Testamento de Anna Pinheiro (Cliquem para ampliar).
Testamento de Manoel Francisco Marques (Cliquem para ampliar).
Introdução
Os
testamentos são uma das fontes mais utilizadas em estudos
históricos, destacando-se nas vertentes da História Social,
História Cultural e das Mentalidades, permitindo aos pesquisadores
identificar elementos socioculturais de determinadas épocas.
Partindo dessa premissa, o presente trabalho tem como principais
objetivos analisar os testamentos de Anna Pinheiro e Manoel Francisco
Marques, oriundos do século XVIII; e construir um quadro comparativo
entre esses dois documentos, a fim de serem destacadas semelhanças e
diferenças entre seus conteúdos. Pretende-se, dessa forma,
compreender os modos de viver, os comportamentos, da sociedade (ou de
parte dela) colonial brasileira.
O
testamento de Anna Pinheiro (1795)
O
testamento de Anna Pinheiro, viúva, data de 25/07/1795. Esta era
oriunda da Vila de Santo Antônio de Alcantara, fundada na segunda
metade do século XVII no então Estado do Maranhão e Grão-Pará.
Expressando a religiosidade da população da colônia,
majoritariamente católica, Anna inicia o testamento em nome da
“Santissima Trindade Padre Filho Espírito Santo, tres pessoas
distintas e hum só Deos Verdadeiro” (Testamento, 1795, p. 1). A
viúva, mais adiante, afirma estar em perfeito juízo, entendendo que
está doente, temendo a morte e desejando a salvação de sua alma.
Rodrigues e Dillmann (2013, p. 2) afirmam que o testamento
estava
geralmente associado às disposições de últimas vontades
manifestadas pelo sujeito, geralmente ancião ou enfermo, para as
medidas espirituais e temporais a serem tomadas depois de sua morte,
principalmente em relação ao destino de sua alma no post-mortem,
para além do destino de seus bens.
O
primeiro pedido de Anna é a encomenda de sua alma a Santíssima
Trindade, rogando a Deus, que pela morte de seu único filho, que a
aceite; à Virgem Maria, ao anjo da guarda, ao santo que lhe dá nome
(Santa Ana, ao que tudo indica) e a outros santos para que intercedam
por sua alma, morrendo na fé Católica, que a mesma da Igreja de
Roma, para que seja salva pelo “merecimento da paixão e morte de
meo Senhor Jezus Christo” (Testamento, 1795, p. 1).
Seus
testamenteiros são Severo de Abreu, cunhado, Francisco Pinheiro,
irmão, e Cristóvão da
Costa, primo. A eles pede
que, no dia de seu falecimento, sejam feitas missas de corpo presente
por todos os sacerdotes, e que, no dia seguinte, seu corpo seja
sepultado no Convento de Nossa Senhora do Carmo e
acompanhado pelo reverendo, pelo vigário com
a cruz do Fabrica (?), e
pelos demais reverendos e clérigos que se acharem mais a comunidade
de Nossa Senhora do Carmo, sendo seu corpo levado para a Sepultura na
Tumba das Almas.
No
testamento temos mais informações sobre sua família. Anna era
filha de João Pinheiro e de Eugenia Pinheiro, ambos falecidos. Foi
casada com Manoel de Abreu, falecido, não tendo filhos dessa união.
Anna não fez a declaração de seus bens e de seus pais, confiando a
tarefa aos seus
testamenteiros. Declaro dever
sua sogra Perpetua Saurez, dívida essa que será paga pelos
encarregados de seu testamento.
Seus
testamenteiros deverão mandar que se realizem por sua alma dez
capelas de missas e que seja dada a esmola costumada
[parte ilegível do documento]. Também deverão ser realizadas três
missas para o anjo da guarda, três para o santo que lhe dá nome,
três a Nossa Senhora da Conceição e cinco às cinco chagas de
Jesus Cristo. Também será dada e esmola costumada.
Para as almas de seus pais, serão realizadas missas e dada e esmola
costumada.
Deixa,
para uma sobrinha de nome Victoria de Araujo, suas casas e a escrava
Sebastiana com sua filha Benedita e Raimundo, pelos benefícios que
dela recebeu. No entanto, essa herança tem a condição de que, caso
Victoria se casasse, seu
marido nunca poderia vender seus bens para pagar algumas dívidas por
sua morte, sendo estes passados para seus herdeiros. Caso estes não
existissem, seus testamenteiros os utilizaram para mandar rezar
missas pela alma de Anna e de Victoria.
São
deixados trinta mil réis para obras de caridade. Declarando
satisfeitos seus legados e obras pias, declara como herdeiros dos
bens que restaram seu irmão Francisco Pinheiro, e os filhos do seu
irmão falecido Bento Pinheiro. Esses bens serão repartidos em duas
partes iguais, uma para Francisco e outra para os filhos de Bento.
Esta foi sua última vontade, pedindo a seus testamenteiros que
fossem dados os devidos cumprimentos às disposições e outros
pedidos feitos através do testamento.
O
testamento foi escrito, assinado e declarado por Manoel Feliz da
Costa, pois, afirma Anna, era mulher e não sabia ler nem escrever. O
testamento foi aberto em 26/07/1795, estando Anna Pinheiro já
falecida a essa data.
O
testamento de Manoel Francisco Marques (1769)
O
testamento de Manoel Francisco Marques se inicia da mesma maneira que
o de Anna, em nome da Santíssima Trindade, “Padre Filho Espírito
Santo, três pessoas distintas de um só Deus verdadeiro”
(Testamento, 1769, p. 1). Manoel também estava em juízo perfeito e
também temia sua morte, desejando para a sua alma o caminho da
salvação. Dessa forma, em
seu testamento, encomenda a sua alma à Santíssima Trindade, rogando
a Deus, pelo amor deste com seu único filho, que a aceite. Roga
também à Virgem Maria, ao
anjo da guarda, ao santo que lhe dá nome (São
Manuel ou São Francisco,
ao que tudo indica) e a outros santos para que intercedam por sua
alma, morrendo na fé Católica, que é
a mesma da Igreja de Roma.
Pede que seja salvo não por
seus méritos, mas pela paixão de Jesus Cristo.
Seus
testamenteiros são o Reverendo Padre Manoel da Graça, João Vieyra
Torres e Antônio Gonsalves. A eles, pede que no dia de seu
falecimento se realizem duas
missas para Jesus Cristo, duas para Nossa Senhora da Conceição,
duas para Santa Ana, duas para Nossa Senhora da Oliveira, uma para
São João Batista, uma para Santo Antônio, duas ao anjo da guarda,
duas para São Bartolomeu. Será paga uma esmola de duzentos réis
para cada uma.
Manoel
pede que seu corpo seja sepultado na Igreja de São João, e que seja
amortalhado em um lençol. Pede aos irmãos dessa confraria, da qual
também faz parte, de que todos os anos faz os pagamentos, que seja
levado para a sepultura no Esquife dessa Irmandade. Se morrer antes
de realizar o pagamento, este deverá ser descontado de seus bens.
Também fazia parte da
confraria de Nossa Senhora da Conceição, na Igreja de São José de
Ribamar, estando devendo quatro ou cinco anos, devendo seus
testamenteiros pagarem dos bens deixados.
Seu
corpo será acompanhado do Reverendo e da Cruz da Fabrica, por oito
capelães da Catedral,
principalmente os sacerdotes, mas a comunidade da Virgem Nossa
Senhora do Carmo. No terceiro ou sétimo dia, pede que seus
testamenteiros mandem fazer um ofício paroquial de trez noturnos, e
que paguem a esmola costumada. Manoel era natural de Lisboa, sendo
batizado na Freguesia de São Paulo, filho de Julião Francisco e
Joanna Micaella, ambos falecidos. Foi casado com Maria Duarte, já
falecida, tendo um filho de nome Pedro Paulo, o qual faleceu
solteiro.
Como
bens, Manoel possuía ferragens, casas, uma arma de fogo, uma toalha
de Bertanha, uma almofadinha, uma rede grande de fio branco e azul.
Deixa, mais trinta mil réis, tudo para sua afilhada Maria Jozepha de
Siqueira. Para outra afilhada, Antonia Pinheiro, deixa vinte mil
réis, fronha de almofadinha, uma almofada, um catre e outros objetos
que possuir, louças e miudezas. Para o afilhado Antonio Gomes deixa
dez mil réis, postos a juros até este ser capaz de administrá-los.
Se o pai de Antonio e ele falecerem, o dinheiro deverá ser utilizado
em missas para suas almas. Deixa
uma caixa grande para a afilhada Antonia Pinheyro, uma canastra
pequena para a afilhada Jozepha, uma canastra grande, uma serra e um
socador de grãos ao Padre Manoel da Graça. Deixa ao seu sobrinho e
afilhado João uma serra. Para a sobrinha e afilhada Roza vinte mil
réis e para Inácia Maria dez mil réis.
Pede
que suas casas sejam avaliadas por pedreiros e carpinteiros, que
poderão dizer se estas podem ser vendidas. Se, não, irão a leilão.
O que for arrecadado será utilizado tanto para as esmolas que deixa
quanto para sua Universal Herdeira (?). Devia Manoel de Assunção,
por alimentação, e o
Alferes Manoel da Sylva, que lhe emprestou dinheiro. Pede
cinco missas de tensão (?) a Virgem Nossa Senhora, a qual se pagará
esmola costumada de duzentos réis. Deixa uma esmola de seis mil réis
para a construção do altar de São João Batista e que se realizem
oito capelas de missas, sendo duas por sua alma, duas pela alma de
seu filho, uma pela alma de sua mulher, uma pela alma de seu pai, uma
pela alma de sua mãe e uma pelas almas em geral.
A
quantidade de bens deixados por Manoel é grande, indo desde
instrumentos de trabalhos técnicos, como serras e esmagadores de
grãos, a objetos domésticos, como louças, redes, canastras,
almofadas e peças menores. No testamento não temos informações de
profissão, mas a quantidade de bens deixados podem evidenciar ser
Manoel uma pessoa abastada.
Manoel
Francisco Marques pede que se de cumprimento a esse testamento em
dois anos, estando tudo o que nele estiver escrito sob
responsabilidade de seus testamenteiros. O que restar deverá ser
utilizado em missas por sua alma e pelas almas de outros parentes.
Por não poder escrever, o testamento fora escrito pelo reverendo e
capelão Ignacio Xavier da Sylva. O testamento foi aberto em
27/07/1770.
Os
testamentos de Anna Pinheiro e Manoel Francisco Marques: Análise
comparativa
Entre
o testamento de Manoel Francisco Marques e Anna Pinheiro temos 26
anos de diferença. Ambos são oriundos do Maranhão. Anna Pinheiro
vem de uma cidade fundada na segunda metade do século XVII, Santo
Antônio de Alcântara. Manoel Francisco Marques vem de Lisboa,
estabelecendo-se em São José de Ribamar, fundada
em 1627.
Anna,
por ser mulher e não saber ler e escrever, teve seu testamento
redigido e assinado por Manoel Feliz da Costa. Manoel, por não poder
escrever, teve o testamento escrito pelo reverendo e capelão Ignacio
Xavier da Sylva. De acordo com Rodrigues e Dillmann (2013, p. 2), a
produção dos testamentos “era feita ou pelo próprio sujeito que
testava ou, a seu rogo, por um indivíduo de sua confiança, podendo
ser um sacerdote (em geral o confessor), pessoa leiga de confiança
(que podia ser um membro de irmandades ou amigo) ou notário”.
Por
semelhança, Anna e Manoel eram católicos. Seus pedidos iniciais
eram a encomenda de suas almas à Santíssima Trindade, intercessão
pela Virgem Maria, pelo anjo da guarda e demais santos de devoção.
Jurava-se, também, morrer na fé Católica, a mesma que emanava da
Igreja de Roma. Missas
eram encomendadas aos testamenteiros. Missas para Jesus Cristo, para
os santos de devoção, para os santos que lhes dava nome, para os
anjos da guarda, para os parentes já falecidos ou para as almas em
geral, como no caso de Manoel.
Parte
dos bens é utilizada em obras de caridades e pagamentos de dívidas
para irmandades ou outras instituições. Anna deixou trinta mil réis
para obras pias, além de esmolas costumadas. Enquanto Manoel deixa
uma esmola de seis mil réis para a construção do altar de São
João Batista, bem como esmolas costumadas. Essas
obras de caridade, pagamentos de dívidas, financiamento de
construções, eram formas de se redimir pelos pecados cometidos em
vida, e ter o que é conhecido por boa morte.
Não
temos informações do que ambos foram em vida, mas a quantidade de
bens deixados em testamento podem evidenciar suas posições sociais.
A quantidade de objetos e pessoas beneficiadas por Manoel é grande.
São instrumentos de trabalhos técnicos e itens domésticos que
foram destinados a inúmeros afilhados e até a um membro da ala
eclesiástica da sociedade de São José de Ribamar. Este tem o
cuidado de pedir que suas propriedades sejam avaliadas por pedreiros
e carpinteiros, para que sejam vendidas ou leiloadas. Anna, além de
valores monetários e propriedade, deixa para sua sobrinha sua
escrava doméstica e sua filha também escrava, mais um possível
escravo de nome
Raimundo.
Ainda
sobre prestígio e posição social, Manoel faz parte das irmandades
de São João Batista e de Nossa Senhora da Conceição. Fazer parte
de irmandades religiosas garantia certo prestígio para seus membros.
Anna não parece fazer parte de algum grupo, pedindo apenas para ser
sepultada no convento de Nossa Senhora do Carmo. Manoel é cuidado em
seus pedidos para o post-mortem,
escolhendo até mesmo a mortalha para seu corpo. Segundo Paiva (2009,
p. 205), essa
liturgia
da morte cristã incluía itens que, geralmente, eram encontrados em
todos os casos, como, por exemplo, o tipo de mortalha a ser
utilizada; a cera a ser distribuída entre os acompanhantes do
cortejo; as missas por diversas intenções; as irmandades que
acompanhariam o féretro; o local do enterro e, até mesmo, o
pagamento de anuais atrasados, devidos às irmandades às quais o
testador era filiado. Quanto mais rico fosse o testador, maior era a
pompa fúnebre planejada por ele, salvo raras exceções.
O
que mais chama a atenção é a densidade dos dois testamentos. O
primeiro a ser analisado, de Anna Pinheiro, possui duas páginas.
O
de Manoel Francisco Marques é maior, tendo quatro páginas. Existe,
também, um maior cuidado nos trâmites post-mortem
no
testamento
de Manoel, com especificações de diferentes naturezas. Porque
um é maior do que o outro? Devemos levar em conta, claro, a
quantidade de bens e beneficiados deixados por Manoel. Anna deixa os
elementos mais significativos para sua sobrinha.
No
atestado de Ana, de 25/07/1795, temos por escrito as vontades de uma
pessoa em perfeito juízo, mas doente. Anna Pinheiro morreu em
27/07/1795, dois dias após a elaboração de seu testamento. Manoel
Francisco Marques manda escrever um testamento para ser cumprido após
dois anos de sua validação (testamento escrito em 27/07/1769).
Manoel falece em 27/07/1770, um ano após a sua morte. Possivelmente,
o testamento de Anna possui duas páginas por ter sido escrito para
uma pessoa prestes a morrer, com pouco tempo para preparo e talvez às
pressas, tendo falecido um dia após sua publicação. Manoel, no
início do testamento, tem medo de morrer, mas não afirma estar
doente, tendo tido tempo para que redigissem suas vontades em
testamento, de forma detalhada.
Conclusão
Ainda
em vida, através de testamentos, homens e mulheres tratavam dos
cuidados para suas almas no post-mortem,
evidenciando o forte peso da religião cristã e sua crença na vida
pós-morte. Era uma forma, também, de se redimir e ter uma “boa
morte”, livre de qualquer arrependimento. Os testamentos também nos revelam parte da vida material dessa sociedade. Portanto,
a partir
da análise desses dois testamentos, com uma leitura crítica, e
também de bibliografia concernente ao tema, foi possível
identificar, mesmo partindo de dois estudos de caso oriundos de uma
região específica, o Maranhão, elementos do cotidiano, do viver,
das práticas da sociedade colonial brasileira.
FONTES:
Testamento de Anna Pinheiro, Arquivo Público do Maranhão, 25/07/1795
Testamento de Manoel Francisco Marques, Arquivo Público do Maranhão, 27/07/1769
FONTES:
Testamento de Anna Pinheiro, Arquivo Público do Maranhão, 25/07/1795
Testamento de Manoel Francisco Marques, Arquivo Público do Maranhão, 27/07/1769
Bibliografia
DILLMANN,
Mauro; RODRIGUES, Cláudia. “Desejando
pôr a minha alma no caminho da salvação”: modelos católicos de
testamentos no século XVIII. Porto
Alegre, História Unisinos, janeiro/abril de 2013.
PAIVA,
Eduardo França.
Frágeis
fronteiras: relatos testamentais de mulheres das Minas Gerais
setecentistas. Sevilha,
Espanha, Anuário de Estudios Americanos, 66, 1. Jan/Jun, 2009
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