quarta-feira, 13 de maio de 2020

A introdução do negro na Amazônia, de Manuel Nunes Pereira (1949)

'Negros no fundo do porão', de Johann Moritz Rugendas (1835). FONTE: commons.wikimedia.org.

O texto a seguir foi publicado pelo antropólogo e etnólogo maranhense Manuel Nunes Pereira (1893-1985) no Boletim Geográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em agosto de 1949. Nele Nunes Pereira discorre sobre a introdução do negro escravizado na região Amazônica entre os séculos XVII e XVIII.

Resenha e Opiniões

A introdução do negro na Amazônia

O Prof. Nunes Pereira vem escrevendo, semanalmente, desde maio passado, no jornal Fôlha do Norte, que se edita em Belém, no Pará, uma série de artigos sob o título "A introdução do negro na Amazônia". Dada a utilidade, para o estudioso da Amazônia, das contribuições do Prof. Nunes Pereira a que nos referimos, deliberou-se divulgar neste mensário os comentários da série em aprêço. O presente número insere os três primeiros artigos, que são do seguinte teor:

"Sabe-se, geralmente, que a introdução do elemento africano na Amazônia, bem como noutras regiões, do sul e nordeste, da Colônia, nos três primeiros séculos da nossa formação, resultou de dois grandes imperativos: povoamento do seu território e organização da sua economia.

Mas, se a Coroa Portuguêsa relacionava a prosperidade das capitanias à importação do braço escravo, estava ela empenhada no tráfico por suas necessidades internas e pelo estímulo de outros povos, como a Inglaterra, que permutavam fazendas por ouro e escravos.

Desde o século XV, a exemplo dos seus concorrentes no comércio nefando, Portugal lançava mão dêsses recursos para atender aos gastos da sua administração, pois pagavam por cabeça de negro a ciza de dezesseis cruzados.

Outro móvel dêsse tráfico era o ter-se acostumado a utilizar o braço negro nas incipientes lavouras de suas colônias, na própria África, quer para subsistência dos escravos, quer para a dos fundidores.

Antes da descoberta da Terra de Santa Cruz, já os lisboetas viam descer das embarcações que regressavam d' África ou da Índia homens e mulheres, seguidos de crianças, muitos dêles encaminhados para os campos ou aproveitados nos serviços domésticos na capital do reino, porque a madraçaria lhe enchera as ruas de vagabundos, mendigos e criminosos, que pedinchavam, durante o dia, às portas das igrejas e às margens das estradas, para assaltar, à noite, casas e transeuntes.

Explica-se, portanto, que de Lisboa, também, nos viessem escravos, não que ali fôsse propriamente um entreposto dêles, e sim porque, acompanhando alguns imigrantes que os possuíam, ou de cambulhada com degredados e aventureiros, muitos se embarcavam com destino ao Brasil, às capitanias do Sul, principalmente.

Em inúmeros atos do govêrno da Metrópole, ainda no século XVI, podemos, por isso, encontrar as origens das curvas de ascensão, retardamento e declínio dêsse fenômeno econômico-social, de tamanha influência na formação e prosperidade de nossa terra, podendo-se até representá-las nitidamente num gráfico. E nesse gráfico apareceriam não somente escravos como, do mesmo modo, negros livres e forros, visto que alguns chefes ou titulares africanos - tais os membucos dos Cabindas, por exemplo, - mandavam filhos e parentes ao Brasil nas naus portuguêsas, para o visitar ou nêles estudar, convindo não esquecer-se que, nalgumas tribos africanas, bom negócio era ter filhos... para os vender.

Num depoimento recente de D. Domingos José Franque (Boma Zanei - N' Vimba) se justifica esta afirmativa e igualmente, a justifica uma carta régia de 1624, na qual se tratou dos sovas e negros livres que João Correia de Sousa, governador que foi de Angola, enviou ao Brasil, por respeito da guerra de Cassande etc., etc... E nesse documento El-Rei se diz desejoso de saber quanto se despendeu com cada uma, e donde se houve o dinheiro para isso e o que se fêz de outros negros que João Correia enviou por cativos.

Não será de estranhar-se, portanto, que, antes da data de 1692, que se aponta, com mais segurança, como a do início da introdução do elemento africano na Amazônia, já aqui houvesse aparecido negros escravos e negros livres ou mesmo forros, de parceria, cantando, dançando no convés, ou gemendo e agonizando no fundo do porão de um ou outro tumbeiro.

Em favor da tese que defende a entrada de negros na Amazônia, antes de 1692, se erguem os atos legislativos referentes aos preços e à divisão de escravos, entre o Pará e o Maranhão datando, respectivamente, de 1695 a 1697, porque não os reclamariam, quantos os adquiriam, com dobrado empenho, se o tráfico não viesse de data mais remota que as nomeadas aqui.

Sou dos que admitem dever-se à Holanda as primeiras introduções de negros na Amazônia, já porque agiam para cá das nossas fronteiras e no estuário mesmo do rio das Amazonas, já porque, segundo Roberto Simonsen, os batavos reputavam de tal modo possuir um viveiro na África que, quando ocuparam o Brasil Holandes, conquistaram Angola, um dos grandes abastecedores do elemento servil.

São tão vagas como discutíveis as origens das curvas caracterizadoras do fenômeno aqui referido; sente-se, contudo, que, ao partir de 1692, é que elas se vão levantando, morosamente embora, mas nítidas e seguras. 

Não introduziram os holandeses senão raras peças antes dêsse ano; é que a partir dêle, entretanto, que a Metrópole vai compreendendo as necessidades das capitanias do Extremo-Norte, abstração das contínuas guerras com franceses, holandeses e inglêses e também das rebeliões e correrias dos índios, enquanto fermentavam dissenções no seio dessas mesmas capitanias dada a ignorância e a ambição dos colonos, senão das autoridades que os dirigiam, como bem as focalizaram os nossos historiadores.

Sou levado, daí, a não concordar com as cifras que assinalam o total de indivíduos africanos introduzidos até às atividades de liquidação das célebres Companhias de Comércio do Maranhão e do Pará, e mesmo quando o tráfico se fêz mais amplamente, visto que essa forma de comércio e de povoamento sofria as alternativas que o caracterizavam: - escassez de produto, concorrência e dificuldades de transporte.

Num estudo acêrca da influência dos negros minas no Maranhão referi à presença de contrabandos, que ali teriam assentado o famoso terreiro de Andreza Maria; os contrabandos, também, poderiam ter antecedido à pressão que a Inglaterra fêz, et pour cause, contra o vergonhoso comércio.

Talvez o contrabando de carne humana já fôsse, àquele tempo, uma descoberta do próprio tráfico...

Para trocas e compras de peças tiveram os portuguêses de entrar pelo continente negro, por Salum e Gâmbia, por exemplo, de mão armada, em jornadas acidentadíssimas e nem sempre frutuosas.

E, quanto aos viveiros, ali às mãos, na costa da Guiné, como Arguim, se davam, desde meados do século XV, conforme Oliveira Martins, setecentos a oitocentos escravos, nem todos êstes eram exportáveis e, se eram, estavam sujeitos a certas alianças e compromissos com régulos e sobas, que exigiam fazendas e dinheiro, não os tendo a Coroa e os negociantes negreiros com tanta facilidade e abundância.

Seriam, portanto, exageradas aquelas cifras, sendo bem inferiores, às divulgadas.

Em todo o período colonial, escreve Lemos Brito, na sua História Econômica, encontrar-se-ão negros. Mas êstes não chegavam em massa para inundar as plantações do Norte. Quando se compulsam as estatísticas aproximadas dos tempos coloniais vê-se que muito se fala em negros. E' forçoso, porém, não confundir. Os jesuítas costumavam tratar por negros os índios, o que pode levar um espírito menos culto a lamentável confusão.

E quanto aos contratos?

O contrato de Cachéu e Cabo Verde, conforme se lê na correspondência de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, (21 de agôsto de 1791) introduzira poucos escravos...

Ditado pela falta de braços, que continuou depois da extinção da Companhia Geral do Comércio, houve S. Majestade, - é o que se frisa nesse documento - por bem criar o contrato de Cachéu e Cabo Verde, o qual ainda menos introduziu ou quase nenhum.

Escreveu, porém, Artur César Ferreira Reis, o seguinte: A Companhia Geral do Comércio do Maranhão introduziu as levas iniciais. A Companhia Geral do Comércio do Grão Pará, em vinte e dois anos, 12 587 indivíduos. Extinta a Companhia, no regime do tráfico livre, mais alguns milhares de cabeças, embarcadas em Cachéu e Bissau. Só até 1782... 7 606 escravos.

Em noventa anos não introduziu a Metrópole sequer 30 000 escravos na Amazônia, menos, portanto, de 400 por ano!

À altura de 1751 El-Rei de Portugal, do Algarve e da Guiné etc., etc., se manifestava favorável à introdução de negros, mas só em 1753 chegaram os primeiros negros, transportados de Bissau (no arquipélago de Bissagos) por José da Silva Costa em dois navios - N. S. do Monte Carmo e S. José, - dizem os cronistas!

Com entrada e saída livres, segundo informa o barão do Guajará, com inteira isenção de direitos devidos à Real Fazenda, êsses navios haviam deixado metade do carregamento no Maranhão e vendido a outra metade contra gêneros da terra paraense, ali à sombra do Presépio.

Os 145 primeiros homens, introduzidos em 1692, haviam custado, vinte mil cruzeiros, à razão de Cr$ 55,16 cada um, preço por que foram vendidos em Belém, conforme li na carta régia de 21 de dezembro de 1692, publicada no vol. 1°. dos Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará.

Os de Bissau deveriam ter custado um pouco mais, dando ensejo ao colono a reclamar contra o preço... e ao legislador a lhe responder que não havia razão para diminuir o preço dos escravos da Guiné.

Merecessem fé, porém, as cifras exageradas dessa introdução de negros escravos no Brasil (só a Companhia do Grão Pará introduzira, em poucos anos, no litoral, 100 000 escravos) mais numerosa deveria ser, em 1698, a sua população de pardos e negros escravos, que Santa Apolônia, citado por Nina Rodrigues, orçou em 1 361 006.

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Na Amazônia, parte imensa e desértica do Brasil colonial, o número dêsses não era elevado, por exemplo, em 1791, porque lemos na citada correspondência de D. Rodrigo de Sousa Coutinho: "Nestes têrmos, a mesma necessidade e falta d' escravos continua os que havia no ano de 1789 mostrei eu, pelo mapa da população e produções territoriais que remeti com o ofício número 19 do ano de 1791, em data de 8 de maio. Os que há presentemente mostrarei por outro semelhante mapa que estou a conduzir, por um e outro se vê que mal cabe a cada branco um prêto e que sendo o sustento daqueles inteiramente a cargo dêstes e dos poucos índios que há para os serviços públicos e particulares, se as terras não fôssem tão férteis, se as suas produções não fôssem tão estimadas, seria impossível que um tão pequeno número de indivíduos de trabalho adquirisse além dos produtos de que os de tôda idade e sexo, se sustentam os de que compõem a exportação dêsse estado dos quais todos provam os rendimentos reais".

"E não se atendia a que uma extensão imensa com pouca gente vale menos que muita gente com pouca extensão..."

Taxando aquela introdução de negros escravos, de melhoramento tão frouxo e tão vagaroso o autor dêsse conceito acrescenta: "Seja porém qual fôr mesmo que a escravatura do Pará conste de trinta mil indivíduos de trabalho, não me parece natural que com as suas produções possa a Fazenda Real haver rendimento para indenizar as crescidas despesas que deve fazer para a sua conservação. Para se apurar aquêle número descontados os que existem, é urgentemente preciso a introdução de outros, igual ou maior e razão de que nem todos sobrevivem à mudança de clima, e nem todos quantos então são de idade própria para o trabalho. A capitania do Rio Negro relativamente a sua extensão está incomparavelmente mais precisada d' escravos que o Pará, pois apenas constava 592 em total no fim do ano passado (1750). O Mato Grosso ainda mais os precisa enquanto continuar o mesmo sistema de navegação e suposto os possa haver pelo comércio das outras capitanias pelo desta lhe podem ficar mais cômodo em preço. Finalmente o de Goiases também os carece principalmente para povoar a importante, deserta, mas fértil extensão que a separa desta e para promover a sua recíproca comunicação e comércio sendo pois do Pará que tôdas elas se hão de prover, tanto maior deve ser a importação dos escravos mas ainda quando venha a ser a mesma que acima disse e quando sejam tão precisos dez anos para as conseguir, ainda assim deve importar-se anualmente não menos de três mil cuja importância ainda pelos preços mais cômodos e para repetir-se no segundo a terceiro ano em que pouco ou nada se pode ter apurado da vende dêles, exige cabedal não só excessivamente mais do que podem ter todos os negociantes do Pará, mas difícil de achar nos mesmos da Metrópole.

Também, dada a pobreza dos negociantes do Pará, os que se incumbiam de introduzi-los não os podiam pagar por preços mais vantajosos oferecidos por negociantes de outras capitanias e nem discutir a procedência e o valor físico das peças ou fôlegos vivos ali aportados".

Daí, o plano para a introdução que o autor das linhas acima defendia, lembrando até que se emprestassem cem contos de réis àqueles negociantes, dando-lhes o prazo de um ano; a Fazenda Real lograria o juro de 5% sôbre essa quantia e vinte contos de direitos dos mesmos escravos a não se apurarem senão dois mil custando cada um 50$000 que é um preço excessivo, e serão muito mais pelo progresso, e pronto acréscimo das lavouras de que provirá e dos dízimos, e dos direitos à entrada no Reino.

No citado plano, o autor sugeria que se isentasse de direitos os escravos que fôssem importados d' África, em direitura do Pará a qual só veio a ter efeito em dois navios; um de José Antônio Per.° com resto de carregação, que, fraudulentamente, mandou largar no Maranhão querendo que o refugo que aqui introduziu servisse de pretexto para a isenção dos direitos.

Demais, no encalço dêsses negociantes não era pequeno o número de credores, atormentando também os habitantes, entre êles sendo o principal de todos a Companhia extinta.

Também acresce que, além do deplorável abandono a que estava reduzido o comércio de escravos, contra êles não raras epidemias se haviam assanhado, sobressaindo as das bexigas, sarampo, escarlatina, alastrim e a cólera, para se não citar as moléstias por êles transportadas da África para o Brasil Colônia. Segundo a opinião de Calandrini o ano de 1770 foi o da cólera, mas, desde as primeiras introduções de escravos, as bexigas faziam maior número de vítimas nos núcleos de população que entravam a formar-se na colônia. A febre amarela viria depois, dizendo Calandrini que seu foi o ano de 1850.

Como os índios, os negros escravos eram vitimados por essas epidemias, que desfalcavam o grosso dos trabalhadores de campo, sendo aquêles mais sensíveis às bexigas e nulo todo o esfôrço em vaciná-los, porque, segundo expressão de um missivista, num códice de 1779, obstava a dureza de sua pele e não resistiam à reação.

Às vêzes as epidemias os assaltavam aqui; às vêzes os assaltavam nos portos de origem.

As condições sanitárias dos tumbeiros eram indescritíveis; o regime alimentar, o mais precário possível. Assim, não raro as epidemias irrompiam na travessia da África para Belém, pondo em perigo a própria tripulação de bordo e alastrando-se pelos portos de escala.

Sabe-se, através de um códice de 1759, por exemplo, que do navio N. S. da Conceição, chegado a Belém a 8 de julho daquele ano, desembarcaram 368 de 500 que trazia, morrendo 132 portanto. E sabe-se mais que três causas concorreram para essas baixas e para que o resto chegasse ali no miserável estado que já disse a V. Excia., sendo a primeira o embarque em Angola já doentes, e muitos com bexigas, de sorte que o capitão do navio requeria que aquêles negros que estavam enfermos não embarcassem, porém os administradores daquela cidade sem atenderem a êste justíssimo requerimento, os fizeram embarcar. A segunda causa foi o carregarem o navio com maior lotação do que lhe compete, vindo, por esta forma, sumamente apertados, de sorte que ainda que não tivessem doentes, bastaria só esta causa para matar a muitos. A terceira razão da Nação Moxicongos, que são os da mais ínfima reputação por serem, sumamente mortais e todos tão moles que pessoa nenhuma se resolve pelo Brasil a comprá-los a menos de ser por preços muito módicos.

João Ribeiro descreveu, numa síntese inesquecível, a vida a bordo dos tumbeiros onde se amontoavam, como na "N. S. da Conceição", de 400 a 500, no porão: "De dia sobem à coberta para o banho e para dançar, de cada vez uma porção de negros, e logo depois descem ao porão escuro, onde são guardados, e vigiados. Êsses hábitos são ordenados em vista da higiene e do interêsse privado. No porão, a mortalidade é grande; na coberta, o risco de perder os que se atirariam ao mar, é maior. Por isso instituem essas danças lugubres para arejar a carniça e distender-lhe os membros que o torpor e a melancolia paralizaram".

Compreende-se, assim, que a introdução dos negros escravos na Ilha Grande de Joanes não se fêz com grandes massas de indivíduos, nem com representantes de tribos ou nações que, nos viveiros da África, se revelassem aptos para esta ou aquela forma de atividade nos campos.

As curvas que ilustram essa introdução dir-se-ia que poderiam ilustrar também a dos imigrantes portuguêses, porque sobem lenta e insignificantemente.

Também os negros escravos, como os açorianos, ou outros indivíduos da Metrópole, não foram encaminhados para a ilha, no zêlo de atender-se às exigências apenas do pastoreio.

Foram os escravos encaminhados, primeiro, para a lavoura. Os índios acabaram por afastá-los dos seus putiruns, alegres e movimentados, nas roças imensas. E êles se foram acomodando à vida, seduzidos pela paisagem, pela existência livre nas fazendas, pelas aventuras no lombo da cavalhada. Pode-se afirmar que o meio lhes ganhara a alma e os músculos. Porque há no negro, como no índio, - e isso, afirma-se, é um índice de indivíduos em pleno desenvolvimento cultural - uma admirável capacidade para lidar com os animais domésticos, bovinos e caprinos, principalmente, sendo que essa capacidade, nos de origem mussulmi, elege os eqüinos.

Se admirável é o seu desassombro, batendo-se nos pântanos e selvas de sua terra, mais admirável é a sua solicitude pelos animais que acompanham o homem em qualquer estádio da sua evolução. Rivalizou, por isso, com o índio nos currais e campos onde o govêrno colonial ensaiou e estabeleceu, por fim, o pastoreio.

O índio já vinha das suas aldeias e das suas florestas com essa solicitude pelos xerimbabos; não conhecia o boi nem o cavalo, que o aterrorizaram desde o México ao altiplano andino e à cuenca amazônica, mas os domesticou e a êles se afeiçoou, como domesticava aves e quadrúpedes, os mais deslumbrantes e os mais agressivos, afeiçoando-se-lhes.

Emil Ludwig, em sua obra sôbre o Nilo, traçou retratos de alguns povos pastôres e de outros povos camponeses da África: "En les voyant nous savons s'lls sont pasteurs ou paysans. À côte d' un Chillouk, un blanc paraitra toujours lourd et emprunté. Beau, seduisant comme un éphèbe grec, el allonge sas jambbes fines et longues, immobile, orguelleux et nu, une peau de béte jatée sur ses épaules, sans être embarrasé de ses mains, tel un Bacchus en bronze. Il a conscience de sa beauté; en Afrique centraleles belles races restant entiérement nues, comme les bergares de l' Ouguanda, tandis que les laberrcurs, plus petits et trapus, son vêtus, même quand ils sont pauvres".

Também dos engenhos, das fábricas de madeira, das oficinas, dos estaleiros vieram os escravos que se espalharam, pelas fazendas marajoaras, acompanhando, repito, os movimentos descritos pelos açorianos e outros colonos reinóis desembarcados, primeiramente, em Belém. Muitos dêles foram trabalhar nos pesqueiros das ilha, estabelecidos desde fins do século XVI.

Na baronia independente da ilha Grande de Joanes, êsses pesqueiros tinha, como no Lago Grande de Vila Franca, a tríplice finalidade de alimentar as tropas, suprir os estabelecimentos da Fazenda Real e abastecer Belém e vilas distantes, onde rareava a carne e o pescado, sendo, muitas vêzes, todo o pescado pôsto em arrematação para aumentar os saldos que tinham de ser remetidos para a Metrópole.

Mas, logo que o govêrno de El-Rei autorizou, a 27 de outubro de 1700, a mudança do gado existente no Pará, para a ilha do Marajó, no decorrer da fundação de fazendas e retiros com a concessão de sesmarias, a indústria pastoril se foi espalhando por aquelas campinas e baixas, multiplicando-se de tal maneira que o naturalista brasileiro, Alexandre Rodrigues Ferreira, nelas foi encontrar nédios e numerosos rebanhos, sob os cuidados de índios e de negros.

Em menos de um século, a pecuária, ali ensaiada pelos colonizadores portuguêses, atingira desenvolvimento só logrado nas capitanias banhadas pelo rio São Francisco.

Aos missionários - capuchos, mercedários, jesuítas, carmelitas - e bem assim aos primitivos donos das sesmarias e aos colonos que com êles trabalhavam, deve-se a expansão da gadaria no cenário maravilhoso da ilha Grande de Joanes, porque êstes, além de confiá-los a vaqueiros indianos, conhecedores de todos os aspectos naturais propícios ou hostis à vida dos gados, também os confiaram à dedicação e à coragem dos negros escravos, à proporção que se iam enriquecendo de larga escravatura.

Quando os "contemplados" receberam os rebanhos de bovinos e de eqüinos dos religiosos, confiscados em julho de 1759, por ordem do marquês de Pombal, o inventário mostrava possuírem êstes mais de 134 000 reses.

O autor da Viagem Filosófica diz que só os jesuítas chegaram a possuir aquêle número de reses; o barão de Guajará, porém, desenvolvendo um argumento, baseado na possibilidade de haverem os religiosos aumentado o total dêsses rebanhos, - aumento que se elevaria a mais de 5% - nos fala em 158 000 reses, divididas pelas principais ordens religiosas, que se empenharam na expansão do pastoreio na baronia dos Macedo.

Essa expansão da gadaria se fêz, entretanto, pelo esfôrço de muitos outros moradores, quer no tempo dos missionários e capitães-mores, quer nos anos conseqüentes, trazendo para a sua economia, além de alimentos, energia animal, sucedendo que os bovinos, ora serviam, principalmente, na zona do Arari, de montaria segura e dócil, ora arrastavam atrás de si, através das terras inundadas, no inverno - como, até hoje, ainda acontece - embarcações abarrotadas de carga, viajantes e gêneros da terra. A mesma montada, no verão, ao longo do solo gretado e calcinado, dos campos e das baixas, levava aquelas mesmas cargas e viajantes, isolada ou jungida em parelhas, nas carroças que, a princípio, haviam sido de largas e pesadas rodas simples, mas que se modificaram, posteriormente, tendo aros de ferro e raios.

O memorialista Luís Calandrini da Silva Pacheco, evocando certa conversa, já em 1837 ou 1838, com Norberto de Queirós Bolonha, no largo da Pólvora, em Belém, adianta que um dos seus avós, Francisco Rodrigues Pereira Caldas, "foi quem povoou Marajó de gado e teve muitas terras", o que melhor se esclareceria se a êle, Calandrini, fôsse dado ler a "papelada" que seu tio Custódio Barbosa, mestre de Campo, possuíra, e que uma tal Bibiana levara, à fazenda Sant' Ana, na bôca do Arari, entregando-a ao coronel Teodósio Constantino Chermont.

Mas não só o gado vacum encontrou no excelente clima da ilha e na sua pastagem e, noutras condições, daquilo que lhe constitui o meio natural, um espaço conveniente; o gado cavalar nêle prosperou igualmente, só se reduzindo anos após, dizimado pelas tripanosomíases.

Desenvolveu-se em grandes cavalhadas, lendo-se num códice, de 1797, referente às chamadas Fábricas onde trabalhavam madeiras reais, tópicos como êste: "... tem a ilha de Marajó bastante cavalaria e muito mais pode ter a qual até agora além do serviço das fazendas de gado da mesma ilha só tinha extração atendível para os engenhos de descascar arroz que havia na cidade, mas, presentemente, tendo-se feito outros muito melhores por fora que laboram com água nem extração tem. A Fazenda Real reputa os que lhe competem de dízimo em mil réis cada cavalo e seiscentos réis cada égua na arrematação que faz delas com gado vacum".

No lombo dêsses cavalos, os negros escravos trabalhariam os rebanhos bovinos dos missionários e dos colonos, dos grandes senhores de latifúndios cujos limites se foram dilatando com o tempo e com os êxitos em que estiveram envolvidos aquêles, até o seqüestro dos bens que desfrutavam, tanto em animais e escravos, como em terras e haveres.

Pode-se imaginar a faina dos negros escravos nas fazendas do Arari, nas que se estendiam do Paraguari ao Maguari e, para além dêste, nos retiros centrais, longinquamente situados, com mondongos e balsedos onde a gadaria disputava, no inverno, e mesmo no verão, o espaço de que se julgavam donos não só os répteis, como jacarés e sucuris, mas aves, como garças e outros pernaltas, e quadrúpedes, como tigres, capivaras, porcos e antas!

Rodeios, ferras eram movimentados, principalmente, pelos negros, ligados àquela paisagem campestre, àqueles animais por uma remota, mas latente relação com os totens, se admitirmos a concepção de Hahn e outros.

As ordens religiosas, que sofreram seqüestro, na ilha, os possuíam em número regular, seja como capatazes, seja como vaqueiros. A de Jesus, por exemplo, possuía, em 1759, no Arari, os currais denominados N. S. do Rosário, São José, Menino Jesus, Santo Inácio, à margem do lago Arari; no rio Marajó-Açu possuíam os currais N. S. do Rosário, São Francisco Xavier e São Brás.

E era à sua escravatura que êles estavam entregues, possivelmente em melhores condições que às mãos dos administradores das chamadas fazendas nacionais, que ignoravam, dizia-se, os limites das terras que lhes haviam entregue e, com certeza, o número de reses que nelas pastavam.

Os Gavinhos, Gonçalves, Chermont, Calandrini, Miranda, Frade Avelar e outros, como os missionários, além de gados e terras, possuíam escravaria, empregada nos trabalhos domésticos e nos trabalhos pastoris.

Joaquim Ângelo Gonçalves por exemplo, nascido em 1770, segundo o memorialista Calandrini, foi dono de Santo Antônio, Têso, Ilha das Palhas, em Maguari, e de muitos escravos e gados. Outro Gonçalves (Miguel Arcanjo) nascido em 1790, era dono das fazendas Anjos, Pindobas e São Cristóvão com muito gado e escravaria. E Raimundo Antônio Gonçalves, nascido em 1799, possuíra nas suas fazendas Santos Reis, Bem-ti-vi, Glória e Livramento, muito gado e escravos. O capitão Luís Calandrini da Silva Pacheco possuíra as fazendas Conceição, Nazaré, Dominguinho, Destêrro, Limpo Grande e Cajueiro, onde passou largo tempo da sua vida com os seus escravos, a sua gadaria e a sua cavalhada.

Tiveram nomeada, na evolução do pastoreio marajoara, as fazendas seguintes: São Serápio ou Guia, Matinadas, Caracará, São Lourenço, São Marçal, Conceição, Santa Maria, Paraíso, Glória, Mongubas, Boa Morte, Prazeres, Cajueiro, Nazaré, Taperebá ou São Benedito, Macacão, Três Irmãos, Destêrro, Degredados, Fazendinha, Espírito Santo, Santa Filomena, Mutucas.

Nas breves notícias que Calandrini deixou, pode-se apreciar a descrição de várias terras ou fazendas que possuíram, além dos religiosos, outros moradores. E não raras são as referências que faz à escravatura. A fazenda São José dos Degredados, que era de Lázaro Fernandes Borges, "tinha duas léguas de frente e uma de fundo, na Ilha Joanes, no rio Paracauari, acima à direita, pegando dos marcos de André Fernandes Gavinho. A fazenda Santo André era de André Fernandes Gavinho, o Licenciado. Tinha duas léguas de comprido e uma de fundo no rio Paracauari, acima à direita, principiando de uma cachoeira que fica abaixo do curral, que tem situado pelo rio acima. A fazenda Cueirinhas era de Fernandes Gavinho (Pedro). Tinha duas léguas de comprido na Ilha Joanes, no rio Paracauari, acima à na fazenda Santos Reis, em rumo direito, a abranger os Jacarés e a ilhazinha do Pacoval, com fundo que se acharam até confinar com as terras dos carmelitas. A fazenda Laranjeiras era de Estêvão Alves do Nascimento. Tinha uma légua na Ilha Joanes, fazendo pião ao centro na fazenda que já tem situada chamada aquilo que o rumo der, de modo que não passe as terras que lhe fiquem defronte, chamadas Flecheira".

O capitão-mor André Fernandes Gavinho concedera essas terras, esclarece Calandrini, em 1750, e o barão donatário da ilha, então, as confirmara em 1751; porém muitas dessas terras não foram legalizadas, porque os sesmeiros não mandavam os seus documentos a registro no Maranhão, sede da capitania, o que pelo tempo a fora, foi causa de inúmeras demandas e posse indébita de terras, algumas celebrizadas a punhal e a trabuco.

Nos Anais do Arquivo Público do Pará essas sesmarias foram relacionadas num catálogo nominal devido ao agrônomo José Viana.

O capitão Luís Calandrini Pacheco da Silva, no seu memorial, anunciava, um pouco ameaçadoramente, uma sinopse das sesmarias de Marajó, que provavelmente se perdeu. Que êle conhecia o assunto com segurança tem-se disso absoluta certeza quando confrontamos as suas descrições de terras, dentre as quais aqui citei algumas para ampliar o quadro, aonde os negros escravos se moveram.

Num período de oitenta anos - que tanto durou a baronia da Ilha Grande Joanes - inúmeras sesmarias foram concedidas pelos barões donatários o último dos quais foi Luís de Sousa de Macedo Aragão Vidal (primeiro visconde de Mesquitela) e de 1732 a 1747 inúmeras outras foram concedidas pelos capitães-generais, sendo confirmadas ou não, posteriormente, pelo govêrno de Portugal. De 13 de abril de 1728, até 10 de fevereiro de 1732, não houve concessão de sesmarias, por haver vacatura na baronia, elucida Calandrini.

Nas terras dessas sesmarias, a figura do negro passara a movimentar-se: - ágil, desassombrada, infatigável, na esteira dos touros ariscos, aboiando à frente da vacaria, amansando garrotes e bois de carro, jungindo êstes, primeiro, à gangorra, curando as murrinhas dos bezerros com rezas e ervas miraculosas que o índio lhe revelara.

Escravizara-se à paisagem da Ilha Grande Marajó, que lhe lembrava, talvez, a da África longínqua: com os seus pântanos, os seus rios, os seus lagos, os seus mares, as suas estepes, os seus areais, as suas brenhas.

E no desdobrar do tempo, como o índio, mesmo depois da abolição, o negro passou a encarnar um tipo paradoxal de trabalhador livre: voltou ao nomadismo, pois ora se fazia vaqueiro, ora pescador, ora lavrador, ora marujo, ora operário.

Amanhã, quando se definirem as classes no cenário espetacular da Amazônia, evocando a introdução morosa e mesquinha do elemento africano, nas capitanias que se transformaram nos estados do Maranhão, Pará e Amazonas, talvez se reconheça, dando à frase de Tavares Bastos um sentido mais amplo e mais justo, que, ao evolver da nossa formação, essa raridade de escravos lhe foi a maior vantagem econômica e social também".

Prof. Nunes Pereira


PEREIRA, Manuel Nunes. A introdução do negro na Amazônia. Rio de Janeiro: Boletim Geográfico - IBGE, v. 7, n.77, p. 509-515, ago. 1949.


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