para lá. Fiz primeiros
socorros e enfermagem. Fiz o concurso e entrei na SEMSA3.
Fiz outro concurso e entrei na SUSAM4.
Nela eu entrei como auxiliar mas também era técnica. Depois de uns
anos, me convidaram para trabalhar na FUNAI5.
Queria me aposentar pela SUSAM. Consegui. Na FUNAI era CLT, órgão
federal que pagava bem. Fiquei trabalhando lá por 32 anos. Tinha
vontade de fazer faculdade de Medicina, mas não fiz porque não
tinha terminado os estudos. Depois estudei, mas aí já trabalhava em
três empregos (mostra com os dedos) e estava cansada. Antes de
trabalhar eu era doméstica. Ajudava a minha mãe a limpar a casa.
Ajudar com dinheiro eu ainda não podia, pois meu marido ganhava
muito pouco e também não deixava eu sair de casa para trabalhar.
Ah, a melhor época da minha vida foi nos anos 60. Eu namorava muito
(risos), muito mesmo, ia para muitas festas. Inventei de casar aí
acabou (risos). Apesar da política suja, ainda espero uns bons anos
para mim, para meus filhos, netos e tudo mais. Espero que minha
cidade melhore bastante. Não tenho vontade de sair daqui, amo essa
cidade. Assim como eu chorei quando sai da minha cidadezinha para vir
para cá, se um dia eu precisar sair daqui, vou chorar muito mais...
NOTAS:
1
Espécie
de roedor predominante em regiões de clima tropical
2
Bairro
da Zona Sul de Manaus, vizinho do Morro da Liberdade, São Lázaro e
Crespo.
3
Secretaria
Municipal de Saúde.
4
Secretaria
de Estado da Saúde do Amazonas.
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