sábado, 8 de julho de 2017

Análise de documentos: Os testamentos de Anna Pinheiro (1795) e Manoel Francisco Marques (1769)

Testamento de Anna Pinheiro (Cliquem para ampliar).

Testamento de Manoel Francisco Marques (Cliquem para ampliar).


Introdução

Os testamentos são uma das fontes mais utilizadas em estudos históricos, destacando-se nas vertentes da História Social, História Cultural e das Mentalidades, permitindo aos pesquisadores identificar elementos socioculturais de determinadas épocas. Partindo dessa premissa, o presente trabalho tem como principais objetivos analisar os testamentos de Anna Pinheiro e Manoel Francisco Marques, oriundos do século XVIII; e construir um quadro comparativo entre esses dois documentos, a fim de serem destacadas semelhanças e diferenças entre seus conteúdos. Pretende-se, dessa forma, compreender os modos de viver, os comportamentos, da sociedade (ou de parte dela) colonial brasileira.

O testamento de Anna Pinheiro (1795)

O testamento de Anna Pinheiro, viúva, data de 25/07/1795. Esta era oriunda da Vila de Santo Antônio de Alcantara, fundada na segunda metade do século XVII no então Estado do Maranhão e Grão-Pará. Expressando a religiosidade da população da colônia, majoritariamente católica, Anna inicia o testamento em nome da “Santissima Trindade Padre Filho Espírito Santo, tres pessoas distintas e hum só Deos Verdadeiro” (Testamento, 1795, p. 1). A viúva, mais adiante, afirma estar em perfeito juízo, entendendo que está doente, temendo a morte e desejando a salvação de sua alma. Rodrigues e Dillmann (2013, p. 2) afirmam que o testamento

estava geralmente associado às disposições de últimas vontades manifestadas pelo sujeito, geralmente ancião ou enfermo, para as medidas espirituais e temporais a serem tomadas depois de sua morte, principalmente em relação ao destino de sua alma no post-mortem, para além do destino de seus bens.

O primeiro pedido de Anna é a encomenda de sua alma a Santíssima Trindade, rogando a Deus, que pela morte de seu único filho, que a aceite; à Virgem Maria, ao anjo da guarda, ao santo que lhe dá nome (Santa Ana, ao que tudo indica) e a outros santos para que intercedam por sua alma, morrendo na fé Católica, que a mesma da Igreja de Roma, para que seja salva pelo “merecimento da paixão e morte de meo Senhor Jezus Christo” (Testamento, 1795, p. 1).

Seus testamenteiros são Severo de Abreu, cunhado, Francisco Pinheiro, irmão, e Cristóvão da Costa, primo. A eles pede que, no dia de seu falecimento, sejam feitas missas de corpo presente por todos os sacerdotes, e que, no dia seguinte, seu corpo seja sepultado no Convento de Nossa Senhora do Carmo e acompanhado pelo reverendo, pelo vigário com a cruz do Fabrica (?), e pelos demais reverendos e clérigos que se acharem mais a comunidade de Nossa Senhora do Carmo, sendo seu corpo levado para a Sepultura na Tumba das Almas.

No testamento temos mais informações sobre sua família. Anna era filha de João Pinheiro e de Eugenia Pinheiro, ambos falecidos. Foi casada com Manoel de Abreu, falecido, não tendo filhos dessa união. Anna não fez a declaração de seus bens e de seus pais, confiando a tarefa aos seus testamenteiros. Declaro dever sua sogra Perpetua Saurez, dívida essa que será paga pelos encarregados de seu testamento.

Seus testamenteiros deverão mandar que se realizem por sua alma dez capelas de missas e que seja dada a esmola costumada [parte ilegível do documento]. Também deverão ser realizadas três missas para o anjo da guarda, três para o santo que lhe dá nome, três a Nossa Senhora da Conceição e cinco às cinco chagas de Jesus Cristo. Também será dada e esmola costumada. Para as almas de seus pais, serão realizadas missas e dada e esmola costumada.

Deixa, para uma sobrinha de nome Victoria de Araujo, suas casas e a escrava Sebastiana com sua filha Benedita e Raimundo, pelos benefícios que dela recebeu. No entanto, essa herança tem a condição de que, caso Victoria se casasse, seu marido nunca poderia vender seus bens para pagar algumas dívidas por sua morte, sendo estes passados para seus herdeiros. Caso estes não existissem, seus testamenteiros os utilizaram para mandar rezar missas pela alma de Anna e de Victoria.

São deixados trinta mil réis para obras de caridade. Declarando satisfeitos seus legados e obras pias, declara como herdeiros dos bens que restaram seu irmão Francisco Pinheiro, e os filhos do seu irmão falecido Bento Pinheiro. Esses bens serão repartidos em duas partes iguais, uma para Francisco e outra para os filhos de Bento. Esta foi sua última vontade, pedindo a seus testamenteiros que fossem dados os devidos cumprimentos às disposições e outros pedidos feitos através do testamento.

O testamento foi escrito, assinado e declarado por Manoel Feliz da Costa, pois, afirma Anna, era mulher e não sabia ler nem escrever. O testamento foi aberto em 26/07/1795, estando Anna Pinheiro já falecida a essa data.


O testamento de Manoel Francisco Marques (1769)

O testamento de Manoel Francisco Marques se inicia da mesma maneira que o de Anna, em nome da Santíssima Trindade, “Padre Filho Espírito Santo, três pessoas distintas de um só Deus verdadeiro” (Testamento, 1769, p. 1). Manoel também estava em juízo perfeito e também temia sua morte, desejando para a sua alma o caminho da salvação. Dessa forma, em seu testamento, encomenda a sua alma à Santíssima Trindade, rogando a Deus, pelo amor deste com seu único filho, que a aceite. Roga também à Virgem Maria, ao anjo da guarda, ao santo que lhe dá nome (São Manuel ou São Francisco, ao que tudo indica) e a outros santos para que intercedam por sua alma, morrendo na fé Católica, que é a mesma da Igreja de Roma. Pede que seja salvo não por seus méritos, mas pela paixão de Jesus Cristo.

Seus testamenteiros são o Reverendo Padre Manoel da Graça, João Vieyra Torres e Antônio Gonsalves. A eles, pede que no dia de seu falecimento se realizem duas missas para Jesus Cristo, duas para Nossa Senhora da Conceição, duas para Santa Ana, duas para Nossa Senhora da Oliveira, uma para São João Batista, uma para Santo Antônio, duas ao anjo da guarda, duas para São Bartolomeu. Será paga uma esmola de duzentos réis para cada uma.

Manoel pede que seu corpo seja sepultado na Igreja de São João, e que seja amortalhado em um lençol. Pede aos irmãos dessa confraria, da qual também faz parte, de que todos os anos faz os pagamentos, que seja levado para a sepultura no Esquife dessa Irmandade. Se morrer antes de realizar o pagamento, este deverá ser descontado de seus bens. Também fazia parte da confraria de Nossa Senhora da Conceição, na Igreja de São José de Ribamar, estando devendo quatro ou cinco anos, devendo seus testamenteiros pagarem dos bens deixados.

Seu corpo será acompanhado do Reverendo e da Cruz da Fabrica, por oito capelães da Catedral, principalmente os sacerdotes, mas a comunidade da Virgem Nossa Senhora do Carmo. No terceiro ou sétimo dia, pede que seus testamenteiros mandem fazer um ofício paroquial de trez noturnos, e que paguem a esmola costumada. Manoel era natural de Lisboa, sendo batizado na Freguesia de São Paulo, filho de Julião Francisco e Joanna Micaella, ambos falecidos. Foi casado com Maria Duarte, já falecida, tendo um filho de nome Pedro Paulo, o qual faleceu solteiro.

Como bens, Manoel possuía ferragens, casas, uma arma de fogo, uma toalha de Bertanha, uma almofadinha, uma rede grande de fio branco e azul. Deixa, mais trinta mil réis, tudo para sua afilhada Maria Jozepha de Siqueira. Para outra afilhada, Antonia Pinheiro, deixa vinte mil réis, fronha de almofadinha, uma almofada, um catre e outros objetos que possuir, louças e miudezas. Para o afilhado Antonio Gomes deixa dez mil réis, postos a juros até este ser capaz de administrá-los. Se o pai de Antonio e ele falecerem, o dinheiro deverá ser utilizado em missas para suas almas. Deixa uma caixa grande para a afilhada Antonia Pinheyro, uma canastra pequena para a afilhada Jozepha, uma canastra grande, uma serra e um socador de grãos ao Padre Manoel da Graça. Deixa ao seu sobrinho e afilhado João uma serra. Para a sobrinha e afilhada Roza vinte mil réis e para Inácia Maria dez mil réis.

Pede que suas casas sejam avaliadas por pedreiros e carpinteiros, que poderão dizer se estas podem ser vendidas. Se, não, irão a leilão. O que for arrecadado será utilizado tanto para as esmolas que deixa quanto para sua Universal Herdeira (?). Devia Manoel de Assunção, por alimentação, e o Alferes Manoel da Sylva, que lhe emprestou dinheiro. Pede cinco missas de tensão (?) a Virgem Nossa Senhora, a qual se pagará esmola costumada de duzentos réis. Deixa uma esmola de seis mil réis para a construção do altar de São João Batista e que se realizem oito capelas de missas, sendo duas por sua alma, duas pela alma de seu filho, uma pela alma de sua mulher, uma pela alma de seu pai, uma pela alma de sua mãe e uma pelas almas em geral.

A quantidade de bens deixados por Manoel é grande, indo desde instrumentos de trabalhos técnicos, como serras e esmagadores de grãos, a objetos domésticos, como louças, redes, canastras, almofadas e peças menores. No testamento não temos informações de profissão, mas a quantidade de bens deixados podem evidenciar ser Manoel uma pessoa abastada.

Manoel Francisco Marques pede que se de cumprimento a esse testamento em dois anos, estando tudo o que nele estiver escrito sob responsabilidade de seus testamenteiros. O que restar deverá ser utilizado em missas por sua alma e pelas almas de outros parentes. Por não poder escrever, o testamento fora escrito pelo reverendo e capelão Ignacio Xavier da Sylva. O testamento foi aberto em 27/07/1770.


Os testamentos de Anna Pinheiro e Manoel Francisco Marques: Análise comparativa

Entre o testamento de Manoel Francisco Marques e Anna Pinheiro temos 26 anos de diferença. Ambos são oriundos do Maranhão. Anna Pinheiro vem de uma cidade fundada na segunda metade do século XVII, Santo Antônio de Alcântara. Manoel Francisco Marques vem de Lisboa, estabelecendo-se em São José de Ribamar, fundada em 1627.

Anna, por ser mulher e não saber ler e escrever, teve seu testamento redigido e assinado por Manoel Feliz da Costa. Manoel, por não poder escrever, teve o testamento escrito pelo reverendo e capelão Ignacio Xavier da Sylva. De acordo com Rodrigues e Dillmann (2013, p. 2), a produção dos testamentos “era feita ou pelo próprio sujeito que testava ou, a seu rogo, por um indivíduo de sua confiança, podendo ser um sacerdote (em geral o confessor), pessoa leiga de confiança (que podia ser um membro de irmandades ou amigo) ou notário”.

Por semelhança, Anna e Manoel eram católicos. Seus pedidos iniciais eram a encomenda de suas almas à Santíssima Trindade, intercessão pela Virgem Maria, pelo anjo da guarda e demais santos de devoção. Jurava-se, também, morrer na fé Católica, a mesma que emanava da Igreja de Roma. Missas eram encomendadas aos testamenteiros. Missas para Jesus Cristo, para os santos de devoção, para os santos que lhes dava nome, para os anjos da guarda, para os parentes já falecidos ou para as almas em geral, como no caso de Manoel.

Parte dos bens é utilizada em obras de caridades e pagamentos de dívidas para irmandades ou outras instituições. Anna deixou trinta mil réis para obras pias, além de esmolas costumadas. Enquanto Manoel deixa uma esmola de seis mil réis para a construção do altar de São João Batista, bem como esmolas costumadas. Essas obras de caridade, pagamentos de dívidas, financiamento de construções, eram formas de se redimir pelos pecados cometidos em vida, e ter o que é conhecido por boa morte.

Não temos informações do que ambos foram em vida, mas a quantidade de bens deixados em testamento podem evidenciar suas posições sociais. A quantidade de objetos e pessoas beneficiadas por Manoel é grande. São instrumentos de trabalhos técnicos e itens domésticos que foram destinados a inúmeros afilhados e até a um membro da ala eclesiástica da sociedade de São José de Ribamar. Este tem o cuidado de pedir que suas propriedades sejam avaliadas por pedreiros e carpinteiros, para que sejam vendidas ou leiloadas. Anna, além de valores monetários e propriedade, deixa para sua sobrinha sua escrava doméstica e sua filha também escrava, mais um possível escravo de nome Raimundo.

Ainda sobre prestígio e posição social, Manoel faz parte das irmandades de São João Batista e de Nossa Senhora da Conceição. Fazer parte de irmandades religiosas garantia certo prestígio para seus membros. Anna não parece fazer parte de algum grupo, pedindo apenas para ser sepultada no convento de Nossa Senhora do Carmo. Manoel é cuidado em seus pedidos para o post-mortem, escolhendo até mesmo a mortalha para seu corpo. Segundo Paiva (2009, p. 205), essa

liturgia da morte cristã incluía itens que, geralmente, eram encontrados em todos os casos, como, por exemplo, o tipo de mortalha a ser utilizada; a cera a ser distribuída entre os acompanhantes do cortejo; as missas por diversas intenções; as irmandades que acompanhariam o féretro; o local do enterro e, até mesmo, o pagamento de anuais atrasados, devidos às irmandades às quais o testador era filiado. Quanto mais rico fosse o testador, maior era a pompa fúnebre planejada por ele, salvo raras exceções.

O que mais chama a atenção é a densidade dos dois testamentos. O primeiro a ser analisado, de Anna Pinheiro, possui duas páginas. O de Manoel Francisco Marques é maior, tendo quatro páginas. Existe, também, um maior cuidado nos trâmites post-mortem no testamento de Manoel, com especificações de diferentes naturezas. Porque um é maior do que o outro? Devemos levar em conta, claro, a quantidade de bens e beneficiados deixados por Manoel. Anna deixa os elementos mais significativos para sua sobrinha.

No atestado de Ana, de 25/07/1795, temos por escrito as vontades de uma pessoa em perfeito juízo, mas doente. Anna Pinheiro morreu em 27/07/1795, dois dias após a elaboração de seu testamento. Manoel Francisco Marques manda escrever um testamento para ser cumprido após dois anos de sua validação (testamento escrito em 27/07/1769). Manoel falece em 27/07/1770, um ano após a sua morte. Possivelmente, o testamento de Anna possui duas páginas por ter sido escrito para uma pessoa prestes a morrer, com pouco tempo para preparo e talvez às pressas, tendo falecido um dia após sua publicação. Manoel, no início do testamento, tem medo de morrer, mas não afirma estar doente, tendo tido tempo para que redigissem suas vontades em testamento, de forma detalhada.


Conclusão

Ainda em vida, através de testamentos, homens e mulheres tratavam dos cuidados para suas almas no post-mortem, evidenciando o forte peso da religião cristã e sua crença na vida pós-morte. Era uma forma, também, de se redimir e ter uma “boa morte”, livre de qualquer arrependimento. Os testamentos também nos revelam parte da vida material dessa sociedade. Portanto, a partir da análise desses dois testamentos, com uma leitura crítica, e também de bibliografia concernente ao tema, foi possível identificar, mesmo partindo de dois estudos de caso oriundos de uma região específica, o Maranhão, elementos do cotidiano, do viver, das práticas da sociedade colonial brasileira.


FONTES:

Testamento de Anna Pinheiro, Arquivo Público do Maranhão, 25/07/1795
Testamento de Manoel Francisco Marques, Arquivo Público do Maranhão, 27/07/1769


Bibliografia

DILLMANN, Mauro; RODRIGUES, Cláudia. “Desejando pôr a minha alma no caminho da salvação”: modelos católicos de testamentos no século XVIII. Porto Alegre, História Unisinos, janeiro/abril de 2013.

PAIVA, Eduardo França. Frágeis fronteiras: relatos testamentais de mulheres das Minas Gerais setecentistas. Sevilha, Espanha, Anuário de Estudios Americanos, 66, 1. Jan/Jun, 2009



















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