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segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

A Amazônia Pombalina

Retrato do Marquês de Pombal. Pintura de Louis-Michel van Loo e Claude Joseph Vernet, 1766.

A Amazônia começou a passar por transformações profundas na segunda metade do século XVIII. Em Portugal, subiu ao trono em 1750 o Rei D. José I, conhecido como O Reformador, que botou em prática um projeto de transformação política e econômica no reino e nas colônias, nomeando o Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo), para empreender essa tarefa.

Portugal era uma nação pobre e dependente da Inglaterra. Para superar essa condição, o Marquês de Pombal elaborou um ambicioso projeto de modernização das instituições. A Amazônia, que até então era uma região, no cenário colonial, subalterna, passou a fazer parte dos quadros de desenvolvimento mercantilista.

Numa tentativa de reordenação e aperfeiçoamento da manutenção das fronteiras, é criado em 1751 o Estado do Grão-Pará e Maranhão, formado pelas capitanias do Pará, Maranhão, Piauí e Rio Negro, com capital em Belém.

As aldeias tiveram suas nomenclaturas alteradas, recebendo nomes portugueses. Exemplos: Mariuá – Barcelos; Taracuatíua – Fonte Boa; Saracá – Silves; Abacaxis – Itacoatiara; Trocano – Borba; Caiçara – Alvarães; São Paulo dos Cambebas – Vila de São Paulo de Olivença.

Em 03 de março de 1755 é criada a Capitania de São José do Rio Negro, desmembrada do Estado do Grão-Pará e Maranhão. A criação dessa nova unidade política colonial tinha três objetivos. O primeiro, facilitar a administração portuguesa na Amazônia, pois as dimensões geográficas da região faziam com que as decisões tomadas em São Luís, no Maranhão, e Belém, no Pará, chegassem de forma tardia nas localidades mais interioranas, extremamente distantes dos centros das decisões políticas. O segundo, facilitar a catequização dos indígenas. O terceiro, garantir a soberania portuguesa frente as ameaças de espanhóis, ingleses, holandeses e franceses.

O rei de Portugal, Dom José I, autorizou, no Alvará de 04 de abril de 1755, o casamento entre portugueses e indígenas, com amplos benefícios para os casais constituídos e seus descendentes, súditos a partir de agora com forte ligação com a metrópole portuguesa. Essa política de união entre brancos e indígenas começou a surtir efeito cedo, como fica claro em uma carta de Mendonça Furtado para o rei, onde ele transmite que conseguiu que “naquele pouco espaço se contrahissem não menos de 78 matrimonios no Ryo Negro”.

Os jesuítas foram expulsos da Amazônia em 1759. Essa ação fazia parte da obra modernizadora iluminista de Pombal, que previa a atuação ampliada do Estado sobre todos os setores da sociedade. Afirmava-se que os jesuítas estavam criando um "Estado dentro do Estado", oferecendo riscos à soberania portuguesa.

Com o fim da União Ibérica (1580-1640), período de domínio da Espanha sobre Portugal, foi necessário estabelecer novos tratados de limites. Três foram assinados durante o período Pombalino: Tratado de Madri (1750), Tratado de El Pardo (1761) e Tratado de Santo Ildefonso (1777).

No Tratado de Madri ficou acertado que Portugal reconhecia a soberania da Espanha sobre a Colônia de Sacramento, fundada pelos portugueses em 1680, e o território do Rio da Prata, enquanto a Espanha entregava a Portugal os Sete Povos das Missões, no Rio Grande do Sul, e os territórios da Amazônia e Mato Grosso. Para ficar com essas terras, Portugal invocou a tese do Uti Possidetis, segundo a qual a terra pertence a quem a ocupa e desenvolve.

Esse tratado foi anulado em 1761 pelo Tratado de El Pardo por conta das Guerras Guaraníticas, encabeçadas pelos indígenas e jesuítas espanhóis que se recusaram a deixar as terras dos Sete Povos das Missões e pela falta de demarcação dos limites na Amazônia.

Em 1777 é assinado o Tratado de Santo Idelfonso, que determinou, de forma definitiva, que Portugal ficava com a região Amazônica, e a Espanha ficava com a Colônia de Sacramento e os Sete Povos das Missões, no Sul. O Tratado de Badajós, de 1801, autenticou essas decisões. A Amazônia, ocupada e desbravada pelos portugueses, agora lhes pertencia de fato.

Visando a dinamização da produção e comércio das drogas do sertão, o desenvolvimento da agricultura e a introdução de escravizados africanos, foi criada em 1755 a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, com sede em Lisboa.

Portugal buscou utilizar a mão de obra indígena, integrando os nativos à cultura europeia, os transformando, pela força, em braços úteis ao progresso econômico. Em 06 de junho de 1755 a escravidão indígena foi abolida, sendo os nativos igualados aos portugueses. Dois anos depois o trabalho forçado foi regulamentado através do Diretório dos Índios (1757).

O Diretório determinou que os indígenas ficariam sob domínio dos Diretores, que deveriam zelar pela administração das comunidades. Os indígenas foram proibidos de falar suas línguas e o nheengatu, língua geral criada pelos jesuítas, devendo falar apenas a língua portuguesa e utilizar sobrenomes em português. Suas casas deveriam ser construídas como a dos brancos, com divisões para quarto, cozinha etc.

Os indígenas deveriam se dedicar à agricultura de exportação, mas também eram obrigados a cultivar mandioca, feijão, milho e arroz para consumo próprio e para abastecer os moradores das cidades. A atividade comercial sofreu interferência, com a padronização de pesos e medidas. Os povoados próximos aos mares e rios deveriam se dedicar à salga de peixe para a exportação.

Nos povoados e arredores onde existissem drogas do sertão, os indígenas que tivessem finalizado o cultivo de suas roças seriam arregimentados pelo Diretor para sua exploração, com fiscalização do Cabo das Canoas, que evitaria que o diretor se beneficiasse do trabalho dos nativos.

Os indígenas eram obrigados a pagar o dízimo, que era a décima parte do que produzissem e adquirissem, ficando o diretor responsável pela cobrança. Este último tinha como salário a sexta parte do cultivo e produtos adquiridos pelos indígenas, estes últimos não devendo ser produtos comestíveis.

Nesse novo contexto de trabalho compulsório os indígenas eram distribuídos pelos diretores entre os habitantes dos povoados e vilas, os ajudando na extração das drogas do sertão e nas lavouras. Uma parte deles ficava retida em suas próprias povoações para a defesa do território e os serviços prestados à coroa. O diretório foi abolido em 1798.

Uma nova divisão territorial foi feita em 1772. O Estado do Grão-Pará e Maranhão foi dividido em dois estados independentes: a Capitania do Grão-Pará e Rio Negro, com capital em Belém, e o Estado do Maranhão e Piauí, com capital em São Luís.

A Era Pombalina chegou ao fim em 1777, quando o Rei D. José I faleceu e sua filha, Maria I, demitiu o Marquês de Pombal do cargo de ministro.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

FREIRE, José Ribamar Bessa (coord.); PINHEIRO, Geraldo P. Sá Peixoto; TADROS, Vânia Maria Tereza Novoa; SANTOS, Francisco Jorge dos; SAMPAIO, Patrícia Maria Melo; COSTA, Hideraldo Lima. A Amazônia Colonial (1616-1798). Manaus: Editora Metro Cúbico, 1991.

SANTOS, Francisco Jorge dos. História do Amazonas. 1° ed. Rio de Janeiro: MEMVAVMEM, 2010.

sexta-feira, 25 de março de 2022

Matéria viscosa, matéria vistosa: a escarradeira

Escarradeira de porcelana francesa. FONTE: Leslie Diniz Leilões.

A escarradeira, também conhecida como cuspideira e salivadeira, é um objeto utilizado, como revelam seus nomes, para escarrar e cuspir. Suas origens remontam à Idade Média Oriental. Na China, por exemplo, foram encontradas escarradeiras em tumbas de imperadores que remontam ao século VIII. As intensas trocas comerciais entre o Oriente e o Ocidente, no século XVI, fizeram as escarradeiras se popularizar nas Cortes da Europa - escarrar era um hábito - principalmente durante o apogeu das exportações de tabaco das colônias portuguesas e espanholas na América. Após o tabaco ser mascado, ele era cuspido nesses recipientes. Além desse uso, a escarradeira também era utilizada para fins médicos, com a eliminação de secreções decorrentes de doenças como a gripe e a tuberculose. 

Sua chegada ao Brasil se deu entre fins do século XVIII e início do XIX. Encontramos em jornais do Rio de Janeiro publicados entre as décadas de 1820 e 1840, pessoas anunciando a compra e a venda de escarradeiras. Em 1827, a Chácara Copacabana, do Padre Jacinto Pires Lima, foi furtada por uma quadrilha. Dentre os inúmeros itens subtraídos, consta uma escarradeira (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 30/03/1827, p. 03). Por volta de 1838, uma pessoa anônima, estabelecida na rua do Valongo, comprava objetos de segunda mão. Um dos objetos que procurava, ao lado de uma bacia e jarro de prata, era a escarradeira (O DESPERTADOR, 30/11/1838, p. 04). Em um leilão realizado em 1845 na rua do Ouvidor, foi leiloada uma escarradeira feita de mogno (JORNAL DO COMMERCIO, 20/06/1845, p. 03). O lampista Auguste Daveau, proprietário da loja 'Bule Monstro', anunciava ter para vender em 1859 "escarradeiras de latão e de folha envernizada, ditas hygienicas de patente" (ALMANAK ADMINISTRATIVO, MERCANTIL E INDUSTRIAL DA CORTE E PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO, 1859, p. 86).

A escarradeira, que já tinha uma origem ligada a membros do topo da hierarquia social, foi incorporada no Brasil pela nobreza, pela burguesia e pela classe média urbana. As utilizadas por esses segmentos eram feitas de porcelana, de louça, de faiança, de vidro e de madeiras e metais nobres. Eram decoradas com motivos florais, com paisagens bucólicas do campo, figuras de animais e muitas vezes suas formas, sendo mais empregada as do leão, com a representação de seu rosto e suas patas, de forma a lembrar, talvez, as origens orientais. Na geografia doméstica, a escarradeira, que poderia ser uma ou duas, ficava na sala, ao lado das cadeiras e sofás, e também debaixo ou ao lado da cama, junto do urinol. O sociólogo e historiador Gilberto de Mello Freyre registra que elas também eram postas na porta de casa, onde recebiam os visitantes: "Os viajantes estrangeiros que aqui estiveram no fim do século XVIII e no começo do XIX não se cansam de censurar nos brasileiros daquele tempo o mau hábito de viveram cuspindo, as salas cheias de escarradeiras ou cusparadas" (FREYRE, 2013). Os viajantes estrangeiros encontraram escarradeiras aos montes nas casas grandes e nas casas da burguesia e da classe média que começava a se formar em meados de 1800. A arqueóloga e historiadora Tânia Andrade Lima, em estudo sobre a cultura material do Rio de Janeiro do século XIX, afirma que a escarradeira é um objeto que diz muito, assim como outros, da mentalidade burguesa da época e suas práticas sociais:

"Destinados a aparar o excesso de saliva e catarro produzido pelo organismo e também o resultante do hábito de mascar o fumo, esses objetos confirmam a impregnação das mentalidades, à época, pelo humorismo hipocrático. Inusitados para os padrões atuais, atestam a extrema importância que as sociedades que os produziram ou adotaram no século passado atribuíam ao aoto de cuspir, de escarrar, de expelir o que consideravam nocivo ao organismo. Para que esta prática fosse exercida sem qualquer constrangimento, transformaram-na em um ato não apenas socialmente tolerado, mas sobretudo elegante, criando para esta finalidade requintados recipientes destinados a receber os fluidos viscosos" (LIMA, 1996, p. 66).

Sobre o hábito de cuspir e escarrar eram impostas, pelo menos desde o século XVI, normas de conduta. O teólogo e filósofo holandês Erasmo de Rotterdam, no livro A civilidade pueril, publicado em 1530, recomenda que quando se fosse cuspir, a pessoa deveria virar-se para o outro lado, de forma a evitar que as gotículas atingissem alguém. Se a matéria mucosa caísse no chão, o recomendado era que se colocasse o pé em cima. Cuspir em um lenço era o mais recomendável. Apesar de ser um hábito, não deveria ser praticado rotineiramente: "Não é de bom tom engolir saliva. Muito menos, tal como se vê em pessoas que, sem necessidade e mais por costume, apenas pronunciam três palavras e já estão a cuspir" (ROTTERDAM, 2006, p. 150).  Esse hábito, que se tornava cada vez mais intolerável, pôde ser mais ou menos controlado, de acordo com o sociólogo alemão Norbert Elias, através da escarradeira, que se tornou um utensílio bastante requisitado nas residências burguesas (ELIAS, 1994, p. 159).

As escarradeiras não ficavam restritas ao ambiente doméstico, estando presentes em hospitais, escolas, igrejas, bares e teatros. Vejamos a extensa lista de objetos solicitados pelo Presidente da Província do Amazonas para o Hospital Militar de Manaus em 1876: Nela constam xícaras, bules, copos, lamparinas, colchões, cadeiras, urinóis e "cincoenta escarradeiras de madeira" (JORNAL DO AMAZONAS, 06/07/1876, p. 03). Na lista de objetos a serem adquiridos pelo Gymnasio Amazonense Dom Pedro II, consta o pedido de uma dúzia de escarradeiras, não sendo especificado de que material (DIÁRIO OFFICIAL, 22/08/1896, p. 07). As que eram encomendadas para hospitais - geralmente de ferro ou outro material mais simples - ficando ao lado das camas dos pacientes, tinham um tratamento diferente. Contra vários tipos de doenças, o jornal A Federação recomendava, em 1899, que "na bacia de cama e escarradeira deve sempre haver uma porção do soluto de sulfato de cobre" (A FEDERAÇÃO, 15/12/1899, p. 01).

Ainda de acordo com Tânia Andrade Lima, as escarradeiras eram produzidas na China e exportadas para a Europa no século XVIII. Posteriormente surgiram oficinas nas cidades portuguesas de Viana, Porto e Gaia (LIMA, 1996, p. 67). Encontrou-se em um jornal baiano de 1841 um vendedor comercializando objetos de Prata vindos da cidade do Porto. Entre facas, garfos e bules estavam as escarradeiras (CORREIO MERCANTIL, 20/03/1841, p.04). Também existiam fábricas em outros países Europeus, como a Alemanha. É de lá uma interessante peça que faz parte do acervo do Museus Ibram Goiás, datada do século XIX e produzida pela fábrica Bonn Franz Ant Mehlem (1840-1884). Veio de Limoges, na França, uma belíssima escarradeira do Museu Histórico e Pedagógico Visconde de Mauá, em Mogi das Cruzes, São Paulo. Deve-se mencionar a produção brasileira, que teve como representante a Fábrica Nacional de Vidros de São Roque, no Rio de Janeiro, que produzia "escarradeiras de diferentes côres, imitando as francesas, proprias para sala de visita" (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 03/04/1860, p. 04).

A escarradeira possivelmente chegou ao Amazonas por volta de 1850, assim como outros objetos domésticos, favorecida que foi a região pelo estabelecimento de uma linha regular de vapores da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas (1852), propriedade do Barão de Mauá que mais tarde, em 1871, seria adquirida por empresários ingleses. A primeira referência encontrada data de 1859, na lista de objetos da Enfermaria Militar localizada em Manaus (ESTRELLA DO AMAZONAS, 20/07/1859, p. 03). Já por volta de 1870 a encontramos sendo comercializada. O comerciante Bernardo Truão, proprietário da Loja Esperança, importou em 1877 variadas "fazendas de luxo e miudezas" de Paris, Viena e Hamburgo, de onde vieram escarradeiras de porcelana (CORREIO DO NORTE, 21/07/1877, p. 04). Na Livraria Clássica, de Silva & Gomes, podiam ser encontradas, em 1892, "escarradeiras nickeladas e de zinco" (DIÁRIO DE MANÁOS, 06/04/1892, p. 04). Em 1898 a Casa Pekim, na rua Henrique Martins, comercializava "escarradeiras finas" (COMMERCIO DO AMAZONAS, 31/05/1898, p. 03).

O uso desse utensílio era tão arraigado na sociedade burguesa manauara que ele acabava tornando-se sinônimo de imundície em algumas situações. O jornal humorístico A Marreta, ao se referir a uma prostituta polaca que residia na Avenida Epaminondas, afirmou que ela era "peior do que uma escarradeira de tysico (tuberculoso)" (A MARRETA, 10/11/1912, p. 02). "Vae lavar tuas escarradeiras, sujo", bradavam os redatores de O Pimpão contra um português que estava tentando conquistar uma jovem (O PIMPÃO, 05/09/1911, p. 04). O Rebenque, protestando contra as moças que iam à missa e, ao invés de prestarem atenção nos ofícios, ficavam tagarelando, as alertava que "[...] as cabeças dos catholicos que vão a igreja, assistir religiosamente os seus actos, não podem nem devem servir de escarradeiras" (O REBENQUE, 11/01/1913, p. 03).

As mais belas escarradeiras do Amazonas encontram-se em exposição no museu do Teatro Amazonas. São de procedência holandesa e alemã, produzidas pela histórica fábrica Villeroy & Boch, em atividade desde 1748. São decoradas com figuras de animais, principalmente de pássaros, e cenas urbanas como um passeio de charrete, algo bastante característico do período. Outras, possivelmente de igual qualidade e beleza, devem ter se perdido nos antigos palacetes aristocráticos e residências pequeno-burguesas, a arruinar-se no Centro da cidade. Fazendo um exercício imaginativo, podemos nos transportar para a Manaus do final do século XIX e início do século XX para visualizar os usos da escarradeira. Quantas cusparadas e escarradas não foram dadas nos intervalos dos grandes espetáculos nas vistosas escarradeiras espalhadas pelo Salão Nobre do teatro, ou nas reuniões realizadas nos salões das casas mais suntuosas da Avenida Joaquim Nabuco e da Avenida Eduardo Ribeiro. Matéria viscosa de artistas, políticos, militares de alta patente, homens de negócios, cônsules, expectorada entre um gole de champagne francês Veuve Clicquot Ponsardin, vinho português do Porto e uma tragada de charuto cubano, o melhor do mundo. Expectoração que poderia anteceder ou suceder a assinatura de algum tratado, de acordo comercial entre seringalistas e casas aviadoras, ou de simples agendamento de convescote nos bosques do Tarumã no final de semana.

Até quando as escarradeiras foram utilizadas? É difícil precisar. As encontramos sendo vendidas ou leiloadas em anúncios de jornais até a década de 1940. A partir daí elas praticamente somem de circulação. As antigas escarradeiras de porcelana, de prata e de vidro, são substituídas por novos modelos hidráulicos, instalados em pontos estratégicos de espaços públicos e estabelecimentos comerciais, como bem exemplifica um anúncio de 1926 da Escarradeira Hygéa, criada no Rio de Janeiro, que possuía limpeza automática: "Os regulamentos de saúde publica exigem escarradeiras deste systhema". A revista Careta, do Rio de Janeiro, registra a instalação desse tipo de escarradeira em Manaus, no consultório do médico José Garcia e no Posto de Profilaxia Miranda Leão (CARETA, 17/09/1927, p. 37). É provável também que entraram em decadência juntamente aos hábitos de mascar fumo e usar cachimbo, e que tornaram-se, disso não tenhamos dúvida, menos toleráveis com o passar do tempo: o refinamento deu lugar ao estranhamento, à repugnância, reação que ainda temos quando vemos essas peças expostas em museus e lembramos dos seus usos no passado.


FONTES:

Diário do Rio de Janeiro, 30/03/1827.

O Despertador, RJ, 30/11/1838.

Correio Mercantil, BA, 20/03/1841.

Jornal do Commercio, RJ, 20/06/1845.

Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro, 1859.

Estrella do Amazonas, 20/07/1859.

Diário do Rio de Janeiro, 03/04/1860.

Jornal do Amazonas, 06/07/1876.

Correio do Norte, 21/07/1877.

Diário de Manáos, 06/04/1892.

Commercio do Amazonas, 31/05/1898.

A Federação, 15/12/1899.

O Pimpão, 05/09/1911.

A Marreta, 10/11/1912.

O Rebenque, 11/01/1913.

Careta, RJ, 17/09/1927.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Tradução de Ruy Jungman. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1994.

FREYRE, Gilberto de Mello. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global, 2013.

LIMA, Tânia Andrade Lima. Humores e odores: ordem corporal e ordem social no Rio de Janeiro, século XIX. Manguinhos - História, Ciências, Saúde, v. II, n.3, p. 44-96, 1996.

ROTTERDAM, Erasmo de. De Pueris (Dos Meninos) e A Civilidade Pueril. Tradução de Luiz Feracine. São Paulo: Editora Escala, 2006.

sexta-feira, 11 de março de 2022

Brasil Colônia: uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida

Vista de um Engenho Real no Brasil. Franz Post, século XVII. FONTE: Musée du Louvre/René-Gabriel Ojéda.

O texto aqui apresentado é fruto de uma resenha do primeiro capítulo do livro Casa Grande & Senzala, do sociólogo e historiador Gilberto de Mello Freyre. Nessa primeira parte é discutida a formação da sociedade colonial brasileira, assentada na monocultura, na mão de obra escrava e no hibridismo cultural entre o colonizador, o indígena e o escravo africano.

Por volta de 1532 - ponto de partida proposto por Freyre - quando a Coroa Portuguesa enviou a primeira expedição colonizadora, comandada pelo nobre, militar e administrador colonial Martim Afonso de Souza, teve início a empreitada portuguesa nessa parte dos trópicos, quando estes já tinham, pelo menos, um século de experiência na Índia e na África, vide a conquista da cidade de Ceuta em 1415. A estrutura mercantil da extração do Pau-brasil deu lugar à atividade agrícola, que garantiu estabilidade, diferente do que ocorria quando a organização era feita através de feitorias para a estocagem da madeira. A colonização foi organizada tendo como base a agricultura, a regularidade do trabalho escravo e a união do português com a mulher indígena e mais tarde a africana. Surge, assim, uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida.

A aptidão do português para a colonização de caráter híbrido e escravocrata é fruto de seu passado cultural entre a África e a Europa, das influências da cultura e clima africanos sobre a europeia, tornando maleáveis suas instituições, a alimentação, a vida sexual e a religião. Tiveram grande contribuição para atenuar o caráter português as relações tensas entre a Europa e a África. Contato através da guerra, do uso dos cativos conquistados no trabalho agrícola e industrial. A origem portuguesa também é marcada pelo contato com populações africanas e árabes, o que contribuiu para a constituição de uma sociedade marcada pela bicontinentalidade, pelo equilíbrio de antagonismos e pela flexibilidade de se ajustar às diferenças culturais. É a partir dessa convivência entre sentimentos e valores antagônicos que terá origem a formação da sociedade brasileira. Contribuiu enormemente a mobilidade e adaptabilidade para a vida nos trópicos, herança da presença semita na Península Ibérica, o que compensou o baixo índice demográfico de Portugal, que com “[…] um pessoalzinho ralo, insignificante em número – sobejo de quanta epidemia, fome e sobretudo guerra afligiu a Península na Idade Média” (FREYRE, 2003, p. 70), conseguiu se espraiar por várias partes do mundo, através da mobilidade e miscibilidade. Freyre afirma que os membros da administração reinol, administradores, guerreiros e técnicos, moviam-se entre as possessões como se estivessem em um tabuleiro de gamão.

Freyre afirma que miscibilidade do português jamais foi igualada por outro povo colonizador. Foi através do intercurso com as nativas e as mulheres de origem africana que se compensou o baixo índice demográfico, possibilitando a colonização em larga escala em territórios vastíssimos. Intercurso já praticado na Península, com as mulheres árabes, cuja semelhança os portugueses encontrarão nas indígenas da América Portuguesa. Outro elemento que favoreceu o empreendimento português foi o clima. O clima de Portugal é aproximado do africano, o que facilitou a vitória portuguesa nos trópicos. Esse se adaptou perfeitamente, diferente dos colonizadores vindos de países de clima frio. O português, por sua predisposição de clima e cultura, venceu o meio, marcado pelo

clima irregular, palustre, perturbador do sistema digestivo; clima na sua relação com o solo desfavorável ao homem agrícola e particularmente ao europeu, por não permitir nem a prática de sua lavou tradicional regulada pelas quatro estações do ano nem a cultura vantajosa daquelas plantas alimentares a que ele estava desde há muitos séculos habituado” (FREYRE, 2003, p. 76).

O português, nos Trópicos, mudou seu sistema de alimentação e o seu sistema de lavoura. O colonizador do Norte da Europa, nesse ponto, teve vantagem, pois na América do Norte encontrou um clima semelhante ao de sua cultura agrícola natural. Ao enfrentar todos esses desafios, registra o autor, o português criou uma obra original. Não foi uma tarefa fácil. Grandes eram os desequilíbrios, como a terra pouco fértil, os rios caudalosos e as grandes secas. O português fez um enorme esforço civilizador nos trópicos. Antes do reconhecimento do território, estabeleceu-se uma exploração comercial através de feitorias, sem o objetivo de fixar o homem ao solo. Aos poucos o colonizador modificou essa estrutura, buscando criar riqueza e fixar-se. Desenvolveu-se, através da iniciativa particular, incentivada pela Coroa, uma colônia de plantação, a plantation, que tinha como base a grande lavoura e o trabalho escravo. Diferente do que ocorrera na América Espanhola, onde houve extermínio ou segregação entre os colonizadores e os nativos, o homem lusitano buscou constituir família com a mulher da terra conquistada e mais tarde com a escrava importada. Desenvolveu-se uma sociedade patriarcal e aristocrática. O elemento dinâmico da colonização brasileira foi a família, família dita rural ou semi-rural, cujo domínio só rivalizava com o da Igreja. A família colonial fez pesados investimentos, desbravando e cuidando da terra. Some-se à isso a moral sexual e religiosa, lírica, amaciada pelo contato anterior com a cultura árabe. A religião Católica tinha caráter mais popular que oficial.

O caráter agrícola da colonização se impôs como uma necessidade, haja vista não terem sido encontrados, em um primeiro momento, matérias-primas que atendessem às necessidades do comércio mercantilista europeu. A natureza era esmagadora, em estado bruto, concorrendo, na maioria das vezes, contra a atividade agrícola. Mas o português conseguiu adaptar-se. Um exemplo disso é o uso que fez dos rios. Os grandes rios, com suas cheias, destruíam plantações e criações de gado. Dessa forma, foram de grande valia os rios de pequeno porte, regulares, que contribuíram para o florescimento da lavoura, da pecuária, sendo utilizados também no transporte de mercadorias. Gilberto Freyre afirma que prolongou-se no brasileiro a tendência portuguesa de expandir-se ao invés de condensar-se. Isso fica bastante claro na figura do bandeirante, que fundava, de forma imperialista, subcolônias, expandindo o território. Apesar das conquistas territoriais, os ímpetos imperialistas e separatistas dos bandeirantes foram anestesiados pela geografia do território. Outro tipo social móvel foi o jesuíta, que se moviam pelo território educando a catequizando os nativos. A mobilidade não oferecia riscos para a unidade política pois não se desenvolveram no território separatismos como os que vieram com os espanhóis, ingleses e franceses. “O Brasil formou-se, despreocupados os seus colonizadores da unidade ou pureza de raça” (FREYRE, 2003, p. 91). Importava muito mais a religião Católica que a raça, pois foi através do Catolicismo que se constituíram laços profundos de solidariedade e unidade política.

Após refletir sobre a inconstância cultural do português e sua propensão para a miscibilidade, Freyre discorre sobre como as diferenças geográficas da América Portuguesa poderiam ter concorrido para o surgimento de extremismos regionais. No entanto, elas influenciaram apenas no tipo de agricultura praticada e no sistema alimentar. Essa diferença era visível na mesa colonial, com influências mais indígenas em uma parte, mais africanas em outras e, principalmente, da cozinha portuguesa, africana e indígena. Interessante a relação que o autor faz entre o latifúndio escravocrata e o mal abastecimento alimentar da população colonial. A plantation dominava a economia, deixando em segundo plano a agricultura de subsistência. Dessa forma compreende-se que “Muito da inferioridade física do brasileiro, em geral atribuída toda à raça, ou vaga e muçulmanamente ao clima, deriva-se do mau aproveitamento dos nossos recursos naturais em nutrição” (FREYRE, 2003, p. 95). O luso-brasileiro dos primeiros séculos era mal alimentado. Viviam-se extremos alimentares, como a alimentação servida na casa grande e na senzala. Daí Freyre afirmar que dos escravos descendiam os melhores elementos da população, elementos fortes e sadios, diferente do que ocorria na população pobre e livre, cujos representantes eram mal nutridos e sobre os quais recaíam diferentes tipos de doenças. Nesse ponto vemos o pioneirismo de Freyre, que discorda dos sociólogos que viam na mestiçagem ou no clima tropical as causas da degeneração do brasileiro. O que age sobre a população são os efeitos nefastos da economia escravocrata, esterilizante, que gera a fuga de braços da agricultura, a instabilidade de abastecimento, a má conservação dos alimentos. Mesmo nas casas grandes, entre os senhores, a alimentação não era tão boa como se supõe: carne uma vez ou outra, poucas frutas e legumes e de baixa qualidade. A pobreza de cálcio do solo brasileiro escapava ao controle, mas a deficiência alimentar causada pelo modelo econômico poderia ser corrigida. Escapa à generalização sobre a deficiência alimentar a realidade paulista, por sua formação semi rural, agrícola e pastoril, que garantiu um abastecimento regular e variado de gêneros alimentícios.

Ainda sobre o regime alimentar, Gilberto Freyre afirma que a influência mais benéfica, fortificante, foi a africana, através dos alimentos vindos daquele continente e do regime alimentar do negro durante a escravidão. Essa última influência se explica pelo fato de que os senhores de engenho, buscando o melhor aproveitamento da mão de obra, investiam em uma alimentação que, se não era das melhores, atendia às necessidades do trabalho. Por essa nutrição relativamente melhor que a da maior parte da população, descendem do negro os melhores representantes de força e beleza, como as mulatas, os atletas e os fuzileiros navais. A figura do caboclo, união entre o branco e o índio e exaltada no passado como sendo a maior representante do vigor brasileiro, é na verdade fruto das três raças, principalmente do negro. Outras heranças da miscigenação, vindas do Europeu, foram as doenças venéreas, com destaque para a sífilis, que agiram negativamente sobre a população brasileira; e a relação de sadismo do branco sobre os dominados e masoquismo destes últimos. Sadismo sexual que penetrou nas instituições e na política. Masoquismo no gosto de sofrer, de buscar um redentor, um messias. E assim foi se constituindo a sociedade brasileira colonial, através do equilíbrio entre elementos antagônicos:

Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo” (FREYRE, 2003, p. 116).

Foram essenciais para a compreensão desse capítulo de Casa Grande & Senzala as notas de rodapé, em que Freyre expressa, assim como no corpo do texto, grande erudição e diálogo com a historiografia de seu tempo e estudos de outras áreas. As notas também são utilizadas pelo autor para manter diálogos com os pesquisadores dessas áreas, diálogos que vão do elogio, passam pela crítica e muitas vezes chegam à discordância, sempre acompanhada por uma gota de acidez, característica do autor. Essas notas foram sendo revisadas e incrementadas em novas edições. Foram escolhidas algumas para a análise. A escolha levou em conta, principalmente, a extensão das notas, algumas ocupando mais de duas laudas. A primeira nota que considerou-se foi a 16, em que Freyre debate com outros autores, como D. G. Dalgado, Emile Béringer e Luís Pereira Barreto, a questão da aclimatabilidade do português em várias partes do mundo. Eles defendem, muitas vezes de forma apologética, que o português, por suas disposições genéticas, constituídas através do contato com povos semitas e africanos, se aclimatam melhor que outros povos europeus. Freyre discorda de uma superioridade puramente étnica, dando como exemplo o fato de a Amazônia brasileira não ter sido plenamente colonizada por ele. “Essa área provavelmente só será colonizada plenamente com o desenvolvimento e barateamento da técnica de ar condicionado e de outras formas de domínio do clima pelo homem civilizado” (FREYRE, 2003, p. 121).

Outra interessante nota é 18, em que o autor analisa a relação entre as embarcações vindas da Índia para Lisboa e de Lisboa para a Índia e o Brasil. Estudando portarias, cartas, leis, provisões, alvarás e outros tipos de documentação, ele mostra como se deu esse contato, contato comercial que deu vazão a trocas culturais entre a América e o Oriente. Ele nota influências na arquitetura, nos costumes e nos objetos:

São esses contatos, que parecem ter sido frequentes, que explicam o fato de terem a vida, os costumes e a arquitetura no Brasil colonial recebido constante influência direta do Oriente, acusada pelo uso, generalizado entre a gente de prol, de palanquins, banguês, chapéus-de-sol, leques da China com figuras de seda estofada e caras de marfim, sedas, colchas da Índia, porcelana, chá etc., e ainda hoje atestada pelos antigos leões de louça de feitio oriental – ou, especificamente, chinês – que guardam, com expressão ameaçadora e zangada, os portões de velhas casas e o frontão da igreja do convento de São Francisco do Recife” (FREYRE, 2003, p. 123).

Possivelmente uma das notas mais notáveis seja a 55, em que Gilberto Freyre discute a formação da família patriarcal mantendo diálogo com os estudos de Caio Prado Júnior, autor de Formação do Brasil contemporâneo (1942), e Nelson Werneck Sodré, autor de Formação da sociedade brasileira (1944). Ele mostra ser inegável a importância da família patriarcal ou parapatriarcal na unidade colonizadora, mas essa importância é mais qualitativa do que quantitativa, pois em boa parte do Brasil, como mostraram Caio Prado e Sodré, foi difícil, por conta da escravidão, da instabilidade e segurança econômicas, a constituição de uma família tradicional assentada em bases sólidas e estáveis. Mas coube à minoria patriarcal influenciar o restante da população na constituição familiar ou no familismo, que não é só patriarcal, mas engloba outras organizações familiares: “E do ponto de vista sociológico, temos que reconhecer o fato de que desde os dias coloniais vêm se mantendo no Brasil, e condicionando sua formação, formas de organizações de famílias extrapatriarcais, extracatólicas que o sociólogo não tem, entretanto, o direito de confundir com prostituição ou promiscuidade” (FREYRE, 2003, p. 130-131). Essas organizações se desenvolveram tendo influência da cultura africana, de sociabilidade mais elástica que a tradicional lusitano-católica. Importante destacar a recuperação da historicidade desses grupos familiares que o autor faz, alertando aos pesquisadores que estes não devem relacioná-los ao imoral, indecente, mas sim compreendê-los em seu tempo.

Em outra nota, a 74, Gilberto Freyre rebate as críticas de Sérgio Buarque de Holanda, que afirma que o português não tinha predisposição para a agricultura, sendo um povo mais comerciante que rural. Em Raízes do Brasil ele descreve o colonizador português como um utilitarista que buscava resultados mais práticos que planejados, um semeador, explorador. Freyre rebate os argumentos de Sérgio Buarque, mostrando que o português não foi um completo desapegado em relação ao trabalho agrícola, dando como exemplo, entre outros, os dos colonos portugueses açorianos, que menos influenciados pela dinâmica do trabalho escravo, foram bons lavradores e pastores, tendo um verdadeiro amor pela terra e seu cultivo.”Tanto não foi absoluto”, escreve Freyre, ao falar sobre o empreendimento português na América, “que os portugueses fundaram no Brasil, sobre base principalmente agrária, a maior civilização moderna nos trópicos, tornando-se também lavradores notáveis em outras partes da América” (FREYRE, 2003, p. 133-134). Os rios, pequenos rios, são melhor analisados na nota 77. Através de trabalhos de autores como Durval Vieira de Aguiar e Teodoro Sampaio, Freyre mostra como os grandes rios, como o São Francisco e o Amazonas, impediam o florescimento de uma sociedade fixa, próspera e organizada, tendo como base a agricultura, fosse no Nordeste ou na Amazônia, respectivamente. Foram nos rios de pequeno porte que se desenvolveram as plantações, que foram construídas as moendas e as casas grandes.

Gilberto Freyre volta a debater com um autor na nota 113. Nela ele fala sobre a afirmação feita pelo pesquisador A. Machant na obra Do escambo à escravidão, publicada em 1943. Marchant, apoiando-se na obra de Fernão Cardim, afirma que na Bahia de 1580 os habitantes tinham um bom acesso à legumes, frutas e verduras, tanto da terra quanto de Portugal. Freyre lembra que, se houve algum tempo em que existiu uma agricultura regular na Bahia, foi nos princípios da colonização, pois logo depois a monocultura da cana de açúcar dominou a vida econômica e prejudicou o abastecimento de víveres. O autor alerta que deve-se levar em conta o fato de que Cardim, assim como outros cronistas desse tempo, era um padre visitador, figura que costumava ser bem recebida nas cidades e engenhos. A abundância de alimentos era uma exceção nessas ocasiões. Para corroborar sua visão, Freyre cita estudos modernos sobre o tema:

Do ponto de vista da alimentação, estudiosos modernos do assunto, interessados em preparar, baseados em inquéritos regionais, um mapa da alimentação no Brasil, e também Josué de Castro, confirmam o que neste ensaio se diz desde 1933 sobre as relações entre o sistema feudal-capitalista de plantação e a paisagem. Segundo o professor Josué de Castro, no Nordeste, “a monocultura intempestiva de cana, destruindo quase que inteiramente o revestimento florestal da região subvertendo por completo o equilíbrio ecológico da paisagem e entravando todas as tentativas de cultivo de outras plantas alimentares no lugar, constitui-se degradante da alimentação regional” (FREYRE, 2003, p. 144-145).

Por último, destacamos a nota 170, na qual o autor apresenta uma discussão bibliográfica sobre as origens da sífilis, doença que atacava as populações brasileiras desde o início da colonização. Esse assunto, destaca Freyre, é marcado por controvérsia, pois não se tem uma origem definida. Alguns autores, como Milton J. Rosenau, afirmam, tendo como base vestígios de esqueletos, que a doença tem origem americana. Outros, como L. W. Wyde, advertem que ninguém pode afirmar onde e quando surgiu qualquer doença. É ainda mais interessante a defesa que Freyre faz do interesse de pesquisadores e sociólogos pelas doenças e outras áreas como a arquitetura. Ele afirma que “Esquecem-se médicos e engenheiros assim melindrados de que se procuramos arranhar tais assuntos, sempre o fazemos do ponto de vista ou sob aspectos que pouco têm que ver com a técnica da medicina ou da engenharia, isto é, o encaramos do ponto de vista da história ou antropologia social; do ponto de vista da sociologia genética” (FREYRE, 2003, p. 152-153).


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:


FREYRE, Gilberto. Características gerais da colonização portuguesa do Brasil: formação de uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida. In: Casa-Grande & Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48° ed. São Paulo: Global, 2003, p. 64-156.






domingo, 29 de setembro de 2019

Atividade sobre a Mineração na América Portuguesa (8° ano do Ensino Fundamental)

Processo de extração e lavagem de ouro no Rio das Velhas. Gravura do século XVIII, de autor desconhecido. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. A Travessia da Calunga Grande - Três Séculos de Imagens sobre o Negro no Brasil (1637-1899). São Paulo: Edusp, 2000.

Essa atividade foi desenvolvida na disciplina Prática Integrada VII, do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), ministrada pelo Professor Me. Felipe Cabral Cavalcante. Sob sua orientação ficamos encarregados de produzir uma atividade de Ensino Fundamental sobre a mineração na América Portuguesa tendo como limitador o livro Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior, de forma a realizar a transposição didática de uma obra acadêmica para o ensino básico. A minha, abaixo reproduzida, versa sobre a Intendência de Minas, órgão administrativo que geria todos os assuntos referentes à mineração. Seu público alvo é o do 8° ano do Ensino Fundamental:


LEITURA COMPLEMENTAR

Leia o texto abaixo e, em seguida, responda as questões:


A Intendência de Minas

“Para executar o Regimento, cobrar o quinto, superintender1 todo o serviço da mineração e resolver os pleitos2 entre os mineradores, bem como destes com terceiros, em questões atinentes à mineração, criou-se um organismo administrativo especial: a Intendência de Minas. Em cada capitania em que houve extração de ouro, organizou-se uma Intendência que nas suas atribuições independia completamente das demais autoridades coloniais: só prestava contas e obediência ao governo da metrópole. Compunha-se a Intendência de um superintendente3, conhecido vulgarmente como intendente, a quem cabia a direção geral do serviço, e de um guarda-mor4, que é quem fazia a repartição das datas5 e fiscalizava, nas minas, a observância do regimento. O guarda-mor podia-se fazer substituir em lugares “afastados” […] por guarda-menores que ele próprio nomeava. Seguiam-se naturalmente escrivão e outros oficiais auxiliares.

Subordinava-se à Intendência a Casa de Fundição, onde se recolhia obrigatoriamente todo ouro extraído, e onde, depois de fundido, ensaiado, quintado (isto é, deduzido do quinto da coroa), e reduzido a barras cunhadas, era devolvido ao portador acompanhado de um certificado de origem que provava o cumprimento das formalidades legais e com que deviam circular as barras. Só então podia o ouro correr livremente e ser expedido para fora da capitania”.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: colônia. 23° Ed. São Paulo: Brasiliense, 1997, p. 175-176.



QUESTÕES

1. Liste os funcionários que formavam a Intendência de Minas e descreva suas funções.

2. Qual a relação entre a Intendência de Minas e a Casa de Fundição?


GLOSSÁRIO DE APOIO:

1 SUPERINTENDER: O mesmo que dirigir.
2 PLEITO: O mesmo que discussão.
3 SUPERINTENDENTE: O mesmo que chefe, supervisor.
4 GUARDA-MOR: Oficial que atuava como “policial”.
5 DATAS: Terrenos para mineração divididos em lotes.


A atividade consiste em duas questões dissertativas sobre um trecho da obra de Caio Prado Júnior. Para auxiliar os discentes, produziu-se um pequeno glossário de termos (destacados em negrito) que possam oferecer alguma dificuldade em sua realização. Sugere-se que seja realizada após, no mínimo, duas aulas sobre a mineração no período colonial, para que os alunos tenham algumas noções sobre o tema a que se refere o trabalho. Dessa forma, utilizando o trecho de uma obra acadêmica, transformada em uma atividade simples, com apoio do professor, os alunos do Ensino Fundamental já podem ir familiarizando-se com leituras mais complexas.



CRÉDITO DA IMAGEM:

http://multirio.rio.rj.gov.br

sábado, 8 de julho de 2017

Análise de documentos: Os testamentos de Anna Pinheiro (1795) e Manoel Francisco Marques (1769)

Testamento de Anna Pinheiro (Cliquem para ampliar).

Testamento de Manoel Francisco Marques (Cliquem para ampliar).


Introdução

Os testamentos são uma das fontes mais utilizadas em estudos históricos, destacando-se nas vertentes da História Social, História Cultural e das Mentalidades, permitindo aos pesquisadores identificar elementos socioculturais de determinadas épocas. Partindo dessa premissa, o presente trabalho tem como principais objetivos analisar os testamentos de Anna Pinheiro e Manoel Francisco Marques, oriundos do século XVIII; e construir um quadro comparativo entre esses dois documentos, a fim de serem destacadas semelhanças e diferenças entre seus conteúdos. Pretende-se, dessa forma, compreender os modos de viver, os comportamentos, da sociedade (ou de parte dela) colonial brasileira.

O testamento de Anna Pinheiro (1795)

O testamento de Anna Pinheiro, viúva, data de 25/07/1795. Esta era oriunda da Vila de Santo Antônio de Alcantara, fundada na segunda metade do século XVII no então Estado do Maranhão e Grão-Pará. Expressando a religiosidade da população da colônia, majoritariamente católica, Anna inicia o testamento em nome da “Santissima Trindade Padre Filho Espírito Santo, tres pessoas distintas e hum só Deos Verdadeiro” (Testamento, 1795, p. 1). A viúva, mais adiante, afirma estar em perfeito juízo, entendendo que está doente, temendo a morte e desejando a salvação de sua alma. Rodrigues e Dillmann (2013, p. 2) afirmam que o testamento

estava geralmente associado às disposições de últimas vontades manifestadas pelo sujeito, geralmente ancião ou enfermo, para as medidas espirituais e temporais a serem tomadas depois de sua morte, principalmente em relação ao destino de sua alma no post-mortem, para além do destino de seus bens.

O primeiro pedido de Anna é a encomenda de sua alma a Santíssima Trindade, rogando a Deus, que pela morte de seu único filho, que a aceite; à Virgem Maria, ao anjo da guarda, ao santo que lhe dá nome (Santa Ana, ao que tudo indica) e a outros santos para que intercedam por sua alma, morrendo na fé Católica, que a mesma da Igreja de Roma, para que seja salva pelo “merecimento da paixão e morte de meo Senhor Jezus Christo” (Testamento, 1795, p. 1).

Seus testamenteiros são Severo de Abreu, cunhado, Francisco Pinheiro, irmão, e Cristóvão da Costa, primo. A eles pede que, no dia de seu falecimento, sejam feitas missas de corpo presente por todos os sacerdotes, e que, no dia seguinte, seu corpo seja sepultado no Convento de Nossa Senhora do Carmo e acompanhado pelo reverendo, pelo vigário com a cruz do Fabrica (?), e pelos demais reverendos e clérigos que se acharem mais a comunidade de Nossa Senhora do Carmo, sendo seu corpo levado para a Sepultura na Tumba das Almas.

No testamento temos mais informações sobre sua família. Anna era filha de João Pinheiro e de Eugenia Pinheiro, ambos falecidos. Foi casada com Manoel de Abreu, falecido, não tendo filhos dessa união. Anna não fez a declaração de seus bens e de seus pais, confiando a tarefa aos seus testamenteiros. Declaro dever sua sogra Perpetua Saurez, dívida essa que será paga pelos encarregados de seu testamento.

Seus testamenteiros deverão mandar que se realizem por sua alma dez capelas de missas e que seja dada a esmola costumada [parte ilegível do documento]. Também deverão ser realizadas três missas para o anjo da guarda, três para o santo que lhe dá nome, três a Nossa Senhora da Conceição e cinco às cinco chagas de Jesus Cristo. Também será dada e esmola costumada. Para as almas de seus pais, serão realizadas missas e dada e esmola costumada.

Deixa, para uma sobrinha de nome Victoria de Araujo, suas casas e a escrava Sebastiana com sua filha Benedita e Raimundo, pelos benefícios que dela recebeu. No entanto, essa herança tem a condição de que, caso Victoria se casasse, seu marido nunca poderia vender seus bens para pagar algumas dívidas por sua morte, sendo estes passados para seus herdeiros. Caso estes não existissem, seus testamenteiros os utilizaram para mandar rezar missas pela alma de Anna e de Victoria.

São deixados trinta mil réis para obras de caridade. Declarando satisfeitos seus legados e obras pias, declara como herdeiros dos bens que restaram seu irmão Francisco Pinheiro, e os filhos do seu irmão falecido Bento Pinheiro. Esses bens serão repartidos em duas partes iguais, uma para Francisco e outra para os filhos de Bento. Esta foi sua última vontade, pedindo a seus testamenteiros que fossem dados os devidos cumprimentos às disposições e outros pedidos feitos através do testamento.

O testamento foi escrito, assinado e declarado por Manoel Feliz da Costa, pois, afirma Anna, era mulher e não sabia ler nem escrever. O testamento foi aberto em 26/07/1795, estando Anna Pinheiro já falecida a essa data.


O testamento de Manoel Francisco Marques (1769)

O testamento de Manoel Francisco Marques se inicia da mesma maneira que o de Anna, em nome da Santíssima Trindade, “Padre Filho Espírito Santo, três pessoas distintas de um só Deus verdadeiro” (Testamento, 1769, p. 1). Manoel também estava em juízo perfeito e também temia sua morte, desejando para a sua alma o caminho da salvação. Dessa forma, em seu testamento, encomenda a sua alma à Santíssima Trindade, rogando a Deus, pelo amor deste com seu único filho, que a aceite. Roga também à Virgem Maria, ao anjo da guarda, ao santo que lhe dá nome (São Manuel ou São Francisco, ao que tudo indica) e a outros santos para que intercedam por sua alma, morrendo na fé Católica, que é a mesma da Igreja de Roma. Pede que seja salvo não por seus méritos, mas pela paixão de Jesus Cristo.

Seus testamenteiros são o Reverendo Padre Manoel da Graça, João Vieyra Torres e Antônio Gonsalves. A eles, pede que no dia de seu falecimento se realizem duas missas para Jesus Cristo, duas para Nossa Senhora da Conceição, duas para Santa Ana, duas para Nossa Senhora da Oliveira, uma para São João Batista, uma para Santo Antônio, duas ao anjo da guarda, duas para São Bartolomeu. Será paga uma esmola de duzentos réis para cada uma.

Manoel pede que seu corpo seja sepultado na Igreja de São João, e que seja amortalhado em um lençol. Pede aos irmãos dessa confraria, da qual também faz parte, de que todos os anos faz os pagamentos, que seja levado para a sepultura no Esquife dessa Irmandade. Se morrer antes de realizar o pagamento, este deverá ser descontado de seus bens. Também fazia parte da confraria de Nossa Senhora da Conceição, na Igreja de São José de Ribamar, estando devendo quatro ou cinco anos, devendo seus testamenteiros pagarem dos bens deixados.

Seu corpo será acompanhado do Reverendo e da Cruz da Fabrica, por oito capelães da Catedral, principalmente os sacerdotes, mas a comunidade da Virgem Nossa Senhora do Carmo. No terceiro ou sétimo dia, pede que seus testamenteiros mandem fazer um ofício paroquial de trez noturnos, e que paguem a esmola costumada. Manoel era natural de Lisboa, sendo batizado na Freguesia de São Paulo, filho de Julião Francisco e Joanna Micaella, ambos falecidos. Foi casado com Maria Duarte, já falecida, tendo um filho de nome Pedro Paulo, o qual faleceu solteiro.

Como bens, Manoel possuía ferragens, casas, uma arma de fogo, uma toalha de Bertanha, uma almofadinha, uma rede grande de fio branco e azul. Deixa, mais trinta mil réis, tudo para sua afilhada Maria Jozepha de Siqueira. Para outra afilhada, Antonia Pinheiro, deixa vinte mil réis, fronha de almofadinha, uma almofada, um catre e outros objetos que possuir, louças e miudezas. Para o afilhado Antonio Gomes deixa dez mil réis, postos a juros até este ser capaz de administrá-los. Se o pai de Antonio e ele falecerem, o dinheiro deverá ser utilizado em missas para suas almas. Deixa uma caixa grande para a afilhada Antonia Pinheyro, uma canastra pequena para a afilhada Jozepha, uma canastra grande, uma serra e um socador de grãos ao Padre Manoel da Graça. Deixa ao seu sobrinho e afilhado João uma serra. Para a sobrinha e afilhada Roza vinte mil réis e para Inácia Maria dez mil réis.

Pede que suas casas sejam avaliadas por pedreiros e carpinteiros, que poderão dizer se estas podem ser vendidas. Se, não, irão a leilão. O que for arrecadado será utilizado tanto para as esmolas que deixa quanto para sua Universal Herdeira (?). Devia Manoel de Assunção, por alimentação, e o Alferes Manoel da Sylva, que lhe emprestou dinheiro. Pede cinco missas de tensão (?) a Virgem Nossa Senhora, a qual se pagará esmola costumada de duzentos réis. Deixa uma esmola de seis mil réis para a construção do altar de São João Batista e que se realizem oito capelas de missas, sendo duas por sua alma, duas pela alma de seu filho, uma pela alma de sua mulher, uma pela alma de seu pai, uma pela alma de sua mãe e uma pelas almas em geral.

A quantidade de bens deixados por Manoel é grande, indo desde instrumentos de trabalhos técnicos, como serras e esmagadores de grãos, a objetos domésticos, como louças, redes, canastras, almofadas e peças menores. No testamento não temos informações de profissão, mas a quantidade de bens deixados podem evidenciar ser Manoel uma pessoa abastada.

Manoel Francisco Marques pede que se de cumprimento a esse testamento em dois anos, estando tudo o que nele estiver escrito sob responsabilidade de seus testamenteiros. O que restar deverá ser utilizado em missas por sua alma e pelas almas de outros parentes. Por não poder escrever, o testamento fora escrito pelo reverendo e capelão Ignacio Xavier da Sylva. O testamento foi aberto em 27/07/1770.


Os testamentos de Anna Pinheiro e Manoel Francisco Marques: Análise comparativa

Entre o testamento de Manoel Francisco Marques e Anna Pinheiro temos 26 anos de diferença. Ambos são oriundos do Maranhão. Anna Pinheiro vem de uma cidade fundada na segunda metade do século XVII, Santo Antônio de Alcântara. Manoel Francisco Marques vem de Lisboa, estabelecendo-se em São José de Ribamar, fundada em 1627.

Anna, por ser mulher e não saber ler e escrever, teve seu testamento redigido e assinado por Manoel Feliz da Costa. Manoel, por não poder escrever, teve o testamento escrito pelo reverendo e capelão Ignacio Xavier da Sylva. De acordo com Rodrigues e Dillmann (2013, p. 2), a produção dos testamentos “era feita ou pelo próprio sujeito que testava ou, a seu rogo, por um indivíduo de sua confiança, podendo ser um sacerdote (em geral o confessor), pessoa leiga de confiança (que podia ser um membro de irmandades ou amigo) ou notário”.

Por semelhança, Anna e Manoel eram católicos. Seus pedidos iniciais eram a encomenda de suas almas à Santíssima Trindade, intercessão pela Virgem Maria, pelo anjo da guarda e demais santos de devoção. Jurava-se, também, morrer na fé Católica, a mesma que emanava da Igreja de Roma. Missas eram encomendadas aos testamenteiros. Missas para Jesus Cristo, para os santos de devoção, para os santos que lhes dava nome, para os anjos da guarda, para os parentes já falecidos ou para as almas em geral, como no caso de Manoel.

Parte dos bens é utilizada em obras de caridades e pagamentos de dívidas para irmandades ou outras instituições. Anna deixou trinta mil réis para obras pias, além de esmolas costumadas. Enquanto Manoel deixa uma esmola de seis mil réis para a construção do altar de São João Batista, bem como esmolas costumadas. Essas obras de caridade, pagamentos de dívidas, financiamento de construções, eram formas de se redimir pelos pecados cometidos em vida, e ter o que é conhecido por boa morte.

Não temos informações do que ambos foram em vida, mas a quantidade de bens deixados em testamento podem evidenciar suas posições sociais. A quantidade de objetos e pessoas beneficiadas por Manoel é grande. São instrumentos de trabalhos técnicos e itens domésticos que foram destinados a inúmeros afilhados e até a um membro da ala eclesiástica da sociedade de São José de Ribamar. Este tem o cuidado de pedir que suas propriedades sejam avaliadas por pedreiros e carpinteiros, para que sejam vendidas ou leiloadas. Anna, além de valores monetários e propriedade, deixa para sua sobrinha sua escrava doméstica e sua filha também escrava, mais um possível escravo de nome Raimundo.

Ainda sobre prestígio e posição social, Manoel faz parte das irmandades de São João Batista e de Nossa Senhora da Conceição. Fazer parte de irmandades religiosas garantia certo prestígio para seus membros. Anna não parece fazer parte de algum grupo, pedindo apenas para ser sepultada no convento de Nossa Senhora do Carmo. Manoel é cuidado em seus pedidos para o post-mortem, escolhendo até mesmo a mortalha para seu corpo. Segundo Paiva (2009, p. 205), essa

liturgia da morte cristã incluía itens que, geralmente, eram encontrados em todos os casos, como, por exemplo, o tipo de mortalha a ser utilizada; a cera a ser distribuída entre os acompanhantes do cortejo; as missas por diversas intenções; as irmandades que acompanhariam o féretro; o local do enterro e, até mesmo, o pagamento de anuais atrasados, devidos às irmandades às quais o testador era filiado. Quanto mais rico fosse o testador, maior era a pompa fúnebre planejada por ele, salvo raras exceções.

O que mais chama a atenção é a densidade dos dois testamentos. O primeiro a ser analisado, de Anna Pinheiro, possui duas páginas. O de Manoel Francisco Marques é maior, tendo quatro páginas. Existe, também, um maior cuidado nos trâmites post-mortem no testamento de Manoel, com especificações de diferentes naturezas. Porque um é maior do que o outro? Devemos levar em conta, claro, a quantidade de bens e beneficiados deixados por Manoel. Anna deixa os elementos mais significativos para sua sobrinha.

No atestado de Ana, de 25/07/1795, temos por escrito as vontades de uma pessoa em perfeito juízo, mas doente. Anna Pinheiro morreu em 27/07/1795, dois dias após a elaboração de seu testamento. Manoel Francisco Marques manda escrever um testamento para ser cumprido após dois anos de sua validação (testamento escrito em 27/07/1769). Manoel falece em 27/07/1770, um ano após a sua morte. Possivelmente, o testamento de Anna possui duas páginas por ter sido escrito para uma pessoa prestes a morrer, com pouco tempo para preparo e talvez às pressas, tendo falecido um dia após sua publicação. Manoel, no início do testamento, tem medo de morrer, mas não afirma estar doente, tendo tido tempo para que redigissem suas vontades em testamento, de forma detalhada.


Conclusão

Ainda em vida, através de testamentos, homens e mulheres tratavam dos cuidados para suas almas no post-mortem, evidenciando o forte peso da religião cristã e sua crença na vida pós-morte. Era uma forma, também, de se redimir e ter uma “boa morte”, livre de qualquer arrependimento. Os testamentos também nos revelam parte da vida material dessa sociedade. Portanto, a partir da análise desses dois testamentos, com uma leitura crítica, e também de bibliografia concernente ao tema, foi possível identificar, mesmo partindo de dois estudos de caso oriundos de uma região específica, o Maranhão, elementos do cotidiano, do viver, das práticas da sociedade colonial brasileira.


FONTES:

Testamento de Anna Pinheiro, Arquivo Público do Maranhão, 25/07/1795
Testamento de Manoel Francisco Marques, Arquivo Público do Maranhão, 27/07/1769


Bibliografia

DILLMANN, Mauro; RODRIGUES, Cláudia. “Desejando pôr a minha alma no caminho da salvação”: modelos católicos de testamentos no século XVIII. Porto Alegre, História Unisinos, janeiro/abril de 2013.

PAIVA, Eduardo França. Frágeis fronteiras: relatos testamentais de mulheres das Minas Gerais setecentistas. Sevilha, Espanha, Anuário de Estudios Americanos, 66, 1. Jan/Jun, 2009