Mostrando postagens com marcador pensamento. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador pensamento. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

O Pensamento Político de Frei Bartolomé de Las Casas

Frei Bartolomé de Las Casas (1474-1566), Bispo de Chiapas, México.

Bartolomé de Las Casas (1474-1566) foi um frade dominicano espanhol que atuou na América durante o processo de conquista, no século XVI. Mas, mais que um frade dominicano, Las Casas pode ser considerado, dada a produção, a dimensão e a difusão de suas ideias, um pensador político que atuou tanto em defesa dos nativos americanos quanto na reflexão sobre a diversidade de poderes políticos existentes naquele momento.

Dois mundos entraram em choque quando do “descobrimento” da América. De um lado, uma sociedade unida pelos valores culturais e políticos da cristandade europeia. Do outro, um mundo que apresentava-se como novo, com outros povos e realidades distintas. O impacto foi grande, pois como escreveu o cronista Fernando López de Gómara em sua História Geral das Índias (1552) “a maior coisa depois da criação do mundo, tirando a encarnação e a morte de quem o criou, foi o descobrimento das Índias”. O dominicano Frei Bartolomé de Las Casas, vindo para a América em 1503, aperfeiçoou seu pensamento político, ou teoria política, ao longo da evolução do processo de conquista empreendido pelos espanhóis.

O pensamento político de Las Casas caracteriza-se pela ênfase ao Direito Natural e aos valores cristãos, estes aplicados em defesa dos nativos, bem como à soberania popular e questões sobre a diversidade de poderes e seus papéis. Las Casas, a Espanha, a Europa, faziam parte da Cristandade, esta entendida como uma sociedade global unida por uma mesma religião, por um mesmo Deus e pela tradição escrita da língua latina. O objeto de estudo de Las Casas era a América, terra que ainda estava sendo incorporada a Cristandade. É nessa questão de incorporação da América ao mundo cristão que o frade dominicano começa a expressar seus primeiros questionamentos.

Para Las Casas, a forma como o continente estava sendo incorporado à Cristandade passava por cima de todos os preceitos do Direito Natural e daquela sociedade assentada nas bases cristãs católicas: A Igreja e o príncipe de Castela não tinham domínio sobre as populações americanas enquanto estas, de livre e espontânea, não aceitassem a nova religião e o novo soberano. Em Treinta Proposiciones Muy Jurídicas (1552) ele afirma que

“Todos os reis e senhores naturais, cidades e povos das Índias são obrigados a reconhecer os reis de Castela como universais senhores soberanos e imperadores da maneira dita, depois de terem recebido de sua própria e livre vontade nossa santa fé e o sacro batismo, e se antes que tenham recebido ou não queiram receber, não podem ser por algum juiz ou Justiça punidos” (Las Casas, 1965, vol. 1, p. 483 APUD Bruit, 2003, p. 9).

Já é por demais conhecido que os conquistadores não esperaram a “livre e espontânea” vontade dos nativos. Igreja e Coroa Espanhola passaram por cima das tentativas de uma incorporação mais “democrática” da América. Estava instalada uma crise de valores, pois para Las Casas, as ações violentas dos conquistadores impediram a formação de uma sociedade cristã livre, justa, com respeito à condição humana. Dado esse fracasso, era necessária a elaboração de uma teoria política sobre a sociedade e o Estado. Os primeiros argumentos de Las Casas são religiosos e humanitários, assumindo posteriormente um caráter jurídico-político.

Em Tratado Comprobatorio del Império Soberano e Algunos Princípios que deben servir de punto de partida, ambas de 1553, Las Casas escrevia que a sociedade deveria funcionar em equilíbrio a partir do império da lei, que mediaria as relações entre governantes e governados (LE BRUIT, 2003, p. 7). Para o frade dominicano os fundamentos do Cristianismo rejeitavam a força como instrumento de expansão da fé. O Papa era o senhor espiritual dos cristãos e também dos nativos, mas destes últimos apenas por suas vontades e consentimentos. Por essas ideias sobre os nativos e o Papa que Las Casas travou um acirrado debate, em 1550, com o sacerdote e filósofo Juan Ginés de Sepúlveda (1489-1573). Sepúlveda tinha como base a filosofia aristotélica e defendia que o nativo americano, “por sua bestialidade e inferioridade, marcadas por suas práticas de idolatria, politeísmo, canibalismo, sodomia, incesto e sacrifícios humanos, era escravo natural dos espanhóis” (FIGUEIREDO JÚNIOR, 2011, p. 5). Acusava, também, que Las Casas negava o poder temporal do Papa.

Em contrapartida, Las Casas defendia os nativos afirmando que qualquer nação e povos, possuidores de terras e reinos que habitam desde o início dos tempos, são povos livres que reconhecem apenas a autoridade de seus senhores. Em sua defesa também utilizou o preceito cristão de que todos os homens são criados à imagem e semelhança de Deus e de que somente pela fé, e não pela força, poderiam ser amenizadas e modificadas certas práticas nativas. Ele não negava o poder temporal do Papa, mas defendia veemente que este não poderia usar instrumentos que fossem contra a vontade dos indígenas. Las Casas nunca se questionou sobre a importância do poder espiritual, pois este se originava de Deus, estando acima do poder dos reis de Castela. O poder temporal “aperfeiçoava-se e atingia seu verdadeiro sentido pela aprovação do Papa, mas isto não queria dizer que esse poder tivesse origem no Papa, pois era de direito natural e estava fundado no povo” (BRUIT, 2003, p. 8).

Em outras palavras, quando os nativos aceitassem a fé cristã católica os reis teriam a jurisdição sobre eles. O poder político era uma consequência do espiritual eclesiástico, este último também devendo ser aceito e não imposto aos indígenas. Las Casas, dessa forma, dá luz a uma pluralidade de autoridades políticas. Caso os nativos aceitassem a fé cristã, o monarca espanhol seria o poder central, mas os soberanos nativos teriam autonomia para governar seus reinos, mediante o pagamento de um tributo à Coroa. O poder, para o autor, emanava do povo, e este não era inferior ao do soberano, sendo o segundo determinado pelo primeiro. Em Algunos Princípios ele expressa essa ideia da seguinte forma:

“Vendo os homens que não podiam viver em comum sem um chefe, elegeram por mútuo acordo ou pacto desde o início algum ou alguns para dirigir e governar toda a comunidade e cuidaram principalmente de todo o bem comum […] Somente deste modo, ou seja, por eleição do povo, teve sua origem qualquer domínio justo ou jurídico dos reis sobre os homens em todo o mundo e em todas as nações, domínio que, de outro modo, teria sido injusto e tirânico” (Las Casas, 1965, vol. 2, p. 1245 a 1259 APUD Bruit, 2003, p. 11).

Direito, justiça e lei são os três fundamentos do pensamento de Bartolomé de Las Casas. Para ele reis e imperadores não são senhores soberanos, mas sim administradores dos interesses públicos. O mais importante para que a sociedade funcionasse sem nenhuma arbitrariedade era a soberania popular, a união de vontades do povo, que os encaminharia à liberdade, ao bem-estar e a defesa da propriedade. Antes de um político tomar alguma decisão ou realizar alguma obra, era necessário que este consultasse sua comunidade, que diria se isso beneficiaria ou não a coletividade. O rei não pode “vender a jurisdição, contratá-la ou aliená-la, pois não é dono dela. A jurisdição é do povo. Se o rei a vendesse, cometeria roubo, pois a jurisdição é de direito público” (BRUIT, 2003, p. 17). É obrigação do rei administrar os bens fiscais e patrimoniais, bem como exercer jurisdição e proteção sobre os bens privados, não tendo, no entanto, direito de propriedade sobre eles.

Bartolomé de Las Casas, sem dúvidas, estava a frente de seu tempo, com uma teoria que prezava antes a soberania popular, o direito natural da liberdade e da propriedade dos povos, que o poder real e o eclesiástico. É possível falar que fosse ele um teórico da democracia, dos Direitos Humanos? Para Ruggiero Romano (1972) o “Estado” que se forma nos países da América é fraco, dominado por um número incrível de contradições, de interesses contrastantes que dificilmente chegam a encontrar um equilíbrio. Nesse ponto, é interessante ver o embate entre Las Casas, que defende os interesses da Coroa Espanhola; E Sepúlveda, que defende o interesse dos encomenderos, os particulares. Las Casas vê na ação da Coroa, mediada pela Igreja, ambas aceitas pelos nativos, a única forma de amenizar as relações políticas e sociais na América.


BIBLIOGRAFIA:

BRUIT, Héctor H. Uma utopia democrática do século XVI. São Paulo, Revista Eletrônica da Anphlac, n°03, 2003.

FIGUEIREDO JÚNIOR, Selmo Ribeiro. Valladolid: A polêmica indigenista entre Las Casas e Sepúlveda. Brasília, Revista Filosofia Capital, vol. 6, ed. 12, 2011.

ROMANO, Ruggiero. Os Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo, Editora Perspectiva, 1972. (Coleção Kronos).


CRÉDITO DA IMAGEM:


General Archives of the Indies (commons.wikimedia.org)

sexta-feira, 17 de março de 2017

A Economia Gomífera na Amazônia III: A Crise




Introdução

1910, 1912, 1929. Datas utilizadas na tentativa de delimitar o começo e o fim da crise que assolou a Amazônia em princípios do século XX. Tentar delimitar o início e o fim de período é uma tarefa que envolve questões sociais e históricas complexas, que dependem da interpretação de uma pessoa ou grupo que se encarrega dessa tarefa. Na maioria das vezes, os historiadores ou pesquisadores de outras vertentes não são contemporâneos da época em questão, o que implica em julgamentos mais ou menos coerentes. No mais, foi a primeira vez que a região sofreu um abalo como esse. A economia gomífera substituiu a extração das drogas do sertão, forte entre os séculos XVII e XVIII, e o modesto cultivo de gêneros alimentícios. Mas, quando a borracha perdeu valor no mercado mundial, demorou para que outras atividades a substituíssem com a mesma rentabilidade e furor do início do século XX. Nessa terceira e última parte da série A economia gomífera na Amazônia serão abordados o declínio da economia gomífera; a busca pelos culpados; a situação dos estados do Pará, Amazonas e suas capitais; o neocolonialismo e a Segunda Guerra como esperanças de crescimento; as discussões historiográficas e sociológicas sobre o período.


Declínio da economia

A borracha do Amazonas dominou o mercado mundial no encontro do século XIX com o XX. Os ingleses, porém, transplantando mudas da seringa para jardins botânicos de Londres, recriaram o produto na Ásia. Começara uma concorrência fatal. Queda dos preços, do consumo, consequente queda da exploração. Queda dos reinos, desespero das ambições, orgulho ofendido, falências. A falta de planejamento encerrava mais um ciclo econômico do Brasil passado” - Glauber Rocha em Amazonas, Amazonas, 1966.

Desde o final do século XIX que a Amazônia, ou melhor dizendo, as principais cidades dela, vinham experimentando um crescimento econômico jamais antes visto. O trabalho semiescravo do seringueiro deu origem a um dos mais importantes ciclos econômicos do Brasil moderno, e tornou a região Norte uma das principais fontes de arrecadação pública. O que ficava da arrecadação de impostos das movimentações econômicas foi investido de forma maciça na reestruturação de Belém e na estruturação de Manaus.

Em meio ao sofrimento do seringueiro e o furor das capitais, a borracha asiática começara a aparecer de forma expressiva no mercado mundial, atingindo, em 1908, cerca de 1.800 toneladas1. Na Europa, o excesso de produtos fabricados com a borracha e a falta de mercados consumidores fez as importações da borracha brasileira caírem pela primeira vez. A partir de 1910, começara a crise que culminou na estagnação da região até 1960, quando outras alternativas surgiram, com destaque para a Zona Franca.

Os ciclos econômicos, de acordo com o economista Joseph Schumpeter, são divididos em quatro fases: boom, recessão, depressão e recuperação. O boom do ciclo da borracha se deu entre o final de 1890 até 1910, quando aumentou a demanda industrial e se especulou as produções locais. A recessão se inicia no final de 1910, com altas e baixas no mercado, com uma última grande exportação de 42.410 toneladas em 1912. A depressão vai de 1912, ainda com altos e baixos, até 1942. Entre 1942 e 1945 ocorre uma breve recuperação motivada pelo conquista, pelas forças japonesas, dos países asiáticos fornecedores de borracha. Esse intervalo durante a Segunda Guerra seria apenas uma breve recuperação até que voltasse o estado de crise.


Buscando causas culpados

Quando uma crise assola uma cidade, estado ou país, em paralelo às buscas por soluções, está também a busca pelas causas e culpados. A dimensão do ciclo econômico em questão torna a busca passível de diferentes interpretações, e esta se pretende ser apenas mais uma. Henry Wickham? Estado brasileiro? Elites locais? De quem é a culpa? Na História da Amazônia aprendemos que cada um deles tem sua contribuição no processo. Vamos por partes.

Sir Henry Alexander Wickham (1846-1928) foi um botânico e aventureiro inglês ativo na América Latina. Aos 20 anos foi para a Nicarágua em busca de plumas para a chapelaria de sua mãe. Durante a viagem, produziu um diário com informações sobre a região e, principalmente, sobre o crescimento e as possibilidades do comércio da borracha. Seu diário se tornou conhecido, na Inglaterra, pelo diretor do Kew Gardens, que lhe ofereceu dez libras para cada mil sementes de seringueira coletadas (FORLINE, 2013). Com sua família, Wickham se dirigiu para Santarém, no Pará, em 1871, onde conseguiu, mediante o escambo com indígenas e caboclos, cerca de 70.000 sementes. Bem acondicionadas em recipientes para não estragarem e nem despertar maiores suspeitas, passaram facilmente pela fiscalização e atingiram o exterior graças às manobras do cônsul inglês no Pará. A “encomenda” de Kew Gardens chegou em 1876, sendo que apenas 7.000 das 70.000 sementes brotaram no jardim. Depois, as mudas foram transportadas para o Ceilão, Malásia, Índia, Birmânia e Bornéo Britânico. O Império Britânico também enviou algumas mudas para o Jardim Botânico de Java, domínio das Índias Orientais Holandesas. Assim, a Holanda também entrava no processo de plantio ordenado das seringueiras, expandindo o cultivo para as ilhas de Java, Bornéu e Sumatra. No contexto da corrida imperialista e industrial, as principais potências da Europa buscavam, de qualquer forma, seja por intervenção militar ou econômica, a autossuficiência de matérias-primas. No entanto, da chegada das sementes à Inglaterra, em 1876, levaria pouco mais de 30 anos para que a produção europeia ultrapassasse a produção brasileira e quebrasse seu monopólio.

Não foi apenas a Amazônia a beneficiada com o ciclo da borracha. Os governos imperial e, mais tarde, republicano, souberam aproveitar as benesses do período. A relação dos seringalistas amazônicos com negociantes ingleses tornava abundante a entrada da libra esterlina, a moeda mais valorizada na época, nos portos brasileiros. No entanto, mesmo se beneficiando dessa situação, o governo federal tomou medidas tardiamente, quando o panorama da região já não era dos melhores. Os principais comerciantes do Amazonas e do Pará, vendo a cada dia os preços caindo vertiginosamente, com a entrada de toneladas de borracha de produções asiáticas racionalizadas, há muito pediam ajuda do governo federal para a implantação de plantações de seringueiras e capitais do Banco do Brasil para manter os preços estáveis. Nenhum desses pedidos teve resposta. Os cafeicultores de São Paulo, quando a cotação do mercado era desfavorável ao seu produto, recebiam da União grandes somas em ajuda. Em 1912, quando o Brasil já não era mais o principal exportador mundial de borracha, o Congresso aprovou um plano que, em síntese, era destinado ao investimento na logística da região, para aumentar a competitividade do produto, e incentivos ao cultivo racional. O plano, 'Defesa Econômica da Borracha', ficou sediado no Rio de Janeiro, distante da região problema. Foram feitos gastos exorbitantes em compras e pesquisas desnecessárias, o que fez o Congresso dar fim ao plano em 1913. Warren Dean afirma que

A espantosa indiferença do governo federal para com a sorte da economia amazônica parece quase suicida, considerando-se que a região, com apenas1/25 da população do país, havia proporcionado um sexto da renda nacional2.

Ainda segundo Dean, no período entre 1890 e 1912 o governo federal faturou com os Estados do Amazonas e Pará cerca de 656 mil contos de réis, sem contar a renda do território do Acre, que ia diretamente para a União. Já os gastos do governo federal na Amazônia, “como a caríssima ferrovia Madeira-Mamoré […], não eram particularmente eficazes na promoção de um crescimento regional” (DEAN, 1989, p. 80). O governo federal foi um dos maiores beneficiários da economia gomífera. Algumas obras financiadas com os impostos arrecadados ainda podem ser vistas no Rio de Janeiro, das quais se destacam o Teatro Municipal e a Av. Rio Branco. Quando a borracha asiática começou a invadir os antigos mercados brasileiros, e as rendas começaram a cair, esse mesmo governo demorou em tomar medidas para socorrer a região Amazônica e, quando tomou, não teve sucesso na empreitada.

Diante desse caos anunciado, como reagiram as elites locais, do Pará e do Amazonas? A elite paraense utilizou boa parte dos impostos da borracha na reestruturação do Estado e, principalmente, da capital Belém. Por reestruturação entende-se a reforma, novas aquisições e modernização da estrutura econômica vigente, com raízes do século XVIII, dos grandes proprietários de terra. A elite amazonense tratou de estruturar a capital, até aquele momento sem larga tradição comercial como a capital vizinha. As oligarquias do Norte, no contexto da República Velha,

[…] Gastavam mais do que arrecadavam, tomando empréstimos a esmo, na esperança de obter uma constante renda crescente, e nunca pagavam as dívidas. Impuseram taxas de exportação (reservadas aos Estados pela Constituição) que se aproximavam de um estulto patamar de 20% e dilapidaram a maior parte dessas rendas – que alcançaram um montante de 241 mil contos de réis entre 1890 e 1912 – no embelezamento de suas capitais e nos pagamentos de políticos locais3.

Seringalistas e aviadores, os dois principais grupos sociais das elites regionais, mantinham um estreito laço com o poder público. Eram publicados frequentemente, em jornais, revistas e álbuns como o Álbum de Belém do Pará para 15 de novembro de 1902 e Annuário de Manáos para 1910, artigos e notas sobre a situação econômica lisonjeira do Pará e do Amazonas, sobre a abundância da região em recursos e de sua exclusividade como detentora natural das seringueiras e principal fornecedora para os mercados estrangeiros. Criou-se entre os dirigentes e a elite um mito da exclusividade e da “eternidade” desse produto. Quando a realidade se mostrou inversa, tudo se tornou possível para salvar a economia

[…] inclusive alienar para grupos internacionais parte do território de seu país, como tentou fazer o governo do Amazonas, que tomou um empréstimo de um grupo americano garantido com terras públicas, felizmente vetado pelo governo federal, de quem necessitava o aval4.

Márcio Souza, em uma perspectiva sociológica, afirma que as elites da região não previram que a atividade extrativista demandaria mão de obra de outras áreas, o que impediu o surgimento de uma agricultura e indústria fortes ou tornou débil o que já existia. O curioso é que, pelo menos desde os anos 50 do século XIX, os presidentes provinciais denunciavam a fuga de braços para o extrativismo5. No jogo de cadeiras da República, faltava às elites amazônicas a expressividade que tinham as do Sul e Sudeste, o que tornava difícil, seja por manobras políticas, distância ou ignorância, qualquer ajuda. Seria um reflexo dos tempos de um Grão-Pará distante e fechado em uma relação direta com a metrópole portuguesa? Talvez.

Contrabando, omissão do Estado Brasileiro e um cego otimismo por parte das elites locais. Três causas, três culpados. É justo culpar Henry Wickham, um aventureiro sem nada a perder que morreu na miséria? Não seria mais coerente afirmar que ele foi uma marionete do Império Inglês, que buscava autossuficiência de qualquer forma? O Estado Brasileiro, no alvorecer da República, mantinha os mesmos traços do Império, quando era comandado pelas oligarquias latifundiárias de São Paulo e do Rio de Janeiro. Seus dirigentes, na maior parte originários desses grupos de poder, ignoraram a região que por 30 anos lhes garantiu 40% das exportações, no que parece ser mais um fruto de discrepâncias políticas ou a crença de que o café sustentaria o país, pois os cofres estavam sempre abertos quando São Paulo e Rio de Janeiro precisavam. As elites do Pará e do Amazonas se sustentaram por três décadas um sistema extrativista altamente predatório, com resquícios de trabalho escravo e voltado exclusivamente para a exportação. Faltou, por parte delas, planejamento antecipado, preocupação com o desenvolvimento interno e o desenvolvimento de áreas como a agricultura e a indústria.


Pará e Amazonas no contexto da crise

1910 é uma data frequentemente utilizada para marcar o fim desse período econômico. No entanto, o mercado não é um elemento que pode ser apreendido pela exatidão de modelos estruturalistas generalizantes, pois depende não apenas de fatores econômicos, mas também sociais e subjetivos. Os preços nunca são estáveis, oscilando para mais e para menos. O primeiro choque econômico da região se deu entre 1907 e 1908, quando começou a entrar na competição a borracha asiática, mais barata e de melhor qualidade; a borracha recuperada dos americanos; a borracha de guayule produzida no México e no Sul dos Estados Unidos; e quando alguns países da Europa, por estarem com excesso de pneus e outros derivados da borracha, diminuíram o nível das importações.

No Pará, em 1907, o governador Augusto Montenegro, representando a região Norte, enviou ao presidente da República, Afonso Pena, um telegrama contendo considerações sobre o comércio da borracha. O conteúdo do telegrama “referia-se à queda nos preços e sugeria a intervenção do governo federal por meio da criação de agências do Banco do Brasil em Belém e Manaus, as quais atuariam como reguladoras do mercado da seringa” (DAOU, 2000, p. 65). No Amazonas, o Jornal do Comércio anunciava, no mesmo ano, que o mercado continuava paralisado, sendo oferecido pela borracha fina 6$600, preço não aceito pelas casas aviadores. Informava também que o estoque era de 55 toneladas6.

Essa primeira crise começou a ser superada em 1908, quando a borracha, que chegou a valer 6$300 em outubro, chegou a 7$700 em novembro. Essa alta se explica, de acordo com Antônio Loureiro, “pela reorganização da indústria americana, pela resolução do processo sucessório nos Estados Unidos, e, principalmente, pela grande especulação na Bolsa de Nova Iorque, onde todos os “stocks” de borracha estavam sendo comprados, por intermediários, para revenda aos fabricantes” (LOUREIRO, 2008, p. 73). Entre 1909 e 1910 a borracha atinge seu maior preço, chegando a custar 17$000 o quilo da fina. Esse aumento foi fruto da especulação das bolsas de valores da Europa e da compra, ainda no Brasil, da borracha por quilograma, revendida às indústrias por libra-peso. Quando chegava às bolsas, a borracha chegava a valer o quádruplo dos preços praticados em Belém e Manaus. O lucro obtido pela especulação da borracha brasileira tinha um destino certo: formar novas empresas plantadoras no Oriente.

Em maio de 1910, o governo brasileiro valorizou o mil-réis, baixando a cotação das libras esterlinas de 16$000 para 15$000, fazendo essa moeda entrar cada vez menos no país. Os depósitos da caixa de conversão contavam com cerca de 20.000.000 de libras esterlinas, sendo emitidos 320.000 mil contos de réis. No entanto, “a quantidade de papel-moeda não conseguia suprir as necessidades do comércio da região, carente de dinheiro em espécie” (LOUREIRO, 2008, p. 78). Vigorava, desde que se estabeleceram as casas aviadoras e os seringais, o sistema de crédito, no qual os bancos forneciam aos aviadores, comerciantes, ferramentas e gêneros diversos; e estes, por sua vez, forneciam seus produtos aos seringalistas em troca da borracha. O seringalista repassava parte do que obtinha com o aviador para o seringueiro, através do barracão, em um sistema de endividamento sempre crescente. A borracha asiática voltou a figurar no mercado, agora com inúmeras empresas comandando sua produção. A oferta e os preços baixos fizeram a borracha amazônica cair de 17$000 para 7$000. Os anos que se seguiram foram marcados pelo recrudescimento contínuo dos preços; pela fuga de capitais para o Oriente; e pela perda da posição de maior exportadora mundial. A situação de Belém, entre 1912 e 1913, de acordo com o antropólogo Fábio Fonseca de Castro em a Cidade Sebastiana: Era da borracha, memória e melancolia numa capital da periferia da modernidade7, era a seguinte: acumulava cerca de 100 milhões de francos, ou 59.524 contos de réis. Nos dias que se seguiram, cerca de 160 estabelecimentos comerciais fecharam as portas. A prefeitura de Belém devia mais de 2 milhões de libras esterlinas e o governo do Estado devia quase a mesma quantia.

O Amazonas também estava mergulhado em dívidas. Ao todo, somadas as dívidas externas e internas, devia-se cerca de 100.000 contos de réis, um valor, segundo Loureiro, “impossível de ser pago, pois a arrecadação de 1914 fora de apenas 6.900 contos e a de 1915 ficaria entre 4. 250 e 5.800 contos” (LOUREIRO, 2008, p. 14). Parintins, Itacoatiara, Humaitá e Maués, que no período conseguiram desenvolver algum comércio e se desenvolver, se encontravam agora acanhadas, com seus habitantes vindo procurar na capital mínimas condições de sobrevivência.A arrecadação dos dois estados e a do território do Acre caiu de forma significativa, tornando mais grave os quadros sociais e econômicos:

A receita do Estado do Pará, que era de 20.255 contos em 1910, reduz-se a 8.887 em 1915 e a 8.517 em 1920; a do Amazonas, de 18.069 cai para 7.428 e 5.888 respectivamente; e a do Acre, de 19.868 baixa para 5.610 em 1915, menos de 1/3 do que fora. A despesa pública teve que cair, mas não na mesma proporção, de modo que o deficit orçamentário se torna rotina naqueles anos8.

Os relatos de contemporâneos da Grande Crise, fontes primárias, nos mostram com vivacidade o que foram aqueles anos de estagnação. Por meio de artigos, a Revista da ACA noticiava o intenso movimento de abandono da capital amazonense em direção a outras regiões do país ou ao exterior. Um dos documentos mais interessantes, não ligado a instituições políticas ou econômicas, é a carta do fotógrafo alemão George Huebner, que por muitos anos manteve um estúdio em Manaus. O conteúdo da carta nos dá um panorama de como ficou a cidade durante a Primeira Guerra Mundial, quando algumas rotas comerciais foram temporariamente fechadas e os preços caíram mais bruscamente:

O que eu poderia dizer daqui? A situação é desoladora, não poderia ser pior. Tudo isso é o efeito da guerra. Primeiramente, o preço do látex não parou de cair, depois foi o câmbio da moeda, e agora tudo se encontra parado. Você deveria ter visto Manaus antes, tão animada! Atualmente inúmeras casas nas ruas principais estão vazias e cada vapor que vai para o sul viaja lotado de passageiros que fogem de Manaus. As pessoas sem dinheiro, que não podem pagar a viagem, se retiram para os seus sítios do interior, de maneira que a cidade se torna cada vez mais vazia. Agora não se faz mais negócios. Feliz é aquele que ainda consegue equilibrar suas despesas. Não é, infelizmente, o meu caso9.

Todos os desdobramentos da Primeira Guerra eram diariamente noticiados pelos jornais. No Estado do Pará10, lamentava-se que o florescente comércio do Estado e sua pequena indústria, por ausência de recursos, perdia a oportunidade de tirar algum proveito com o conflito, como estavam fazendo outros países da América Latina, que impossibilitados de importar produtos manufaturados da Europa, passaram em investir em suas próprias indústrias e a fortalecer o mercado interno. Suicídios motivados por perdas de emprego também eram vez ou outra noticiados. Mas o que realmente ganhava inúmeras páginas nos impressos era o isolamento da Amazônia, motivado pela crise marítima ocasionada pelo bloqueio naval alemão, iniciado em 1915. Um dos episódios mais dramáticos foi torpedeamento, na Costa da Grã-Bretanha, em 1917, do Paquete Antony, de propriedade da Booth & Company, onde foram perdidas 586 toneladas de borracha e 366 de farinha de mandioca11.

A crise da economia gomífera atingiu todos os setores da sociedade, seringalistas, comerciantes, profissionais liberais etc. Pará e Amazonas diminuíram as importações de gêneros alimentícios de outros estados; as libras esterlinas passaram a entrar com mais dificuldade no país; e uma fatia considerável da arrecadação da União teve fim. O funcionalismo público se tornou uma das poucas alternativas ainda rentáveis para as classes médias urbanas. Mas, para Márcio Souza, “o fim não significou nenhuma mudança na qualidade de vida dos seringueiros, dos operários, dos agricultores” (SOUZA, 2009, p. 310). O Pará, que tinha uma larga tradição comercial desde o século XVIII, resistiu melhor à crise. O Amazonas, no entanto, com comércio e indústria inexpressivas desde os tempos coloniais, tardou a se recuperar, encontrando salvação com a Zona Franca no final dos anos 60 do século XX. A crise tem suas especificidades. Nem todos os empresários faliram, e alguns chegaram a transformar a situação em oportunidade de crescimento. Joaquim Gonçalves de Araújo, por exemplo, desde fins do século XIX diversificava suas atividades, exportando não apenas borracha, mas castanhas, peles de animais e, algo raro, construindo uma indústria de manufaturas. Suas empresas resistiram às crises de 1910, 1920 e 1945 e só foram extintas no final dos anos 90 do século passado.


Neocolonialismo e Guerra como “esperanças”

Na década de 20 do século passado, Europa e Estados Unidos controlavam boa parte dos países da África, Ásia, Oceania, Oriente Médio e América. A Amazônia foi economicamente controlada, por 30 anos, por agentes do capital estrangeiro. No entanto, uma dominação completa, característica do neocolonialismo (dominação política e econômica), surgiria na região, mais especificamente no Tapajós (PA) a partir do final dos anos 20.

Henry Ford, grande empresário da indústria automobilística do início do século XX, buscava a autossuficiência de matérias-primas para suas indústrias. Não só Henry, mas um grande número de empresários americanos voltariam a depender da borracha brasileira. Durante a Primeira Guerra, o comércio europeu se tornou instável, agravado que fora pelo bloqueio marítimo alemão. A Inglaterra, que detinha o monopólio da borracha, viu os estoques acumularem e os preços caírem. Visando garantir preços estáveis e impedir a acumulação do produto durante o pós-guerra, o país adotou, a partir de 1923, o Plano Stevenson, que, basicamente, passa a limitar a cota de cada produtor inglês.

Com menos matéria-prima no mercado e os preços novamente favoráveis aos ingleses, os grandes fabricantes americanos de pneus foram os mais prejudicados. Como reação, as grandes companhias da época (Goodyear, Firestone e Ford) passaram a buscar diferentes locais, da América à África, para implantar seus próprios seringais.

José Custódio Alves de Lima, cônsul geral do Brasil nos Estados Unidos, depois de saber do interesse do empresário em criar um seringal em Everglades, na Flórida, lhe sugeriu a Amazônia como local de implantação para seu projeto. José Custódio, em contato com Dionísio Bentes, governador do Pará, facilitou para Ford a aquisição de um milhão de hectares no Tapajós. A Companhia Ford, através de contrato firmado com o governo do Estado do Pará em 03/01/1927, tinha o direito à exploração das terras, dos minerais e de outras matérias-primas nela encontradas; de realizar a navegação nos rios Tapajós e Amazonas; construir estradas, armazéns, fábricas, criar núcleos de povoação, escolas, linhas de comunicação etc, sem necessidade do aval de qualquer autoridade. Poderia criar sua própria relação política, sem intervenção do governo. Estava, também, isenta de qualquer imposto pelo prazo de 50 anos. Surgiu um território americano na Amazônia, independente do Brasil, gerido por uma empresa privada.

Antigos trabalhadores das cidades do interior, dos seringais e de outras atividades atingidas pela grande crise, passaram a se dirigir à região que ficou conhecida como Fordlândia. Xingu, Madeira, Purus, Acre, Solimões, Guaporé e Jutaí foram os maiores “fornecedores” de mão de obra. Essas pessoas, acostumadas com um tradicional sistema de trabalho comandado pelo aviamento e pela rigidez do seringalista, pela primeira vez venderiam suas forças de trabalho através de um sistema de contrato. O funcionário recebia da Companhia uma chapa de alumínio, com seu número de identificação e tipo de serviço, pelo valor de dez mil réis. Através dessa chapa eram controladas as faltas, as licenças para tratamentos médicos, pagamentos de férias e transferências.

O regime de trabalho era pesado, indo de 7 da manhã à 17 da tarde, com direito a uma hora de intervalo. Relógios e sirenes ditavam o início e o fim do dia. Nos Estados Unidos vigorava a Lei Seca, que proibia o consumo de bebidas alcoólicas em todo o território. Henry Ford, com apoio do governo paraense, implantou a medida em Fordlândia, onde já existia um considerável número de bares e casas de diversão. Para escapar da rigidez da fiscalização, à mesma maneira que nos Estados Unidos, surgiu um intenso movimento de contrabando de bebidas. Nos barracões onde eram feitas as refeições dos funcionários de patentes mais baixas, peixe e farinha eram substituídos por pão e espinafre, e servidos em bandejas padronizadas. A imposição dessas mudanças, nos anos 1930, fez surgir movimentos de greve radicais, com a destruição de galpões, tomada de usinas e refeitórios.

Os funcionários americanos abandonaram Fordlândia. Foi preciso a intervenção de forças policiais para o fim do movimento. Mas, antes mesmo de qualquer revolta, essa concessão já não mostrava os resultados esperados:

A grande distância do porto de Santarém, dificultando a comunicação e o abastecimento comercial, a reduzida força de trabalho, a não seletividade das mudas e sementes de seringueiras e a topografia do local, bastante acidentada, representavam um entrave para a lucratividade da empresa12.

Soma-se ao fracasso técnico a doença do mal das folhas, que atacava a árvore da seringueira e reduzia a produção do látex. Com o fracasso da primeira concessão de terra, a Ford permutou com o governo uma parte de Fordlândia por outra, dessa vez Belterra, distante 30 milhas de Santarém. Da mesma forma que na primeira, Belterra recebeu todos os aparatos necessários para seu funcionamento: escolas, hospitais, vilas, instalações industriais, um porto e estradas. Os antigos trabalhadores de Fordlândia foram transferidos para Belterra, e também foram realizadas novas contratações. Esse, que parecia ser o emprego dos sonhos, mostrava sua face mais cruel com a política da empresa para com os funcionários. Um anúncio da companhia em 1943, publicado em O Jornal de Santarém13, oferecia 9 cruzeiros por dia para homens e 6 para mulheres. As crianças, que já eram aceitas a partir dos 7 anos, ganhava 0, 50 por hora de serviço. Os fiscais estavam sempre atentos aos afazeres dos funcionários. Por menor que fosse o erro, o trabalhador era expulso da companhia sem o direito de tentar se explicar. Esses problemas, a baixa produtividade das plantações e a invenção da borracha sintética buna, mais barata que a natural, deram fim ao projeto, que durou de 1927 até 1945.

Entre 1942 e 1945, o Amazonas se viu inserido no conflito mundial. Em 1941, o Japão atacou bases Aliadas americanas e britânicas no Pacífico, dominando logo depois as colônias asiáticas produtoras de borracha. Sem acesso a essa matéria-prima, útil à indústria bélica e manufatureira, os Aliados voltaram suas atenções para o Amazonas. Em 1942, navios brasileiros foram torpedeados pelos alemães, o que fez o país declarar guerra ao Eixo.

O Amazonas, através de acordos firmados entre o Brasil e os Aliados, entrou no conflito como fornecedor de borracha. Mais uma vez ocorreria um surto de imigração nordestina para a Amazônia. Através dos “Acordos de Washington”, ficou estabelecido que os Estados Unidos investiriam no financiamento da produção de borracha na Amazônia, enquanto que o governo brasileiro se encarregaria de recrutar o maior contingente possível de trabalhadores. Estima-se que, entre 1942 e 1945, o governo conseguiu enviar do Nordeste, que passaram por uma terrível seca, cerca de 60.000 retirantes para a região Norte. O sistema de trabalho dos seringueiros continuava sendo o mesmo do início do século: em situação de semi escravidão, preso ao aviamento como devedor de um sistema cíclico. O governo norte-americano ficou de pagar 100$ por trabalhador instalado nos seringais. Manaus se tornou uma das subsedes da Rubber Development Company, órgão criado para administrar os serviços no Estado. A exportação da borracha, a circulação monetária, a construção de um aeroporto, os investimentos na capital e a especulação imobiliária criaram um momento de recuperação.

Enquanto o conflito ia se encaminhando e delineando o mapa político do mundo, os amazonenses e paraenses, inflados pelas propagandas do governo de Getúlio Vargas, mergulhavam, às de vezes de forma violenta, em um sentimento patriótico. Há registros, em Manaus, da malhação de bonecos de Judas como o nome ‘Xitler’, uma paródia com o nome do ditador alemão Adolf Hitler. Na Vila de Tomé-Açú, no Pará, foi construído um campo de concentração que chegou a receber 480 famílias japonesas, 32 alemãs e algumas italianas, tanto do próprio Estado quanto do Amazonas. Essas famílias, em Manaus e Belém, sofriam perseguição, tinham seus estabelecimentos e residências depredados pelo simples fato de virem dos países que formavam o Eixo.

Esse pequeno surto de desenvolvimento, de patriotismo, teve fim com a Segunda Guerra. O antigo mercado asiático estava novamente aberto, novas técnicas aperfeiçoaram o uso de borracha sintética. Já não existia mais a necessidade da borracha amazônica. O conflito acabara e, com ele

as esperanças de tirar a região do abismo sem fim do subdesenvolvimento. Os planos de desenvolvimento concebidos nos “Acordos” foram abandonados, as verbas indenizatórias dos trabalhadores foram descaminhadas, as estruturas do atraso não foram rompidas e tudo voltou como dantes. As atenções do governo federal agora são para as regiões Sul-Sudeste, por estas apresentarem mais condições de dinamismo econômico. A Amazônia vai ser mesmo esquecida do resto da nação por muito tempo14.

A Amazônica se viu novamente abandonada. O capital estrangeiro, depois de mais de 40 décadas conseguindo alguns resultados satisfatórios, foi direcionado para mercados mais estáveis. Em socorro à região, a nova Constituição de 1946, no artigo 199, de autoria do deputado federal Leopoldo Péres, instituiu que a União destinaria 3% de sua arrecadação para financiar o Plano de Valorização Econômica da Amazônia. Em 1953 foi criada a Superintendência de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), que visava o desenvolvimento da agricultura, da extração mineral e da pecuária. Por falta de estrutura, principalmente de estradas, o plano não vingou. A construção da estrada Belém-Brasília, em 1958, atraiu o capital de grandes indústrias que passaram a funcionar no Pará. Em 1966 foi criada a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), que criou incentivos fiscais para empresas nacionais e estrangeiras se instalarem na região. O resultado desse programa foi a criação da Zona Franca de Manaus, zona de livre comércio.


Algumas perspectivas historiográficas e sociológicas (1945-1999)

Existe, desde 1940, uma densa historiografia sobre esse período econômico da região, tanto de autores naturais da terra quanto de outros estados. Institutos Históricos e Geográficos, Universidades e outros especialistas lançaram uma gama de interpretações na tentativa de compreender o que ocorreu naquele intervalo de tempo entre 1890 e 192015.

Caio Prado Júnior, em História Econômica do Brasil (1945), vê de forma negativa o sistema de aviamento, que se aproveitando do baixo ou nulo letramento do seringueiro, o prende a um sistema contínuo de endividamento; e o sistema rudimentar de trabalho, que destruía aos poucos as árvores de seringueira, tornando os espécimes cada vez mais raros. Para o autor, além do contrabando de Wickham, o declínio se deu porque a Amazônia se constituía em uma região meramente exportadora de matéria-prima, enquanto que suas concorrentes, as colônias asiáticas, eram financiadas, desde a plantação até a distribuição, pela Inglaterra e outras potências europeias; e porque as elites locais, políticos e seringalistas, não construíram algo duradouro, dissipando rapidamente os lucros obtidos com essa economia, cujo maior símbolo, de “imponência e mau gosto”, é o Teatro Amazonas. Para esse historiador da geração nacionalista e progressista, o ciclo da borracha foi marcado por uma prosperidade fictícia e superficial, o que torna seu fim “mais um assunto de novela romanesca que de história econômica” (MESQUITA, 2006).

Em Ordem e progresso (1957), Gilberto Freyre aborda a transição do período imperial para o Republicano, mostrando como permanecem, nesse novo contexto político, formas de organização social características da monarquia, com o diferencial de que a República trouxe a industrialização, a urbanização e, em menor proporção, alguma ascensão social de grupos antes excluídos. É nessa oposição, entre Império e República, que entra Manaus. Para Gilberto, a cidade foi “uma reação à rotina brasileira”, pois, recebendo influências inglesas, francesas, americanas e espanholas, se diferenciava da maioria das cidades do país, ainda com fortes traços conservadores do Império, acolhendo “desajustados políticos e sociais” que se entregavam aos prazeres em um ambiente de “economia de aventura e de civilização cenográfica” (MESQUITA, 2006).

A partir de 1960 autores da região Norte começaram a publicar obras sobre o assunto. Genesino Braga, em Fastígio e sensibilidade do Amazonas de ontem (1960), é saudosista ao afirmar que, naquele momento, o Amazonas “passava por uma fase alucinante de fausto, de luxo, de esbanjamento e de gastos imoderados, sendo um pequeno centro de ressonância da cultura europeia” (MESQUITA, 2006).

Bradford Burns, professor de História da UCLA e especialista em América Latina, produziu em 1961 uma monografia editada pelo governo do Estado do Amazonas em 1966, com o nome Manaus 1910: retrato de uma cidade em expansão. Sobre a capital, diz ele: “em 1910, Manaus reinava como a capital mundial da borracha. Manaus alardeava com orgulho todas as civilidades de qualquer cidade europeia de seu tamanho ou mesmo maior”. Notou que, politicamente, a cidade estava ligada ao Rio de Janeiro, economicamente dependia de Londres e, culturalmente, de Paris. A obra, que não possui maiores informações, não carrega críticas sobre o sistema econômico, as condições de trabalho e as elites (MESQUITA, 2006).

Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro (1969), de Luiz de Miranda Corrêa, tem ares de um elogio saudosista ao período, à influência europeia e à ação das elites. Manaus se transformava, com obras monumentais e serviços públicos de qualidade. “Uma sociedade inteira passava de um estágio primitivo para os requintes da civilização europeia”. A descrição dos palacetes, bares, hotéis e bordéis são vívidas. As elites elogiadas são aquelas formadas com o nascimento da República, enquanto que “as famílias mais antigas do Amazonas, o pequeno número de privilegiados do Império, […] ou se adaptavam às novas condições de vida da região ou seriam, como vários o foram, tragados pelo redemoinho dos interesses da borracha” (CORRÊA, Luiz de Miranda. Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro. Manaus: Artenova, 1969).

Com exceção da análise de Caio Prado Júnior e, em parte, da de Gilberto Freyre, que ainda tenta ver algum ponto positivo na sociedade republicana do início do século XX, todas as demais são positivas, algumas constituindo-se em verdadeiros elogios saudosistas. A borracha tornou alcançável o ideal de progresso burguês da Europa, sedimentando um passado amazônico nativo e mestiço, estagnado no marasmo colonial e, logo depois, imperial (MESQUITA, 2006).

O sociólogo Márcio Souza encerra essa linha de elogios e exaltação da cultura burguesa em 1977, com a publicação de A Expressão Amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. De acordo com Otoni Mesquita, Márcio Souza, em algumas passagens, “mostra ter alguma influência de Caio Prado e Gilberto Freyre, mas tece críticas mais radicais” (MESQUITA, 2006, p. 157). Para o autor, durante o apogeu da borracha, o Amazonas esteve bastante alienado, com sua capital sendo “a única cidade brasileira a mergulhar de corpo e alma na franca camaradagem dispendiosa da belle époque”. Acrescenta ainda que ela não era “verdadeiramente uma cidade, mas decoração do sonho e do delírio, microcosmo das doenças do espírito burguês com toques de selvageria e grossura”, cujo novo estilo de vida contrastava com sua linhagem portuguesa, a tornando um verdadeiro cenário para o colonialismo. Essas críticas, em especial ao ideal burguês citadino, também poder ser vistas em sua Breve História da Amazônia (1994) e História da Amazônia (2009).

Roberto Santos, com sua História Econômica da Amazônia: 1800-1920 (1980), vê o ciclo da borracha como uma fase de expansão da economia amazônica, dependente de estímulos externos (industrialização na América do Norte e na Europa). Para ele, a força desses estímulos foi tão forte ao ponto de outros setores econômicos não conseguirem competir com a extração do látex, que absorveu mão de obra até da agricultura de subsistência. O sistema de aviamento “falseava o cálculo econômico”, estimulando o escambo nos seringais e “limitando a liberdade de consumo dos trabalhadores”. Roberto divide o período em quatro fases: 1830-50 – elevação inicial moderada; 1850-70 – melhoria do tirocínio, com aceleramento da produtividade; 1870-90 – adestramento nordestino, com modestíssima elevação da produtividade; e 1890-1910 – A fase acreana.

Antônio Loureiro, em A Grande Crise (1986), com um grande arsenal de dados estatísticos, analisa a derrocada da borracha em uma perspectiva nacional. O Brasil, para o autor, sentiu os efeitos da crise, pois dependia da Amazônia para a obtenção das libras esterlinas, necessárias para o pagamento da dívida externa, para equilibrar o preço do café e urbanizar a capital federal; mas continuava alheio à região. As críticas, em sua maioria, são feitas à omissão da União, que tardiamente tomou medidas que se mostraram ineficazes ao combate da crise; outras são feitas aos empresários e outros trabalhadores que enviavam altas somas de dinheiro para suas terras de origem, descapitalizando a região.

Warren Dean, americanista autor de A luta da borracha no Brasil (1987), desenvolve uma pesquisa interdisciplinar entre a história e a ecologia, ou História Ecológica, popular nos EUA entre 1970 e 1990. Dean levantou importantes questionamentos, como o porque de o país ter perdido o monopólio; quais os limites da monocultura; e porque as plantações brasileiras falharam. A luta do Brasil se deu após o auge das exportações e no início da decadência, quando começaram as primeiras tentativas de domesticação da seringueira e seu cultivo racional. Sua abordagem ultrapassa o recorte cronológico tradicional, indo de 1855 a 1986.

Bárbara Weinstein, também americanista, produziu A borracha na Amazônia: expansão e decadência, 1850-1920 (1993). Nesse estudo a autora mostrou como essa matéria-prima dominava a região muito antes do boom do final do século XIX; como existia, entre as elites, discursos a favor e contra essa economia extrativa. Ao abordar a figura do seringueiro, Bárbara, dentro do conceito de luta de classes da teoria marxista, foge da historiografia tradicional, que o mostrava apenas como um trabalhador miserável e explorado, o mostrando como um “militante” que usava diferentes formas de resistência contra a opressão dos seringalistas.

O ensaio de Edinea Mascarenhas Dias, A Ilusão do Fausto – Manaus 1890-1920 (1999), é um estudo que, ao mesmo tempo em que é esmiuçado o processo de transformação e desenvolvimento da cidade e de suas políticas públicas, são apresentadas as contradições do espaço urbano pensado pelas elites e pelo poder público, que criou mecanismos que, ao mesmo tempo em que ordenavam a urbe, segregavam pobres, prostitutas, analfabetos e desocupados. Tem influências de Edward Thompson, com sua crítica ao marxismo estruturalista; e de Max Weber, com seu conceito de estratificação social. O livro é dividido em duas partes: A cidade do Fausto e A falácia do Fausto.


Conclusão

A crise da economia gomífera é um período ainda pouco estudado, tanto a nível regional quanto seus reflexos para o resto do país. Existem trabalhos, nos campos da História, da Sociologia e da Economia, de autores nacionais e estrangeiros, que buscaram diferentes formas de interpretar a Amazônia a partir de 1910. A Amazônia fora incorporada ao capitalismo internacional como fornecedora de matéria-prima. Passou por um surto de progresso, mas ao custo de milhares de vidas humanas e na forma de pequenas ilhas de privilégios de seringalistas e aviadores. O período não deve ser encarado como uma “novela romanesca” de Caio Prado Júnior, pois por 3 décadas fora um dos sustentáculos da economia nacional; nem romantizado como em Luiz de Miranda Corrêa, pois ergueu-se em meio a exploração do seringueiro, à prostituição feminina e a exclusão de grupos menos favorecidos. Analisar o ciclo da borracha e sua crise é levar em conta sua dinâmica, suas especificidades e o contexto da época.

Bibliografia

AMORIM, Antônia Terezinha dos Santos. A Dominação norte-americana no Tapajós – A Companhia FORD Industrial do Brasil. Câmara Municipal de Santarém, Santarém (PA), 1995.

CASTRO, Fábio Fonseca. Este ano Belém completa 100 anos da crise da borracha. Ninguém mais vai lembrar? Disponível em http://hupomnemata.blogspot.com.br/2012/01/este-ano-belem-completa-100-anos-da.html.

DEAN, Warren. Luta pela borracha no Brasil. São Paulo, Nobel, 1989.

FIGUEIREDO, Aguinaldo. Manaus nos anos 40 (II): A Segunda Guerra Mundial. Disponível em: http://historiainte.blogspot.com.br/2015/10/manaus-nos-anos-40-ii-segunda-guerra.html Acesso em 17/03/2017.

FORLINE, Louis Carlos. O ladrão de sementes. RJ, Revista de História da Biblioteca Nacional, n° 08, abril de 2013.

LOUREIRO, Antônio. A Grande Crise (1907-1916). Manaus, Editora Valer, 2° ed, 2008.

SANTOS, Roberto. História Econômica da Amazônia. São Paulo, T.A. Queiroz, 1980.

SOUZA, Márcio. História da Amazônia. Manaus, Editora Valer, 2009.

VANIA, Paula. Biografia de Huebner. Manaus, 2014. Disponível em:
http://noticiasdemanaus.blogspot.com.br/2014/05/ultima-parte-da-biografia-de-huebner.html Acesso em 09/03/2017.

FONTES:

Jornal do Comércio, 04/01/1907.

Jornal Estado do Pará, 21/03/1917.

Revista a Associação Comercial do Amazonas, n° 95, 10/05/1916.

NOTAS:

1Amando Mendes. Revista a Associação Comercial do Amazonas, n° 95, 10/05/1916.
2DEAN, Warren. Luta pela borracha no Brasil. São Paulo, Nobel, 1989, p. 80.
3Idem, p. 80-81.
4SOUZA, Márcio. História da Amazônia. Manaus, Editora Valer, 2009, p. 310.
5Sobre as queixas dos presidentes da Província do Amazonas, consultar os relatórios provinciais, disponíveis em Center for Research Libraries: http://www-apps.crl.edu/brazil/provincial/amazonas
6Jornal do Comércio, 04/01/1907, p. 1.
7CASTRO, Fábio Fonseca. Este ano Belém completa 100 anos da crise da borracha. Ninguém mais vai lembrar? Disponível em http://hupomnemata.blogspot.com.br/2012/01/este-ano-belem-completa-100-anos-da.html Acesso em 07/03/2017.
8 SANTOS, Roberto. História Econômica da Amazônia. São Paulo, T.A. Queiroz, 1980, p. 240.
9 VANIA, Paula. Biografia de Huebner. Manaus, 2014. Disponível em:
http://noticiasdemanaus.blogspot.com.br/2014/05/ultima-parte-da-biografia-de-huebner.html Acesso em 09/03/2017.
10 Estado do Pará, 21 de março de 1917, p. 01.
11 Idem, p. 01.
12AMORIM, Antônia Terezinha dos Santos. A Dominação norte-americana no Tapajós – A Companhia FORD Industrial do Brasil. Câmara Municipal de Santarém, Santarém (PA), 1995, p. 44.
13Ibidem, p. 108.
14FIGUEIREDO, Aguinaldo Nascimento. Manaus nos anos 40 (II): A Segunda Guerra Mundial. 24/10/2015. Disponível em: http://historiainte.blogspot.com.br/2015/10/manaus-nos-anos-40-ii-segunda-guerra.html Acesso em 17/03/2017.

15 Subtópico retirado na íntegra do livro de Otoni de Moreira Mesquita, 'Manaus, História e Arquitetura – 1852-1900'. Ele traça uma cronologia para a historiografia da borracha que vai de 1945 com Caio Prado Júnior até 1977 com Márcio Souza. No artigo a cronologia se estendeu até 1999, com o trabalho de Edneia Mascarenhas Dias. Foram incluídos os autores Roberto Santos, Antônio Loureiro, Warren Dean e Bárbara Weinstein.

CRÉDITO DA IMAGEM:

stravaganza.com