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sábado, 16 de maio de 2020

Manaus – sua origem e desenvolvimento, de Agnello Bittencourt (1948)

Orla da cidade de Manaus. Aquarela de Jacques Burkhardt, 30 de outubro de 1865. FONTE: Jacques Burkhardt Collection In HOLLIS Images, Harvard Library.

O texto a seguir foi publicado pelo geógrafo, historiador e professor amazonense Agnello Bittencourt (1876-1975) no Boletim da Associação Comercial do Amazonas em setembro de 1948, sendo posteriormente reproduzido no Boletim Geográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de julho de 1949. Nele Bittencourt analisa a História da cidade de Manaus entre o século XVII e a década de 1940.

Manaus – sua origem e desenvolvimento

Uma cidade não surge, nem cresce a êsmo. Um ou mais motivos podem determinar sua gênese, mas o desenvolvimento do núcleo inicial condiciona-se quase sempre a um impulso econômico. Em nosso país, ocorrem vários exemplos. Ora a descoberta e exploração de minas e de fontes virtuosas, ora o aproveitamento de encruzilhadas de caminhos e de pontos acessíveis nas cotas, rios e lagos, ora lugares tidos como estratégicos, sobretudo nas fronteiras, ora antigos estabelecimentos da catequese – em quase todos os casos, o crescimento e o progresso dependeram ou dependem da manutenção de motivações econômicas.

O comerciante e o agricultor reforçam a ação dos semeadores de cidades. São também, por isso, pioneiros da conquista e da civilização, no comêço praticando o escambo, depois empregando a moeda.

Em qual dêsses cadinhos podemos colocar a origem da cidade de Manaus? E' bom examinar o espírito de expansão, que caracterizava as atividades da política de Portugal, ao determinar o esquadrinhamento dos mares e dos continentes, na ânsia de alargar indefinidamente os seus domínios.

A viagem de Pedro Teixeira, em pleno govêrno espanhol, subindo o rio Amazonas e colocando um marco à foz do rio Napo, foi uma das muitas provas da mentalidade imperialista dos lusitanos. Estava implícito, na sua política de além-mar, indo muito para o ocidente do meridiano de Tordesilhas, anteceder-se e contrapor-se ao expansionismo avassalador de Castela. Não fôsse a energia indômita da gente da Lusitânia, as pretensões e avanços espanhóis vindos das ribas orientais dos Andes, pela solerte atuação do Pe. Samuel de Fritz e outros, uma grande parte do atual estado do Amazonas, possivelmente até o Rio Negro, não seria nossa.

Portugal fazia-se respeitar. As suas fortalezas falavam em nome do seu direito de conquista e domínio. Para garantir a jurisdição, a bôca dos canhões.

Fundação da Fortaleza da Barra: Viu o govêrno português que o Rio Negro era um excelente caminho para a penetração de holandeses e espanhóis. Fazia-se mister barrá-los.

Corria o ano de 1669. E, logo se fundou a Fortaleza de S. José do Rio Negro, chave militar e econômica, senão política, da imensa região que ia dos campos do Rio Branco e às montanhas do Orinoco.

Local magnífico, à margem esquerda, alguns quilômetros acima da foz, onde habitavam as tribos dos Banibas, Barés, e Passés.

Foi encarregado de fundar êsse pôsto militar, Francisco da Mota Falcão, por ordem do governador geral Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho, sendo seu primeiro comandante Angélico de Barros, conforme nos contam o ouvidor Ribeiro de Sampaio e o capitão-tenente Araújo Amazonas. Juntaram-se depois às referidas tribos os famosos Manaus, descidos da zona de Mariuá. Novos indígenas atraídos por Tinoco Valente, outro comandante da Fortaleza, e pelos missionários, engrossaram a população local e desenvolveram a prosperidade com o seu trabalho no plantio de roças, na caça, na pesca e na extração de "drogas". Como era natural, o comércio apareceu para tirar proveito dêsse núcleo incipiente, que as necessidades do Reino teriam de fomentar, como uma das fôrças avançadas do seu vastíssimo domínio na América.

A Fortaleza jamais ficara desguarnecida e continuava a atrair quer novos indígenas, que civilizados. Muitos dêstes vieram como soldados, servindo por oito anos, mesclando-se com a gente da terra. Como porta de entrada para o rio, a Fortaleza tornou-se realmente a dominadora das incursões, como a mantenedora da submissão dos aborígines.

A 23 de agôsto de 1743, visitou-a La Condamine. Aludindo à Fortaleza diz: "Há ali sempre um destacamento da guarnição do Pará, para manter o respeito das nações indígenas que lá habitam, e para favorecer o comércio de escravos nos limites prescritos pelas leis de Portugal, e todos os anos, êste acampamento ambulante, a que se dá o nome de "tropa de resgate", penetra para diante das terras. O capitão comandante do Forte do Rio Negro estava ausente, quando ali aportamos: não me demorei aí mais que vinte e quatro horas" (1).

O ouvidor Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio lá estêve, em 1774, numa viagem de correição. E registou que a população do arraial crescido em tôrno do forte, chegava a 250 pessoas, incluindo 10 mulheres maiores de 90 anos (2).

Apesar de sua excelente situação geográfica, o Lugar da Barra, como passou a ser chamado o sítio da Fortaleza, ao findar o século XVII e por todo o século XVIII, ainda não passava de um lugarejo sem maior importância, sobretudo por causa da concentração de ádvenas e de recursos em Mariuá (Barcelos), por ocasião dos trabalhos da Quarta Partida de Demarcação luso-espanhola. Pereira Caldas, chefe dos serviços por parte da Coroa de Portugal, achava que o local da Fortaleza da Barra era mais apropriado para a sede do govêrno da capitania instituída por Mendonça Furtado. E foi, sem dúvida, essa opinião que estimulou o coronel Manuel da Gama Lôbo d' Almada, 3° governador dessa capitania, a transferir a sede do seu govêrno para o Lugar da Bara, em março de 1792. A capitania do Rio Negro encontrava-se sob a jurisdição de Francisco de Sousa Coutinho, capitão general do Grão Pará, que continuamente mostrava desaprovar os ator do governador Lôbo d' Almada, entre os quais o da mudança da capital. Em ofícios a Sousa Coutinho, Lôbo d' Almada defendeu com calor a idéia: "... que o lugar mais central da capitania (que o é certamente êste Forte) é também o mais acomodado e adequado para a dirigir", adiante informando sôbre a sua relativa abundância de gêneros, "como peixe e farinha, os quais nunca faltam neste Forte, pois das vizinhanças dêle é que sempre foi provida Barcelos, uma das povoações mais famintas desta capitania" (3).

Uma determinação régia de 3 de agôsto de 1798, reclamada por Sousa Coutinho, fêz regressar a Barcelos a sede da capitania, o que causou profundo desgôsto a Lôbo d' Almada.

A Vila da Barra: Como estivesse implícito, na sua função administrativa, o predicamento de "vila", dado à sede da capitania, o de Lugar da Barra foi sendo substituído nos papéis oficiais, como no uso popular. Não obstante a transferência, o lugarejo não mais perdeu a denominação da sua perdida hierarquia.

A 1°. de março de 1787, foi a Barra visitada pelo naturalista baiano Alexandre Rodrigues Ferreira, a serviço do govêrno da metrópole. Dela, nos dá o seguinte relato: "Está a Fortaleza em frente de uma povoação de índios e alguns moradores brancos, a qual se divide em dois bairros ao longo da margem boreal: ambos êles ocupam uma porção da barreira entre os dois igarapés da Tapera dos índios Maués (sic) e dito Manaus. Porém, a porção da terra que serve de base ao primeiro bairro, onde estão situadas a matriz e ambas as residências do reverendo vigário e do comandante, é mais alta e avançada para o rio do que a do segundo bairro, onde há 8 casas".

A êsse tempo, a Barra tinha a seguinte população: —

Moradores brancos. 47
Índios.....................243
Pretos escravos.........11         Fogos — 40
                              301

Apenas três ruas ou melhor caminhos traçavam a povoação. Na principal, viam-se 8 casas. As demais ficavam esparsas. Quase tôdas cobertas de palha inclusive a matriz consagrada a N. S. da Conceição e a residência do vigário.

A Fortaleza era o centro da vida militar, civil e comercial da região, pois tudo girava em tôrno de sua guarnição. Barcelos ficava muito longe. De 1754 ao ano em que lá estivera o infatigável naturalista, segundo suas informações, ali serviram os seguintes comandantes: o alferes Alexandre Tomás, o cabo de esquadra José Ferreira Tortolo, o tenente Teodoro da Frota, o capitão de granadeiros José da Silva Delgado, o alferes Crispim Lôbo de Sousa, o alferes Luís da Cunha Eça, o alferes Francisco Alves Caeiro, o tenente Bernardo Toscano de Vasconcelos, o alferes Crispim Lôbo de Sousa (pela 2°. vez), o tenente Francisco Vitorino José de Oliveira, o então tenente Crispim Lôbo de Sousa (pela 3°. vez), o tenente Manuel Lôbo de Almeida, o alferes Manuel Alves Romeiro Belo, o ajudante-auxiliar Custódio de Matos, Pimpim, o tenente Vitorino José de Oliveira (pela 2°. vez), o soldado Francisco Serrão de Oliveira e o cadete promovido a alfares, José da Costa Souto Maior (4).

Apesar dos sensíveis melhoramentos que a vila usufruiu, com a presença e a ação administrativa de Lôbo d' Almada, muito longe ainda estava de apresentar casario e confôrto condignos de uma sede do govêrno. As telhas de barro para as primeiras casas foram fabricadas em Belém (Pará). Depois, fundou-se uma olaria. A matéria-prima era trazida da outra margem do Rio Negro e bastante concorreu para melhorar a construção dos prédios. Uma Ribeira (estaleiro) para o fabrico de canoas e igarités funcionava nas proximidades da Fortaleza. Nessas pequenas embarcações efetuavam-se as "diligências", ou fôssem as expedições oficiais que conduziam as ordens do govêrno, as tropas, as autoridades. Essas diligências, também usadas no Pará, gastavam costumeiramente de 3 a 4 meses, de Belém à Barra.

Atestam a morosidade da viagem C. F. P. von Martius e J. B. von Spix quando dizem: "Havíamos feito a navegação de Belém à Barra do Rio Negro em três meses e meio, quando se pode com embarcações menores e com maior pressa, fazer o percurso em um mês (5).

Êsses ilustres naturalistas chegaram à antiga Fortaleza da Barra em outubro de 1819. Ficaram embevecidos pela paisagem, que descrevem com deslumbramento, exclamando: "A todos êsses encantos, junte-se a majestosa tranqüilidade do clima equatorial, que proporciona manhãs frescas e noites serenas em alternância regular. Foi esta a primeira impressão que enfeitiçou a nossa estada por alguns dias em Barra do Rio Negro, e, quanto mais aqui demoramos, tanto mais se afigurava em nós o conceito de que esta região fôra para doces saudades, contemplações filosóficas, sagrada paz, profundo fervor.

Foi nos citado o número da população em 3 000 habitantes; entretanto não se acha tôda no lugar, pois uma parte das famílias mora em fazendas ou pesqueiros e só vêm aqui por ocasião das festas das igrejas. Na época de nossa estada em Barra do Rio Negro, oficialmente chamada Fortaleza, esta ainda não era "vila", mas simples "lugar". Está situada na margem setentrional do rio Negro, a cêrca de uma milha alemã de sua confluência com o Amazonas, num terreno desigual, cortado por diversos regos e consta, como tôdas as vilas do estado, quase exclusivamente de um só pavimento, cujas paredes são construídas de pau-a-pique e barro, cobertas geralmente de fôlhas de palmeiras".

E, mais adiante, os ilustres viajantes acrescentam profeticamente: "Ainda faltam aqui médico, boticário, e professor. A Barra do Rio Negro, com o crescimento da população, tornar-se-á praça muito importante para todo o comércio com o hinterland do Brasil. A sua situação, em aprazível altitude, dominando todo o rio Negro, nas proximidades do Amazonas e não distante da foz do Madeira, não poderia ter sido mais felizmente escolhida. Será a chave da parte ocidental da região" (6).

Um fato pitoresco ocorrera no interregno da permanência de Martius na Barra. E' êle mesmo quem no-lo conta. Diz que um dia lhe apareceu um vizinho, reclamando contra os furtos de que estava sendo vítima, o que atribuía à gente da expedição ali acantonada. Afirmava o reclamante que seus objetos de uso doméstico, como roupas estendidas nas cordas do quintal e, até, panelas com alimentos, desapareciam. O sábio ficou surpreendido, assegurando que sua gente não seria capaz de tamanha desonestidade, até porque nada lhe faltava. Mas, continuavam os furtos. O prejudicado põe-se em atalaia, escondido. E então vê que o ladrão era um grande macaco coatá, muito manso, que pertencia ao Dr. Martius. O animal, bastante sagaz, aproveitando-se do momento em que os donos de casa saíam, conduzia para o mato próximo os referidos objetos, comia os acepipes e lá deixava as panelas e tudo mais... em resumo: o larápio foi acorrentado, para tranqüilidade do vizinho... (7).

Como se acaba de ver, pelo testemunho insuspeito de dois estrangeiros de grande projeção científica, a posterior cidade de Manaus, no comêço do século XIX, não passava de uma "aldeia de palha", mas na qual já se pressentia o surto de progresso, quer pela sua situação-chave do comércio e da administração pública, quer pelo aspecto encantador de suas terras.

Em 3 de dezembro de 1825, a Câmara Municipal, que funcionava em Barcelos, instalou-se, na Barra, por determinação do govêrno do Pará.

Inquietação e decadência: É interessante refletir a visita que fêz ao Lugar da Barra o oficial da marinha inglêsa Henry Lister Maw, em março de 1828. Descreve a pobreza dêsse núcleo incipiente, avaliando-lhe a população em 3 000 pessoas inclusive índios, população acrescida eventualmente por ocasião das festas de São João, Páscoa e Natal. Conta que ninguém podia subir o rio Negro sem que primeiro exibisse seus papéis às autoridades da Barra. Fala-nos de Ricardo Zany, comandante da milícia, homem prestimoso, natural da Córsega, de onde se afastara para não se submeter ao domínio de Napoleão (8).

Maw refere que era costume, na Barra, não aparecerem as mulheres das principais famílias aos visitantes, mesmo ao serem oferecidos a êstes jantares ou outras homenagens.

A êste tempo, a Barra vivia uma fase de decadência, cessado o surto de prosperidade que usufruiu sob a gestão empreendedora e esclarecida de Lôbo d' Almada, surto que tão breve não seria repetido.

E nem sempre reinou a paz no seio da boa gente de Barra. Houve momentos de exaltação cívica, protestos contra a injustiça de não ter a capitania de S. José do Rio Negro entrado para o rol das províncias do Império, como era letra da Constituição e conseqüencia dos fatos decorrentes da emancipação política do país. O mais notável dêsses movimentos foi, sem dúvida, a quartelada de 12 de abril de 1832: os soldados amotinados mataram seu comandante, coronel Filipe dos Reis que não gozava das simpatias gerais, quer devido ao rigor de sua disciplina, quer pela maneira pouco delicada com que tratava as figuras mais representativas da sociedade local. Foi nomeado para substituí-lo o coronel Ricardo Zany, que há muito se achava radicado á terra e aos seus interêsses.

O caráter autonomista do movimento torna-se evidente com a designação do ouvidor Manuel Bernardino de Sousa Figueiredo como presidente da "Província". Frei José dos Inocentes é enviado à Côrte, via Mato Grosso, afim de conseguir a homologação da efêmera vitória autonomista. Mas tudo se desfez com a chegada á Barra de uma expedição militar vinda de Belém.

Em 1833, com a execução do novo Código de Processo Criminal, quatro têrmos judiciários são criados na que se chamou comarca do Alto Amazonas, com as sedes em Barra (com o nome de Vila de Manaus), em Luzéia (com o nome de Maués), Barcelos e Ega (com o nome de Tefé). Barra pôde possuir, assim, sua própria Câmara Municipal, adquirindo crescente ascendência política sôbre as demais vilas.

Em 1835, a onda de inquietação revolucionária da Cabanagem alastras-se pelo interior. A 6 de março de 1836, Manaus cai em poder dos cabanos. Seus chefes, Apolinário Maparajuba e Bernardo de Sena, instituem um govêrno cuja dominação se prolongaria em Manaus por seis meses, até 31 de agôsto.

A êsse tempo, a vila havia alcançado um pequeno desenvolvimento. Ouçamos, a respeito, a informação de Ladislau Monteiro Baena, no seu Ensaio corográfico sôbre a província do Pará, publicado em 1839:

"Das casas que êste lugar tem no seu âmbito, a maior parte tem cobertura tecida de ramagem: e com a mesma se acham cobertos o Palácio dos antigos governadores, a Provedoria, o Quartel e os edifícios de uma pequena Ribeira de construção de canoas e batelões. São cobertos de telhas a olaria, o hospital militar, os armazéns da Provedoria, e os dos meios de guerra como armas e pólvora e algumas casas de moradores. Tudo isto forma pequenas ruas e uma praça. Há duas igrejas, uma pequenina e outra é a matriz, cujo orago é Nossa Senhora da Conceição. Ela foi levantada em 1695, pelos missionários carmelitas que então começavam a instituir nas disciplinas da piedade católica os silvícolas do Rio Negro; o governador Manuel da Gama Lôbo d' Almada a reedificou e ampliou.

"A população consta de 347 homens brancos, 327 mulheres brancas, 415 mamelucos, 450 mamelucas, 397 homens baços, 1 020 mulheres da mesma raça, 215 escravos, 164 escravas, 255 mestiços e 206 mulheres desta casta: todos os números de gente livre assomam a 2 809 e os escravos 379. Número de fogos 232" (9).

Em 1840 caiu o último reduto cabano da Mundurucânia. Com a fadiga e a lição dessa longa luta, entrou o Alto Amazonas num período de sossêgo em que pôde refazer-se lentamente dos prejuízos materiais e humanos que dela decorreram. Manaus desenvolveu-se.

A lei n.° 147, de 24 de outubro de 1848, da assembléia da província do Pará, elevou Manaus a novo predicamento, com o nome de cidade da Barra do Rio Negro. Tinha apenas 4 000 habitantes.

O nome de Manaus, posteriormente recuperado, foi substituído por êsse até 1856. Nesse ano, em virtude da lei n.° 68, de 4 de setembro, e cujo projeto fôra da autoria do deputado João Inácio Ribeiro do Carmo, o antigo arraial tornou-se a cidade de Manaus.

Manaus, sede da comarca do Alto Amazonas, ia crescendo mofinamente e sofrendo as conseqüencias da injustiça de não ter sido contemplada. em 1822, com o predicamento, que lhe cabia, de capital de uma das unidades políticas do Império. Sua vez chegaria, como chegou, com a execução da lei de 5 de setembro de 1850, que criou a província do Amazonas.

Em 1848, há um fato a destacar: a fundação do seminário onde se ensinava gramática latina, francês, música e canto.

Manaus, capital da província: Quando foi instalada a nova província, a 1.° de janeiro de 1852, Manaus possuía um pouco mais de 6 000 habitantes, e todo o Amazonas uns 40 000 civilizados, com 7 escolas primárias, na capital. As rendas provinciais, nesse ano, atingiram Cr$ 19 000,00.

Para compreendermos melhor quanto era insignificante a cidade de Manaus, a essa época, leia-se o relatório do seu primeiro presidente, João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha. Esclarece-nos que não existia um edifício público, condigno para o escopo de sua serventia, a começar pela Câmara Municipal, e a respeito nos diz: — "Não há uma casa própria para a Câmara Municipal celebrar suas sessões; e a em que funciona é alugada, insuficiente e pouco decente a uma corporação respeitável". Sôbre a cadeia, esclarece o presidente: "Serve de cadeia um pequeno quarto no Quartel Militar, que pelo seu âmbito estreito, escuro e insalubre, parece mais um ergástulo tormentoso, que casa de detenção". Tratando da igreja matriz: "A falta de igreja matriz, que ficou reduzida a ruínas por um incêndio acidental, é por demais sentida. Serve de matriz a capela de Nossa Senhora dos Remédios, distante do centro da cidade a quase um quarto de légua, para onde, no tempo da cheia, em razão dos rios que entram pela cidade, não há passagem, a não ser em pequenas canoas com iminente risco de perda de vida; ou vindo por uma estrada ainda mal preparada, por onde se rodeia e faz mais distância e com demorada passagem".

Tenreiro Aranha regista, no seu referido relatório, não haver edifício próprio para servir de palácio do govêrno, que funcionava em casa particular, pequena e inadequada para as altas funções de administração pública. Fala de duas pontes de madeira, ambas já bem arruinadas, ligando os bairros de São Vicente ao da Matriz, e êste ao dos Remédios.

Da antiga Fortaleza fundada em 1669 por Mota Falcão, diz: "O forte da capital tem apenas as ruínas das muralhas. O local é o mais impróprio e, ainda que despendessem consideráveis somas para sua reedificação, de utilidade alguma poderia servir" (10).

Uma planta cadastral, levantada em 1852, que aqui juntamos, dá uma idéia do que era Manaus, quando investida dos foros de capital da mais vasta província do Império.

Referem-se a essa época as preciosas indicações de Lourenço da Silva Araújo Amazonas, oficial da Armada que serviu vários anos na região, estudando-a com minúcia e carinho:

"Consta a cidade de uma praça e 16 ruas, pela maior parte curtas e estreitas, e ainda por calçar e iluminar. As casas são cobertas de telha e poucas de sólida fundação; porém são cômodas, espaçosas e desafogadas. Os sobrados são ainda em diminuto número. As lojas carecem de mais gôsto em sua peculiar ostentação. Possui a cidade duas igrejas, a saber: matriz de N. S. da Conceição e a capela de N. S. dos Remédios, ambas de fundação à imitação da dos jesuítas no país, isto é, frágil e destituída de arquitetura; e o que compensa o povo com um trato e asseio que lhe fazem honra. Possui mais um quartel em uma bela praça, um armazém da arrecadação da Fazenda Nacional, uma olaria pertencente à mesma Fazenda Nacional, algumas casas para habitação dos empregados. Já se não apercebem os vestígios do palácio dos governadores (porque sua fundação era a mesma das igrejas jesuíticas), da fábrica de tecidos de algodão e de alguns edifícios de propriedade nacional. Avultam ainda as ruínas da Fortaleza de São José do Rio Negro e do Hospital de São Vicente; entre tudo o que faltou sempre um cais ou rampa para desembarque".

Sôbre a população e seus costumes:

"São em número de 900 brancos e 2 500 mamelucos, 4 080 indígenas, 640 mestiços e 380 escravos, tudo em 900 fogos assaz dispersos. Vestem à moda séria e asseiadamente; as mulheres com gôsto e luxo, realçadas por natural e superior graça. Falam muito bem o português, conquanto também usem muito da língua geral. Passando parte do dia em banhos, torna-se-lhes o asseio uma qualidade inata". Durante a enchente, enquanto estão na cidade, os seus habitantes dedicam-se a "festas de igreja, bailes, jantares e passeios"; no verão espalham-se em trabalhos pelas praias e lagos. "Dão-se a empregos eclesiásticos, civis e militares; e mui assiduamente ao comércio quanto escassamente à agricultura, que não excede de algum algodão e café, além de substâncias alimentares. No que se chama comércio se compreende a pesca do pirarucu, a manipulação de manteigas de tartaruga e peixe boi e a extração de drogas preciosas. Seu principal sustento é tartaruga, peixe e aves, do que tudo há abundância; e carne de gado só aos domingos, e com mais freqüencia no tempo da enchente, quando abunda o gado, descido do Rio Branco" (11).

Entre dezembro de 1850 a novembro de 1851, portanto durante 11 meses, o grande botânico Richard Spruce residiu em Manaus. Entre os episódios que narra dessa estada, valerá colhêr um, como testemunho de um dos aspectos da vida de então: cinco escravos do mesmo proprietário fugiram para o Purus mas foram alcançados e regressaram. Um dêles mostrou-se de tal modo indócil que "se julgou necessário encadeá-lo por uma perna a um poste, no pátio". À noite, atravessando o seu senhor o pátio, o escravo tentou assassiná-lo com uma faca. Frustrada a sua tentativa, encostou o cabo da faca no poste e rasgou o seu próprio ventre. "Na manhã seguinte — conta Spruce — quando eu ia para o banho, seus companheiros de jugo o estavam conduzindo, morto, cosido num saco, para uma canoa, afim de lançá-lo ao meio do rio. Êles estavam rindo e gracejando como se carregassem um cão morto; e o acontecimento não parecia produzir a menor impressão nos vizinhos. Tais são as "belezas do sistema escravagista! ..." (12).

Na mesma ocasião em que Manaus acolheu Spruce, também acolheu outro famoso naturalista, Alfred Wallace, a quem devemos algumas preciosas páginas, acêrca de suas instituições e costumes. Fala-nos das casas, das coisas, dos homens.

Dêstes, por exemplo:

"Os habitantes mais civilizados da Barra dedicam-se todos ao comércio, não havendo ali qualquer outra diversão, se assim podemos considerar, que não seja a de beber e jogar em pequena escala.

A maior parte nunca abre um livro ou trata de empregar o seu tempo em qualquer outra ocupação intelectual.

Por conseguinte, o que nisso poderá inferir, é que se atende mais ao luxo; aos domingos principalmente, todos trajam as suas melhores roupas.

As mulheres vestem-se elegantemente, exibindo lindos vestidos, confeccionados com gases e musselinas francesas".

"Os homens, que passam a semana inteira em mangas de camisa e de chinelos, nos imundos armazéns, trajam, nesse dia, bonitos ternos escuros, chapéu de castor, gravata de setim e finíssimos sapatos de pelica.

Então, conforme é moda ali, é a ocasião própria para fazer visitas, indo uns às casas dos outros, para palestrar, tendo como assunto principal da conversação os escândalos, que se acumularam durante a semana".

Acrescenta que se ouviam na Barra, "diariamente, falatórios a respeito das mais respeitáveis famílias do lugar, os quais dificilmente seriam acreditados pelos habitantes dos piores bairros suspeitos de Londres" (13).

Wallace testemunhou os primeiros dias de vida de Manaus como capital de uma província. Regista a luta para obter uma casa, "o que naquela ocasião era muito difícil de conseguir, pois estavam quase tôdas ocupadas, e os aluguéis de numerosas eram caríssimos". "Isso tinha como principal causa o afluxo de numerosos adventícios e comerciantes, ali chegados em conseqüencia da instalação do novo govêrno na cidade".

Quando Wallace assinalou tais fatos, Manaus atravessava um período de dificuldades. "Desde 5 meses, ali não chegava navio algum, procedente de Belém do Pará, e havia absoluta falta de quase todos os gêneros de primeira necessidade. A farinha de trigo há muito tempo que se havia acabado e, consqüentemente, não havia pão". "Esta falta de gêneros", explica o cientista inglês, "era devida a ter-se perdido, um mês antes, perto da Barra, um navio que vinha de Belém, carregado de provisões" (14).

Por essas referências, é possível imaginar o que fôsse a vida de Manaus, acrescendo ao seus problemas anteriores o do ajustamento à nova condição de capital de uma província do Império.

Quando o presidente da província, Herculano Ferreira Pena, tomou posse, em 1853, de 243 casas no centro urbano, 122 eram cobertas de palha. "Pelas piores casas – informa o conselheiro – paga-se ordinariamente o aluguel mensal de 4 a 6 cruzeiros; pelas melhores, 15 a 25 cruzeiros, havendo algumas de 30 cruzeiros: nenhuma delas se acha desocupada" (15).

Constitui-se, então, a Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, incorporada por Mauá, e que larga influência iria ter para a prosperidade da região. Com o tráfego estabelecido pelos vapôres "Marajó", "Monarca" e "Rio Negro", abertas as linhas do Madeira e do Solimões, assegurada a ligação regular com Belém, Manaus começou a usufruir das vantagens de sua posição.

Em 1860, Manaus recebeu a visita de Belmar, um viajante francês cujas informações sôbre a cidade, pouco mais fazem do que repetir os dados constantes do Dicionário de Araújo Amazonas. E Belmar escreveu, por sua vez, estas palavras de confiança no futuro do pequeno burgo: "A posição de Manaus determinar-lhe-á ser um dia uma das mais importantes cidades do Alto Amazonas. Já é ela o entreposto de todo o comércio de importação e exportação que se faz na imensa bacia do rio Negro, comércio que não pode deixar de adquirir cada dia mais extensão e atividade, à medida que o país se povoe de trabalhadores" (16).

Em 1865, Louis Agassiz e sua luzida comitiva estiveram em Manaus. A narrativa dessa viagem, em grande parte escrita por madame Elizabeth Cary Agassiz, diz-nos largamente da cidade e dos seus arredores, bem como dos habitantes e seus usos.

"Que poderei dizer de Manaus? – indaga. É uma pequena reunião de casas, a metade das quais, prestes a cair em ruínas, e não se pode deixar de sorrir ao vê-las oscilantes decoradas com o nome de edifícios públicos: Tesouraria, Câmara Legislativa, Correios, Alfândega, Presidência. Entretanto, a situação da cidade, na junção do rio Negro, do Amazonas e do Solimões, foi das mais felizes na escolha. Insignificante hoje, Manaus se tornará, sem dúvida, um grande centro de comércio e navegação" (17).

Madame Agassiz, com a autoridade de ser o seu um depoimento feminino, confirma a observação de Maw, há cerca de quarenta anos antes, quanto à vida semi-claustral das senhoras amazonenses. Muitas senhoras, verificou, "passam meses e meses sem sair de suas quatro paredes, sem se mostrar, senão raramente à porta ou à janela; pois, a menos que esperem alguém, estão sempre tão pouco vestidas que vão além da negligência". A mulher, nessa porção do Império, se embota no torpor de uma existência inteiramente vazia e sem objetivo, ou se se revolta contra suas cadeias, a sua infelicidade só é comparável à nulidade de sua vida" (18).

Não obstante tal recolhimento, davam-se bailes e o casal Agassiz teve oportunidade de assistir a um, em homenagem a Aureliano Cândido Tavares Bastos, campeão de abertura dos portos do Amazonas às bandeiras das nações amigas. Não havia carruagens: os convivas, ataviados para a festa atravessavam as ruas enlameadas, a pé, às carreiras, alumiando o caminho com lanternas de mão. Na noite dêsse baile, chegou a notícia da rendição de Uruguaiana. E um outro foi organizado por êsse motivo para a noite seguinte. Agassiz regista o que foi a comoção pública diante de tão desusadas comemorações.

Em 1867, o engenheiro Franz Keller-Leuzinger foi comissionado pelo govêrno imperial para realizar estudos sôbres problemas de transporte no rio Madeira. No livro que escreveu descrevendo sua exploração, também presta o seu depoimento sôbre Manaus. Diz-nos, por exemplo, da dificuldade e desconfôrto do desembarque e depois, como todos os outros, expande a sua exaltação e deslumbramento.

"As ruínas do pequeno forte português, São José da Barra do Rio Negro, – regista – são vistas à esquerda. Mas elas despertam muito menos interêsse que um velho cemitério indígena, recentemente descoberto ao nivelar-se o terreno na vizinhança de suas muralhas. Centenas daquelas urnas de argila vermelha (igaçabas), que os aborígines usam para enterrar seus mortos, são vistas em longas fileiras, e a não grande profundidade da terra. Em várias delas, os restos de ossadas humanas têm sido encontradas, e o seu estado de decomposição mostra que elas são de data bem antiga" (19).

"A despeito de seu pomposo título, capital da província do Amazonas, Manaus é uma cidadezinha insignificante de uns 3 000 habitantes. Ruas sem calçamento e pessimamente niveladas, casas baixas e cabanas de construção a mais primitiva, sem nenhum cuidado de beleza arquitetônica, numerosas vendas de portuguêses, – onde qualquer coisa pode ser conseguida, do vinho de Lisboa e tecidos estampados inglêses ao queijo brasileiro e ao pirarucu sêco; de cosméticos e sabonetes de Paris ao caucho e ao cacau, de espingardas belgas a pontas importadas de arpão – certamente se negam em compor um importante ensemble; enquanto a população, exibindo amostras de tôdas as possíveis misturas de sangue branco, negro e indígena, também nos lembra vigorosamente que estamos no coração do continente sul americano, no verdadeiro centro do vale amazônico, aberto apenas recentemente à civilização e ao comércio". Franz Keller remata a notícia que nos dá de Manaus, falando de como o impressionam de um lado o céu, a vegetação e as águas, e de outro a cordialidade da gente. Tais coisas, diz êle, "tendem a fazer-nos esquecer o desejo de luxos e ter como muito agradável a nossa primeira impressão de Manaus" (20).

Durante o largo interregno que vai daí à proclamação da República pouco se fêz pela princesa do Rio Negro. Os mais notáveis edifícios construídos nesse período foram a matriz e o Colégio Estadual do Amazonas, instalados em 1884, instalados em 1884, pelo presidente Ernesto de Vasconcelos Chaves. A Santa Casa de Misericórdia fôra instalada a 16 de maio de 1880, pelo presidente coronel José Clarindo de Queirós. Ainda não era o edifício que é hoje, remodelado pelo saudoso arquiteto Aloísio Araújo (21).

Um dos poucos melhoramentos integrado naquele período do regime monárquico, não deve ser esquecido: o "Asilo Elisa Souto", mais tarde "Instituto Benjamin Constant", instalado no dia 10 de julho de 1884, em que a província do Amazonas festejava a entrega das últimas cartas de alforria ao reduzido número de seus escravos. Não tinha a amplidão e o confôrto que recebeu já no período republicano.

Mais outros edifícios tinham sido levantados, como o Paço Municipal, o Mercado de Ferro, o Quartel de Artilharia, Cadeia Pública, a Assembléia Legislativa (comprada ao capitalista Custódio Pires Garcia). Nenhum grupo escolar.

Manaus, capital do estado: Manaus havia progredido morosamente. Ao evento do novo regime possuía cêrca de 20 000 habitantes, sem telégrafo, sem telefones, sem bondes, sem água canalizada, sem luz elétrica. Suas rendas eram mesquinhas. Mas o Amazonas teve a felicidade de ver, no comêço do novo regime, valorizada a sua produção de borracha. Suas receitas se duplicavam anualmente. Era mister aplicar êsse dinheiro, satisfazendo os reclamos dos serviços públicos.

Eduardo Gonçalves Ribeiro, o "Pensador", quando governou o estado, pela segunda vez (de 1892 a 1896), foi o grande construtor de Manaus. "A maior parte dos melhoramentos que se realizaram nesta capital e no interior – já escreveu o signatário destas linhas – datam dêsse quatriênio. São justas as palavras daquele governador, a respeito desta capital: "Encontrei uma grande aldeia e fiz dela uma cidade moderna" (22).

O "Pensador" remodelou a cidade. Fêz aterros e desaterros importantes, edifícios escolares, canalização d' água aparelhada de um enorme reservatório, pontes de pedra e de ferro, o Teatro Amazonas, o Palácio da Justiça e outros melhoramentos que foram inaugurados mais tarde. Seus sucessores seguiram-lhe o programa, embora menos intensamente.

Até a gestão Eduardo Ribeiro, o abastecimento de água para a população se fazia por meio de carros-pipas, puxados a boi ou a cavalo, e quase sempre de propriedade de portuguêses, os "aguadeiros", que iam buscar o líquido no igarapé de Manaus, em certa altura, a montante da qual era proibido utilizar as suas águas para banhos ou outras serventias que as pudessem poluir (23).

Entre os grandes aterros então executados, figura o que deu origem à atual avenida Eduardo Ribeiro, a principal da cidade, e que está situada, na sua maior extensão, onde era um enorme pantanal pelo centro da qual corria o igarapé do Espírito Santo. As avenidas Floriano Peixoto e Getúlio Vargas (anteriormente 13 de maio) ocupam o antigo igarapé do Atêrro, assim chamado por causa de um atêrro sobre arcada que o govêrno provincial mandara construir, em frente ao atual Cine Politeama, no caminho da Cachoeirinha hoje avenida 7 de Setembro.

Quem escreve estas linhas, conheceu o centro urbano de Manaus limitado à área que tem pela parte norte, a rua Monsenhor Coutinho, pelo sul o rio Negro, por este a avenida Joaquim Nabuco, por oeste o igarapé de São Vicente. Fora daí ficavam os subúrbios, considerados lugares distantes, como os bairros dos Educandos (hoje Constantinópolis) a Cachoeirinha (arruada pelo prefeito Manuel Uchoa Rodrigues), Campinas, São Raimundo.

A Vila Municipal (hoje Adrianópolis) é recente. Data de 1906. Está situada no antigo terreno pertencente aos herdeiros do capitão de mar e guerra Nuno Álvares de Melo Cardoso, terreno êsse que foi, em parte, desapropriado, traçando-se nêle os lineamentos dos bairros, sob o govêrno municipal do capitão Adolfo Guilherme de Miranda Lisbôa.

Com os trabalhos de planificação da parte central da cidade, muito alterada ficou a topografia, como ainda atestam certos pontos (igreja da Matriz e Remédios, Teatro Amazonas e Palácio da Justiça).

Os primitivos cemitérios de Manaus, inclusive o dos índios, desapareceram. O de Nossa Senhora dos Remédios, que estendia lateralmente e pelos fundos da igreja dêsse nome, possuía, ainda, em 1884, o seu grande "cruzeiro" de madeira, em frente ao atual templo da Loja Maçônica "Amazonas", e na parte sul da rua que aí foi aberta, recebendo o nome de rua da Cruz, mais tarde Leovigildo Coelho. Essa necrópole fôra fechada em 1856, por ordem do presidente Herculano Ferreira Pena, quando assolou a cidade uma epidemia de cólera.

O cemitério de São José, situado no limite sul da praça da Saudade, e aberto nesse ano de 1856, foi fechado ao ser aberto o de S. Raimundo no bairro dêsse nome, e criado para atender aos óbitos oriundos de um surto de varíola que então grassou. O cemitério São José foi demolido, já em nossos dias, e, no local, que se irrigara de tantas lágrimas, construiu-se a bela sede do Atlético Rio Negro Clube...

A atual necrópole de São João Batista foi aberta na gestão Lisboa, tendo sido o primeiro enterramento, nêle realizado, o do grande médico e jornalista Aprígio de Meneses.

Sucessor de Eduardo Ribeiro, o governador Fileto Pires Ferreira teve oportunidade de concluir e inaugurar muitos melhoramentos notáveis. O ano de 1896 foi excepcionalmente feliz a êsse respeito.

Em 1896, a 10 de fevereiro, verificou-se a inauguração da linha telegráfica sub-fluvial. A 1.° de março, dava-se a instalação do Instituto Benjamin Constant, em seu novo prédio. A 5 de julho, eram inaugurada as pontes de alvenaria sôbre os igarapés Manaus e Bittencourt. A 22 de julho, iniciou o tráfego a linha de viação urbana, partindo da praça Tamandaré ao reservatório do Mocó. A 22 de julho, inauguração do serviço de abastecimento d' água. A 15 de outubro (24), inauguração do serviço de iluminação elétrica: ressalvada a prioridade de Campos, Manaus pode orgulhar-se de ser no país precursora de tal melhoramento. E para terminar condignamente êsse ano, a 31 de dezembro, inauguração do Teatro Amazonas.

O pôrto de Manaus, com os seus flutuantes únicos no gênero em tais proporções, foi inaugurado em 1902, na gestão de Silvério Neri.

A administração Constantino Néri deu-nos dois belos edifícios públicos: a Biblioteca Pública e a Penitenciária: além de vários melhoramentos realizados sob a jurisdição municipal.

Entre as aquisições com que posteriormente foi enriquecido o patrimônio da cidade, cumpre destacar a do palacete Scholz, o atual Palácio Rio Negro, que custou apenas Cr$ 200 000,00 em 30 de junho de 1918, govêrno Alcântara Bacelar (25).

E recentemente, no govêrno Álvaro Maia, vários edifícios foram construídos e outros comprados e remodelados para os serviços públicos. Entre os construídos e os rematados convém registar o Instituto de Educação, o Palácio Rio Branco, o Palácio das Municipalidades, a Inspetoria do Tráfego. E não houve grupo escolar que não fôsse ampliado.

Com seus jardins vicejantes e ruas calçadas, com seus belos edifícios, Manaus transformou-se do que era no tempo de Agassiz para ser o que êle predisse: um grande centro de comércio e navegação, com suas instituições científicas e literárias, seus cursos técnicos, com os seus jornais e revistas bem colaborados, suas casas de diversão e, sobretudo, seu espírito de brasilidade, cordialidade e progresso.

Rio, agôsto de 1948.

Prof. Agnelo Bittencourt

NOTAS:

(1) Ch. – M. de La Condamine, Viagem na América Meridional – Trad. de Cândido Mota (filho) – Rio, 1944 – p. 88.

(2) "Apêndice ao Diário da Viagem que, em visita de correição das povoações da capitania de S. José do Rio Negro, fêz o ouvidor e intendente geral da mesma" – In Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, vol. VI.

(3) Ofício de Lôbo D' Almada a Sousa Coutinho, em 4 de abril de 1793 – In Artur César Ferreira Reis, Lôbo D' Almada – um estadista colonial – Manaus, 1940 – p. 212.

(4) Alexandre Rodrigues Ferreira, Diário da Viagem Filosófica pela Capitania de São José do Rio Negro – In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – Tomo 50, 2°. parte, 1887.

(5) J. B. von Spix e C. F. P. von Martius, Viagem pelo Brasil – Trad. de D. Lúcia Lahmeyer – 3.° vo. p. 198.

(6) Idem, p. 212.

(7) Idem, p. 213.

(8) Henry Lister Maw, Narrativa da passagem do Pacífico ao Atlântico através dos Andes nas províncias do norte do Peru, e descendo pelo rio Amazonas até o Pará – Trad. portuguêsa – Liverpool, 1831.

(9) Apud Barão do Marajó, As Regiões Amazônicas – 1895 – p. 392.

(10) Tenreiro Aranha, Relatório – Manaus, 1852.

(11) Lourenço da Silva Araújo e Amazonas, Dicionário Topográfico, Histórico e Descritivo da Comarca do Amazonas – Recife, 1852 – p. 190.

(12) Richard Spruce, Notes of a Botanist on the Amazon and Andes – Edição de Alfred Russel Wallace – Londres, 1908 – Vol. I – p. 241.

(13) A. R. Wallace, Viagens pelo Amazonas e Rio Negro – Trad. de Orlando Tôrres – Edição "Brasiliana" – p. 201.

(14) Idem, p. 483.

(15) Apud Agnello Bittencourt, Corografia do Estado do Amazonas – Manaus, 1925 – p. 273.

(16) A. Belmar, Voyage aux provinces brésiliennes du Pará et des Amazones – Londres, 1861 – p. 175.

(17) Louis Agassiz e Elizabeth Cary Agassiz, Viagem ao Brasil – Trad. de Edgar Sussekind de Mendonça – Edição "Brasiliana" – p. 247.

(18) Idem, p. 336.

(19) Tal cemitério estava localizado, provavelmente, no terreno ao lado do atual Palácio Rio Branco.

(20) Franz Keller, The Amazon And Madeira Rivers – Londres, 1874 – p. 34.

(21) Júlio Uchoa, Santa Casa de Misericórdia – Divulgação do Centro Teixeira de Freitas – Manaus, 1947.

(22) Agnello Bittencourt, ob. cit. – 290.

(23) Quando Agassiz estêve em Manaus, em 1865, os aguadeiros ainda não utilizavam carros e o seu ofício não era como após, costumeiramente fornecido por portuguêses. "Um dos meus grandes prazeres em Manaus – conta o sábio – é, à tarde, ao cair do dia, dirigir os meus passeios para a floresta vizinha e ver desfilarem os "aguadeiros", índios ou negros que passam de volta por um estreito caminho, trazendo na cabeça um grande jarro vermelho de barro, cheio d' água. E' como uma procissão, de tarde de manhã; a água do rio passa por não ser boa para se beber, e, de preferência, a cidade se fornece das pequenas lagoas e riachos da mata" (Ob. cit., 249). O polígrafo e amazonista Mário Ipiranga Monteiro dedicou ao estudo dos aguadeiros um valioso ensaio.

(24) Júlio Uchoa, Apontamentos para a história da iluminação em Manaus – Divulgação do Centro Teixeira de Freitas – Manaus, 1947.

(25) Júlio Uchoa, Palácio Rio Negro – Divulgação do Centro Teixeira de Freitas – Manaus, 1947.


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BITTENCOURT, Agnello. Manaus – sua origem e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Boletim Geográfico - IBGE, v. 7, n. 76, p. 385-395, jul. 1949.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

A introdução do negro na Amazônia, de Manuel Nunes Pereira (1949)

'Negros no fundo do porão', de Johann Moritz Rugendas (1835). FONTE: commons.wikimedia.org.

O texto a seguir foi publicado pelo antropólogo e etnólogo maranhense Manuel Nunes Pereira (1893-1985) no Boletim Geográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em agosto de 1949. Nele Nunes Pereira discorre sobre a introdução do negro escravizado na região Amazônica entre os séculos XVII e XVIII.

Resenha e Opiniões

A introdução do negro na Amazônia

O Prof. Nunes Pereira vem escrevendo, semanalmente, desde maio passado, no jornal Fôlha do Norte, que se edita em Belém, no Pará, uma série de artigos sob o título "A introdução do negro na Amazônia". Dada a utilidade, para o estudioso da Amazônia, das contribuições do Prof. Nunes Pereira a que nos referimos, deliberou-se divulgar neste mensário os comentários da série em aprêço. O presente número insere os três primeiros artigos, que são do seguinte teor:

"Sabe-se, geralmente, que a introdução do elemento africano na Amazônia, bem como noutras regiões, do sul e nordeste, da Colônia, nos três primeiros séculos da nossa formação, resultou de dois grandes imperativos: povoamento do seu território e organização da sua economia.

Mas, se a Coroa Portuguêsa relacionava a prosperidade das capitanias à importação do braço escravo, estava ela empenhada no tráfico por suas necessidades internas e pelo estímulo de outros povos, como a Inglaterra, que permutavam fazendas por ouro e escravos.

Desde o século XV, a exemplo dos seus concorrentes no comércio nefando, Portugal lançava mão dêsses recursos para atender aos gastos da sua administração, pois pagavam por cabeça de negro a ciza de dezesseis cruzados.

Outro móvel dêsse tráfico era o ter-se acostumado a utilizar o braço negro nas incipientes lavouras de suas colônias, na própria África, quer para subsistência dos escravos, quer para a dos fundidores.

Antes da descoberta da Terra de Santa Cruz, já os lisboetas viam descer das embarcações que regressavam d' África ou da Índia homens e mulheres, seguidos de crianças, muitos dêles encaminhados para os campos ou aproveitados nos serviços domésticos na capital do reino, porque a madraçaria lhe enchera as ruas de vagabundos, mendigos e criminosos, que pedinchavam, durante o dia, às portas das igrejas e às margens das estradas, para assaltar, à noite, casas e transeuntes.

Explica-se, portanto, que de Lisboa, também, nos viessem escravos, não que ali fôsse propriamente um entreposto dêles, e sim porque, acompanhando alguns imigrantes que os possuíam, ou de cambulhada com degredados e aventureiros, muitos se embarcavam com destino ao Brasil, às capitanias do Sul, principalmente.

Em inúmeros atos do govêrno da Metrópole, ainda no século XVI, podemos, por isso, encontrar as origens das curvas de ascensão, retardamento e declínio dêsse fenômeno econômico-social, de tamanha influência na formação e prosperidade de nossa terra, podendo-se até representá-las nitidamente num gráfico. E nesse gráfico apareceriam não somente escravos como, do mesmo modo, negros livres e forros, visto que alguns chefes ou titulares africanos - tais os membucos dos Cabindas, por exemplo, - mandavam filhos e parentes ao Brasil nas naus portuguêsas, para o visitar ou nêles estudar, convindo não esquecer-se que, nalgumas tribos africanas, bom negócio era ter filhos... para os vender.

Num depoimento recente de D. Domingos José Franque (Boma Zanei - N' Vimba) se justifica esta afirmativa e igualmente, a justifica uma carta régia de 1624, na qual se tratou dos sovas e negros livres que João Correia de Sousa, governador que foi de Angola, enviou ao Brasil, por respeito da guerra de Cassande etc., etc... E nesse documento El-Rei se diz desejoso de saber quanto se despendeu com cada uma, e donde se houve o dinheiro para isso e o que se fêz de outros negros que João Correia enviou por cativos.

Não será de estranhar-se, portanto, que, antes da data de 1692, que se aponta, com mais segurança, como a do início da introdução do elemento africano na Amazônia, já aqui houvesse aparecido negros escravos e negros livres ou mesmo forros, de parceria, cantando, dançando no convés, ou gemendo e agonizando no fundo do porão de um ou outro tumbeiro.

Em favor da tese que defende a entrada de negros na Amazônia, antes de 1692, se erguem os atos legislativos referentes aos preços e à divisão de escravos, entre o Pará e o Maranhão datando, respectivamente, de 1695 a 1697, porque não os reclamariam, quantos os adquiriam, com dobrado empenho, se o tráfico não viesse de data mais remota que as nomeadas aqui.

Sou dos que admitem dever-se à Holanda as primeiras introduções de negros na Amazônia, já porque agiam para cá das nossas fronteiras e no estuário mesmo do rio das Amazonas, já porque, segundo Roberto Simonsen, os batavos reputavam de tal modo possuir um viveiro na África que, quando ocuparam o Brasil Holandes, conquistaram Angola, um dos grandes abastecedores do elemento servil.

São tão vagas como discutíveis as origens das curvas caracterizadoras do fenômeno aqui referido; sente-se, contudo, que, ao partir de 1692, é que elas se vão levantando, morosamente embora, mas nítidas e seguras. 

Não introduziram os holandeses senão raras peças antes dêsse ano; é que a partir dêle, entretanto, que a Metrópole vai compreendendo as necessidades das capitanias do Extremo-Norte, abstração das contínuas guerras com franceses, holandeses e inglêses e também das rebeliões e correrias dos índios, enquanto fermentavam dissenções no seio dessas mesmas capitanias dada a ignorância e a ambição dos colonos, senão das autoridades que os dirigiam, como bem as focalizaram os nossos historiadores.

Sou levado, daí, a não concordar com as cifras que assinalam o total de indivíduos africanos introduzidos até às atividades de liquidação das célebres Companhias de Comércio do Maranhão e do Pará, e mesmo quando o tráfico se fêz mais amplamente, visto que essa forma de comércio e de povoamento sofria as alternativas que o caracterizavam: - escassez de produto, concorrência e dificuldades de transporte.

Num estudo acêrca da influência dos negros minas no Maranhão referi à presença de contrabandos, que ali teriam assentado o famoso terreiro de Andreza Maria; os contrabandos, também, poderiam ter antecedido à pressão que a Inglaterra fêz, et pour cause, contra o vergonhoso comércio.

Talvez o contrabando de carne humana já fôsse, àquele tempo, uma descoberta do próprio tráfico...

Para trocas e compras de peças tiveram os portuguêses de entrar pelo continente negro, por Salum e Gâmbia, por exemplo, de mão armada, em jornadas acidentadíssimas e nem sempre frutuosas.

E, quanto aos viveiros, ali às mãos, na costa da Guiné, como Arguim, se davam, desde meados do século XV, conforme Oliveira Martins, setecentos a oitocentos escravos, nem todos êstes eram exportáveis e, se eram, estavam sujeitos a certas alianças e compromissos com régulos e sobas, que exigiam fazendas e dinheiro, não os tendo a Coroa e os negociantes negreiros com tanta facilidade e abundância.

Seriam, portanto, exageradas aquelas cifras, sendo bem inferiores, às divulgadas.

Em todo o período colonial, escreve Lemos Brito, na sua História Econômica, encontrar-se-ão negros. Mas êstes não chegavam em massa para inundar as plantações do Norte. Quando se compulsam as estatísticas aproximadas dos tempos coloniais vê-se que muito se fala em negros. E' forçoso, porém, não confundir. Os jesuítas costumavam tratar por negros os índios, o que pode levar um espírito menos culto a lamentável confusão.

E quanto aos contratos?

O contrato de Cachéu e Cabo Verde, conforme se lê na correspondência de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, (21 de agôsto de 1791) introduzira poucos escravos...

Ditado pela falta de braços, que continuou depois da extinção da Companhia Geral do Comércio, houve S. Majestade, - é o que se frisa nesse documento - por bem criar o contrato de Cachéu e Cabo Verde, o qual ainda menos introduziu ou quase nenhum.

Escreveu, porém, Artur César Ferreira Reis, o seguinte: A Companhia Geral do Comércio do Maranhão introduziu as levas iniciais. A Companhia Geral do Comércio do Grão Pará, em vinte e dois anos, 12 587 indivíduos. Extinta a Companhia, no regime do tráfico livre, mais alguns milhares de cabeças, embarcadas em Cachéu e Bissau. Só até 1782... 7 606 escravos.

Em noventa anos não introduziu a Metrópole sequer 30 000 escravos na Amazônia, menos, portanto, de 400 por ano!

À altura de 1751 El-Rei de Portugal, do Algarve e da Guiné etc., etc., se manifestava favorável à introdução de negros, mas só em 1753 chegaram os primeiros negros, transportados de Bissau (no arquipélago de Bissagos) por José da Silva Costa em dois navios - N. S. do Monte Carmo e S. José, - dizem os cronistas!

Com entrada e saída livres, segundo informa o barão do Guajará, com inteira isenção de direitos devidos à Real Fazenda, êsses navios haviam deixado metade do carregamento no Maranhão e vendido a outra metade contra gêneros da terra paraense, ali à sombra do Presépio.

Os 145 primeiros homens, introduzidos em 1692, haviam custado, vinte mil cruzeiros, à razão de Cr$ 55,16 cada um, preço por que foram vendidos em Belém, conforme li na carta régia de 21 de dezembro de 1692, publicada no vol. 1°. dos Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará.

Os de Bissau deveriam ter custado um pouco mais, dando ensejo ao colono a reclamar contra o preço... e ao legislador a lhe responder que não havia razão para diminuir o preço dos escravos da Guiné.

Merecessem fé, porém, as cifras exageradas dessa introdução de negros escravos no Brasil (só a Companhia do Grão Pará introduzira, em poucos anos, no litoral, 100 000 escravos) mais numerosa deveria ser, em 1698, a sua população de pardos e negros escravos, que Santa Apolônia, citado por Nina Rodrigues, orçou em 1 361 006.

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Na Amazônia, parte imensa e desértica do Brasil colonial, o número dêsses não era elevado, por exemplo, em 1791, porque lemos na citada correspondência de D. Rodrigo de Sousa Coutinho: "Nestes têrmos, a mesma necessidade e falta d' escravos continua os que havia no ano de 1789 mostrei eu, pelo mapa da população e produções territoriais que remeti com o ofício número 19 do ano de 1791, em data de 8 de maio. Os que há presentemente mostrarei por outro semelhante mapa que estou a conduzir, por um e outro se vê que mal cabe a cada branco um prêto e que sendo o sustento daqueles inteiramente a cargo dêstes e dos poucos índios que há para os serviços públicos e particulares, se as terras não fôssem tão férteis, se as suas produções não fôssem tão estimadas, seria impossível que um tão pequeno número de indivíduos de trabalho adquirisse além dos produtos de que os de tôda idade e sexo, se sustentam os de que compõem a exportação dêsse estado dos quais todos provam os rendimentos reais".

"E não se atendia a que uma extensão imensa com pouca gente vale menos que muita gente com pouca extensão..."

Taxando aquela introdução de negros escravos, de melhoramento tão frouxo e tão vagaroso o autor dêsse conceito acrescenta: "Seja porém qual fôr mesmo que a escravatura do Pará conste de trinta mil indivíduos de trabalho, não me parece natural que com as suas produções possa a Fazenda Real haver rendimento para indenizar as crescidas despesas que deve fazer para a sua conservação. Para se apurar aquêle número descontados os que existem, é urgentemente preciso a introdução de outros, igual ou maior e razão de que nem todos sobrevivem à mudança de clima, e nem todos quantos então são de idade própria para o trabalho. A capitania do Rio Negro relativamente a sua extensão está incomparavelmente mais precisada d' escravos que o Pará, pois apenas constava 592 em total no fim do ano passado (1750). O Mato Grosso ainda mais os precisa enquanto continuar o mesmo sistema de navegação e suposto os possa haver pelo comércio das outras capitanias pelo desta lhe podem ficar mais cômodo em preço. Finalmente o de Goiases também os carece principalmente para povoar a importante, deserta, mas fértil extensão que a separa desta e para promover a sua recíproca comunicação e comércio sendo pois do Pará que tôdas elas se hão de prover, tanto maior deve ser a importação dos escravos mas ainda quando venha a ser a mesma que acima disse e quando sejam tão precisos dez anos para as conseguir, ainda assim deve importar-se anualmente não menos de três mil cuja importância ainda pelos preços mais cômodos e para repetir-se no segundo a terceiro ano em que pouco ou nada se pode ter apurado da vende dêles, exige cabedal não só excessivamente mais do que podem ter todos os negociantes do Pará, mas difícil de achar nos mesmos da Metrópole.

Também, dada a pobreza dos negociantes do Pará, os que se incumbiam de introduzi-los não os podiam pagar por preços mais vantajosos oferecidos por negociantes de outras capitanias e nem discutir a procedência e o valor físico das peças ou fôlegos vivos ali aportados".

Daí, o plano para a introdução que o autor das linhas acima defendia, lembrando até que se emprestassem cem contos de réis àqueles negociantes, dando-lhes o prazo de um ano; a Fazenda Real lograria o juro de 5% sôbre essa quantia e vinte contos de direitos dos mesmos escravos a não se apurarem senão dois mil custando cada um 50$000 que é um preço excessivo, e serão muito mais pelo progresso, e pronto acréscimo das lavouras de que provirá e dos dízimos, e dos direitos à entrada no Reino.

No citado plano, o autor sugeria que se isentasse de direitos os escravos que fôssem importados d' África, em direitura do Pará a qual só veio a ter efeito em dois navios; um de José Antônio Per.° com resto de carregação, que, fraudulentamente, mandou largar no Maranhão querendo que o refugo que aqui introduziu servisse de pretexto para a isenção dos direitos.

Demais, no encalço dêsses negociantes não era pequeno o número de credores, atormentando também os habitantes, entre êles sendo o principal de todos a Companhia extinta.

Também acresce que, além do deplorável abandono a que estava reduzido o comércio de escravos, contra êles não raras epidemias se haviam assanhado, sobressaindo as das bexigas, sarampo, escarlatina, alastrim e a cólera, para se não citar as moléstias por êles transportadas da África para o Brasil Colônia. Segundo a opinião de Calandrini o ano de 1770 foi o da cólera, mas, desde as primeiras introduções de escravos, as bexigas faziam maior número de vítimas nos núcleos de população que entravam a formar-se na colônia. A febre amarela viria depois, dizendo Calandrini que seu foi o ano de 1850.

Como os índios, os negros escravos eram vitimados por essas epidemias, que desfalcavam o grosso dos trabalhadores de campo, sendo aquêles mais sensíveis às bexigas e nulo todo o esfôrço em vaciná-los, porque, segundo expressão de um missivista, num códice de 1779, obstava a dureza de sua pele e não resistiam à reação.

Às vêzes as epidemias os assaltavam aqui; às vêzes os assaltavam nos portos de origem.

As condições sanitárias dos tumbeiros eram indescritíveis; o regime alimentar, o mais precário possível. Assim, não raro as epidemias irrompiam na travessia da África para Belém, pondo em perigo a própria tripulação de bordo e alastrando-se pelos portos de escala.

Sabe-se, através de um códice de 1759, por exemplo, que do navio N. S. da Conceição, chegado a Belém a 8 de julho daquele ano, desembarcaram 368 de 500 que trazia, morrendo 132 portanto. E sabe-se mais que três causas concorreram para essas baixas e para que o resto chegasse ali no miserável estado que já disse a V. Excia., sendo a primeira o embarque em Angola já doentes, e muitos com bexigas, de sorte que o capitão do navio requeria que aquêles negros que estavam enfermos não embarcassem, porém os administradores daquela cidade sem atenderem a êste justíssimo requerimento, os fizeram embarcar. A segunda causa foi o carregarem o navio com maior lotação do que lhe compete, vindo, por esta forma, sumamente apertados, de sorte que ainda que não tivessem doentes, bastaria só esta causa para matar a muitos. A terceira razão da Nação Moxicongos, que são os da mais ínfima reputação por serem, sumamente mortais e todos tão moles que pessoa nenhuma se resolve pelo Brasil a comprá-los a menos de ser por preços muito módicos.

João Ribeiro descreveu, numa síntese inesquecível, a vida a bordo dos tumbeiros onde se amontoavam, como na "N. S. da Conceição", de 400 a 500, no porão: "De dia sobem à coberta para o banho e para dançar, de cada vez uma porção de negros, e logo depois descem ao porão escuro, onde são guardados, e vigiados. Êsses hábitos são ordenados em vista da higiene e do interêsse privado. No porão, a mortalidade é grande; na coberta, o risco de perder os que se atirariam ao mar, é maior. Por isso instituem essas danças lugubres para arejar a carniça e distender-lhe os membros que o torpor e a melancolia paralizaram".

Compreende-se, assim, que a introdução dos negros escravos na Ilha Grande de Joanes não se fêz com grandes massas de indivíduos, nem com representantes de tribos ou nações que, nos viveiros da África, se revelassem aptos para esta ou aquela forma de atividade nos campos.

As curvas que ilustram essa introdução dir-se-ia que poderiam ilustrar também a dos imigrantes portuguêses, porque sobem lenta e insignificantemente.

Também os negros escravos, como os açorianos, ou outros indivíduos da Metrópole, não foram encaminhados para a ilha, no zêlo de atender-se às exigências apenas do pastoreio.

Foram os escravos encaminhados, primeiro, para a lavoura. Os índios acabaram por afastá-los dos seus putiruns, alegres e movimentados, nas roças imensas. E êles se foram acomodando à vida, seduzidos pela paisagem, pela existência livre nas fazendas, pelas aventuras no lombo da cavalhada. Pode-se afirmar que o meio lhes ganhara a alma e os músculos. Porque há no negro, como no índio, - e isso, afirma-se, é um índice de indivíduos em pleno desenvolvimento cultural - uma admirável capacidade para lidar com os animais domésticos, bovinos e caprinos, principalmente, sendo que essa capacidade, nos de origem mussulmi, elege os eqüinos.

Se admirável é o seu desassombro, batendo-se nos pântanos e selvas de sua terra, mais admirável é a sua solicitude pelos animais que acompanham o homem em qualquer estádio da sua evolução. Rivalizou, por isso, com o índio nos currais e campos onde o govêrno colonial ensaiou e estabeleceu, por fim, o pastoreio.

O índio já vinha das suas aldeias e das suas florestas com essa solicitude pelos xerimbabos; não conhecia o boi nem o cavalo, que o aterrorizaram desde o México ao altiplano andino e à cuenca amazônica, mas os domesticou e a êles se afeiçoou, como domesticava aves e quadrúpedes, os mais deslumbrantes e os mais agressivos, afeiçoando-se-lhes.

Emil Ludwig, em sua obra sôbre o Nilo, traçou retratos de alguns povos pastôres e de outros povos camponeses da África: "En les voyant nous savons s'lls sont pasteurs ou paysans. À côte d' un Chillouk, un blanc paraitra toujours lourd et emprunté. Beau, seduisant comme un éphèbe grec, el allonge sas jambbes fines et longues, immobile, orguelleux et nu, une peau de béte jatée sur ses épaules, sans être embarrasé de ses mains, tel un Bacchus en bronze. Il a conscience de sa beauté; en Afrique centraleles belles races restant entiérement nues, comme les bergares de l' Ouguanda, tandis que les laberrcurs, plus petits et trapus, son vêtus, même quand ils sont pauvres".

Também dos engenhos, das fábricas de madeira, das oficinas, dos estaleiros vieram os escravos que se espalharam, pelas fazendas marajoaras, acompanhando, repito, os movimentos descritos pelos açorianos e outros colonos reinóis desembarcados, primeiramente, em Belém. Muitos dêles foram trabalhar nos pesqueiros das ilha, estabelecidos desde fins do século XVI.

Na baronia independente da ilha Grande de Joanes, êsses pesqueiros tinha, como no Lago Grande de Vila Franca, a tríplice finalidade de alimentar as tropas, suprir os estabelecimentos da Fazenda Real e abastecer Belém e vilas distantes, onde rareava a carne e o pescado, sendo, muitas vêzes, todo o pescado pôsto em arrematação para aumentar os saldos que tinham de ser remetidos para a Metrópole.

Mas, logo que o govêrno de El-Rei autorizou, a 27 de outubro de 1700, a mudança do gado existente no Pará, para a ilha do Marajó, no decorrer da fundação de fazendas e retiros com a concessão de sesmarias, a indústria pastoril se foi espalhando por aquelas campinas e baixas, multiplicando-se de tal maneira que o naturalista brasileiro, Alexandre Rodrigues Ferreira, nelas foi encontrar nédios e numerosos rebanhos, sob os cuidados de índios e de negros.

Em menos de um século, a pecuária, ali ensaiada pelos colonizadores portuguêses, atingira desenvolvimento só logrado nas capitanias banhadas pelo rio São Francisco.

Aos missionários - capuchos, mercedários, jesuítas, carmelitas - e bem assim aos primitivos donos das sesmarias e aos colonos que com êles trabalhavam, deve-se a expansão da gadaria no cenário maravilhoso da ilha Grande de Joanes, porque êstes, além de confiá-los a vaqueiros indianos, conhecedores de todos os aspectos naturais propícios ou hostis à vida dos gados, também os confiaram à dedicação e à coragem dos negros escravos, à proporção que se iam enriquecendo de larga escravatura.

Quando os "contemplados" receberam os rebanhos de bovinos e de eqüinos dos religiosos, confiscados em julho de 1759, por ordem do marquês de Pombal, o inventário mostrava possuírem êstes mais de 134 000 reses.

O autor da Viagem Filosófica diz que só os jesuítas chegaram a possuir aquêle número de reses; o barão de Guajará, porém, desenvolvendo um argumento, baseado na possibilidade de haverem os religiosos aumentado o total dêsses rebanhos, - aumento que se elevaria a mais de 5% - nos fala em 158 000 reses, divididas pelas principais ordens religiosas, que se empenharam na expansão do pastoreio na baronia dos Macedo.

Essa expansão da gadaria se fêz, entretanto, pelo esfôrço de muitos outros moradores, quer no tempo dos missionários e capitães-mores, quer nos anos conseqüentes, trazendo para a sua economia, além de alimentos, energia animal, sucedendo que os bovinos, ora serviam, principalmente, na zona do Arari, de montaria segura e dócil, ora arrastavam atrás de si, através das terras inundadas, no inverno - como, até hoje, ainda acontece - embarcações abarrotadas de carga, viajantes e gêneros da terra. A mesma montada, no verão, ao longo do solo gretado e calcinado, dos campos e das baixas, levava aquelas mesmas cargas e viajantes, isolada ou jungida em parelhas, nas carroças que, a princípio, haviam sido de largas e pesadas rodas simples, mas que se modificaram, posteriormente, tendo aros de ferro e raios.

O memorialista Luís Calandrini da Silva Pacheco, evocando certa conversa, já em 1837 ou 1838, com Norberto de Queirós Bolonha, no largo da Pólvora, em Belém, adianta que um dos seus avós, Francisco Rodrigues Pereira Caldas, "foi quem povoou Marajó de gado e teve muitas terras", o que melhor se esclareceria se a êle, Calandrini, fôsse dado ler a "papelada" que seu tio Custódio Barbosa, mestre de Campo, possuíra, e que uma tal Bibiana levara, à fazenda Sant' Ana, na bôca do Arari, entregando-a ao coronel Teodósio Constantino Chermont.

Mas não só o gado vacum encontrou no excelente clima da ilha e na sua pastagem e, noutras condições, daquilo que lhe constitui o meio natural, um espaço conveniente; o gado cavalar nêle prosperou igualmente, só se reduzindo anos após, dizimado pelas tripanosomíases.

Desenvolveu-se em grandes cavalhadas, lendo-se num códice, de 1797, referente às chamadas Fábricas onde trabalhavam madeiras reais, tópicos como êste: "... tem a ilha de Marajó bastante cavalaria e muito mais pode ter a qual até agora além do serviço das fazendas de gado da mesma ilha só tinha extração atendível para os engenhos de descascar arroz que havia na cidade, mas, presentemente, tendo-se feito outros muito melhores por fora que laboram com água nem extração tem. A Fazenda Real reputa os que lhe competem de dízimo em mil réis cada cavalo e seiscentos réis cada égua na arrematação que faz delas com gado vacum".

No lombo dêsses cavalos, os negros escravos trabalhariam os rebanhos bovinos dos missionários e dos colonos, dos grandes senhores de latifúndios cujos limites se foram dilatando com o tempo e com os êxitos em que estiveram envolvidos aquêles, até o seqüestro dos bens que desfrutavam, tanto em animais e escravos, como em terras e haveres.

Pode-se imaginar a faina dos negros escravos nas fazendas do Arari, nas que se estendiam do Paraguari ao Maguari e, para além dêste, nos retiros centrais, longinquamente situados, com mondongos e balsedos onde a gadaria disputava, no inverno, e mesmo no verão, o espaço de que se julgavam donos não só os répteis, como jacarés e sucuris, mas aves, como garças e outros pernaltas, e quadrúpedes, como tigres, capivaras, porcos e antas!

Rodeios, ferras eram movimentados, principalmente, pelos negros, ligados àquela paisagem campestre, àqueles animais por uma remota, mas latente relação com os totens, se admitirmos a concepção de Hahn e outros.

As ordens religiosas, que sofreram seqüestro, na ilha, os possuíam em número regular, seja como capatazes, seja como vaqueiros. A de Jesus, por exemplo, possuía, em 1759, no Arari, os currais denominados N. S. do Rosário, São José, Menino Jesus, Santo Inácio, à margem do lago Arari; no rio Marajó-Açu possuíam os currais N. S. do Rosário, São Francisco Xavier e São Brás.

E era à sua escravatura que êles estavam entregues, possivelmente em melhores condições que às mãos dos administradores das chamadas fazendas nacionais, que ignoravam, dizia-se, os limites das terras que lhes haviam entregue e, com certeza, o número de reses que nelas pastavam.

Os Gavinhos, Gonçalves, Chermont, Calandrini, Miranda, Frade Avelar e outros, como os missionários, além de gados e terras, possuíam escravaria, empregada nos trabalhos domésticos e nos trabalhos pastoris.

Joaquim Ângelo Gonçalves por exemplo, nascido em 1770, segundo o memorialista Calandrini, foi dono de Santo Antônio, Têso, Ilha das Palhas, em Maguari, e de muitos escravos e gados. Outro Gonçalves (Miguel Arcanjo) nascido em 1790, era dono das fazendas Anjos, Pindobas e São Cristóvão com muito gado e escravaria. E Raimundo Antônio Gonçalves, nascido em 1799, possuíra nas suas fazendas Santos Reis, Bem-ti-vi, Glória e Livramento, muito gado e escravos. O capitão Luís Calandrini da Silva Pacheco possuíra as fazendas Conceição, Nazaré, Dominguinho, Destêrro, Limpo Grande e Cajueiro, onde passou largo tempo da sua vida com os seus escravos, a sua gadaria e a sua cavalhada.

Tiveram nomeada, na evolução do pastoreio marajoara, as fazendas seguintes: São Serápio ou Guia, Matinadas, Caracará, São Lourenço, São Marçal, Conceição, Santa Maria, Paraíso, Glória, Mongubas, Boa Morte, Prazeres, Cajueiro, Nazaré, Taperebá ou São Benedito, Macacão, Três Irmãos, Destêrro, Degredados, Fazendinha, Espírito Santo, Santa Filomena, Mutucas.

Nas breves notícias que Calandrini deixou, pode-se apreciar a descrição de várias terras ou fazendas que possuíram, além dos religiosos, outros moradores. E não raras são as referências que faz à escravatura. A fazenda São José dos Degredados, que era de Lázaro Fernandes Borges, "tinha duas léguas de frente e uma de fundo, na Ilha Joanes, no rio Paracauari, acima à direita, pegando dos marcos de André Fernandes Gavinho. A fazenda Santo André era de André Fernandes Gavinho, o Licenciado. Tinha duas léguas de comprido e uma de fundo no rio Paracauari, acima à direita, principiando de uma cachoeira que fica abaixo do curral, que tem situado pelo rio acima. A fazenda Cueirinhas era de Fernandes Gavinho (Pedro). Tinha duas léguas de comprido na Ilha Joanes, no rio Paracauari, acima à na fazenda Santos Reis, em rumo direito, a abranger os Jacarés e a ilhazinha do Pacoval, com fundo que se acharam até confinar com as terras dos carmelitas. A fazenda Laranjeiras era de Estêvão Alves do Nascimento. Tinha uma légua na Ilha Joanes, fazendo pião ao centro na fazenda que já tem situada chamada aquilo que o rumo der, de modo que não passe as terras que lhe fiquem defronte, chamadas Flecheira".

O capitão-mor André Fernandes Gavinho concedera essas terras, esclarece Calandrini, em 1750, e o barão donatário da ilha, então, as confirmara em 1751; porém muitas dessas terras não foram legalizadas, porque os sesmeiros não mandavam os seus documentos a registro no Maranhão, sede da capitania, o que pelo tempo a fora, foi causa de inúmeras demandas e posse indébita de terras, algumas celebrizadas a punhal e a trabuco.

Nos Anais do Arquivo Público do Pará essas sesmarias foram relacionadas num catálogo nominal devido ao agrônomo José Viana.

O capitão Luís Calandrini Pacheco da Silva, no seu memorial, anunciava, um pouco ameaçadoramente, uma sinopse das sesmarias de Marajó, que provavelmente se perdeu. Que êle conhecia o assunto com segurança tem-se disso absoluta certeza quando confrontamos as suas descrições de terras, dentre as quais aqui citei algumas para ampliar o quadro, aonde os negros escravos se moveram.

Num período de oitenta anos - que tanto durou a baronia da Ilha Grande Joanes - inúmeras sesmarias foram concedidas pelos barões donatários o último dos quais foi Luís de Sousa de Macedo Aragão Vidal (primeiro visconde de Mesquitela) e de 1732 a 1747 inúmeras outras foram concedidas pelos capitães-generais, sendo confirmadas ou não, posteriormente, pelo govêrno de Portugal. De 13 de abril de 1728, até 10 de fevereiro de 1732, não houve concessão de sesmarias, por haver vacatura na baronia, elucida Calandrini.

Nas terras dessas sesmarias, a figura do negro passara a movimentar-se: - ágil, desassombrada, infatigável, na esteira dos touros ariscos, aboiando à frente da vacaria, amansando garrotes e bois de carro, jungindo êstes, primeiro, à gangorra, curando as murrinhas dos bezerros com rezas e ervas miraculosas que o índio lhe revelara.

Escravizara-se à paisagem da Ilha Grande Marajó, que lhe lembrava, talvez, a da África longínqua: com os seus pântanos, os seus rios, os seus lagos, os seus mares, as suas estepes, os seus areais, as suas brenhas.

E no desdobrar do tempo, como o índio, mesmo depois da abolição, o negro passou a encarnar um tipo paradoxal de trabalhador livre: voltou ao nomadismo, pois ora se fazia vaqueiro, ora pescador, ora lavrador, ora marujo, ora operário.

Amanhã, quando se definirem as classes no cenário espetacular da Amazônia, evocando a introdução morosa e mesquinha do elemento africano, nas capitanias que se transformaram nos estados do Maranhão, Pará e Amazonas, talvez se reconheça, dando à frase de Tavares Bastos um sentido mais amplo e mais justo, que, ao evolver da nossa formação, essa raridade de escravos lhe foi a maior vantagem econômica e social também".

Prof. Nunes Pereira


PEREIRA, Manuel Nunes. A introdução do negro na Amazônia. Rio de Janeiro: Boletim Geográfico - IBGE, v. 7, n.77, p. 509-515, ago. 1949.