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segunda-feira, 28 de agosto de 2017

O Pensamento Político de Frei Bartolomé de Las Casas

Frei Bartolomé de Las Casas (1474-1566), Bispo de Chiapas, México.

Bartolomé de Las Casas (1474-1566) foi um frade dominicano espanhol que atuou na América durante o processo de conquista, no século XVI. Mas, mais que um frade dominicano, Las Casas pode ser considerado, dada a produção, a dimensão e a difusão de suas ideias, um pensador político que atuou tanto em defesa dos nativos americanos quanto na reflexão sobre a diversidade de poderes políticos existentes naquele momento.

Dois mundos entraram em choque quando do “descobrimento” da América. De um lado, uma sociedade unida pelos valores culturais e políticos da cristandade europeia. Do outro, um mundo que apresentava-se como novo, com outros povos e realidades distintas. O impacto foi grande, pois como escreveu o cronista Fernando López de Gómara em sua História Geral das Índias (1552) “a maior coisa depois da criação do mundo, tirando a encarnação e a morte de quem o criou, foi o descobrimento das Índias”. O dominicano Frei Bartolomé de Las Casas, vindo para a América em 1503, aperfeiçoou seu pensamento político, ou teoria política, ao longo da evolução do processo de conquista empreendido pelos espanhóis.

O pensamento político de Las Casas caracteriza-se pela ênfase ao Direito Natural e aos valores cristãos, estes aplicados em defesa dos nativos, bem como à soberania popular e questões sobre a diversidade de poderes e seus papéis. Las Casas, a Espanha, a Europa, faziam parte da Cristandade, esta entendida como uma sociedade global unida por uma mesma religião, por um mesmo Deus e pela tradição escrita da língua latina. O objeto de estudo de Las Casas era a América, terra que ainda estava sendo incorporada a Cristandade. É nessa questão de incorporação da América ao mundo cristão que o frade dominicano começa a expressar seus primeiros questionamentos.

Para Las Casas, a forma como o continente estava sendo incorporado à Cristandade passava por cima de todos os preceitos do Direito Natural e daquela sociedade assentada nas bases cristãs católicas: A Igreja e o príncipe de Castela não tinham domínio sobre as populações americanas enquanto estas, de livre e espontânea, não aceitassem a nova religião e o novo soberano. Em Treinta Proposiciones Muy Jurídicas (1552) ele afirma que

“Todos os reis e senhores naturais, cidades e povos das Índias são obrigados a reconhecer os reis de Castela como universais senhores soberanos e imperadores da maneira dita, depois de terem recebido de sua própria e livre vontade nossa santa fé e o sacro batismo, e se antes que tenham recebido ou não queiram receber, não podem ser por algum juiz ou Justiça punidos” (Las Casas, 1965, vol. 1, p. 483 APUD Bruit, 2003, p. 9).

Já é por demais conhecido que os conquistadores não esperaram a “livre e espontânea” vontade dos nativos. Igreja e Coroa Espanhola passaram por cima das tentativas de uma incorporação mais “democrática” da América. Estava instalada uma crise de valores, pois para Las Casas, as ações violentas dos conquistadores impediram a formação de uma sociedade cristã livre, justa, com respeito à condição humana. Dado esse fracasso, era necessária a elaboração de uma teoria política sobre a sociedade e o Estado. Os primeiros argumentos de Las Casas são religiosos e humanitários, assumindo posteriormente um caráter jurídico-político.

Em Tratado Comprobatorio del Império Soberano e Algunos Princípios que deben servir de punto de partida, ambas de 1553, Las Casas escrevia que a sociedade deveria funcionar em equilíbrio a partir do império da lei, que mediaria as relações entre governantes e governados (LE BRUIT, 2003, p. 7). Para o frade dominicano os fundamentos do Cristianismo rejeitavam a força como instrumento de expansão da fé. O Papa era o senhor espiritual dos cristãos e também dos nativos, mas destes últimos apenas por suas vontades e consentimentos. Por essas ideias sobre os nativos e o Papa que Las Casas travou um acirrado debate, em 1550, com o sacerdote e filósofo Juan Ginés de Sepúlveda (1489-1573). Sepúlveda tinha como base a filosofia aristotélica e defendia que o nativo americano, “por sua bestialidade e inferioridade, marcadas por suas práticas de idolatria, politeísmo, canibalismo, sodomia, incesto e sacrifícios humanos, era escravo natural dos espanhóis” (FIGUEIREDO JÚNIOR, 2011, p. 5). Acusava, também, que Las Casas negava o poder temporal do Papa.

Em contrapartida, Las Casas defendia os nativos afirmando que qualquer nação e povos, possuidores de terras e reinos que habitam desde o início dos tempos, são povos livres que reconhecem apenas a autoridade de seus senhores. Em sua defesa também utilizou o preceito cristão de que todos os homens são criados à imagem e semelhança de Deus e de que somente pela fé, e não pela força, poderiam ser amenizadas e modificadas certas práticas nativas. Ele não negava o poder temporal do Papa, mas defendia veemente que este não poderia usar instrumentos que fossem contra a vontade dos indígenas. Las Casas nunca se questionou sobre a importância do poder espiritual, pois este se originava de Deus, estando acima do poder dos reis de Castela. O poder temporal “aperfeiçoava-se e atingia seu verdadeiro sentido pela aprovação do Papa, mas isto não queria dizer que esse poder tivesse origem no Papa, pois era de direito natural e estava fundado no povo” (BRUIT, 2003, p. 8).

Em outras palavras, quando os nativos aceitassem a fé cristã católica os reis teriam a jurisdição sobre eles. O poder político era uma consequência do espiritual eclesiástico, este último também devendo ser aceito e não imposto aos indígenas. Las Casas, dessa forma, dá luz a uma pluralidade de autoridades políticas. Caso os nativos aceitassem a fé cristã, o monarca espanhol seria o poder central, mas os soberanos nativos teriam autonomia para governar seus reinos, mediante o pagamento de um tributo à Coroa. O poder, para o autor, emanava do povo, e este não era inferior ao do soberano, sendo o segundo determinado pelo primeiro. Em Algunos Princípios ele expressa essa ideia da seguinte forma:

“Vendo os homens que não podiam viver em comum sem um chefe, elegeram por mútuo acordo ou pacto desde o início algum ou alguns para dirigir e governar toda a comunidade e cuidaram principalmente de todo o bem comum […] Somente deste modo, ou seja, por eleição do povo, teve sua origem qualquer domínio justo ou jurídico dos reis sobre os homens em todo o mundo e em todas as nações, domínio que, de outro modo, teria sido injusto e tirânico” (Las Casas, 1965, vol. 2, p. 1245 a 1259 APUD Bruit, 2003, p. 11).

Direito, justiça e lei são os três fundamentos do pensamento de Bartolomé de Las Casas. Para ele reis e imperadores não são senhores soberanos, mas sim administradores dos interesses públicos. O mais importante para que a sociedade funcionasse sem nenhuma arbitrariedade era a soberania popular, a união de vontades do povo, que os encaminharia à liberdade, ao bem-estar e a defesa da propriedade. Antes de um político tomar alguma decisão ou realizar alguma obra, era necessário que este consultasse sua comunidade, que diria se isso beneficiaria ou não a coletividade. O rei não pode “vender a jurisdição, contratá-la ou aliená-la, pois não é dono dela. A jurisdição é do povo. Se o rei a vendesse, cometeria roubo, pois a jurisdição é de direito público” (BRUIT, 2003, p. 17). É obrigação do rei administrar os bens fiscais e patrimoniais, bem como exercer jurisdição e proteção sobre os bens privados, não tendo, no entanto, direito de propriedade sobre eles.

Bartolomé de Las Casas, sem dúvidas, estava a frente de seu tempo, com uma teoria que prezava antes a soberania popular, o direito natural da liberdade e da propriedade dos povos, que o poder real e o eclesiástico. É possível falar que fosse ele um teórico da democracia, dos Direitos Humanos? Para Ruggiero Romano (1972) o “Estado” que se forma nos países da América é fraco, dominado por um número incrível de contradições, de interesses contrastantes que dificilmente chegam a encontrar um equilíbrio. Nesse ponto, é interessante ver o embate entre Las Casas, que defende os interesses da Coroa Espanhola; E Sepúlveda, que defende o interesse dos encomenderos, os particulares. Las Casas vê na ação da Coroa, mediada pela Igreja, ambas aceitas pelos nativos, a única forma de amenizar as relações políticas e sociais na América.


BIBLIOGRAFIA:

BRUIT, Héctor H. Uma utopia democrática do século XVI. São Paulo, Revista Eletrônica da Anphlac, n°03, 2003.

FIGUEIREDO JÚNIOR, Selmo Ribeiro. Valladolid: A polêmica indigenista entre Las Casas e Sepúlveda. Brasília, Revista Filosofia Capital, vol. 6, ed. 12, 2011.

ROMANO, Ruggiero. Os Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo, Editora Perspectiva, 1972. (Coleção Kronos).


CRÉDITO DA IMAGEM:


General Archives of the Indies (commons.wikimedia.org)

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Apropriações e conquistas simbólicas do Cristianismo

Neste mosaico, da cidade de Ravena, Jesus é retratado como um Imperador Romano, utilizando vestes militares. Em uma mão carrega um báculo, na outra, as Sagradas Escrituras.

O Cristianismo é hoje a religião com o maior número de adeptos no mundo. Dos praticantes aos não praticantes, ele se encontra presente desde as pequenas vilas nos Andes até as grandes metrópoles da Europa. Foi um longo trajeto, desde a Antiguidade, até que essa religião com raízes no Oriente chegasse a essa posição, com seus agentes encontrando diferentes formas para sua expansão. Uma das mais conhecidas foi a apropriação de certos elementos do mundo pagão de forma a subvertê-los à nova realidade cristã, para atingir o maior número possível de pessoas, o que acarretou em verdadeiras conquistas simbólicas. O inverso também ocorreu, com o Estado Romano procurando formas de se associar ao novo culto para garantir uma ínfima sobrevida de suas já desgastadas estruturas. Nesse texto, destaco alguns exemplos, da Antiguidade, da Idade Média e da Idade Contemporânea, de apropriações e conquistas simbólicas do Cristianismo.

O Cristianismo se tornou, em 392, a única religião legalmente praticável no Império Romano. Os imperadores depois de Constantino, com exceção de Juliano, que tentou reavivar os cultos pagãos, realizavam doações em dinheiro, terras e financiavam a construção de basílicas em Roma e outras cidades importantes do Império. Essas medidas visavam a incorporação da população cristã ao Império, evitando assim qualquer tumulto desta, tendo em vista a delicada situação interna pela qual Roma passava pelo menos desde o início do século III. O Cristianismo tinha, agora, um terreno favorável para se expandir pelo Império Romano e outras áreas fronteiriças.

Para atingir ideologicamente a população e, como ocorrera antes com o paganismo, legitimar o poder, os imperadores passaram a associar suas imagens com a de Jesus Cristo. Dessa época existe uma rica iconografia que atesta essa associação. Na primeira imagem, um mosaico da cidade de Ravena, temos Jesus Cristo retratado como um imperador, usando vestes militares ao gosto romano. Segurando um báculo, insígnia dos bispos, traz na outra mão as sagradas escrituras, com os dizeres latinos Ego sum via, veritas et vita, que significam Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Em outras ocasiões, em painéis de marfim ou em mosaicos, esses mesmos imperadores eram representados sendo arrebatados por Deus, em famosas representações de apoteoses. Os romanos mais abastados tinham gravados em seus mausoléus cenas bíblicas como a expulsão do Éden, o martírio dos apóstolos e a ressurreição de Cristo.

Detalhe do Sarcófago de Júnio Basso, senador romano do século IV d.C., mostrando Jó e Adão e Eva no Paraíso.

Um pouco distante da vida política do Império, figuras do antigo panteão greco-romano também eram incorporadas e associadas aos simbolismos e práticas cristãs. Orfeu, personagem da mitologia grega que era médico e poeta, foi inúmeras vezes associado à figura de Jesus, do Bom Pastor e do Rei Davi. Orfeu desafiou a morte indo ao submundo e ficando diante de Hades, Deus do submundo e dos mortos. Jesus, na Bíblia, ressuscitou após três dias de sua morte. A passagem nas escrituras que melhor explica esse momento é: "E ele pôs sobre mim a sua destra, dizendo-me: Não temas; eu sou o Primeiro e o Último; e o que vive; fui morto, mas eis que aqui estou vivo para todo o sempre. Amém! E tenho as chaves da morte e do inferno." (Apocalipse 3.18). Orfeu e Jesus Cristo, duas personagens que escaparam da morte.

A lira de Orfeu tinha o poder de apaziguar a mais selvagem das feras, o que fazia os cristãos lhe associarem a Jesus e seu poder sobre a natureza e ao Bom Pastor que cuida de seu rebanho. O Rei Davi […] “quando o espírito maligno vinha sobre Saul, tomava a harpa, e a tocava com a sua mão; então Saul sentia alívio, e se achava melhor, e o espírito maligno se retirava dele” (1Sm 16.23). A harpa de Davi tinha as mesmas propriedades da lira de Orfeu. O mosaico abaixo, datado do século V, encontra-se no interior de uma igreja cristã de Jerusalém. Nele vemos, no centro, Orfeu tocando sua lira enquanto acalma algumas feras ao seu redor, incluindo o Deus Pã e um sátiro.

Mosaico do século V d.C. localizado no interior de uma igreja cristã de Jerusalém. No centro, Orfeu toca sua lira para apaziguar as feras ao seu redor, incluindo o Deus Pã e um sátiro.

Mais afastado do centro do antigo Império Romano no Ocidente, já na Idade Média, no Norte da Europa, o Cristianismo já não tinha mais como ameaça os romanos. O inimigo agora era outro: Os bárbaros germânicos que começavam a atravessar as fronteiras e a entrar em contato com outros povos, eram em sua maioria pagãos ou cristãos arianos. Esses povos eram, de acordo com os escritos de Orósio, genuinamente pagãos, pois viviam nos campos onde realizavam seus cultos rurais.

Tornou-se necessária a dessacralização da natureza e a valorização do elemento humano. O culto dos santos cumpre a função de substituir os antigos elementos pagãos presentes na natureza. O culto dos santos se mostra uma arma poderosa na luta contra o paganismo, pois torna o processo de conversão mais maleável, dessacralizando antigos símbolos pagãos e substituindo-os por imagens cristãs. São frequentes as iconografias de santos abatendo bestas como dragões, serpentes etc. O ato mais simbólico foi a derrubada, por São Bonifácio, no ano de 723, do Carvalho de Thunor (Thor), o Deus nórdico dos trovões e das batalhas. Da madeira da árvore Bonifácio construiu uma capela consagrada a São Pedro, o que marca o início da conversão da Germânia ao Cristianismo.

Gravura do século XVIII representando São Bonifácio derrubando o Carvalho de Thunor (Thor).

Na Idade Moderna, inúmeros territórios foram conquistados em nome da Coroa e da Igreja, ou de la espada e la cruz, como bem escreveu Ruggiero Romano, destacando a aliança militar e espiritual da conquista da América. Os ídolos maias, incas e astecas foram substituídos por imagens sacras de Santiago Apóstolo, Virgem Maria e Jesus Cristo. Boa parte das cidades coloniais foram erguidas sobre antigos templos nativos e cemitérios indígenas. A Catedral Metropolitana da Cidade do México, símbolo do poder espiritual cristão no continente, foi erguida sobre os escombros de um templo asteca.

Esse processo de apropriação, que leva à conquista simbólica, também ocorre entre diferentes vertentes do Cristianismo. Curiosamente, caminhando por meu bairro, me deparo com um arraial sendo realizado em uma Igreja mórmon de nome Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Era final de julho, fora da época dos festejos. Nenhuma menção a São Pedro, Santo Antônio e São João, nem de frases como anarriê, alavantú, balancê. O arraial foi apropriado do Catolicismo, este tendo apropriado a festa do paganismo, com a exclusão de vários elementos, preservando apenas o caráter popular da festa, que sempre atrai grande público. Essas apropriações parecem ser válidas a partir do momento em que são dados novos significados para antigos elementos e estes passam a contribuir para o fortalecimento e crescimento da religião.


FONTES:

_____Bíblia Sagrada. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/

_____Impérios sitiados (200-600) - O declínio romano, Renovação no Oriente Médio, Reinos chineses em tumulto e um vigoroso Novo Mundo. Tradução de Pedro Maia Soares. Rio de Janeiro, Editora Cidade Cultural, 1990. (Coleção História em Revista).

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo Editora, 2006.

ROMANO, Ruggiero. Os Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo, Editora Perspectiva, 1972. (Coleção Kronos).

CRÉDITO DAS IMAGENS:

commons.wikimedia.org
Rijksmuseum van Oudheden - Museu Real de Antiguidades dos Países Baixos

terça-feira, 30 de maio de 2017

500 anos da Reforma Protestante: Discursos sobre o movimento

Estátua de Martinho Lutero, em Washington (EUA). Obra do escultor alemão Ernst Friedrich August Rietschel (1884).

O presente texto, simples e livre de qualquer formalidade, não se pretende ser mais uma explicação sobre os processos que culminaram na Reforma Protestante, mas sim uma discussão sobre os reflexos desse evento em discursos contemporâneos, estando inserido no campo das mentalidades formadas sobre a Reforma, que completa 500 anos em 2017.

Sábado, 20 horas. Mudando aleatoriamente de canais, paro em um programa de uma emissora Protestante. Na pauta, dirigida pelo apresentador na companhia de dois teólogos, os 500 anos de um dos eventos mais importantes da Era Moderna: A Reforma Protestante. São cinco séculos de um movimento que moldou de forma significativa o panorama político e religioso do Ocidente e, dadas as influências posteriores, o mundo de forma geral.

No horário, o programa já estava bastante adiantado, mas o que foi assistido serviu de fonte para a produção desse artigo. Os dois teólogos afirmavam, com alegria, que “Lutero libertou a Europa da tirania da Igreja Católica” e que o “movimento renovou o Cristianismo”. Afirmações essas feitas com uma vivacidade que poderia fazer pensar se esses convidados não estiveram em Wittenberg, na Alemanha, em 1517, ajudando o monge agostiniano na propagação de suas ideias.

Uma semana depois, na universidade, ouvi nos corredores uma conversa entre dois estudantes. Ao que tudo indica, católicos praticantes, tanto pelo tom da conversa quanto pelos adereços, bótons de santos e terços. Um dizia que Lutero era um “herege” que dividiu o Cristianismo. Outro, no mesmo tom, via naquele monge agostiniano a figura que contribuiu para a proliferação de inúmeras “seitas sem unidade” que se arrastam até os dias de hoje. Bem que esses dois poderiam estar, em 1517, do alto do Castelo de Wittenberg vendo, sob protestos, Lutero pregar as 95 teses na porta da Igreja.

São comentários interessantes, um mais caloroso que o outro, mostrando como um evento de 500 anos permanece “vivo” na mente e no discurso de seus favoráveis e opositores do século XXI. A História é o campo de combate da memória. Ganha, geralmente, aquele que está atrelado ao Estado e às mais altas posições. No entanto, não estamos falando de grupos pequenos que lutam por suas memórias, mas sim de duas grandes e poderosas ramificações do Cristianismo, com milhões de adeptos ao redor do mundo. É uma disputa que parte do alto, disputa essa com reações imediatas ao evento.

Em fevereiro de 1518, o Papa Leão X, a pedido da Ordem dos Agostinianos, pediu para que as ideias de Lutero parassem de ser difundidas. O teólogo italiano Silvestro Mazzolini da Priero redigiu Um Diálogo contra as Teses Presuntivas de Martinho Lutero sobre o Poder do Papa. João Maier, amigo de Lutero, escreveu teses contra suas ideias, o considerando um herege estúpido, o que terminou por iniciar uma disputa teológica, o famoso Debate de Leipzig, que terminou sem vencedores. Por último, Martinho Lutero foi excomungado da Igreja Católica em 1521, quando queimou a Bula que oferecia ou a retratação ou a excomunhão.

Vejamos o que diz o padre Paulo Ricardo, figura famosa no meio religioso católico, no texto Por que não sou Protestante? Sobre a Reforma Protestante e seus agentes: “Os reformadores protestantes, como Martinho Lutero, João Calvino e Ulrich Zwinglio, vendo a triste situação em que se encontravam os homens da Igreja, quiseram empreender uma mudança, mas, no fim, acabaram mutilando a Igreja”. Conclusões semelhantes às dos dois estudantes anteriormente citados.

Para o pastor Paulo Júnior, em O que foi a Reforma Protestante? Afirma que “em uma época que o povo comum era privado da leitura das Escrituras e o papa liderava a cristandade com mãos de ferro, Lutero foi uma voz levantada por Deus para dar início a uma completa revolução espiritual na Alemanha. Lutero combateu os vários desvios doutrinários de sua época praticados pela Igreja Católica Romana, condenou veementemente a venda de indulgências, traduziu a Bíblia para o alemão e a colocou nas mãos do povo comum. Enfim, inflamou o coração de seus irmãos a uma busca sincera por Deus e o Cristianismo autêntico”.

Diferentes discursos, alguns do século XVI, outros do século XXI. Mesmo com inúmeros séculos de diferença entre uns e outros, eles possuem o mesmo objetivo: defender determinada visão de mundo. Os teólogos não estavam ao lado de Lutero na hora de fixar as 95 teses na porta da Igreja, nem os estudantes estavam do alto do castelo protestando contra a ação desse monge. Essas pessoas apenas defendem aquilo que lhes foi transmitido de determinada forma, oral ou escrita, dentro de uma visão religiosa de mundo. O curioso é observar como 500 anos depois o evento permanece vivo por meio da mentalidade e dos discursos sobre ele formados e propagados. É como se a qualquer momento Lutero ou o Papa Leão X fossem ressurgir e fazer uma observação: “não foi assim, pois eu estava lá”…


FONTES:

RICARDO, Paulo Pe. Por que não sou protestante? Disponível em: https://padrepauloricardo.org/episodios/por-que-nao-sou-protestante. Acesso em 28/05/2017.

JÚNIOR, Paulo Pr. O que foi a Reforma Protestante? Disponível em: https://defesadoevangelho.com.br/videos/o-que-foi-reforma-protestante/. Acesso em 28/05/2017.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

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sábado, 3 de setembro de 2016

Império Carolíngio: Renascimento e ascensão da Igreja (I)

Coroação de Pepino III como rei dos Francos e Patrício dos romanos na Basílica de Saint-Denis, em 754.

No campo da História, associamos a palavra 'Renascimento' aos séculos XV e XVI, quando homens letrados da Europa Moderna passaram a tomar a Antiguidade Clássica greco-romana como referência para suas produções intelectuais. No entanto, a idealização de retornar à Antiguidade começou a tomar forma no final do século VIII, durante a Alta Idade Média e a criação do Império Carolíngio. É também o momento de reforma da liturgia católica e da ascensão da Igreja como elemento dominante no Ocidente.

Os carolíngios ou a Dinastia Carolíngia, tem origem em uma família da aristocracia franca. Carlos Martel, vice-rei dos francos e filho ilegítimo de Pepino de Herstal (635-714), ganha prestígio militar ao vencer os árabes em 732, na Batalha de Poitiers, e continua o projeto de reunificação iniciado por seu pai no século VII. Pepino III ou Pepino, o Breve, filho de Martel, deu continuidade à unificação militar e, em 751, com ajuda da nobreza franca, tomou o trono de Childerico III, último rei franco da Dinastia Merovíngia.

Encabeçando um projeto de poder ambicioso, Pepino faz uma aliança com o Bispo de Roma, que procurava no monarca franco apoio militar contra os lombardos que ameaçavam invadir a cidade. Firmada a união, o pontífice renova a coroação do rei e o unge à maneira dos reis do Antigo Testamento, garantindo a Pepino uma espécie de "aura sagrada" que legitimava suas ações. O sucesso carolíngio viria, no entanto, com o filho de Pepino, Carlos Magno, que assume o trono em 768 e governa até o ano de sua morte, em 814.

Carlos Magno foi um dos maiores militares e estadistas da Europa Medieval. Sua primeira conquista militar foi na Itália, onde venceu os lombardos. Depois, investe 32 anos de seu reinado em uma luta contra os saxões, que se mostram resistentes à conversão ao Cristianismo. Vencidos os inimigos, a Germânia é incorporada ao reino. Na Polônia e na Hungria combate os eslavos, ficando na defensiva contra os avaros. Ele também avança ao Sul dos Pirineus, região controlada pelos bascos, para estabelecer uma espécie de fronteira protetora contra os árabes.

Em meio a essas conquistas, Carlos consegue reunificar uma boa parte do que no passado constituía o Império Romano do Ocidente: Gália, Itália do Norte e central e Renânia. A construção de seu palácio, em Aix-la-Chapelle, localizado no Norte da Europa, onde hoje é a Alemanha, em 796, evidencia que o poder já não emanava mais do Centro europeu desde a queda do Império Romano. Sua coroação ocorre no Natal de 800, em Roma, sob os dizeres: "A Carlos, Augusto, coroado por Deus, grande e pacífico imperador dos romanos, vida e vitória" (1) e se deus pelas mãos do Papa, estando assegurada, dessa forma, a aliança iniciada em 751 e, para o pontífice, o controle de um monarca que se distanciou de Roma.

Imperador Carlos Magno. Pintura de Albrecht Dürer, 1512.

No Oriente, onde estava localizado o Império Romano do Oriente, que se considerava o verdadeiro herdeiro daquele que ruiu em 476, via seu poder declinar em relação ao reino que Carlos Magno ia estabelecendo nas antigas terras romanas. Contribuía para essa fraqueza a crise religiosa pela qual passava o império e as constantes investidas árabes. O papado era juridicamente dependente do imperador oriental, que confirmava a posse do Papa após a eleição. Mas, a partir do momento em que um rei é coroado em Roma, o Papa deixa de responder ao Império do Oriente e passa a exercer, no Ocidente, um poder que se tornará cada vez mais forte. O Bispo de Roma consagra o poder dos reis carolíngios e recebe destes bens materiais e territoriais. Essa aliança, Império e Igreja, permite o crescimento sistemático e em conjunto dessas duas principais forças da Europa nos séculos VIII e IX da Idade Média.

O imperador é responsável por nomear bispos e abades, e conta com uma rede de 180 igrejas-catedrais e 700 monastérios, bases de seu poder. Os clérigos o auxiliam na administração imperial e na erudição. A Igreja garante a "sacralidade" do Império e diviniza as ações do imperador, recebendo deste proteção, imunidade fiscal e doações territoriais e materiais. O momento mais importante no assentamento da Igreja, antes do rompimento com o Império do Oriente, se deu em 756, quando Pepino III fundou os Estados Papais, formados pelo Patrimônio de São Pedro, território que atravessa a Itália Central, de Roma a Ravena, legitimado pela Doação de Constantino, um documento forjado que continha o registro de uma doação de terras de Constantino para a Igreja no século IV.

A Igreja, sem dúvida, foi um dos pilares mais sólidos do Império Carolíngio, mas não foi o único. O exército, que garantia as conquistas territoriais, foi outro elemento fundamental para o crescimento carolíngio. No mês de maio de cada ano, o imperador convocava homens livres para o combate. Conseguia-se, em um ano, a formação de um exército de 40.000 soldados. No entanto, ele deixa de exigir que todos se alistem, pois as armaduras, espadas e outros materiais bélicos eram muito caros.

Administrativamente o Império era mal organizado, estando este dividido em 300 pagi, províncias sobre o controle de condes; e as fronteiras são protegidas por duques e marqueses. Mas, quem de fato exerce poder em uma província são as aristocracias locais ou guerreiros, recompensados pelo imperador com possessões territoriais. As aristocracias e os militares de alta patente estão subordinados ao imperador por meio de uma relação de fidelidade e na garantia das honrarias que o monarca pode conferir. Percebe-se que o poder, nesse aspecto, é fragmentado.

Mesmo mal organizado administrativamente, a unidade garantida pelos francos traz importantes avanços. As zonas rurais desenvolvem-se, as populações crescem entre os séculos VIII e IX e o comércio de grande quantidade ressurge. No entanto, esses avanços são frutos de ações exteriores: "no Sul, os muçulmanos, que ainda abastecem de produtos orientais as cortes principescas o imperiais; no Norte, os navegadores escandinavos, que importam madeiras, peles e armas" (2). Por mais que estas sejam ações externas, elas fazem o Império reorganizar seu sistema monetário. Carlos Magno abandona a cunhagem do ouro e impõe a cunhagem em prata, material mais abundante que o ouro e mais próximo do valor das trocas. A libra de prata é fixada em 491 gramas, mais da metade do que era na Antiguidade, dividida em vinte soldos de doze denários cada, e se torna a base monetária de toda a Idade Média.
 

NOTAS:

(1) Idade Média I. In: Grande História Universal Vol I. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1976, p. 229.

(2) O Renascimento Carolíngio (séculos VIII e IX). In: BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução de Marcelo Rede. São Paulo: Editora Globo, p. 73.


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terça-feira, 9 de agosto de 2016

O processo de conversão da Europa ao Cristianismo

Para falarmos do início da caminhada do Cristianismo na Idade Média, precisamos voltar um pouco ao passado, mais precisamente entre o início e o final do século IV. Nesse período, duas datas são importantes para que essa religião originária do judaísmo ganhe o status de que desfrutará séculos depois: O ano de 312, quando o imperador Constantino se converte, por razões políticas, ao cristianismo, e cessa as perseguições contra os praticantes desse culto; e 392, quando o imperador Teodósio torna o paganismo ilegal e transforma o cristianismo em única religião praticável no Império.

Paz e legalidade. O Cristianismo tinha, agora, um terreno favorável para se expandir pelo Império e outras áreas fronteiriças. Aproveitando-se das antigas estruturas imperiais, a Igreja vai se consolidando como um elemento de força local, por meio das dioceses, antiga unidade administrativa de uma cidade ou uma província governada pelo legatus. As dioceses, que possuem o aval do imperador para funcionar, são governadas pelo bispo, que tem em sua mão uma grande extensão urbana e rural. Em regiões que foram romanizadas no passado, como a Itália e a Gália do Sul, surgem redes densas de pequenas dioceses. Ao Norte, onde a malha urbana era mais antiga, as dioceses são menos numerosas e mais extensas.

Cristo retratado como um imperador, usando vestes militares. Mosaico em Ravena.

Politicamente e ideologicamente, os imperadores romanos passam a se favorecer com o novo culto, associando suas imagens com a de Jesus Cristo, igual como ocorria no culto pagão, com uma divindade principal do panteão. Dessa época, existe uma rica iconografia que atesta essa associação.

O Império já não é mais uma ameaça para os cristãos. Porém, surge um novo inimigo: os povos germânicos que começam a atravessar as fronteiras são, em sua maioria, pagãos. Mesmo os que já estavam convertidos representavam uma ameaça, como os Visigodos, ostrogodos e vândalos, seguidores do Cristianismo Ariano, considerado uma heresia pela população e pelo clero dos locais onde se instalavam. Clóvis, que unificou o povo franco sob um reino, converteu-se ao catolicismo em 508, recebendo, com isso, apoio dos bispos em suas campanhas militares contra os visigodos arianos. Recaredo, rei da Espanha visigótica, se converte ao catolicismo em 587.

São Patrício, missionário e padroeiro da Irlanda.

O paganismo perdura por um bom tempo no Noroeste da Europa. No século V foi realizada uma missão para evangelizar a ilha Irlanda. Mesmo penetrando a região nesse século, o Cristianismo só se tornará a religião oficial da ilha no final do século VI. No continente, o passado pré-cristão dá lugar a uma mistura original entre uma cultura romano-cristã (externa) e a uma cultura celta (local).

Pagão ganha o sentido que conhecemos nos dias de hoje. Mas, ainda sim, de acordo com os escritos Orósio, ele é o homem do campo. O paganismo é considerado um culto rural atrasado, visto com desprezo pelos homens da cidade. Para os cristãos, os deuses antigos existem, mas não são divindades, e sim demônios que precisam ser caçados. Essa associação marcará a propagação da nova religião contra o paganismo. O batismo funciona como uma das formas para renegar satã e expulsar essa forças diabólicas. O exorcismo é praticado em larga escala pelos clérigos. Soma-se a essas práticas a destruição de antigos templos politeístas.

É necessária a dessacralização da natureza e a valorização do elemento humano. O culto dos santos cumpre a função de substituir os antigos elementos pagãos presentes na natureza. O culto dos santos se mostra uma arma poderosa na luta contra o paganismo, pois torna o processo de conversão mais maleável, dessacralizando antigos símbolos pagãos e substituindo-os por imagens cristãs. São frequentes as iconografias de santos abatendo bestas.

O processo de conversão ocorre de forma lenta nos reinos anglo-saxões. A primeira missão evangelizadora foi enviada à região em 597, por ordens de Gregório, o Grande. O rei de Kent, Etelberto, assim como milhares de anglos, é batizado. O rei assemelha o momento à figura de Constantino, que se converte após receber um sinal de Deus na Batalha da Ponte Mílvia. O desafio da missão é encontrando em Edwin, rei de Northumbria, que se converte apenas em 628. Em 632, ano de sua morte, o Cristianismo entra em ruína em seu reino. Na História eclesiástica do povo inglês, de 731, o Venerável Beda relata que o processo de conversão da Bretanha insular foi concluído, ou seja, dois séculos após o início do processo.

O Batismo da Polônia, de Jan Matejko.

O avanço do Cristianismo no Norte é ainda mais lento. Vilibrodo, no fim do século VII, inicia a conversão dos frisões situados no Norte da Gália, consolidando uma zona fronteiriça para os soberanos francos. Bonifácio, com apoio dos reis francos e do pontífice romano, é enviado como bispo missionário das igrejas da Germânia, favorecendo-se das campanhas militares dos francos contra os saxões do Leste, pagãos. Consegue estabelecer a religião na Bavária e na renana, onde funda o monastério de Fulda. As conquistas de Carlos Magno vão assegurar de fato a conversão dos saxões.

O Cristianismo triunfa na Europa no século X, quando são convertidas as últimas regiões com focos de cultos pagãos. A Polônia é convertida em 966; o rei Estevão I, da Hungria, é batizado em 985; Haroldo Dente Azul, da Dinamarca, é batizado em 960; Olavo Tryggveson da Noruega em 995, e Olavo da Suécia em 1008. Por um referendo popular, a Islândia se converte no ano 1000.


FONTE:

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo Editora, 2006.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

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thehistoryofthebyzantineempire.com
http://polishpoland.com/




terça-feira, 19 de julho de 2016

Prefácio dos Estudos Históricos de René Chateaubriand (III)

François-René de Chateaubriand. Pintura de Anne-Louis Girodet de Roussy-Trioson.

Terceira e última parte da série de postagens Prefácio dos Estudos Históricos de René Chateaubriand, no qual o autor romântico discorre sobre os temas Escola Histórica da Alemanha, Filosofia da história e a história na Inglaterra e na Itália.

Escola Histórica da Alemanha. Filosofia da história. A história na Inglaterra e na Itália

Próximos a nós, enquanto fundávamos nossa escola política, a Alemanha estabelecia suas novas doutrinas e nos ultrapassava nas altas regiões da inteligência: ela fazia entra a filosofia na história, não essa filosofia do século XVIII, que consistia em lavrar sentenças morais ou antirreligiosas, mas essa filosofia que procura a essência dos seres; que, penetrando o envelope do mundo sensível, procura se não há ali sob esse envelope alguma coisa mais real, mais viva, causa dos fenômenos sociais.

Descobrir as leis que regem a espécie humana; tomar por base de operações as três ou quatro tradições disseminadas entre todos os povos da Terra; reconstruir a sociedade sobre essas tradições, da mesma maneira que se restaura um monumento a partir de suas ruínas, seguir o desenvolvimento das ideias e das instituições nessa sociedade; assinalar suas transformações, indagar à história se não existe na humanidade algum movimento natural, o qual, manifestando-se em épocas fixas nas posições dadas, pode fazer predizer o retorno desta ou daquela revolução, como se anuncia a reaparição dos cometas cujas curvas foram calculadas: esses são interesses imensos. Quem é o homem? De onde vem? Para onde vai? Que veio fazer aqui? Quais são seus destinos? Os arquivos do mundo forneceriam respostas para essas questões? Existe em cada origem nacional uma idade religiosa? Dessa época passa-se para uma época heroica? Dessa época heroica a uma época social? Dessa época social a uma época propriamente humana? Dessa época humana a uma época filosófica? Existe um Homero que canta em todos os países, em diferentes línguas, no berço de todos os povos? A Alemanha se divide sobre tais questões em dois partidos: o partido filosófico e o partido histórico.

O partido filosófico-histórico, à cabeça do qual se coloca Hegel, pretende que a alma universal se manifesta na humanidade por quatro modos: um substantivo, idêntico, imóvel, é encontrado no Oriente; outro individual, variado, ativo, encontra-se na Grécia; o terceiro se compõe do dois primeiros numa luta perpétua e existiu em Roma; o quarto sai da luta do terceiro para harmonizar o que estava diverso: existe nas nações de origem germânica.

Assim o Oriente, a Grécia, Roma, a Germânia oferecem as quatro formas e os quatro princípios históricos da sociedade. Cada grande massa de povos, colocados nessas categorias geográficas, tira de suas posições diversas a natureza de seu gênio, o caráter de suas leis, o gênero de eventos de sua vida social.

O partido histórico se atém somente aos fatos e rejeita toda fórmula filosófica. Niebuhr, seu ilustre chefe, cuja perda recente foi deplorada pelo mundo letrado, compôs a história romana que precedeu Roma; mas não reconstruiu seu monumento ciclópico em torno de uma ideia. Savigny, que seguiu a história do direito romano desde sua época poética até a época filosófica à qual chegamos, não procura mais o princípio abstrato que parece ter dado a esse direito uma espécie de eternidade.

A escola filosófico-histórica de nossos vizinhos procede, como se vê, pela síntese, e a escola puramente histórica, pela análise. Estes são os dois métodos naturalmente aplicáveis à ideia e à forma. A escola histórica diz que o fato coloca em movimento o espírito humano: esta última escola reconhece ainda um encadeamento providencial na ordem dos eventos. Essas duas escolas tomam na Alemanha o nome de sistema racional e sistema supranatural.

Afinadas com as duas escolas históricas, marcham duas escolas teológicas que se unem às duas primeiras segundo duas diversas afinidades. Essas escolas teológicas são cristãs; mas uma faz sair o cristianismo da razão pura; a outra, da revelação. Nesse país onde tantos altos estudos são levados tão longe, não ocorre a ninguém que a falta da ideia cristã na sociedade seja uma prova dos progressos da civilização. [...]


FONTE GERAL DA SÉRIE DE POSTAGENS:

MALATIAN, Teresa. Chateaubriand. In: MALERBA, Jurandir. Lições de história: o caminho da ciência no longo século XIX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. pp 113-131.

CRÉDITO DA IMAGEM:

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quarta-feira, 27 de abril de 2016

Quando o Império Romano se torna Cristão

Por Pierre Maraval, historiador das religiões, especialista em Cristianismo Antigo, Antiguidade Tardia e professor emérito da Université Paris-Sorbonne.

A Visão da Cruz. Afresco de Rafael Sanzio, 1520-1524.

De Constantino a Teodósio
Da conversão do Imperador
à conversão do Império

Como muitos outros não-cristãos da sua época, o imperador Constantino parece ter sido, a princípio, simplesmente monoteísta, crendo num Deus criador supremo, conhecido por diferentes nomes e adorado de diversas maneiras. Assim, o Sol invictus aparece nas moedas depois de 308; só progressivamente é que ele virá a formular de maneira explícita, em textos provenientes da sua pena, sua adesão ao cristianismo. Não há por que contestar sua sinceridade, como fizeram vários historiadores, ainda que essa adesão lhe permita identificar-se como um instrumento escolhido pessoalmente por Deus e que essa relação pessoal adquira um alcance político: estava-se então num mundo em que pagãos e cristãos consideravam o imperador um indivíduo religiosamente marcado. Não se deve, de resto, imaginar uma conversão súbita, mas antes uma evolução, um despertar gradual: o próprio Eusébio de Cesareia, seu biógrafo, diz que o imperador recebeu várias vezes sinais de Deus.

Resulta em todo caso que, quando volta a Roma após a batalha da ponte Mílvio (312), Constantino encontra o denominador comum que garantirá tanto a unidade do seu Império - o reconhecimento de um Deus único -, como sua própria legitimidade, que ele faz proceder de uma missão pessoal recebida de Deus. Isso não o leva a uma atitude intolerante em matéria de religião. O "edito de Milão", de 313, exprime ao mesmo tempo a ideia de que a segurança do Império é assegurada pelo Deus supremo (e não mais pelos deuses da tetrarquia, Júpiter e Hércules) e o reconhecimento oficial do fato de que a religião não pode ser forçada. Constantino dá testemunho de uma política de consenso à qual cristãos e pagãos podem aderir, de um fundamento comum unitário: o monoteísmo, um monoteísmo que tolera as diferenças religiosas e rejeita a coerção. Pondo fim à Grande Perseguição lançada em 303 por Diocleciano, que fracassou em sua tentativa de erradicar o Cristianismo, Constantino tem em vista, portanto, conquistar os cristãos, incorporá-los ao Império e à sua política tradicional.

O caso é que, bem cedo, ele vai favorecer de forma manifesta a Igreja: doações de dinheiro, de terrenos, de palácios, financiamento de basílicas em Roma e em Jerusalém. Com isso, os bispos requerem que ele se envolva em seus assuntos internos e se, num primeiro, procura resolver os conflitos entre eles de maneira consensual, as resistências encontradas logo o levam a tomar medidas severas contra os dissidentes: donatistas e, mais tarde, arianos. Em compensação, em relação à religião tradicional, conserva uma atitude de tolerância (conquanto um pouco desdenhosa), contentando-se em proibir algumas práticas já recusadas por um paganismo esclarecido (os sacrifícios sangrentos, a magia, a adivinhação privada). Se não pôde conter os bispos e suas ásperas desavenças teológicas, soube, porém, durante seu reinado, neutralizar um cristianismo militante antipagão.

Os sucessores cristãos de Constantino (em particular Constâncio II, Valêncio e Teodósio) continuam a intervir nos assuntos da Igreja. Para tanto, podem se apoiar na teologia política elaborada por Eusébio de Cesareia em seus derradeiros escritos, em particular no Discurso para os trinta anos de reinado e na Vida de Constantino: se autor apresenta, neles, o modelo de um basileus cristão, posto à frente de um Império também cristão. Isso implica que ele "submeta os inimigos da verdade", proclame "as leis da verdadeira piedade" para todos, cuide de assegura  a salvação de todos. Investidos dessa missão de proteção, se não de vigilância, os imperadores cristãos, ao longo de toda a crise ariana, sustentam ou impõem fórmulas de fé diversas, concedendo seus favores aos que as aceitam, mas perseguindo os que as rejeitam (os dissidentes, sobretudo bispos, são depostos e banidos - é o caso de Atanásio de Alexandria e de Hilário de Poitiers). Ao cabo de cinquenta anos de controvérsias, a ascensão ao poder de Teodósio I (379-395) assinala o retorno definitivo à "ortodoxia". Definida no Concílio de Niceia de 325 e reafirmada no Concílio de Constantinopla de 381, recebe o apoio do imperador, que faz dela uma lei válida para todos. Uma série de leis, cada vez mais repressivas, restringem a liberdade de expressão e de culto de todos os dissidentes da ortodoxia, tidos como heréticos e perseguidos como tais.

Mas, entre os deveres do imperador, Eusébio incluía também o de combater o "erro ateu", o paganismo. Por isso, paralelamente às medidas de repressão das dissidências cristãs, os sucessores de Constantino tomam outras que vão restringir, depois proibir, a liberdade do culto pagão. Os filhos de Constantino são os primeiros a atacá-lo. Uma lei de Constante, de 341, declara: "Cesse a superstição, seja abolida a loucura dos sacrifícios." Ainda não se trata, porém, ao que parece, de uma proibição absoluta de todos os cultos pagãos já autorizados, mas de uma simples renovação das restrições impostas por Constantino. De fato, uma lei sua proíbe que se destruam templos, tolerados, "embora toda superstição deva ser totalmente destruída". Constâncio II vai mais longe, por motivos entre os quais parece ter estado a política: no período que vai de 353 a 357, depois da derrota do usurpador Magnêncio, que havia autorizado novamente os sacrifícios noturnos, várias leis ordenam o fechamento dos templos e tentam proibir totalmente o culto pagão: quem ousar sacrificar é ameaçado de ser "golpeado por um gládio vingador" e de confisco dos bens; a adoração de estátuas é proibida sob pena de morte. No entanto, essas medidas só foram parcialmente aplicadas. A política religiosa dos dois irmãos não resulta portanto na repressão sistemática do paganismo, mas somente num acentuado desfavorecimento.

O imperador Juliano, que nascera cristão mas voltara à religião tradicional, abole aquelas medidas e tenta reavivar esta; todavia, seu curto reinado (361-363) não lhe permite levar a cabo essa empreitada. Sua lei escolar, logo abolida por seu sucessor Joviano, havia tentado proibir que os professores cristãos difundissem a herança da cultura clássica, tida como um bem do paganismo. A política dos sucessores de Valenciniano e Valêncio é, no entanto, relativamente tolerante com este. Uma das suas principais leis, renovada em 370, declara manter a liberdade de culto. Mas, no final do seu reinado, Valêncio proíbe de novo os sacrifícios sangrentos.

A política religiosa de Graciano e Teodósio I - depois, com a morte do seu associado, deste último somente - adotará medidas muito mais decisivas, que acabarão pondo o paganismo fora da lei. Quando da sua ascensão ao poder, Teodósio rejeita o título e o manto de Pontifex maximus, e logo em seguida Graciano renuncia a ele. Os cristãos que voltam ao paganismo são objeto de vários editos, perdendo desde 381 o direito de fazer testamentos. Essa lei é renovada em 383: aplicando-se estritamente aos cristãos batizados que abandonam sua fé, considerados "excluídos do direito romano", ela deixa aos que foram apenas catecúmenos o direito de testar em benefício da família. Será endurecida por Teodósio em 391, a pretexto de que o abandono da comunhão cristã equivale a "apartar-se do resto dos homens". Por outro lado, velhas interdições visando as práticas religiosas tradicionais são renovadas: em 381 e 382, os sacrifícios sangrentos são proscritos, sob pena de deportação; em 385, as práticas de adivinhação, sob pena de morte. Os dois imperadores também vão investir contra as próprias instituições do culto pagão. No outono de 382, Graciano manda tirar do Senado a estátua e o altar da Vitória, depois suprime as imunidades das Vestais e dos sacerdotes pagãos, confisca seus rendimentos e subvenções; Teodósio ordena o fechamento dos templos: só podem permanecer abertos, com fins unicamente culturais ou para a realização de assembleias públicas, os que contêm obras de arte. Vários templos, em 384, são fechados ou demolidos.

Mas é uma série de leis emitidas de 391 a 394 que culmina essa investida, vedando qualquer manifestação do culto pagão: a lei de 24 de fevereiro de 391, proíbe-a para Roma; a de 16 de junho, para o Egito; a de 8 de novembro de 392, para todo o Império. Todos os sacrifícios, inclusive os modestos sacrifícios do culto doméstico, são desautorizados, seja em público, seja em particular, seja qual for o nível social, sob pena de multas pesadíssimas e até de punições mais graves. Essa lei é que faz do cristianismo a religião do Império, já que a religião tradicional perdeu todo direito legal de se exprimir: com Teodósio (e não com Constantino, como às vezes se diz), o Império Romano tornou-se oficialmente cristão.

FONTE:

MARAVAL, Pierre. Quando o Império Romano se torna cristão. In: CORBIN, Alain - (org.). História do Cristianismo. São Paulo, Martins Fontes, 2012.


CRÉDITO DA IMAGEM:

cleofas.com.br