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sábado, 13 de junho de 2020

Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo, em Manaus

Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo. Foto de Euzivaldo Queiroz. FONTE: A Crítica, 13/06/2016.

Hoje, 13 de junho, para os católicos, é dia de Santo Antônio, Santo Antônio de Pádua ou Santo Antônio de Lisboa. O orago de origem portuguesa, a lembrar as raízes lusitanas das crenças brasileiras, muito mais que santo casamenteiro, atribuição pela qual é mais conhecido, é também protetor das mulheres, dos pobres e padroeiro dos objetos perdidos.

Não pretendo falar sobre o Santo, escrever uma Hagiografia. Me interessa, na realidade, uma construção relacionada ao seu culto: A Capela de Santo Santo Antônio do Pobre Diabo, localizada na rua Borba, bairro Cachoeirinha, zona Sul de Manaus, Tombada como Patrimônio Histórico Estadual. O nome ‘Pobre Diabo’ ao lado de ‘Santo Antônio’ é estranho a alguns, geralmente aos que anseiam um catolicismo brasileiro oficial, romanizado. Analisarei as origens do nome ‘Pobre Diabo’, que confunde-se com a construção da capela.

O historiador e folclorista Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004), em seu Roteiro Histórico de Manaus, afirma que essa nomenclatura tem origem popular. Um comerciante português de nome Antônio José da Costa, estabelecido na rua da Instalação, mandou fazer uma tabuleta com a figura de um pobre vestindo trapos, com os dizeres “Ao Pobre Diabo”, uma referência irreverente ao proprietário, que não vendia fiado pois era uma pessoa “pobre”.

Em outra versão, que consta em uma matéria do Diário Oficial do Estado do Amazonas publicada em 11 de junho de 1927 e recuperada pelo pesquisador Durango Martins Duarte no livro Manaus entre o passado e o presente, Antônio José da Costa era sócio de José Joaquim de Souza Júnior. O português, que tinha uma imagem de Santo Antônio em uma das prateleiras do estabelecimento, todos os dias ao fechá-lo dizia: “Meu Santo Antônio, protegei este pobre Diabo” (1). Desfeita a sociedade em 1878, Antônio abriu, na mesma rua, um estabelecimento de nome ‘O Pobre Diabo’. Encontrei, em edição de 26 de fevereiro de 1888 do jornal A Província do Amazonas, um comércio com o nome ‘Pobre Diabo’, localizado na rua da Instalação (2).

Ainda de acordo com essa publicação, Antônio José da Costa mudou-se da rua da Instalação para o bairro da Cachoeirinha, onde adquiriu, em 1896, um terreno na antiga Praça Floriano Peixoto, local onde foi erguida a capela. Mário Ypiranga Monteiro afirma que coube a mulher de Antônio, Cordolina Rosa de Viterbo, financiar a construção da capela dedicada a Santo Antônio, santo de devoção da família, após uma promessa pela recuperação da saúde do marido. Ao nome de Santo Antônio uniu-se o termo Pobre Diabo, possivelmente por lembrança dos dizeres diários do comerciante ou pelo nome de seu antigo comércio. Ao que tudo indica, a construção data de 1897, como consta em matéria daquele ano publicada no Jornal do Amazonas e transcrita por Mário Ypiranga:

A muito conhecida e laboriosa Sra. D. Cordolina Rosa de Viterbo tendo feito erigir à sua custa no bairro da Cachoeirinha, Praça Floriano Peixoto, desta capital, uma pequena e elegante capela, sob a invocação do glorioso Santo Antônio, estava disposta a mandar benzê-la no dia 15 de agosto deste ano, a fim de mais realçar as festas desta data memorável para o Estado do Pará, de onde é natural a referida senhora, entendendo, porém, a que os nossos irmãos brasileiros estão presentemente expondo a sua vida pela pátria, onde o fanatismo faz milhares de vidas, resolveu adiar a benção da capela para outro dia que será previamente anunciado” (3).

O antropólogo Manoel Nunes Pereira (1893-1985), no texto Igrejas de Manaus, publicado em 1938 na Revista da Semana, do Rio de Janeiro, registrou que a Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo despertava a curiosidade em quem visitava a cidade: “- Olhe só… O Pobre Diabo aqui tem sua igreja! E entrechocam-se os mais espirituosos e irreverentes commentarios” (4).

A Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo em 1938. FONTE: PEREIRA, Manoel Nunes. Igrejas de Manaus. Revista da Semana, RJ, anno XXXIX, N. 7, 22/01/1938, p. 16.

Nunes Pereira adverte os leitores de que apenas o bairro em que estava a capela (Cachoeirinha), é que pertencia ao Diabo, “a igreja, entretanto, pertence ao orago portuguez, miraculosamente casamenteiro”. “Durante os festejos anuais, que se realizam na referida igreja”, escreve Pereira com uma leve dose de humor, “o Pobre Diabo até fica do lado de fóra, com os joelhos na poeira humilde do arraial. Lá dentro officia o padre, acolytos agitam thuribulos, cantôras sacras elevam hymnos, mas ao pobre diabo só é permittido bater no peito, contrictamente” (5).

O nome Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo é contemporâneo à construção. Em uma nota publicada no Jornal do Commercio em 29 de maio de 1910, informava-se que o serviço de bondes seria reforçado aos domingos, desde as 15 horas, com mais de um bonde e dois reboques, por ocasião da realização da “Festa de Santo Antônio do Pobre Diabo” (6).

Além do nome pitoresco, a capela também foi palco de acontecimentos um tanto curiosos. Em 1907, Bibiano de Oliveira Costa, praticante da Marinha Mercante, tinha encontros amorosos com a jovem Maria da Costa Carneiro, de 16 anos, no interior desse templo. A mãe de Maria, Felizarda da Costa Carneiro, descobrindo o relacionamento e sentindo-se ofendida por ele ocorrer dentro de um lugar sagrado, denunciou Bibiano ao Delegado do 2° Distrito, Elviro Dantas, que o prendeu no dia 11 de abril de 1907. Preso, Bibiano disse que pediria Maria da Costa Carneiro em casamento. O Delegado, então, determinou que a união fosse realizada no dia seguinte (7). Santo Antônio, indiretamente, concretizou um enlace matrimonial, ainda que em circunstâncias pouco formais.

O nome Santo Antônio do Pobre Diabo é uma característica do Catolicismo popular brasileiro, que foi se desenvolvendo à margem do poder institucionalizado, maleável e influenciado por elementos do meio em que se estabeleceu. Ao nome do santo lusitano uniu-se o de ‘Pobre Diabo’, surgindo daí algo novo, único em nossa cidade, estranho aos mais conservadores mas acessível aos grupos populares e por eles já incorporado.

Salve Grande Antônio. Salve Santo Antônio do Pobre Diabo...


NOTAS:

(1) DUARTE, Durango Martins. Manaus entre o passado e o presente. Manaus: Ed. Mídia Ponto Comm, 2009, p. 140.

(2) Agências. A Província do Amazonas, 26/02/1888, p. 01.

(3) O jornal se refere à Guerra de Canudos. MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1998 Apud MONTEIRO, Mário Ypiranga. Capela do Pobre Diabo.  Manaus: Governo do Estado do Amazonas/Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto, 3° Edição, nov/1999 (Série Memória 1).

(4) PEREIRA, Manoel Nunes. Igrejas de Manaus. Revista da Semana, RJ, anno XXXIX, N. 7., 22/01/1938, p. 16.

(5) Ibid, p. 16.

(6) Festa de Santo Antônio do Pobre Diabo. Serviço de Bondes. Jornal do Commercio, 29/05/1910, p. 02.

(7) Cupido e… polícia. Travessuras e casório. Jornal do Commercio, 12/04/1907, p. 01.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DUARTE, Durango Martins. Manaus entre o passado e o presente. Manaus: Ed. Mídia Ponto Comm, 2009.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Capela do Pobre Diabo.  Manaus: Governo do Estado do Amazonas/Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto, 3° Edição, nov/1999 (Série Memória 1).

PEREIRA, Manoel Nunes. Igrejas de Manaus. Revista da Semana, RJ, anno XXXIX, N. 7., 22/01/1938, p. 16.

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Ao Pobre Diabo


Hoje, 13 de junho, para os católicos, é dia de Santo Antônio, Santo Antônio de Pádua ou Santo Antônio de Lisboa. O orago de origem portuguesa, a lembrar as raízes lusitanas das crenças brasileiras, muito mais que santo casamenteiro, atribuição pela qual é mais conhecido, é também protetor das mulheres, dos pobres e padroeiro dos objetos perdidos.

Não pretendo falar sobre o santo, escrever uma hagiografia. Me interessa, na realidade, uma construção relacionada ao culto desse santo popular: A Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo, localizada na rua Borba, bairro Cachoeirinha, zona Sul de Manaus. O nome 'Pobre Diabo' ao lado de 'Santo Antônio' é estranho a alguns, geralmente aos que anseiam um catolicismo brasileiro oficial, romanizado. Analisarei as origens do termo 'Pobre Diabo', que confunde-se com a construção da capela.

O historiador e folclorista Mário Ypiranga Monteiro, no livro Roteiro Histórico de Manaus, afirma que essa nomenclatura tem origem popular. Um comerciante português de nome Antônio José da Costa, dono de um estabelecimento na rua da Instalação, mandou fazer uma tabuleta com a figura de um pobre vestindo trapos, com a legenda 'Ao Pobre Diabo', uma referência irreverente ao comerciante, que não vendia fiado pois era um pobre Diabo.

Em outra versão, que consta em uma matéria do Diário Oficial do Estado publicada em 11 de junho de 1927, recuperada pelo pesquisador Durango Duarte no livro Manaus: entre o passado e o presente, Antônio José da Costa era sócio de José Joaquim de Souza Júnior. O português, todos os dias ao fechar o comércio, dizia: "Meu Santo Antônio, protegei este pobre diabo". Desfeita a sociedade em 1878, Antônio abriu, na mesma rua, um estabelecimento com o nome O Pobre Diabo. Encontrei, em edição do jornal A Província do Amazonas, de 26 de fevereiro de 1888, um estabelecimento com o nome 'Pobre Diabo', localizado na rua da Instalação (1).

Ainda de acordo com essa matéria, Antônio José da Costa mudou-se da rua da Instalação para o bairro da Cachoeirinha, onde adquiriu um terreno na extinta Praça Floriano Peixoto, local onde foi erguida a capela. De acordo com Mário Ypiranga, coube a mulher de Antônio, Cordolina Rosa de Viterbo, financiar a construção da capela, dedicada a Santo Antônio, santo de origem portuguesa, a mesma de seu falecido marido. Ao santo uniu-se o termo Pobre Diabo, talvez por lembrança dos dizeres diários do comerciante ou pelo nome de seu antigo estabelecimento. Ao que tudo indica, a construção data de 1897, conforme matéria do Jornal do Amazonas recuperada por Mário Ypiranga: 

"A muito conhecida e laboriosa Sra. D. Cordolina Rosa de Viterbo tendo feito erigir à sua custa no bairro da Cachoeirinha, Praça Floriano Peixoto, desta capital, uma pequena e elegante capela, sob a invocação do glorioso Santo Antônio, estava disposta a mandar benzê-la no dia 15 de agosto deste ano, a fim de mais realçar as festas desta data memorável para o Estado do Pará, de onde é natural a referida senhora, atendendo, porém, a que os nossos irmãos brasileiros estão presentemente expondo a sua vida pela pátria, onde o fanatismo faz milhares de vidas (2), resolveu adiar a benção da capela para outro dia que será previamente anunciado" (3).

O nome Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo é contemporâneo à construção. Em uma nota publicada no Jornal do Comércio em 29 de maio de 1910, informava-se que o serviço de bondes seria reforçado aos domingos, desde as 15:00 horas da tarde, com mais de um bonde e dois reboques, por ocasião da realização da "Festa de Santo Antônio do Pobre Diabo" (4). 

Além do nome pitoresco, a capela também foi palco de alguns acontecimentos um tanto curiosos. Em 1907, Bibiano de Oliveira Costa, praticamente da Marinha Mercante, namorava a jovem Maria da Costa Carneiro, de 16 anos, na Capela do Pobre Diabo. A mãe da jovem, Felizarda da Costa Carneiro, sabendo do relacionamento e sentindo-se ofendida (possivelmente pela idade da filha e também pelo local onde ocorrera o encontro amoroso) denunciou Bibiano ao delegado do 2° Distrito, Elviro Dantas, que prendeu o jovem. Preso, Bibiano disse que pediria Maria da Costa Carneiro em casamento. O delegado determinou que a união fosse realizada em 12 de abril de 1907 (5). Santo Antônio, indiretamente, concretizou um enlace matrimonial, ainda que em circunstâncias pouco formais.

O nome Santo Antônio do Pobre Diabo é uma característica do catolicismo popular brasileiro, que foi se desenvolvendo à margem do poder institucionalizado, maleável e influenciando por elementos do meio em que se estabelece. Ao nome do santo lusitano uniu-se o termo 'Pobre Diabo', surgindo algo novo, único em nossa cidade, estranho aos mais conservadores mas acessível aos grupos populares e por eles já incorporado. Salve Grande Antônio, Salve Santo Antônio do Pobre Diabo.


NOTAS:


(1) A Província do Amazonas, 26/02/1888.

(2) O jornal se refere a Guerra de Canudos.

(3) Jornal do Amazonas, 12/08/1897. In: MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1998.

(4) Jornal do Comércio, 29/05/1910.

(5) Jornal do Comércio, 12/04/1907.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1998.


DUARTE, Durango. Manaus: entre o passado e o presente. Manaus: Ed. Mídia Ponto Comm, 2009.


CRÉDITO DAS IMAGENS:


Santo Antônio com o Menino Jesus. Pintura de Stephan Kessler. Commons.wikimedia.org

Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo, no bairro da Cachoeirinha. Manausagil.com

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Apropriações e conquistas simbólicas do Cristianismo

Neste mosaico, da cidade de Ravena, Jesus é retratado como um Imperador Romano, utilizando vestes militares. Em uma mão carrega um báculo, na outra, as Sagradas Escrituras.

O Cristianismo é hoje a religião com o maior número de adeptos no mundo. Dos praticantes aos não praticantes, ele se encontra presente desde as pequenas vilas nos Andes até as grandes metrópoles da Europa. Foi um longo trajeto, desde a Antiguidade, até que essa religião com raízes no Oriente chegasse a essa posição, com seus agentes encontrando diferentes formas para sua expansão. Uma das mais conhecidas foi a apropriação de certos elementos do mundo pagão de forma a subvertê-los à nova realidade cristã, para atingir o maior número possível de pessoas, o que acarretou em verdadeiras conquistas simbólicas. O inverso também ocorreu, com o Estado Romano procurando formas de se associar ao novo culto para garantir uma ínfima sobrevida de suas já desgastadas estruturas. Nesse texto, destaco alguns exemplos, da Antiguidade, da Idade Média e da Idade Contemporânea, de apropriações e conquistas simbólicas do Cristianismo.

O Cristianismo se tornou, em 392, a única religião legalmente praticável no Império Romano. Os imperadores depois de Constantino, com exceção de Juliano, que tentou reavivar os cultos pagãos, realizavam doações em dinheiro, terras e financiavam a construção de basílicas em Roma e outras cidades importantes do Império. Essas medidas visavam a incorporação da população cristã ao Império, evitando assim qualquer tumulto desta, tendo em vista a delicada situação interna pela qual Roma passava pelo menos desde o início do século III. O Cristianismo tinha, agora, um terreno favorável para se expandir pelo Império Romano e outras áreas fronteiriças.

Para atingir ideologicamente a população e, como ocorrera antes com o paganismo, legitimar o poder, os imperadores passaram a associar suas imagens com a de Jesus Cristo. Dessa época existe uma rica iconografia que atesta essa associação. Na primeira imagem, um mosaico da cidade de Ravena, temos Jesus Cristo retratado como um imperador, usando vestes militares ao gosto romano. Segurando um báculo, insígnia dos bispos, traz na outra mão as sagradas escrituras, com os dizeres latinos Ego sum via, veritas et vita, que significam Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Em outras ocasiões, em painéis de marfim ou em mosaicos, esses mesmos imperadores eram representados sendo arrebatados por Deus, em famosas representações de apoteoses. Os romanos mais abastados tinham gravados em seus mausoléus cenas bíblicas como a expulsão do Éden, o martírio dos apóstolos e a ressurreição de Cristo.

Detalhe do Sarcófago de Júnio Basso, senador romano do século IV d.C., mostrando Jó e Adão e Eva no Paraíso.

Um pouco distante da vida política do Império, figuras do antigo panteão greco-romano também eram incorporadas e associadas aos simbolismos e práticas cristãs. Orfeu, personagem da mitologia grega que era médico e poeta, foi inúmeras vezes associado à figura de Jesus, do Bom Pastor e do Rei Davi. Orfeu desafiou a morte indo ao submundo e ficando diante de Hades, Deus do submundo e dos mortos. Jesus, na Bíblia, ressuscitou após três dias de sua morte. A passagem nas escrituras que melhor explica esse momento é: "E ele pôs sobre mim a sua destra, dizendo-me: Não temas; eu sou o Primeiro e o Último; e o que vive; fui morto, mas eis que aqui estou vivo para todo o sempre. Amém! E tenho as chaves da morte e do inferno." (Apocalipse 3.18). Orfeu e Jesus Cristo, duas personagens que escaparam da morte.

A lira de Orfeu tinha o poder de apaziguar a mais selvagem das feras, o que fazia os cristãos lhe associarem a Jesus e seu poder sobre a natureza e ao Bom Pastor que cuida de seu rebanho. O Rei Davi […] “quando o espírito maligno vinha sobre Saul, tomava a harpa, e a tocava com a sua mão; então Saul sentia alívio, e se achava melhor, e o espírito maligno se retirava dele” (1Sm 16.23). A harpa de Davi tinha as mesmas propriedades da lira de Orfeu. O mosaico abaixo, datado do século V, encontra-se no interior de uma igreja cristã de Jerusalém. Nele vemos, no centro, Orfeu tocando sua lira enquanto acalma algumas feras ao seu redor, incluindo o Deus Pã e um sátiro.

Mosaico do século V d.C. localizado no interior de uma igreja cristã de Jerusalém. No centro, Orfeu toca sua lira para apaziguar as feras ao seu redor, incluindo o Deus Pã e um sátiro.

Mais afastado do centro do antigo Império Romano no Ocidente, já na Idade Média, no Norte da Europa, o Cristianismo já não tinha mais como ameaça os romanos. O inimigo agora era outro: Os bárbaros germânicos que começavam a atravessar as fronteiras e a entrar em contato com outros povos, eram em sua maioria pagãos ou cristãos arianos. Esses povos eram, de acordo com os escritos de Orósio, genuinamente pagãos, pois viviam nos campos onde realizavam seus cultos rurais.

Tornou-se necessária a dessacralização da natureza e a valorização do elemento humano. O culto dos santos cumpre a função de substituir os antigos elementos pagãos presentes na natureza. O culto dos santos se mostra uma arma poderosa na luta contra o paganismo, pois torna o processo de conversão mais maleável, dessacralizando antigos símbolos pagãos e substituindo-os por imagens cristãs. São frequentes as iconografias de santos abatendo bestas como dragões, serpentes etc. O ato mais simbólico foi a derrubada, por São Bonifácio, no ano de 723, do Carvalho de Thunor (Thor), o Deus nórdico dos trovões e das batalhas. Da madeira da árvore Bonifácio construiu uma capela consagrada a São Pedro, o que marca o início da conversão da Germânia ao Cristianismo.

Gravura do século XVIII representando São Bonifácio derrubando o Carvalho de Thunor (Thor).

Na Idade Moderna, inúmeros territórios foram conquistados em nome da Coroa e da Igreja, ou de la espada e la cruz, como bem escreveu Ruggiero Romano, destacando a aliança militar e espiritual da conquista da América. Os ídolos maias, incas e astecas foram substituídos por imagens sacras de Santiago Apóstolo, Virgem Maria e Jesus Cristo. Boa parte das cidades coloniais foram erguidas sobre antigos templos nativos e cemitérios indígenas. A Catedral Metropolitana da Cidade do México, símbolo do poder espiritual cristão no continente, foi erguida sobre os escombros de um templo asteca.

Esse processo de apropriação, que leva à conquista simbólica, também ocorre entre diferentes vertentes do Cristianismo. Curiosamente, caminhando por meu bairro, me deparo com um arraial sendo realizado em uma Igreja mórmon de nome Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Era final de julho, fora da época dos festejos. Nenhuma menção a São Pedro, Santo Antônio e São João, nem de frases como anarriê, alavantú, balancê. O arraial foi apropriado do Catolicismo, este tendo apropriado a festa do paganismo, com a exclusão de vários elementos, preservando apenas o caráter popular da festa, que sempre atrai grande público. Essas apropriações parecem ser válidas a partir do momento em que são dados novos significados para antigos elementos e estes passam a contribuir para o fortalecimento e crescimento da religião.


FONTES:

_____Bíblia Sagrada. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/

_____Impérios sitiados (200-600) - O declínio romano, Renovação no Oriente Médio, Reinos chineses em tumulto e um vigoroso Novo Mundo. Tradução de Pedro Maia Soares. Rio de Janeiro, Editora Cidade Cultural, 1990. (Coleção História em Revista).

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo Editora, 2006.

ROMANO, Ruggiero. Os Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo, Editora Perspectiva, 1972. (Coleção Kronos).

CRÉDITO DAS IMAGENS:

commons.wikimedia.org
Rijksmuseum van Oudheden - Museu Real de Antiguidades dos Países Baixos

terça-feira, 30 de maio de 2017

500 anos da Reforma Protestante: Discursos sobre o movimento

Estátua de Martinho Lutero, em Washington (EUA). Obra do escultor alemão Ernst Friedrich August Rietschel (1884).

O presente texto, simples e livre de qualquer formalidade, não se pretende ser mais uma explicação sobre os processos que culminaram na Reforma Protestante, mas sim uma discussão sobre os reflexos desse evento em discursos contemporâneos, estando inserido no campo das mentalidades formadas sobre a Reforma, que completa 500 anos em 2017.

Sábado, 20 horas. Mudando aleatoriamente de canais, paro em um programa de uma emissora Protestante. Na pauta, dirigida pelo apresentador na companhia de dois teólogos, os 500 anos de um dos eventos mais importantes da Era Moderna: A Reforma Protestante. São cinco séculos de um movimento que moldou de forma significativa o panorama político e religioso do Ocidente e, dadas as influências posteriores, o mundo de forma geral.

No horário, o programa já estava bastante adiantado, mas o que foi assistido serviu de fonte para a produção desse artigo. Os dois teólogos afirmavam, com alegria, que “Lutero libertou a Europa da tirania da Igreja Católica” e que o “movimento renovou o Cristianismo”. Afirmações essas feitas com uma vivacidade que poderia fazer pensar se esses convidados não estiveram em Wittenberg, na Alemanha, em 1517, ajudando o monge agostiniano na propagação de suas ideias.

Uma semana depois, na universidade, ouvi nos corredores uma conversa entre dois estudantes. Ao que tudo indica, católicos praticantes, tanto pelo tom da conversa quanto pelos adereços, bótons de santos e terços. Um dizia que Lutero era um “herege” que dividiu o Cristianismo. Outro, no mesmo tom, via naquele monge agostiniano a figura que contribuiu para a proliferação de inúmeras “seitas sem unidade” que se arrastam até os dias de hoje. Bem que esses dois poderiam estar, em 1517, do alto do Castelo de Wittenberg vendo, sob protestos, Lutero pregar as 95 teses na porta da Igreja.

São comentários interessantes, um mais caloroso que o outro, mostrando como um evento de 500 anos permanece “vivo” na mente e no discurso de seus favoráveis e opositores do século XXI. A História é o campo de combate da memória. Ganha, geralmente, aquele que está atrelado ao Estado e às mais altas posições. No entanto, não estamos falando de grupos pequenos que lutam por suas memórias, mas sim de duas grandes e poderosas ramificações do Cristianismo, com milhões de adeptos ao redor do mundo. É uma disputa que parte do alto, disputa essa com reações imediatas ao evento.

Em fevereiro de 1518, o Papa Leão X, a pedido da Ordem dos Agostinianos, pediu para que as ideias de Lutero parassem de ser difundidas. O teólogo italiano Silvestro Mazzolini da Priero redigiu Um Diálogo contra as Teses Presuntivas de Martinho Lutero sobre o Poder do Papa. João Maier, amigo de Lutero, escreveu teses contra suas ideias, o considerando um herege estúpido, o que terminou por iniciar uma disputa teológica, o famoso Debate de Leipzig, que terminou sem vencedores. Por último, Martinho Lutero foi excomungado da Igreja Católica em 1521, quando queimou a Bula que oferecia ou a retratação ou a excomunhão.

Vejamos o que diz o padre Paulo Ricardo, figura famosa no meio religioso católico, no texto Por que não sou Protestante? Sobre a Reforma Protestante e seus agentes: “Os reformadores protestantes, como Martinho Lutero, João Calvino e Ulrich Zwinglio, vendo a triste situação em que se encontravam os homens da Igreja, quiseram empreender uma mudança, mas, no fim, acabaram mutilando a Igreja”. Conclusões semelhantes às dos dois estudantes anteriormente citados.

Para o pastor Paulo Júnior, em O que foi a Reforma Protestante? Afirma que “em uma época que o povo comum era privado da leitura das Escrituras e o papa liderava a cristandade com mãos de ferro, Lutero foi uma voz levantada por Deus para dar início a uma completa revolução espiritual na Alemanha. Lutero combateu os vários desvios doutrinários de sua época praticados pela Igreja Católica Romana, condenou veementemente a venda de indulgências, traduziu a Bíblia para o alemão e a colocou nas mãos do povo comum. Enfim, inflamou o coração de seus irmãos a uma busca sincera por Deus e o Cristianismo autêntico”.

Diferentes discursos, alguns do século XVI, outros do século XXI. Mesmo com inúmeros séculos de diferença entre uns e outros, eles possuem o mesmo objetivo: defender determinada visão de mundo. Os teólogos não estavam ao lado de Lutero na hora de fixar as 95 teses na porta da Igreja, nem os estudantes estavam do alto do castelo protestando contra a ação desse monge. Essas pessoas apenas defendem aquilo que lhes foi transmitido de determinada forma, oral ou escrita, dentro de uma visão religiosa de mundo. O curioso é observar como 500 anos depois o evento permanece vivo por meio da mentalidade e dos discursos sobre ele formados e propagados. É como se a qualquer momento Lutero ou o Papa Leão X fossem ressurgir e fazer uma observação: “não foi assim, pois eu estava lá”…


FONTES:

RICARDO, Paulo Pe. Por que não sou protestante? Disponível em: https://padrepauloricardo.org/episodios/por-que-nao-sou-protestante. Acesso em 28/05/2017.

JÚNIOR, Paulo Pr. O que foi a Reforma Protestante? Disponível em: https://defesadoevangelho.com.br/videos/o-que-foi-reforma-protestante/. Acesso em 28/05/2017.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

commons.wikimedia.org


quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Catolicismo Popular no Brasil

Imagens de Santo Antônio e São João Batista, santos populares no Brasil.

Esse pequeno texto faz parte do artigo Fragmentos de objetos, costumes e crendices antigas em Manaus, ainda não publicado.

O português e o espanhol trouxeram para a América o catolicismo. Nessa parte do Atlântico essa religião se desenvolveu de forma curiosa: mesclaram-se às raízes da tradição cristã ibérico romana, ainda com fortes traços medievais de influência pagã e maometana, as crenças dos nativos e, mais tarde, dos escravos africanos. Por mais que os conquistadores tentassem suprimir os credos dos outros dois grupos, o sincretismo, lentamente forjado em uma relação nem sempre amistosa de séculos, já havia ocorrido. Surgiu algo novo, outro catolicismo, o popular. Os moradores de povoados, vilas e poucas cidades existentes na América Portuguesa, distantes do centro de poder de Roma, se apegam mais à devoção do que ao sacramento.

O atual Rio de Janeiro um dia foi São Sebastião do Rio de Janeiro. A primeira cidade da colônia foi consagrada ao padroeiro de Lisboa, São Vicente. A fortaleza que deu origem à Manaus foi construída entre 1669-1670, sob a “invocação de Jesus, Maria e José” (MONTEIRO, 1995, p. 25), a Sagrada Família, e ficou conhecida como Fortaleza de São José da Barra. Em 1695, os padres carmelitas constroem uma pequena igreja ao lado do forte, consagrando o templo e a localidade à Nossa Senhora da Conceição. São Sebastião, São Vicente, Sagrada Família, São José da Barra e N. S. da Conceição da Barra, referências e oragos do catolicismo lusitano implantado no litoral e na região amazônica. De acordo com o Banco de Nomes Geográficos do Brasil, do IBGE, uma em cada 9 cidades brasileiras têm nome de santo, sendo 652 dos 5.565 municípios. Os mais citados, por ordem, são: São José (60), São João (54), Santo Antônio (38) e São Francisco (27)4.

O leigo (a) é a autoridade do culto popular. Existiam, claro, padres, freis e monges, mas o catolicismo foi transmitido por pessoas não ligadas ao poder eclesiástico, mas conhecedoras, ao seu modo rústico, das práticas religiosas. Herdeiras dos primeiros tempos da religião na América Portuguesa, são as rezadeiras e benzedeiras que ainda existem nas regiões Norte e Nordeste, que transitam entre a linha da religião, invocando os nomes de Jesus e santos, e do conhecimento nativo, buscando na mistura de ervas e plantas panaceias para todas as dificuldades. Iemanjá, divindade do Candomblé e da Umbanda, tem seu par na figura de Nossa Senhora dos Navegantes; e a lavagem das escadarias da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, na Bahia, é realizada por mães de santo e filhas de santo (RIBEIRO, 2012, p. 18). Essa é uma característica da ausência do poder institucionalizado, que permite o surgimento de uma religião maleável e mais acessível às massas. Semelhante aos cultos fenícios e greco-romanos é a prática do ex-voto suspecto, o voto realizado, que consiste em deixar objetos para os santos como agradecimentos por graças alcançadas.

O santo tem papel de destaque na vida religiosa. Tudo gira em torno de sua figura. Oratórios, capelas e santuários são construídos com a ajuda da comunidade para honrá-lo. Esses templos movimentam as massas devotas e concentram em si a vida econômica e social, com a realização de arraiais, feiras e quermesses em seus terrenos ou arredores. As principais cidades do Nordeste se transformam durante os festejos de junho para São João, São Pedro e Santo Antônio. Deus é o ser supremo, representado como Senhor Bom Jesus, Divino Pai Eterno e Divino Espírito Santo. Não existe um culto específico para ele, pois os santos cumprem o papel da intercessão divina. Jesus, filho do criador

[…] é o protótipo dos santos: bom e justo, ele sofre sem ter pecado, e por esse sofrimento ele ganha a misericórdia divina para com os homens. Sua representação popular é, pois, a representação do sofredor: o Crucificado, o Senhor morto, o Jesus da Paixão. Só a partir da ‘romanização’ se introduz a representação de Jesus glorioso, Cristo-Rei, do Jesus suave e manso, como o Menino Jesus e Sagrado Coração de Jesus. Basta lembrar que a grande festa do catolicismo popular não é a Páscoa e nem mesmo o Natal, mas a Sexta-Feira Santa, a Sexta-feira da Paixão. Assim como Jesus sofreu, aceitando como resignação as provações que Deus lhe mandou, também os santos sofreram cada qual as suas provações, tendo assim provado diante de Deus sua conformidade com o que lhes mandava. Também os homens têm que se conformar com a sorte que Deus lhe deu, vivendo em fidelidade aos mandamentos de Deus sem jamais amaldiçoar sua vida5.

A relação com as imagens sacras é íntima e mistura superstições variadas. Santo Antônio, o casamenteiro, quando intercede e não encontra um parceiro, é congelado e posto de cabeça para baixo em um copo d' água. São Longuinho ganha “três pulinhos” se ajudar a encontrar um objeto perdido. Quando ajudam são recompensados e, quando não, ficam de castigo. Em cantiga vinda da antiga freguesia de Monsanto, em Portugal, São José ajuda a embalar uma criança para o sono6: 

José, embala o Menino,
Com a mão, nanja co pé,
O menino que ali vês
É Jesus de Nazaré.
Cantai, anjos, ao Menino,
Que a Senhora logo vem,
Foi lavar os cueirinhos
À ribeira de Belém

São amigos próximos mas também podem ser tratados como crianças birrentas. Os santos curam e ajudam nos problemas do cotidiano, bem como protegem a casa, a rua e o comércio. O catolicismo popular é um dos exemplos mais significativos de como se desenvolveu a sociedade na América Portuguesa e, mais tarde, no Brasil. Uma religião milenar, já transformada em sua região de origem, se aclimatou nos trópicos, onde também recebeu outras influências e se transformou em algo novo, expressão de uma sociedade desigual e culturalmente multifacetada.

NOTAS:

4 Uma em cada nove cidades do país tem nome de santo. Disponível em g1.globo.com/brasil/noticia/2011/09/uma-em-cada-nove-cidades-do-pais-tem-nome-de-santo.html. Acesso em 17/01/2017.
5 OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Religião e dominação de classe: gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Vozes, Petrópolis, 1985, p. 112.
6 José embala o menino In: Pires, A. Tomás. Cantos Populares Portuguezes (em Português). 1 ed. Elvas: Tipografia Progresso, 1902. vol. I.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fundação de Manaus. São Paulo, Editora Metro Cúbico, 4° ed, 1995.

RIBEIRO, Josenilda Oliveira. Sincretismo religioso no Brasil: Uma análise histórica das transformações no catolicismo, evangelismo, candomblé e espiritismo. UFPE, 2012.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

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segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

São Lázaro, o padroeiro do meu bairro

A palavra padroeiro tem origem no latim Patronus, que significa “defensor, protetor”, derivado de Pater, “pai”. O Santo Padroeiro de uma vila, povoado ou cidade, tem por objetivo a proteção do local a que foram dedicados e a intercessão entre o homem e o Criador. Na Idade Média conferiam prestígio às suas paróquias e cidades, que recebiam peregrinos de várias regiões em busca de contato com as relíquias e imagens divinas. Nas Sagradas escrituras, personagens que morreram puros no Senhor e alcançaram o Céu, continuam a interceder pelos vivos. Durante as perseguições a cristãos nos tempos do Império Romano, um grande número de pessoas que morreram em nome da fé foram aos poucos canonizadas pela Igreja Católica.

Manaus, fundada provavelmente em 1669, no entorno do Forte de São José da Barra, teve como primeira religião o Catolicismo, implantado na região através dos conquistadores portugueses. Essa religião viria a dominar por séculos a evolução da cidade. A primeira ermida construída na povoação foi consagrada à Nossa Senhora da Conceição; as primeiras ruas receberam o nome de Deus padre, Deus Filho e Deus Espírito Santo; os primeiros bairros foram São Vicente de Fora, uma homenagem ao santo padroeiro de Lisboa; e Espírito Santo, terceira pessoa da Santíssima Trindade. A escolha de um Santo Padroeiro é uma herança política e cultural dos tempos do Império Português, que assim dividia (a divisão ainda existe) suas freguesias em Portugal.

Lázaro era membro de uma família abastada da Palestina, e vivia com suas duas irmãs, Marta e Maria, em uma aldeia de Israel chamada Betânia (atualmente localizada na Cisjordânia), que junto da aldeia de Betfagé, era o último ponto de descanso para quem subia à cidade por Jericó. Betânia estava distante 3 km a leste de Jerusalém e do Monte das Oliveiras, um dos muitos lugares de transmissão dos ensinamentos de Jesus Cristo.

Os três irmãos tinham uma forte amizade com Jesus, tendo o hospedado muitas vezes em sua casa. Jesus ficou hospedado nos dias que antecederam a Paixão, do Domingo de Ramos até o dia de sua prisão. Além da relação que tinha com Cristo, a figura de Lázaro tornou-se importante para a História do Cristianismo pois este, após a morte, foi ressuscitado por seu amigo. Desde os primeiros séculos do mundo cristão o túmulo de Lázaro se converteu em local de devoção, tendo sido erguido, no século IV de nossa era, um santuário em seu redor.

De acordo com a Bíblia (compilação abaixo produzida pela Ordem Militar e Hospitalar de São Lázaro de Jerusalém – Grão Priorado de Portugal), no Evangelho segundo João, a história do milagre de Lázaro ocorreu da seguinte forma:

Lázaro caiu doente em Betânia, onde estavam Maria e sua irmã Marta. Maria era quem ungira o Senhor com o óleo perfumado e lhe enxugara os pés com os seus cabelos. E Lázaro, que estava enfermo, era seu irmão. Suas irmãs mandaram, pois, dizer a Jesus: Senhor, aquele que tu amas está enfermo. A estas palavras, disse-lhes Jesus: Esta enfermidade não causará a morte, mas tem por finalidade a glória de Deus. Por ela será glorificado o Filho de Deus. (João 11, 1-4)

Ora, Jesus amava Marta, Maria, sua irmã, e Lázaro. Mas, embora tivesse ouvido que ele estava enfermo, demorou-se ainda dois dias no mesmo lugar. Depois, disse a seus discípulos: Voltemos para a Judéia. Mestre, responderam eles, há pouco os judeus queriam-te apedrejar, e voltas para lá? Jesus respondeu: Não são doze as horas do dia? Quem caminha de dia não tropeça, porque vê a luz deste mundo. Mas quem anda de noite tropeça, porque lhe falta a luz. Depois destas palavras, ele acrescentou: Lázaro, nosso amigo, dorme, mas vou despertá-lo. Disseram-lhe os seus discípulos: Senhor, se ele dorme, há-de sarar. Jesus, entretanto, falara da sua morte, mas eles pensavam que falasse do sono como tal. Então Jesus lhes declarou abertamente: Lázaro morreu. Alegro-me por vossa causa, por não ter estado lá, para que creiais. Mas vamos a ele. A isso Tomé, chamado Dídimo, disse aos seus condiscípulos: Vamos também nós, para morrermos com ele. (João 11, 5-16)

À chegada de Jesus, já havia quatro dias que Lázaro estava no sepulcro. Ora, Betânia distava de Jerusalém cerca de quinze estádios. Muitos judeus tinham vindo a Marta e a Maria, para lhes apresentar condolências pela morte de seu irmão. (João 11, 17-19)

Mal soube Marta da vinda de Jesus, saiu-lhe ao encontro. Maria, porém, estava sentada em casa. Marta disse a Jesus: Senhor, se tivesses estado aqui, o meu irmão não teria morrido! Mas sei também, agora, que tudo o que pedires a Deus, Deus to concederá. Disse-lhe Jesus: Teu irmão ressurgirá. Respondeu-lhe Marta: Sei que há-de ressurgir na ressurreição no último dia. Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá. Crês nisto? Respondeu ela: Sim, Senhor. Eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, aquele que devia vir ao mundo. A essas palavras, ela foi chamar sua irmã Maria, dizendo-lhe baixinho: O Mestre está aí e chama-te. Apenas ela o ouviu, levantou-se imediatamente e foi ao seu encontro. (Pois Jesus não tinha chegado à aldeia, mas estava ainda naquele lugar onde Marta o tinha encontrado.) Os judeus que estavam com ela em casa, em visita de pêsames, ao verem Maria levantar-se depressa e sair, seguiram-na, crendo que ela ia ao sepulcro para ali chorar. Quando, porém, Maria chegou onde Jesus estava e o viu, lançou-se aos seus pés e disse-lhe: Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido! Ao vê-la chorar assim, como também todos os judeus que a acompanhavam, Jesus ficou intensamente comovido em espírito. E, sob o impulso de profunda emoção, perguntou: Onde o pusestes? Responderam-lhe: Senhor, vinde ver. Jesus pôs-se a chorar. Observaram por isso os judeus: Vede como ele o amava! Mas alguns deles disseram: Não podia ele, que abriu os olhos do cego de nascença, fazer com que este não morresse? (João 11, 20-37).

Tomado, novamente, de profunda emoção, Jesus foi ao sepulcro. Era uma gruta, coberta por uma pedra. Jesus ordenou: Tirai a pedra. Disse-lhe Marta, irmã do morto: Senhor, já cheira mal, pois há quatro dias que ele está aí… Respondeu-lhe Jesus: Não te disse eu: Se creres, verás a glória de Deus? Tiraram, pois, a pedra. Levantando Jesus os olhos ao alto, disse: Pai, rendo-te graças, porque me ouviste. Eu bem sei que sempre me ouves, mas falo assim por causa do povo que está em roda, para que creiam que tu me enviaste. Depois destas palavras, exclamou em alta voz: Lázaro, vem para fora! E o morto saiu, tendo os pés e as mãos ligados com faixas, e o rosto coberto por um sudário. Ordenou então Jesus: Desligai-o e deixai-o ir. Muitos dos judeus, que tinham vindo a Marta e Maria e viram o que Jesus fizera, creram nele. (João 11, 38-45).

No bairro São Lázaro, o dia do santo é comemorado com uma série de atividades que incluem missas, arraial e a procissão que percorre as principais ruas da comunidade, entre os dias 02 e 10 de fevereiro. No dia 11 do mesmo mês ocorre a benção dos animais. Durante a Idade Média, tornou-se padroeiro dos leprosos por causa de uma associação errônea feita entre sua figura e a de Lázaro da Parábola de São Lucas, o Evangelista. As imagens sacras reproduzidas mostram, em alguns casos, um Lázaro coberto por chagas, segurando muletas e acompanhado por dois cachorros; ou um Lázaro com vestes nobres segurando a Igreja de Larnaca, Chipre. São Lázaro é protetor dos enfermos, dos pobres e dos animais.

O escritor Raimundo Motta de Araújo Filho, autor do livro Nova Betânia (2008, Edições Muiraquitã, p. 20), afirma que o nome do bairro Betânia, fundado em 1964, escolhido pelo então arcebispo de Manaus Dom João de Souza Lima, foi uma alusão à cidade de onde veio o Santo São Lázaro, cujo nome batizara o bairro vizinho, fundado quase uma década antes.


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terça-feira, 9 de agosto de 2016

O processo de conversão da Europa ao Cristianismo

Para falarmos do início da caminhada do Cristianismo na Idade Média, precisamos voltar um pouco ao passado, mais precisamente entre o início e o final do século IV. Nesse período, duas datas são importantes para que essa religião originária do judaísmo ganhe o status de que desfrutará séculos depois: O ano de 312, quando o imperador Constantino se converte, por razões políticas, ao cristianismo, e cessa as perseguições contra os praticantes desse culto; e 392, quando o imperador Teodósio torna o paganismo ilegal e transforma o cristianismo em única religião praticável no Império.

Paz e legalidade. O Cristianismo tinha, agora, um terreno favorável para se expandir pelo Império e outras áreas fronteiriças. Aproveitando-se das antigas estruturas imperiais, a Igreja vai se consolidando como um elemento de força local, por meio das dioceses, antiga unidade administrativa de uma cidade ou uma província governada pelo legatus. As dioceses, que possuem o aval do imperador para funcionar, são governadas pelo bispo, que tem em sua mão uma grande extensão urbana e rural. Em regiões que foram romanizadas no passado, como a Itália e a Gália do Sul, surgem redes densas de pequenas dioceses. Ao Norte, onde a malha urbana era mais antiga, as dioceses são menos numerosas e mais extensas.

Cristo retratado como um imperador, usando vestes militares. Mosaico em Ravena.

Politicamente e ideologicamente, os imperadores romanos passam a se favorecer com o novo culto, associando suas imagens com a de Jesus Cristo, igual como ocorria no culto pagão, com uma divindade principal do panteão. Dessa época, existe uma rica iconografia que atesta essa associação.

O Império já não é mais uma ameaça para os cristãos. Porém, surge um novo inimigo: os povos germânicos que começam a atravessar as fronteiras são, em sua maioria, pagãos. Mesmo os que já estavam convertidos representavam uma ameaça, como os Visigodos, ostrogodos e vândalos, seguidores do Cristianismo Ariano, considerado uma heresia pela população e pelo clero dos locais onde se instalavam. Clóvis, que unificou o povo franco sob um reino, converteu-se ao catolicismo em 508, recebendo, com isso, apoio dos bispos em suas campanhas militares contra os visigodos arianos. Recaredo, rei da Espanha visigótica, se converte ao catolicismo em 587.

São Patrício, missionário e padroeiro da Irlanda.

O paganismo perdura por um bom tempo no Noroeste da Europa. No século V foi realizada uma missão para evangelizar a ilha Irlanda. Mesmo penetrando a região nesse século, o Cristianismo só se tornará a religião oficial da ilha no final do século VI. No continente, o passado pré-cristão dá lugar a uma mistura original entre uma cultura romano-cristã (externa) e a uma cultura celta (local).

Pagão ganha o sentido que conhecemos nos dias de hoje. Mas, ainda sim, de acordo com os escritos Orósio, ele é o homem do campo. O paganismo é considerado um culto rural atrasado, visto com desprezo pelos homens da cidade. Para os cristãos, os deuses antigos existem, mas não são divindades, e sim demônios que precisam ser caçados. Essa associação marcará a propagação da nova religião contra o paganismo. O batismo funciona como uma das formas para renegar satã e expulsar essa forças diabólicas. O exorcismo é praticado em larga escala pelos clérigos. Soma-se a essas práticas a destruição de antigos templos politeístas.

É necessária a dessacralização da natureza e a valorização do elemento humano. O culto dos santos cumpre a função de substituir os antigos elementos pagãos presentes na natureza. O culto dos santos se mostra uma arma poderosa na luta contra o paganismo, pois torna o processo de conversão mais maleável, dessacralizando antigos símbolos pagãos e substituindo-os por imagens cristãs. São frequentes as iconografias de santos abatendo bestas.

O processo de conversão ocorre de forma lenta nos reinos anglo-saxões. A primeira missão evangelizadora foi enviada à região em 597, por ordens de Gregório, o Grande. O rei de Kent, Etelberto, assim como milhares de anglos, é batizado. O rei assemelha o momento à figura de Constantino, que se converte após receber um sinal de Deus na Batalha da Ponte Mílvia. O desafio da missão é encontrando em Edwin, rei de Northumbria, que se converte apenas em 628. Em 632, ano de sua morte, o Cristianismo entra em ruína em seu reino. Na História eclesiástica do povo inglês, de 731, o Venerável Beda relata que o processo de conversão da Bretanha insular foi concluído, ou seja, dois séculos após o início do processo.

O Batismo da Polônia, de Jan Matejko.

O avanço do Cristianismo no Norte é ainda mais lento. Vilibrodo, no fim do século VII, inicia a conversão dos frisões situados no Norte da Gália, consolidando uma zona fronteiriça para os soberanos francos. Bonifácio, com apoio dos reis francos e do pontífice romano, é enviado como bispo missionário das igrejas da Germânia, favorecendo-se das campanhas militares dos francos contra os saxões do Leste, pagãos. Consegue estabelecer a religião na Bavária e na renana, onde funda o monastério de Fulda. As conquistas de Carlos Magno vão assegurar de fato a conversão dos saxões.

O Cristianismo triunfa na Europa no século X, quando são convertidas as últimas regiões com focos de cultos pagãos. A Polônia é convertida em 966; o rei Estevão I, da Hungria, é batizado em 985; Haroldo Dente Azul, da Dinamarca, é batizado em 960; Olavo Tryggveson da Noruega em 995, e Olavo da Suécia em 1008. Por um referendo popular, a Islândia se converte no ano 1000.


FONTE:

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo Editora, 2006.


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