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domingo, 1 de outubro de 2017

Casas Peculiares de Manaus

Casa Bolo Confeitado, na Avenida Joaquim Nabuco, no Centro. Foto de 2017.

Casa, nossa fortaleza, nosso refúgio. Na maioria das vezes, expressão máxima de uma conquista individual ou de uma família, pois boa parte de nossas vidas é dedicada à sua construção ou aquisição. Um olhar mais atento por nossa cidade nos permite descobrir algumas residências peculiares, seja por suas arquiteturas, seja pelas histórias que carregam por trás do concreto, do ferro e de outros materiais. Nesse texto, escolhi três casas que se destacam por suas arquiteturas, cafonas para alguns, exóticas para outros: Casa Bolo Confeitado, na Avenida Joaquim Nabuco, no Centro; Casa da Borboleta, no Beco São Lázaro, no bairro de São Geraldo; e a Casa Carro, na Avenida Kako Caminha, também no bairro de São Geraldo.

Casa ‘Bolo de Noiva’, ‘Bolo Confeitado’,’Carmen Miranda’. Esses são alguns dos nomes dados a essa residência, talvez uma das mais chamativas da cidade, localizada na Avenida Joaquim Nabuco, no Centro, próximo do Edifício Novoa. Seu estilo, kitsch, é caracterizado pelo exagero de ornamentos e mistura de estilos arquitetônicos que resultam em uma obra que foge do tradicional. Ela foi construída entre 1930 e 1940, tendo sido um presente do comerciante Ermindo Barbosa, dono da casa de aviamento J. A. Leite & Cia, vítima do acidente com o avião Constellation da Panair do Brasil em 1962, para sua filha Edith Barbosa, que estava completando 15 anos. Na sua época, era uma das poucas construções que fugia dos padrões arquitetônicos até então em voga, oriundos do início do século XX. Do lado esquerdo da casa, existe o que parecia ser a residência original da família, com a data de 1902 gravada no portão. No entanto, fui informado de que esta é a antiga residência do Major Cyrillo Neves.

Escultura do jardim da Casa Bolo Confeitado. Foto de 2013.

Além da construção em si, chama a atenção dos transeuntes da Avenida Joaquim Nabuco a escultura localizada no jardim daquela casa. A peça, em ferro, representa uma senhora, possivelmente uma empregada, vestida com trajes típicos da Europa, lavando uma criança à força. O conjunto foi importado de uma casa de fundição inglesa. A casa continua de pé, imponente, sendo administrada de longe por descendentes da família Barbosa. Nela, por muitas décadas, dona Edith viveu alegremente com sua companheira Judith. A casa, assim como sua dona, desafiou os padrões de uma época, triunfando no final.

Casa Borboleta, no Beco São Lázaro, bairro de São Geraldo. Foto de 2017.

A Casa Borboleta está localizada no Beco São Lázaro, paralelo à Avenida Kako Caminha, no bairro de São Geraldo. Uma grande borboleta, cheia de detalhes e feita a partir da técnica de mosaico com azulejos, se projeta na fachada dominando a paisagem. Até o ano passado, ela era desconhecida por boa parte das pessoas. Na parte de trás, a estrutura é de madeira e parece ser habitada. Sua arquitetura tem ares modernistas, podendo ter sido construída entre as décadas de 1950 e 1960, pois alguns moradores daquela área afirmam que em 1970 ela já existia. A técnica de mosaico com pedaços de azulejo se tornou bastante popular no Brasil nessa época, principalmente na construção civil. As famílias os adquiriam a preços baixos nas fábricas, aplicando-os nas fachadas das casas, nas calçadas ou em outros ornamentos.

Casa Carro, na Avenida Kako Caminha, também no bairro de São Geraldo. À esquerda, uma foto de 2005. À direita, uma foto de 2017.

Vizinha da Casa Borboleta, a Casa Carro, na Avenida Kako Caminha, foi construída em 1953 pela Construtura Lima, responsável por outras obras na cidade, para ser a residência do Sr. Bonifácio Azevedo, que não sabia dirigir e não tinha automóvel. Ela fez parte do imaginário de várias gerações, que se maravilhavam com um carro, na contramão, na fachada de uma residência. Atualmente ela é propriedade de Maria de Azevedo Alves, filha de Bonifácio Azevedo.

Casa Bolo Confeitado, Casa Borboleta, Casa Carro. Essas residências exóticas, cafonas para uns e encantadoras para outros, parecem ser a materialização dos desejos de seus proprietários, sejam eles desejos de infância (Casa Borboleta), desejos não alcançados (Casa Carro) ou o desejo de encaminhar o futuro dos descendentes (Casa Bolo Confeitado). Não sendo um saudosista, pois acredito que o homem é filho de seu tempo, mas é perceptível que a arquitetura atual perdeu a criatividade e a preocupação com a estética. Isso, claro, reflexo de tempos corridos que exigem nossa praticidade.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Germaneo Toloto
Fábio Augusto
Otoni Moreira Mesquita
Rodrigo Zannotto.




sexta-feira, 8 de setembro de 2017

História da Criminalidade: O Caso Jairzinho

A atual Paróquia do bairro de São Francisco.

Esse é um daqueles casos cujos desdobramentos se arrastam por anos e, de forma abrupta, desaparecem dos noticiários. O Caso Jairzinho, diferente de casos como o do Monstro da Colina, tem uma construção narrativa mais difícil, pois até hoje, de acordo com aqueles que foram contemporâneos ao crime, teve uma conclusão envolta de incertezas.

Bairro de São Francisco, 28 de dezembro de 1991. O natal já tinha passado e esperava-se o ano novo. Mal sabiam os moradores daquele bairro que o início do novo ano seria macabro: No dia 01 de janeiro de 1992 o corpo de Jair de Figueiredo Guimarães, o ‘Jairzinho’, uma criança de oito anos, foi encontrado em uma cova rasa nas proximidades do pátio da Igreja de São Francisco. Esse crime juntava-se a outros infanticídios registrados naquela última década, deixando a população do bairro de São Francisco em alerta. Manoel Brandão Neto (32), antigo morador do bairro, lembra que os “avós, pais e demais responsáveis não deixavam que se brincasse no local onde o corpo foi achado”. Os adultos, ainda de acordo com esse depoente, diziam para as crianças que aquela situação era como na novela Carrossel, uma fantasia, para tentar minimizar o terror que passou a reinar naquele local.

Marizete Brandão, moradora do bairro há mais de 50 anos, lembra bem desse dia:

lembro como se fosse hoje, dia 31 de dezembro. Passei na rua ao lado por volta de 13.00 hrs, era um mal cheiro horrível. Falei para meu marido que parecia carniça. Dia primeiro foi o maior alvoroço, tinham achado o corpo. O pavor era tão grande que minha filha não quis mais ir para a igreja. Mães já não deixavam seus filhos brincarem na rua”.

Após as análises do perito da Universidade de Campinas, o médico Nelson Mansini, o mesmo que realizou a perícia do assassinato de Chico Mendes, foi constatado que Jair de Figueiredo Guimarães foi morto estrangulado pelo método do torniquete, processo bastante utilizado para estancar hemorragias. Antes, um dos suspeitos afirmara que matou a criança com um forte golpe na cabeça. Outras pessoas, como Sullivan Nascimento, afirmavam que o garoto fora estuprado e teve o órgão genital cortado, e que seu assassino jogou soda cáustica ou ácido para disfarçar o odor do cadáver. Foi “um dia sinistro”, conta Anderson P. de Souza. Ainda de acordo com a perícia, no dia em que o corpo foi encontrado já haviam se passado 11 ou 12 dias do assassinato.


OS SUSPEITOS


No Jornal do Comércio de 07 de fevereiro de 1992, a principal manchete informava que 'o suspeito do crime está preso'. Era o lanterneiro Afrânio Cardoso de Moraes, de 19 anos. Ele foi preso em uma blitz de rua após ter comentado com uma pessoa que tinha sido o autor do golpe que matou Jairzinho. Levado à Delegacia, confessou que cometeu o crime a mando de Frei Silvestre, da paróquia daquele bairro.

Afrânio disse que, passando em frente a Igreja de São Francisco, foi chamado pelo Frei que perguntou se este não queria ganhar algum dinheiro. Perguntando qual era o serviço, ouviu do religioso que era para pegar um garoto que estava jogando bola e levá-lo para os fundos da Igreja. Afrânio afirmou que, quando recebeu aquele pedido, estava embriagado, aceitando-o sem qualquer objeção. Chegando ao local, disse que o Frei disse o seguinte para a criança: “Eu não disse que você estava me devendo uma”? Jairzinho disse que não sabia de nada. Foi nesse momento que Frei Silvestre ordenou que Afrânio golpeasse o menor. O lanterneiro disse que não bateu com força, saindo correndo da cena do crime. Soube dias depois que Jairzinho tinha morrido. Ao delegado, dizia-se arrependido e que não tinha intenção de matar.

O possível envolvimento de um membro do clero causou grande reboliço nas lideranças católicas da cidade, com o monsenhor da capital afirmando que “há alguém por trás fazendo com que a Igreja Católica seja desacreditada”. O Arcebispo Metropolitano de Manaus não quis se pronunciar a respeito do caso. Dias após essa matéria, a Arquidiocese de Manaus, O Centro de Defesa dos Direitos Humanos da CNBB Norte I e outras entidades da Igreja Católica se manifestaram sobre os rumos que as investigações estavam tomando. Para esses grupos, elas atingiram “pessoas e instituições, causaram prejuízos morais, retardando a elucidação do crime e confundindo a opinião pública”. Afirmavam também que estavam sendo forjados suspeitos e culpados.

Também foi investigado um senhor dono de um mercado próximo ao local do crime, mas contra ele nada foi comprovado.

Em 29 de dezembro de 1994, após três anos do assassinato de Jairzinho, mais um suspeito era investigado: Jair de Figueiredo Guimarães, técnico em eletrônica, morador da rua Valério Botelho de Andrade, em frente a Igreja. Quem era ele? O pai da criança assassinada. Nesse mesmo dia, os moradores do bairro protestavam em frente a sua casa, fixando faixas e cartazes pedindo justiça. 

Jair Guimarães, negando a todo momento o crime, teve decretada a prisão preventiva, sendo levado para a Cadeia Pública Raimundo Vidal Pessoa. Mas como se chegou a mais esse suspeito? O frei Silvestre foi ouvido pela Polícia, sendo constatado que nada havia contra ele. O que levou Jair Guimarães à prisão foi a existência de uma carta na qual o pai da criança pedia uma grande soma de dinheiro para sequestrar o próprio filho. Desconfiado, o titular da Delegacia Especializada de Homicídios e Sequestros solicitou um exame grafológico, no qual foi confirmado que aquela carta fora escrita pelo pai de Jairzinho. Dessa forma, o representante do Ministério Público do 1° Tribunal do Júri Popular, ao denunciar Jair Guimarães, enquadrou-o nas sanções de homicídio qualificado com o agravante da ocultação de cadáver. Moradores de São Francisco afirmavam que ele era alcoólatra e viciado em drogas. Em 1995 o Promotor João Bosco Valente reviu o caso, pensando seriamente em pedir o arquivamento do processo pela confusão e falta de provas. Uma pessoa, que não quis se identificar, afirma que, anos depois, ouviu por uma rádio que uma pessoa tinha se entregado, afirmando ter matado a criança porque seu pai lhe devia dinheiro. 

Falta de paciência de um Frei, por causa das brincadeiras de uma criança? As ações de um comerciante, com motivações ainda não esclarecidas? Um pai em um momento de descontrole? Acerto de contas? Quem, de fato, matou Jairzinho naquele final de ano de 1991? Essa é uma de várias perguntas cujas respostas nem o tempo foi capaz de dar…

FONTES: 

Jornal do Comércio, 07 de fevereiro de 1992.
Jornal do Comércio, 29 de dezembro de 1994.
Jornal do Comércio, 29 de abril de 1995.

DEPOIMENTOS:

Manoel Brandão, 18/06/17.
Marizete Brandão, 18/06/17.
Anderson P. de Souza, 18/06/17.
Sullivan Nascimento, 18/06/17.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Rederiomar.com.br

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Espíritos do Rio Negro, III parte: Ataques, mudanças e uma 'communicação espírita' no bairro dos Educandos

Estabelecimento dos Educandos Artífices, na antiga Olaria Provincial.

Passara-se um dia da sessão realizada no Alto de Nazareth, na qual revelou-se que o espírito que atormentava a família Alencar, no bairro da Cachoeirinha estava inquieto e obcecado, procurando vingar-se das injustiças que lhe foram cometidas em vida. Os fenômenos naquele bairro continuavam a se manifestar, chamando a atenção de espíritas, leigos ou de associações. Dessa vez, durante uma sessão realizada no bairro dos Educandos, um espírito vindo de muito longe deixaria sua marca no caso...

Manáos, 06 de agosto de 1917

Seguidores e estudiosos da doutrina espírita mostraram-se bastante interessados com o caso, como pode ser visto com a reveladora sessão realizada um dia antes no Alto de Nazareth, na qual descobriram-se as motivações do espírito da Cachoeirinha. Um desses estudiosos era Manoel dos Santos Castro, porteiro da Alfândega, morador da rua Barroso, no Centro, e há muito dedicado às leituras sobre o espiritismo.

Castro, naquele momento, amigo da caridade, assumiu para si a tarefa de tentar evangelizar o espírito que estava atormentando a família Alencar e, de certa forma, os moradores do arrebalde da Cachoeirinha. Ele, no entanto, não informava os resultados de suas pesquisas para a imprensa, apenas afirmava que “trata-se de espíritos, e muitos outros factos psychicos vão se reproduzir nessa cidade”.

As manifestações na Cachoeirinha continuavam e, agora, não atingiam apenas membros da família Alencar. Um jovem que zombava do caso, criticando-o e afirmando ser ele uma mentira, declarou, na redação do jornal A Capital, ter recebido um forte golpe no rosto, o qual não sabia a procedência, pois estava sozinho no momento.

O Sr. Alencar se encontrava bastante abatido pelo que vinha ocorrendo em sua casa desde o início do mês de agosto. Sua saúde, assim como a vigilância e a perseguição ao ‘phantasma’, ia diminuindo. Alice Alencar, a jovem que via o espírito, foi enviada para a residência de um amigo da família, o advogado Antônio Batista de Aquino, localizada na rua Visconde de Porto Alegre, para ver se cessavam as perseguições. Mal entrou na casa, foi atingida com um golpe vindo do “nada”.

Além do trabalho de Manoel dos Santos Castro, outros espíritas realizavam sessões em diferentes pontos da cidade, sendo que em todas elas o espírito que se comunicava afirmava ter ocorrido um crime, de que foi vítima o cidadão desconhecido que, agora no plano espiritual, buscava vingança. Em um encontro realizado no bairro dos Educandos, separado do local dos eventos por um igarapé, recebeu-se a comunicação de um espírito que se dizia ter sido um jesuíta português em vida, tendo vindo para o Brasil junto de um grupo de religiosos que acompanhavam Duarte da Costa, em 1553. O espírito fez revelações sobre o futuro da humanidade, do Brasil, durante e após a Guerra:

Meus amados irmãos, convidado por vós para dizer alguma coisa sobre os recentes acontecimentos da Cachoeirinha, devo vos declarar que não posso ir além do que já se pronunciou um respeitável mestre do espaço, na sessão ultimamente levada a efeito no Alto de Nazareth.

É justa a vossa curiosidade no sentido de se conhecer a vítima da Cachoeirinha, mormente quando agora já se base, que um crime bárbaro presidiu a tudo isso, crime esse que foi revestido da mais revoltante hediondez.
Mas, essa revelação não pode ser feita pelos espíritos que ascenderam a grande escala da evolução espiritual. Somente os espíritos que ainda pairam num plano bastante inferior, podem assim proceder, porque a verdade é como diz o venerando apóstolo São Paulo, na Epístola aos Efésios, cap. 6° verso 12°: Nós temos de lutar contra os espíritos de malícia espalhados por esses ares.

Mantendo os mesmos princípios externados pelo mestre que me precedeu em outra sessão (porque dou graças a Deus de já ter atingido um grau mais ou menos considerável na eterna vida do cosmo), me abstenho de proclamar o nome desse irmão, que ora se manifesta na Cachoeirinha, vítima da terrível tragédia referida pelo outro mestre.

Demais a mais, o fenômeno psíquico ora observado, não é o primeiro, nem será o último, mesmo porque, se aproximando os tempos anunciados, a reprodução desses fenômenos se manifestará por todos os pontos da terra, com maior intensidade.

O aparecimento da nova raça no planeta, ocasionará os mais extravagantes fenômenos, até que venha o reinado da fraternidade humana.

É por isso que vos posso afirmar que muito breve a maçonaria, que teve um importante papel na civilização atual, estará de mãos dadas com a igreja, porque nada mais separará o homem, mas tudo os unirá.

Virá o amor, na santa lei de Buda, combatendo o ódio, para por termo às contendas das nações”.

Nesse momento, o presidente da sessão interrompe a fala, dizendo que, em outro encontro, o Dr. Jorge de Moraes, ex-prefeito da capital, disse que era impossível a paz universal, pela dificuldade da reação do Tribunal Internacional, como pela impossibilidade do desarmamento das nações. O espírito, prosseguindo, respondeu:

“O Dr. Jorge de Moraes é um talento de eleição; mas a frase que ele não encontra, para se dar isso, está na lei do amor. A ele respondo como Cristo: O que é impossível aos homens não é difícil a Deus.

Finda a guerra atual, que apavora as nações, os povos, ainda debaixo da mais terrível impressão, terão horror só em ouvirem falar em guerras sangrentas.

Esta guerra, portanto, é o primeiro ensaio para a paz permanente dos povos.

O povo alemão, instrumento inconsciente da Divindade, se aparelhando tanto quanto lhe permitiu o engenho da arte, presta grande benefício às gerações de amanhã, aniquilando o seu poderio, como destruindo as demais potências armadas”.

E o Brasil, perguntou o presidente, qual seu destino nessa Grande Guerra?

“Talhado para grande destino na humanidade, o Brasil, a terra adorada, cuja grandeza contemplamos e admiramos do espaço, terá importante papel no concerto universal, nos tratados de paz das nações.

Emigrando a civilização da Europa para a América, o Brasil se tornará o centro das mais adiantadas concepções humanas; e assim, podeis ir desde já observando a nova geração que se vai formando neste grande país do futuro.
O povo brasileiro de amanhã será essencialmente culto, dedicado às letras, artes e indústrias; numa palavra: dominará o mundo pela moral, pelo direito; a lei será a sua grande força.

Já no rompimento das relações diplomáticas e comerciais com a Alemanha, o Brasil deu uma grande lição perante o mundo inteiro: garantiu a vida, liberdade e propriedade dos súditos alemães residentes em seu território.

Apesar de na minha última vida material ter sido português, venho amando este pedaço de solo americano, desde que nele pisei, como jesuíta, em companhia do padre José de Anchieta, que por sua vez com mais 15 jesuítas, fizera parte da comitiva de Duarte da Costa, segundo governador geral do Brasil, em 1553.

Foi, portanto, da fundação do Colégio de São Paulo, em 25 de janeiro de 1554, que partiram meus primeiros ensaios na grande obra da proteção aos índios, ao lado do padre Anchieta, fato esse que tanto irritou os mamelucos.

Como português que fui, concorri, com o meu pequeno esforço, para a formação do grande povo brasileiro, que será a continuação da pátria portuguesa, pela raça, pela língua, pelos costumes, pela religião, enfim, e não posso, portanto, deixar de amar e muito este belo país, o El Dorado das gerações futuras".

O espírito do jesuíta português, um tanto saudosista, vindo do longínquo século XVI para o XX, terminava sua comunicação, sem fazer maiores revelações sobre os eventos da Cachoeirinha. É evidente que a maioria de suas previsões não se concretizaram. No dia seguinte, ocorreriam acalorados debates no Templo da Verdade, na rua José Clemente. Alice Alencar seria chamada para depor na delegacia e, ao fim de seu depoimento, sua vida seria alterada de forma profunda…



CONTINUA



CRÉDITO DA IMAGEM:

Blog do Coronel Roberto - Catador de Papéis

terça-feira, 18 de julho de 2017

Espíritos do Rio Negro, II parte: Uma 'communicação espírita'

O puxadinho na residência da família Alencar. FOTO: Jornal do Comércio, 08/05/1917

Continuavam os eventos na casa da família Alencar, no arrebalde da Cachoeirinha. A grande imprensa já não especulava mais o seu fim, nomeando o caso como o do ‘Phanstama da Cachoeirinha’. A calma não deitaria tão cedo naquela parte da cidade, que por um bom tempo seria o palco de aparições e outros acontecimentos ditos sobrenaturais. Os dizeres de um médium, guiado por um espírito em uma sessão, começariam a revelar parte, mesmo que ainda encoberta pela sombra das incertezas, do mistério que rondava aquele lugar.

Manáos, 05 de agosto de 1917

A polícia continuava, sob o comando do guarda Silveira, sem sucesso, empregando seus esforços para solucionar o caso. A polícia, uma instituição humana, tentava conter, expulsar, por fim, em algo intangível, que não fazia parte desse plano. Era o choque de duas realidades muito, mas muito distintas.

A dimensão que o caso ganhou chamou atenção da comunidade espírita local, que passou a realizar sessões na tentativa de desvendar as causas das aparições na residência da família Alencar. A primeira e também mais reveladora comunicação ocorreu no Alto de Nazareth, organizada por cinco espíritas e uma senhora como médium. A sessão teve início com a leitura de algumas passagens da obra de Allan Kardec e de preces a Deus, para que o encontro ocorresse sem nenhum incidente. Oferecidos alguns Pai nossos aos espíritos sofredores e obcecados, a médium começa a receber as primeiras informações do espírito:

“Que a Paz do Senhor esteja nessa bendita casa. Meus caríssimos irmãos, o fenômeno manifestado ultimamente no bairro da Cachoeirinha, desta cidade, não constitui um mistério, como pensa a ignorância popular, ignorância essa devida a falta de leitura das sagradas letras, porque na natureza não há mistérios, nem fatos que não possam ser explicados diante da luz da verdadeira ciência.

Tudo obedece a certas e determinadas leis da natureza, na sua grande sabedoria, e, portanto, não há fenômeno algum, por mais extravagante que pareça ser aos olhos dos ingênuos, que não tenha a sua cabal explicação, a sua razão de ser. As manifestações psíquicas são uma verdade e a minha presença, neste momento, o atesta.

O que se está passando na Cachoeirinha, prende-se a fatos anteriores desenrolados nesta capital, há poucos anos, fatos esses coevos de meus irmãos.

O Amazonas, nesses últimos tempos teve o seu grande declínio, devido à perversidade de uns, a ambição descabida de outros, com o desrespeito de todos os direitos, com a violação das próprias leis de humanidade, com a manifestação das mais iníquas decisões, sob a pressão de um só homem, aparentemente bom e venerando, mas, no íntimo, de maus instintos, de modo que a população inteira, desta cidade, revoltada e indignada com os seus malfeitores, descarregava, como descarrega grande, ódio ao mesmo tempo convergindo sobre os seus algozes toda a sorte de malquerença. Outras vítimas, uma vez desencarnadas, no espaço, desenvolvem maior soma de ódio e paixão, e daí, sente-se uma atmosfera bastante pesada.

Dado isso, o que se vê, então, senão reação do plano astral sobre o plano físico.

Eis o grande fenômeno explicado.

Operado o encontro dos elementos astrais com as vibrações do plano físico, verifica-se o fenômeno psíquico.

E o caso atual da Cachoeirinha. Um nosso irmão, há anos (não faz muito tempo), foi vítima de grande suplício, martirizado selvagemente, morrendo, pode-se dizer, de inanição acompanhada de repetidos açoites.

Morava na Cachoeirinha, e de lá foi tirado para a prisão, de onde só saiu morto.

Os seus gritos cruciantes, os seus lamentos, os seus gemidos, foram inúteis: Era preciso morrer como um cão; e assim aconteceu.

Os seus algozes, diante do quadro doloroso de sua vítima indefesa, riam, muitas vezes, de satisfação. Por mais que proclamasse a sua inocência, só encontrava terríveis carrascos.

A sua desgraçada mulher, carregando um filhinho de colo, bateu em todas as portas dos magnatas da terra, e nada conseguiu em favor do seu marido, não obstante exibir as mais robustas provas da inocência do mesmo.

Foram 27 dias de martírio atrozes e contínuos.

Tudo passou, menos a ideia preconcebida de vingança desse nosso infeliz irmão (o espírito da Cachoeirinha).

Aproveitou agora o momento em que o Amazonas ressurge com o seu garbo de outrora, com a bastança de outros tempos, para operar, no sítio de sua prisão, a vingança projetada.

Para lá, quer atrair os seus algozes, a fim de que por intermédio de um médium, cujo aparelho se coadune com seus sentimentos, possa reconstituir todas as cenas de que foi vítima, diante do povo, e confundir assim os autores de sua morte, de seu martírio.

Agora, meus caríssimos amigos, devemos encaminhar esse nosso desgraçado irmão, que se acha preso à vis paixões, por uma vereda, que lhe ofereça outro conforto espiritual.

A lei da evolução do espírito não permite essas reações tangidas pelo ódio e por sentimentos de vingança, porque essas manifestações retardam o progresso espiritual; e assim, esse nosso irmão estão contraindo novas dívidas, futuras provações.

Na terra, como no espaço, o espírito só progride pelo amor, pelos sentimentos de piedade, e nunca pelo mal, pela vingança que possa exercer contra os seus inimigos.

Faça-se fervorosas preces, não só por esse nosso irmão, como pelos seus algozes, afim de que todos possam atingir a um plano superior na vida espiritual”.

Quando a médium terminou seus dizeres, o presidente da sessão pediu para que o espírito que lhe auxiliara dissesse seu nome e o do espírito da Cachoeirinha. Ele recebeu a seguinte resposta:

“Em tornar conhecido o meu nome, em nada aproveita em relação a verdade ora sabida; o que aproveita é seguir-se as sábias lições, que me inspiraram os Mestres para transmitir aos meus irmãos. Praticar sempre e bem, perdoar as faltas de nossos semelhantes, cometer atos de amor e bondade, são os fatores principais que levam o homem a presença de Deus.

Nomear o nome do espírito que se manifesta na Cachoeirinha, cometeria uma grande indiscrição apontando ao público os seus algozes, quando o papel dos espíritos evoluídos não é denunciar, mas amparar todas as quedas, sem expor ninguém a odiosidade e escárnio público.

Agora, um conselho de amigo; quem tiver, acrescentamos nós, crimes encubados nos costados, fuja e fuja de verdade da Cachoeirinha, enquanto por lá andar o fantasma”.

Um espírito inquieto, injustiçado, buscava vingança pelo que lhe foi feito em vida. Suas manifestações deixaram em alerta a sociedade manauara, pois esses eventos se espalharam por outros bairros da capital. Mas isso já é assunto para outro texto...


CONTINUA

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Espíritos do Rio Negro, I parte: Pedradas, ameaças e vultos no ‘Caso Mysterioso’ da Cachoeirinha

A casa que se tornou palco dos eventos sobrenaturais, no bairro da Cachoeirinha, entre agosto e setembro de 1917. FOTO: Jornal A Capital, 04/08/1917.

Desde os tempos mais remotos e em diferentes sociedades, homens e mulheres desenvolvem relações com o sobrenatural, este definido como um plano que escapa à ordem das explicações físicas e materiais. Essa relação vai se modificando, com maior ou menor intensidade, de acordo com os contextos históricos em que estão inseridos determinados grupos humanos. No texto a seguir será abordada uma série de fenômenos considerados sobrenaturais, que se tornaram caso de polícia, ocorridos com uma jovem de uma família do bairro da Cachoeirinha, em Manaus, entre agosto e setembro de 1917, sendo o caso amplamente noticiado pelos principais jornais da época. Não se procura, aqui, fazer um julgamento tacanho sobre crenças ou não crenças, mas sim compreender parte da mentalidade daquele período, a repercussão desses eventos na sociedade manauara e a forma como estes foram veiculados na imprensa.

No Arrebalde da Cachoeirinha, o vulto de um homem aterroriza uma família…

Manáos, 03 de agosto de 1917

"Os espíritos, em nossa região, atravessam o Rio Negro para a outra vida. Outros, no entanto, ainda não estão preparados para a travessia, permanecendo presos ao mundo terreno, onde deixaram assuntos inacabados ou simplesmente não queriam partir"...

Na parte de trás da Feira da Cachoeirinha, em uma casa simples imprensada entre outras duas, as quais o tempo já deu cabo, residia a família de Alfredo Alencar, casado, sem filhos, mas na companhia de sua sobrinha, Alice Alencar, de 13 anos. Naquele 03 de agosto de 1917, faziam dias que a família Alencar e a vizinhança se encontravam inquietos por uma série de eventos de natureza desconhecida. Em um puxadinho na parte de trás da residência, dia e noite choviam pedras sobre o telhado de zinco. Além das pedras, Alice Alencar era ameaçada pelo vulto de um homem que se movia em alta velocidade, sendo visto pela jovem e por sua tia no fundo do quintal da casa.

Alfredo Alencar, questionado sobre essa situação, dizia a um jornalista: “Não sei explicar e estou farto de vigiar dia e noite, com os meus visinhos, procurando quem seja, perseguindo e até dando tiros, na direcção de onde partem as pedras o que ora é de um lado, ora de outro”. Nesse mesmo dia, foi capturado um jovem na mata do quintal, o que levou um subdelegado e alguns praças até o local. Estes presenciaram, atônitos, novos apedrejamentos. As autoridades fizeram buscas em todos os terrenos da vizinhança, sem encontrar ninguém num primeiro momento. Rápido silêncio, uma brisa e o reflexo de uma garrafa que ficou em pedaços, na varanda. Um soldado avistou uma figura que, estando cercada, desapareceu.

O Sr. Alencar, vigilante desde o início desses eventos, ainda não tinha visto o vulto, apenas Alice, sua mulher e uma outra parente que, saindo até o quintal, foi acertada com uma pedra por uma pessoa. A Sra. Alencar afirmava que o vulto era de um homem alvo, nem alto, nem baixo e com características italianas. Aparecia hora vestido de branco, hora vestido de preto. Certa vez, ele estava agarrado na cerca do quintal, e a Sra. Alencar o insultou. Ele, sem nada dizer ou esboçar qualquer reação, foi se afastando lentamente até sumir na mata. O único momento em que o homem falou foi quando, através de uma fresta da cerca, com uma arma, ameaçou matar sua sobrinha.

O jornalista perguntou se esse vulto não poderia ser algum admirador de Alice, no que retrucou o Sr. Alencar: “Também desconfiei, mas não vejo fundamento. Além de muito creança e socegada, esse negocio de dia, de noite e as pedradas não pódem fazer suppôr namoros. Demais, o risco em que já está, afasta com a insistencia, qualquer possibilidade”.

Alice, a pedido de seu tio, andou pela varanda, pois o entrevistador era o único que ainda não tinha visto as pedras caírem sobre a casa. Em poucos minutos, a primeira atravessara o telhado. Um soldado da Delegacia foi até o local para saber de mais ocorrências e conter a grande quantidade de curiosos que se amontoavam nos arredores. Para o jornalista, a polícia deveria agir para desvendar esse caso, mostrando não haver nada de sobrenatural, como pensava boa parte das pessoas. Sugerindo a derrubada do matagal do fundo da casa, e a formação de um cerco apertado, estava certo de que o “caso mysterioso da Cachoeirinha” desaparecia de vez.

Bem, pelo menos foi isso que pensou o jornalista do Jornal A Capital…


CONTINUA

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Os Santos Populares do Cemitério São João Batista (Manaus/AM)

Os santos populares do Cemitério de São João Batista: Teresa Cristina, Etelvina D' Alencar, Shalon Emanuel Muyal e Delmo Campelo Pereira.

Uma das características mais fortes da religiosidade brasileira é o seu caráter popular, que se desenvolve à margem de um poder oficial. Os santos populares talvez sejam o melhor exemplo dessa "crença não oficializada". É histórica a relação que os vivos criam com os mortos, acreditando que estes, já em outro plano, podem interceder no mundo terreno em benefício e, em alguns casos, assombrar seus algozes. No Cemitério São João Batista temos quatro sepultados considerados santos por um número considerável de seguidores: Etelvina de Alencar, Teresa Cristina, Shalon Emanuel Muyal e Delmo Pereira.

Etelvina Alencar (1884-1901) - Etelvina D' Alencar, natural de Boa Vista do Icó (CE), era filha de Cosmo José D' Alencar e Rosalinda D' Alencar. Essa família de cearenses se estabeleceu na Colônia Campos Salles para trabalhar na área agrícola. No local, Etelvina conheceu um jovem de nome José, tornando-se noiva deste. No entanto, Etelvina desistiu do casamento. José ouviu boatos de que Etelvina possuía três namorados na Colônia: Antônio, Estevam e Henrique. José adquiriu um rifle, matando os três e o administrador da colônia, que tentou impedi-lo de cometer os crimes. Por último, invadiu a casa de Etelvina, levando-a para a mata. Na cena do crime, vários dias após o ocorrido, como escreveu Júlio Uchôa no Jornal do Comércio de 15/01/1956, estavam "dois esqueletos, com o rifle no meio". José assassinou Etelvina Alencar e logo depois se suicidou. O crime gerou grande comoção dentro e fora da cidade, sendo noticiado em jornais de outros estados. A Prefeitura de Manaus, em 30/08/1901, lhe dedicou uma sepultura perpétua, com um jazigo construído pela população. O mausoléu atual foi construído em 1964 também pela Prefeitura de Manaus. Com o passar dos anos, várias pessoas passaram a ver e atribuir milagres a jovem Etelvina D' Alencar, Santa Etelvina, Santa dos Estudantes. Objetos, flores, imagens do Sagrado Coração de Jesus e do Sagrado Coração de Maria são postos em seu mausoléu como homenagem, um dos mais visitados durante a celebração do Dia dos Finados e também em dias comuns.

Teresa Cristina (1964-1971) - Teresa Cristina é a pessoa mais nova dentre os outros santos populares. A criança, filha de mãe católica e pai muçulmano, desde cedo mostrava interesse por questões voltadas para o sagrado. No ano de 1971, faleceu em um acidente aéreo nas proximidades de Manaus, para onde voltava com sua mãe. A mãe de Teresa, sobrevivente, tentou ajudá-la, mas esta morreu carbonizada entre os destroços da aeronave. Passados seis meses após o acidente, a mãe da criança, dona de uma pensão no Centro, recebeu visita de um migrante, sem dinheiro, que pediu para ali ficar hospedado. A senhora lhe acolheu. No outro dia, esse hóspede foi até a casa da família de Cristina, para acertar os detalhes da hospedagem. Chegando no local, viu um quadro da criança e perguntou quem ela era. A senhora disse que era sua filha. O migrante disse que foi aquela criança que o guiou até a pensão. A mãe de Teresa disse que isso era impossível, pois seis meses a criança morrera em uma acidente aéreo. Curiosa, ela perguntou onde encontrou a criança. Este disse que encontrou a criança brincando na rua, perto de uma casa antiga. O local descrito era a antiga residência da família, abandonada após o acidente. O boato da aparição da criança se espalho rapidamente pela cidade. Um outro hóspede, com uma doença degenerativa que estava lhe tirando a visão, fez orações a Teresa Cristina, sendo curado. Nos dias de hoje, o túmulo da criança e bastante visitado por pais acompanhados de seus filhos e por descendentes de sua família.

Rabino Shalon Emanuel Muyal (+1910) - O Rabino Shalon Emanuel Muyal veio de Salé, no Marrocos, para Manaus, em 1908, a fim de ajudar no desenvolvimento da comunidade da capital. Sua experiência na cidade foi breve, pois fora acometido por uma doença tropical, vindo a falecer em 1910. A primeira pessoa auxiliada por um milagre atribuído ao rabino foi uma senhora da comunidade judaica que o auxiliou em seus últimos dias de vida. A senhora afirmava ter conseguido curar outra pessoa graças ao contato que manteve com o Rabino Shalon. A notícia correu pela comunidade judaica. A mãe de um jovem que possuía um problema no pescoço que o fazia andar com a cabeça inclinada, desacreditada pelos médicos da capital, foi até o cemitério fazer pedidos no túmulo do Rabino para o restabelecimento da saúde do filho. Inúmeras placas de graças alcançadas estão fixadas no local, junto de flores e velas, símbolos cristãos, e pedras, jogadas aos mortos na tradição judaica. Em 1980, o sobrinho de Emanuel Muyal, Eliahu Muyal, membro do parlamento de Israel e Ministro dos Transportes, visitou Manaus e pediu a comunidade judaica para levar os restos mortais de seu tio para Israel. O pedido foi negado sob a justificativa de que tal ato revoltaria a população católica que reverenciava o Santo Judaico.

Delmo Campelo Pereira (1933-1952) - O assassinato de Delmo Campelo Pereira talvez seja um dos mais controversos da história de Manaus. O crime, que envolveu nada mais nada menos que 27 pessoas, ocorreu na Colônia Campos Salles em 1952. Ele foi consequência de uma série de ações criminosas cometidas por Delmo. O jovem, rebelde e amante da vida desregrada, tentou assaltar a empresa de seu pai, atacando um vigia do local a golpes de chave de fenda. Um taxista que levara Delmo até a empresa, a única testemunha, foi assassinado a tiros pelo jovem. A categoria de motoristas de Manaus, enfurecida, empreendeu uma verdadeira caçada atrás do assassino do colega de profissão. Para a surpresa de Delmo, o vigia sobreviveu ao seu ataque. Temendo o pior, o assassino do taxista confessou seus crimes para a polícia. Suas versões eram contraditórias, ora admitia ter feito tudo sozinho, ora adicionava cúmplices. Como alternativa, este foi posto em uma ambulância para receber uma aplicação do Soro da Verdade. Em parte do trajeto, a ambulância foi atacada por um grupo de taxistas, que raptou Delmo. O jovem foi levado pelos taxistas para o Baixio dos Franceses, à margem da Estrada de São Raimundo. Ali encontraria seu fim: Foi torturado pelos taxistas enfurecidos, chicoteado com fios elétricos, tendo seu ventre aberto do umbigo ao pescoço no processo. Sua morte gerou a revolta da população, principalmente dos estudantes. Em seu túmulo encontram-se as inscrições "Estudante Mártir". Pedidos para sucesso na vida acadêmica e cadernos são deixados em sua homenagem.

FONTES:

SANTOS, Fabiane Vinente dos; MAIA, Jean Ricardo Ramos. Hagiografia de cemitério: História Social e Imaginário religioso nas canonizações populares em Manaus. Revista Eletrônica os Urbanitas, São Paulo, v. 5, 2008.

CUPPER, Maria Terezinha da Rosa. Educação e Cultura: Leitura do Cemitério de São João Batista - Manaus/AM. Manaus, Universidade Federal do Amazonas, 2009. (Dissertação de Mestrado em Educação).

Catador de Papéis (www.catadordepapeis.blogspot.com). Blog do Coronel Roberto Mendonça

CRÉDITO DAS IMAGENS:

Maria Terezinha da Rosa Cupper
G1 Amazonas
Manaus de Antigamente





segunda-feira, 4 de abril de 2016

Os 110 anos das Artes Marciais Japonesas no Amazonas

Por Aguinaldo Nascimento Figueiredo

O Conde Koma em uma demonstração de Jiu-Jitsu.

O Amazonas vem despontando nos últimos tempos como um grande centro de campeões de artes marciais, com destaque para o Jiu-Jitsu e o Judô. O talento de nossos jovens atletas surpreendem especialistas internacionais, em razão das premiações que alcançam, nas mais importantes modalidades, dessas competições. Mas esse cabedal de competência não é de agora não, ele vem sendo construído ao longo de uma história que poucos conhecem. Isso mesmo, para quem não sabe, o jiu-jitsu e o judô foram introduzidos, no Amazonas, pelos japoneses, no início do século 20, quando faziam turnês pelo mundo, para divulgar seus estilos na "arte suave" (significado da palavra jiu-jitsu em japonês). Por isso ela é uma história emocionante, marcada de conquistas e muito sacrifício que merece o reconhecimento de toda a sociedade amazonense.

De acordo com o professor Rildo Heros, pesquisador do assunto, os primeiros ases do jiu-jitsu a estarem, em Manaus, foram os mestres Sakamoto, Ynasake e Shimokawa, em 1906, quando apenas fizeram apresentações das técnicas dos seus estilos. Ainda, em 1906, aqui esteve o mestre Akishima Sadachi e o seu assistente Suiostos Ki, realizando em 18 de dezembro de 1906, no circo "Coliseu Metálico Brasileiro", armado na Praça da Saudade, a primeira luta de Jiu-Jitsu que se tem notícia no Brasil. Sadachi venceu todos os lutadores desafiantes. 

Em 18 de dezembro de 1915, um grupo de graduados do jiu-jitsu comandados por Mitsuo Mayeda, o conde Koma, chegou a Manaus, para fazer lutas marciais.

Mayeda era mestre da Kodocan, do mestre Jigoro Kano, o criador do judô. Além de Koma, vieram os mestres Shimizu Takaji, Noboshiru Satake, Okura e Sadakazu Uyenishi (Raku). Eles realizaram duas lutas na cidade.

A primeira, no dia 23 de dezembro de 1915, com o conde Koma enfrentando o boxer barbadiano Adolfo Corbiniano, em combate livre. O conde sagrou-se vencedor. A segunda deu-se, a 28 de dezembro, contra o campeão de luta romana Nagib Assef, em que o conde Koma derrotou o gigante turco, numa luta espetacular.

Depois, os japoneses deste grupo passaram a proferir palestras sobre artes marciais e a cultura física japonesa, na sede do Manáos Sporting Club, ganhando a simpatia popular.

Com o sucesso das lutas eles mobilizaram os setores esportivos da cidade, organizando o primeiro campeonato amazonense de Jiu-Jitsu, coordenado pela Liga Amazonense de Esportes Atléticos. O evento aconteceu em 30 de dezembro de 1915, no cineteatro Polyteama, com o lutador Nobushiro Satake vencendo todas as lutas. Minguados os eventos, os japoneses deixaram a cidade, com Okura e Shimizu retornando ao Japão e o conde Koma fixando sua residência, em Belém, com o nome de Otávio Maeda, construindo, a partir de então, outra página na história do jiu-jitsu e dos japoneses no Brasil. Maeda faleceu em Belém, em 1941.

Nobushiro Satake.

Nobushiro Satake fixou residência, em Manaus, e passou a ensinar Jiu-jitsu, no Instituto Universitário Amazonense, por que esse esporte fazia parte do currículo dessa instituição, que foi a primeira, no Brasil, a adotar esse gênero de esporte como disciplina curricular formal. Satake fundou também uma academia de Jiu-jitsu, no Atlético Rio Negro Clube, e foi responsável pela introdução do Basebol e do ensino de Técnicas de Massagem e Medicinal Oriental, no Amazonas. Em 1932, Sanshiro "Barriga Preta" Satake, apelido adquirido em razão da sua ligação com o clube rionegrino, partiu do Amazonas, deixando uma grande obra e uma legião de campeões, retornando ao Japão, não se sabendo qual foi o desfecho de sua vida, após essa data. Sabe-se que ele morreu em sua terra natal.

Sadakazu Oyenishi (Raku) instalou sua academia no prédio do Banco do Brasil, localizado na Praça XV de Novembro, que funcionou até 1920. Nesse mesmo ano ele deixou Manaus, realizando um périplo por várias cidades da Europa, retornando ao Japão em 1939. Morreu em Tóquio em 1956.

Em junho de 1932, chegou a Manaus, vindo de Parintins, Takeo Yano, faixa preta de jiu-jitsu. Era kotakussei e foi convidado para ensinar defesa pessoal à Polícia Militar e ao Exército Brasileiro, na capital amazonense. Nesse mesmo ano ele instalou um tatami, na sede do Nacional Futebol Clube, à rua Saldanha Marinho, ensinando aos jovens amazonenses os esportes marciais e promovendo duelos entre desafiantes. Dentre os seus alunos estava Guilherme Pinto Nery, que havia sido aluno do mestre Satake. Depois de preparado pelo mestre Yano, Guilherme Nery fez a sua primeira luta, a 7 de junho de 1933, contra o campeão peruano Jorge Ribas, no cineteatro Alcazar, depois cinema Guarany, sendo o vencedor.

Essa é considerada a primeira luta de jiu-jitsu onde houve um participante amazonense. Guilherme Nery, que fundou, em 1937, a sua academia de jiu-jitsu, em um prédio da Rua Luiz Antony, ensinando ao longo de sua existência o nobre esporte japonês, tendo como alunos personalidades da elite amazonense como Antônio Leão, Mário Verçosa, os irmãos Jorge e Jaime Tribuzzi, Osvaldo Mendes, Sílvio Tapajós, Ary Navarro, Jary Botelho, Oton Mendes, Osvaldo Zagury e Arthur Virgílio Neto.

O karatê foi introduzido, em Vila Amazônia (Parintins), em 1933, por mestre Saburo Ono, que era kotakussei. Ono veio para Manaus, em 1946, passando a ensinar karatê, no Olímpico Clube, até o fim do ano de 1946.

A primeira mulher de origem japonesa a praticar judô, no Amazonas, foi Edite Shirano, falecida em 2006. Edite era filha do professor Jiroso Shirano, kotakussei, que fundou a Academia Shirano, no bairro da Cachoeirinha, na antiga residência do professor Satake.

Em 1958, vieram apara o Amazonas os mestres Shoiti Sato e Toshio Yamagushi. Mestre Sato, que era faixa vermelha, com grau de sexto Dan em judô, era conhecido como Kimura ou "Mão de Banana", foi o instrutor da guarda pessoal do governador Plínio Coelho. Depois do golpe militar Sato se tornou taxista, em Manaus. Mestre Toshio Yamagushi, quarto Dan de judô, fundou, em 1960, uma academia, nas dependências da Associação dos Sargentos do Amazonas, e teve como discípulos Murilo Rayol, José Mário Frota, Ivan Tribuzzi, Tales e Taner Freire de Verçosa e Roberto Caminha. Infelizmente, o mestre Yamagushi teve morte trágica ao ser assassinado violentamente no bairro de São Raimundo, em meados dos anos 70, ao reagir a um assalto.

No ano de 1967, os estudantes universitários Gilberto Marques Meneses, Paulo Bernardes e Nilson Pascoal da Silva, fundaram, na "Casa do Estudante", à rua Barroso, a Academia Samurai. No ano de 1969, o advogado, jornalista e "faixa preta" de jiu-jitsu, Armando Jimenez, fundou, à rua Belém, a Academia Jimenez, congregando profissionais liberais, políticos de renome, intelectuais e jovens estudantes de famílias abastadas da cidade como os Valois, os Benchimol, os Lucena, os Areosa, os Xavier de Albuquerque e os Takeda, entre tantos.

Os primeiros campeões de judô do Amazonas foram Nilson Paschoal da Silva, Ângelus Figueiras, Paulo Nasser, Remédio Leocádio e Raimundo Nonato Gouveia.

A Federação de Judô do Amazonas foi fundada em 12 de julho de 1973, tendo como membros fundadores o atleta Nilson Pascoal da Silva, os srs. Luís Carlos Mestrinho Melo, o "Tical", Almério Botelho Maia, Flávio Cordeiro Antony, Valter Caldas, Iran de Carvalho e o poeta Enson Farias.

O primeiro Campeonato Amazonense de Judô ocorreu em março de 1974, no Colégio Militar de Manaus.

A primeira academia a ser instalada oficialmente no Amazonas foi fundada por Nilson Pascoal da Silva, em outubro de 1974, com a denominação de Judô Clube Manauara. No mesmo ano de 1975, a direção da Academia Samurai passa para o comando de Dorgival Francisco das Chagas, que foi aluno de jiu-jitsu e judô do professor José Maria (ex-aluno de Takeo Yano). Com um trabalho brilhante em prol dos esportes marciais no Amazonas, esse profissional morreu em 1998, e como reconhecimento o ginásio do Colégio Dom Bosco leva seu nome.

De seus alunos, foi destaque a atleta Rosemarina da Silva, medalha de ouro no Campeonato Brasileiro Norte-Nordeste, em São Luís do Maranhão, em 1982, e Jovandeci de Souza, medalha de ouro nesse mesmo campeonato, sendo o primeiro amazonense a integrar uma seleção brasileira e único atleta do Norte a participar da Copa Jigoro Kano, realizada em comemoração ao centenário de criação do judô, em São Paulo, em 1982.

Em 1974, o campeão brasileiro de judô e peso médio Tetsuo Fujisaka, instalou sua academia no Boulevard Amazonas, onde instruiu milhares de jovens amazonenses, tendo como alunos homens ilustres como os irmãos Monteiro de Paula e Jéferson Praia. Outra academia que foi destaque no Amazonas, foi a Associação Bushidokan de Judô, fundada nos anos 80 e localizada à rua Itamaracá, pelo médico ortopedista Tikara Hajiwara, faixa preta, formado pelo mestre japonês Kokitani.

Nesse mesmo contexto do pioneirismo foi muito importante a atuação da Associação Shogun, fundada em 22 de setembro de 1986, pelos professores Aldemir Duarte e Edval Lago, que foram alunos do professor Dorgival Francisco das Chagas. Por ela passaram milhares de praticantes de judô, principalmente trabalhadores do Distrito Industrial e jovens carentes que não podiam, muitas das vezes, arcar com as despesas e com o rígido treinamento. Outros jovens abnegados deram continuidade ao trabalho desenvolvido pela Shogun, fundando suas respectivas academias, destacando-se entre eles o professor David Azevedo (Associação Glória), o professor Luciano Dias (Associação Kodokan), o professor Lúcio Gláucio Mendonça e o professor Rildo Heros. A célebre Academia Shogun teve também como professor o nissei João Eonezawa, faixa preta segundo Dan, aluno do grande mestre japonês Massao Shinohara, que muito colaborou para o desenvolvimento técnico dos alunos dessa academia.

Em relação ao karatê, outro grande desportista a se destacar nessa arte foi o mestre Kasuteru Noguchi, que chegou ao Amazonas, em 1969, fundando a Academia Oyama de Karatê e Luta de Contato Kyokushin, que funcionou na União Esportiva Portuguesa, à Avenida Joaquim Nabuco, que depois passou para a rua Tarumã. Noguchi é dos fundadores da Federação Amazonense de Karatê e treinou tropas do Exército, da Aeronáutica e da Polícia Militar do Amazonas, do mesmo modo, realizando várias competições na cidade para promover e valorizar esse esporte. Paralelamente a esses eventos, o professor Noguchi também lotava os ginásios esportivos do Olímpico, o Renné Monteiro e o da Escola Técnica, realizando campeonatos que garantiam grandes lutas entre os seus praticantes. Muitos atletas foram destaque nesse período de ouro do karatê, entre eles destacaram-se Takuya Kawada e Zander Sassaki.

Uma modalidade esportiva ligada às artes marciais nipônicas que teve passagem efêmera em Manaus, no início dos anos oitenta, foi o Aikidô, ensinado pelo mestre Fugi. As aulas desse esporte eram realizadas na academia da Portobrás, localizada no centro da cidade. Entretanto, talvez, em razão da sua inexpressiva divulgação, poucas pessoas tiveram acesso à sua prática ou mesmo tendo a oportunidade de conhecer mais profundamente seus enigmas. Dos seus raros alunos, restou apenas a figura solitária do terapeuta, massagista e bancário Alfredo Peroba Jatobá, que montou seu dojô à rua Ramos Ferreira, no centro de Manaus.

Sem dúvida esses abnegados cidadãos deixaram sua indelével contribuição em forma de conhecimentos, inovações e a consolidação da prática de esportes de alto impacto, dois deles, inclusive, são os mais praticados pela juventude amazonense, pois, de acordo com os números de suas respectivas federações, até o ano de 2014, sabia-se da existência de mais de 2.000 academias e de mais de 50.000 praticantes de jiu-jitsu e de judô, no Estado do Amazonas.

Desde 2015, quando a semente foi lançada, quando se está próximo a se comemorar o centenário da primeira luta de jiu-jitsu no Amazonas, os frutos não pararam de se reproduzir. Uma safra de campeões de alto nível nesses esportes surgiu e brilhou nos tatames do mundo todo, engrandecendo o Estado nesse segmento que se tornou uma vasta atividade econômica, movimentando cifras bilionárias pelo mundo todo que é o "bug" desportivo do momento. Personagens como Ajuricaba de Menezes, Osvaldo Alves, Xande Ribeiro, Omar Salum, Ronaldo Jacaré, Bibiano, Paulo Coelho, Fredson Paixão e José Aldo conquistaram o mundo e passaram a chamar a atenção para essa história até então incógnita. E, complementando, segundo palavras do professor Rildo Heros, pesquisador do tema - "Da história, ainda pouco conhecida de Satake e sua escolinha no Rio Negro, às conquistas de amazonenses nos octógonos, Manaus, graças aos viajantes da terra do sol nascente, hoje se confunde com o jiu-jitsu. E o jiu-jitsu com Manaus".


Aguinaldo Nascimento Figueiredo é professor, historiador, escritor e membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), autor dos livros História do Amazonas (2000); Santa Luzia: História e Memória do povo do Emboca (2008); e os Samurais das Selvas: A presença Japonesa no Amazonas (2012).









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