sábado, 16 de maio de 2020

Manaus – sua origem e desenvolvimento, de Agnello Bittencourt (1948)

Orla da cidade de Manaus. Aquarela de Jacques Burkhardt, 30 de outubro de 1865. FONTE: Jacques Burkhardt Collection In HOLLIS Images, Harvard Library.

O texto a seguir foi publicado pelo geógrafo, historiador e professor amazonense Agnello Bittencourt (1876-1975) no Boletim da Associação Comercial do Amazonas em setembro de 1948, sendo posteriormente reproduzido no Boletim Geográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de julho de 1949. Nele Bittencourt analisa a História da cidade de Manaus entre o século XVII e a década de 1940.

Manaus – sua origem e desenvolvimento

Uma cidade não surge, nem cresce a êsmo. Um ou mais motivos podem determinar sua gênese, mas o desenvolvimento do núcleo inicial condiciona-se quase sempre a um impulso econômico. Em nosso país, ocorrem vários exemplos. Ora a descoberta e exploração de minas e de fontes virtuosas, ora o aproveitamento de encruzilhadas de caminhos e de pontos acessíveis nas cotas, rios e lagos, ora lugares tidos como estratégicos, sobretudo nas fronteiras, ora antigos estabelecimentos da catequese – em quase todos os casos, o crescimento e o progresso dependeram ou dependem da manutenção de motivações econômicas.

O comerciante e o agricultor reforçam a ação dos semeadores de cidades. São também, por isso, pioneiros da conquista e da civilização, no comêço praticando o escambo, depois empregando a moeda.

Em qual dêsses cadinhos podemos colocar a origem da cidade de Manaus? E' bom examinar o espírito de expansão, que caracterizava as atividades da política de Portugal, ao determinar o esquadrinhamento dos mares e dos continentes, na ânsia de alargar indefinidamente os seus domínios.

A viagem de Pedro Teixeira, em pleno govêrno espanhol, subindo o rio Amazonas e colocando um marco à foz do rio Napo, foi uma das muitas provas da mentalidade imperialista dos lusitanos. Estava implícito, na sua política de além-mar, indo muito para o ocidente do meridiano de Tordesilhas, anteceder-se e contrapor-se ao expansionismo avassalador de Castela. Não fôsse a energia indômita da gente da Lusitânia, as pretensões e avanços espanhóis vindos das ribas orientais dos Andes, pela solerte atuação do Pe. Samuel de Fritz e outros, uma grande parte do atual estado do Amazonas, possivelmente até o Rio Negro, não seria nossa.

Portugal fazia-se respeitar. As suas fortalezas falavam em nome do seu direito de conquista e domínio. Para garantir a jurisdição, a bôca dos canhões.

Fundação da Fortaleza da Barra: Viu o govêrno português que o Rio Negro era um excelente caminho para a penetração de holandeses e espanhóis. Fazia-se mister barrá-los.

Corria o ano de 1669. E, logo se fundou a Fortaleza de S. José do Rio Negro, chave militar e econômica, senão política, da imensa região que ia dos campos do Rio Branco e às montanhas do Orinoco.

Local magnífico, à margem esquerda, alguns quilômetros acima da foz, onde habitavam as tribos dos Banibas, Barés, e Passés.

Foi encarregado de fundar êsse pôsto militar, Francisco da Mota Falcão, por ordem do governador geral Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho, sendo seu primeiro comandante Angélico de Barros, conforme nos contam o ouvidor Ribeiro de Sampaio e o capitão-tenente Araújo Amazonas. Juntaram-se depois às referidas tribos os famosos Manaus, descidos da zona de Mariuá. Novos indígenas atraídos por Tinoco Valente, outro comandante da Fortaleza, e pelos missionários, engrossaram a população local e desenvolveram a prosperidade com o seu trabalho no plantio de roças, na caça, na pesca e na extração de "drogas". Como era natural, o comércio apareceu para tirar proveito dêsse núcleo incipiente, que as necessidades do Reino teriam de fomentar, como uma das fôrças avançadas do seu vastíssimo domínio na América.

A Fortaleza jamais ficara desguarnecida e continuava a atrair quer novos indígenas, que civilizados. Muitos dêstes vieram como soldados, servindo por oito anos, mesclando-se com a gente da terra. Como porta de entrada para o rio, a Fortaleza tornou-se realmente a dominadora das incursões, como a mantenedora da submissão dos aborígines.

A 23 de agôsto de 1743, visitou-a La Condamine. Aludindo à Fortaleza diz: "Há ali sempre um destacamento da guarnição do Pará, para manter o respeito das nações indígenas que lá habitam, e para favorecer o comércio de escravos nos limites prescritos pelas leis de Portugal, e todos os anos, êste acampamento ambulante, a que se dá o nome de "tropa de resgate", penetra para diante das terras. O capitão comandante do Forte do Rio Negro estava ausente, quando ali aportamos: não me demorei aí mais que vinte e quatro horas" (1).

O ouvidor Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio lá estêve, em 1774, numa viagem de correição. E registou que a população do arraial crescido em tôrno do forte, chegava a 250 pessoas, incluindo 10 mulheres maiores de 90 anos (2).

Apesar de sua excelente situação geográfica, o Lugar da Barra, como passou a ser chamado o sítio da Fortaleza, ao findar o século XVII e por todo o século XVIII, ainda não passava de um lugarejo sem maior importância, sobretudo por causa da concentração de ádvenas e de recursos em Mariuá (Barcelos), por ocasião dos trabalhos da Quarta Partida de Demarcação luso-espanhola. Pereira Caldas, chefe dos serviços por parte da Coroa de Portugal, achava que o local da Fortaleza da Barra era mais apropriado para a sede do govêrno da capitania instituída por Mendonça Furtado. E foi, sem dúvida, essa opinião que estimulou o coronel Manuel da Gama Lôbo d' Almada, 3° governador dessa capitania, a transferir a sede do seu govêrno para o Lugar da Bara, em março de 1792. A capitania do Rio Negro encontrava-se sob a jurisdição de Francisco de Sousa Coutinho, capitão general do Grão Pará, que continuamente mostrava desaprovar os ator do governador Lôbo d' Almada, entre os quais o da mudança da capital. Em ofícios a Sousa Coutinho, Lôbo d' Almada defendeu com calor a idéia: "... que o lugar mais central da capitania (que o é certamente êste Forte) é também o mais acomodado e adequado para a dirigir", adiante informando sôbre a sua relativa abundância de gêneros, "como peixe e farinha, os quais nunca faltam neste Forte, pois das vizinhanças dêle é que sempre foi provida Barcelos, uma das povoações mais famintas desta capitania" (3).

Uma determinação régia de 3 de agôsto de 1798, reclamada por Sousa Coutinho, fêz regressar a Barcelos a sede da capitania, o que causou profundo desgôsto a Lôbo d' Almada.

A Vila da Barra: Como estivesse implícito, na sua função administrativa, o predicamento de "vila", dado à sede da capitania, o de Lugar da Barra foi sendo substituído nos papéis oficiais, como no uso popular. Não obstante a transferência, o lugarejo não mais perdeu a denominação da sua perdida hierarquia.

A 1°. de março de 1787, foi a Barra visitada pelo naturalista baiano Alexandre Rodrigues Ferreira, a serviço do govêrno da metrópole. Dela, nos dá o seguinte relato: "Está a Fortaleza em frente de uma povoação de índios e alguns moradores brancos, a qual se divide em dois bairros ao longo da margem boreal: ambos êles ocupam uma porção da barreira entre os dois igarapés da Tapera dos índios Maués (sic) e dito Manaus. Porém, a porção da terra que serve de base ao primeiro bairro, onde estão situadas a matriz e ambas as residências do reverendo vigário e do comandante, é mais alta e avançada para o rio do que a do segundo bairro, onde há 8 casas".

A êsse tempo, a Barra tinha a seguinte população: —

Moradores brancos. 47
Índios.....................243
Pretos escravos.........11         Fogos — 40
                              301

Apenas três ruas ou melhor caminhos traçavam a povoação. Na principal, viam-se 8 casas. As demais ficavam esparsas. Quase tôdas cobertas de palha inclusive a matriz consagrada a N. S. da Conceição e a residência do vigário.

A Fortaleza era o centro da vida militar, civil e comercial da região, pois tudo girava em tôrno de sua guarnição. Barcelos ficava muito longe. De 1754 ao ano em que lá estivera o infatigável naturalista, segundo suas informações, ali serviram os seguintes comandantes: o alferes Alexandre Tomás, o cabo de esquadra José Ferreira Tortolo, o tenente Teodoro da Frota, o capitão de granadeiros José da Silva Delgado, o alferes Crispim Lôbo de Sousa, o alferes Luís da Cunha Eça, o alferes Francisco Alves Caeiro, o tenente Bernardo Toscano de Vasconcelos, o alferes Crispim Lôbo de Sousa (pela 2°. vez), o tenente Francisco Vitorino José de Oliveira, o então tenente Crispim Lôbo de Sousa (pela 3°. vez), o tenente Manuel Lôbo de Almeida, o alferes Manuel Alves Romeiro Belo, o ajudante-auxiliar Custódio de Matos, Pimpim, o tenente Vitorino José de Oliveira (pela 2°. vez), o soldado Francisco Serrão de Oliveira e o cadete promovido a alfares, José da Costa Souto Maior (4).

Apesar dos sensíveis melhoramentos que a vila usufruiu, com a presença e a ação administrativa de Lôbo d' Almada, muito longe ainda estava de apresentar casario e confôrto condignos de uma sede do govêrno. As telhas de barro para as primeiras casas foram fabricadas em Belém (Pará). Depois, fundou-se uma olaria. A matéria-prima era trazida da outra margem do Rio Negro e bastante concorreu para melhorar a construção dos prédios. Uma Ribeira (estaleiro) para o fabrico de canoas e igarités funcionava nas proximidades da Fortaleza. Nessas pequenas embarcações efetuavam-se as "diligências", ou fôssem as expedições oficiais que conduziam as ordens do govêrno, as tropas, as autoridades. Essas diligências, também usadas no Pará, gastavam costumeiramente de 3 a 4 meses, de Belém à Barra.

Atestam a morosidade da viagem C. F. P. von Martius e J. B. von Spix quando dizem: "Havíamos feito a navegação de Belém à Barra do Rio Negro em três meses e meio, quando se pode com embarcações menores e com maior pressa, fazer o percurso em um mês (5).

Êsses ilustres naturalistas chegaram à antiga Fortaleza da Barra em outubro de 1819. Ficaram embevecidos pela paisagem, que descrevem com deslumbramento, exclamando: "A todos êsses encantos, junte-se a majestosa tranqüilidade do clima equatorial, que proporciona manhãs frescas e noites serenas em alternância regular. Foi esta a primeira impressão que enfeitiçou a nossa estada por alguns dias em Barra do Rio Negro, e, quanto mais aqui demoramos, tanto mais se afigurava em nós o conceito de que esta região fôra para doces saudades, contemplações filosóficas, sagrada paz, profundo fervor.

Foi nos citado o número da população em 3 000 habitantes; entretanto não se acha tôda no lugar, pois uma parte das famílias mora em fazendas ou pesqueiros e só vêm aqui por ocasião das festas das igrejas. Na época de nossa estada em Barra do Rio Negro, oficialmente chamada Fortaleza, esta ainda não era "vila", mas simples "lugar". Está situada na margem setentrional do rio Negro, a cêrca de uma milha alemã de sua confluência com o Amazonas, num terreno desigual, cortado por diversos regos e consta, como tôdas as vilas do estado, quase exclusivamente de um só pavimento, cujas paredes são construídas de pau-a-pique e barro, cobertas geralmente de fôlhas de palmeiras".

E, mais adiante, os ilustres viajantes acrescentam profeticamente: "Ainda faltam aqui médico, boticário, e professor. A Barra do Rio Negro, com o crescimento da população, tornar-se-á praça muito importante para todo o comércio com o hinterland do Brasil. A sua situação, em aprazível altitude, dominando todo o rio Negro, nas proximidades do Amazonas e não distante da foz do Madeira, não poderia ter sido mais felizmente escolhida. Será a chave da parte ocidental da região" (6).

Um fato pitoresco ocorrera no interregno da permanência de Martius na Barra. E' êle mesmo quem no-lo conta. Diz que um dia lhe apareceu um vizinho, reclamando contra os furtos de que estava sendo vítima, o que atribuía à gente da expedição ali acantonada. Afirmava o reclamante que seus objetos de uso doméstico, como roupas estendidas nas cordas do quintal e, até, panelas com alimentos, desapareciam. O sábio ficou surpreendido, assegurando que sua gente não seria capaz de tamanha desonestidade, até porque nada lhe faltava. Mas, continuavam os furtos. O prejudicado põe-se em atalaia, escondido. E então vê que o ladrão era um grande macaco coatá, muito manso, que pertencia ao Dr. Martius. O animal, bastante sagaz, aproveitando-se do momento em que os donos de casa saíam, conduzia para o mato próximo os referidos objetos, comia os acepipes e lá deixava as panelas e tudo mais... em resumo: o larápio foi acorrentado, para tranqüilidade do vizinho... (7).

Como se acaba de ver, pelo testemunho insuspeito de dois estrangeiros de grande projeção científica, a posterior cidade de Manaus, no comêço do século XIX, não passava de uma "aldeia de palha", mas na qual já se pressentia o surto de progresso, quer pela sua situação-chave do comércio e da administração pública, quer pelo aspecto encantador de suas terras.

Em 3 de dezembro de 1825, a Câmara Municipal, que funcionava em Barcelos, instalou-se, na Barra, por determinação do govêrno do Pará.

Inquietação e decadência: É interessante refletir a visita que fêz ao Lugar da Barra o oficial da marinha inglêsa Henry Lister Maw, em março de 1828. Descreve a pobreza dêsse núcleo incipiente, avaliando-lhe a população em 3 000 pessoas inclusive índios, população acrescida eventualmente por ocasião das festas de São João, Páscoa e Natal. Conta que ninguém podia subir o rio Negro sem que primeiro exibisse seus papéis às autoridades da Barra. Fala-nos de Ricardo Zany, comandante da milícia, homem prestimoso, natural da Córsega, de onde se afastara para não se submeter ao domínio de Napoleão (8).

Maw refere que era costume, na Barra, não aparecerem as mulheres das principais famílias aos visitantes, mesmo ao serem oferecidos a êstes jantares ou outras homenagens.

A êste tempo, a Barra vivia uma fase de decadência, cessado o surto de prosperidade que usufruiu sob a gestão empreendedora e esclarecida de Lôbo d' Almada, surto que tão breve não seria repetido.

E nem sempre reinou a paz no seio da boa gente de Barra. Houve momentos de exaltação cívica, protestos contra a injustiça de não ter a capitania de S. José do Rio Negro entrado para o rol das províncias do Império, como era letra da Constituição e conseqüencia dos fatos decorrentes da emancipação política do país. O mais notável dêsses movimentos foi, sem dúvida, a quartelada de 12 de abril de 1832: os soldados amotinados mataram seu comandante, coronel Filipe dos Reis que não gozava das simpatias gerais, quer devido ao rigor de sua disciplina, quer pela maneira pouco delicada com que tratava as figuras mais representativas da sociedade local. Foi nomeado para substituí-lo o coronel Ricardo Zany, que há muito se achava radicado á terra e aos seus interêsses.

O caráter autonomista do movimento torna-se evidente com a designação do ouvidor Manuel Bernardino de Sousa Figueiredo como presidente da "Província". Frei José dos Inocentes é enviado à Côrte, via Mato Grosso, afim de conseguir a homologação da efêmera vitória autonomista. Mas tudo se desfez com a chegada á Barra de uma expedição militar vinda de Belém.

Em 1833, com a execução do novo Código de Processo Criminal, quatro têrmos judiciários são criados na que se chamou comarca do Alto Amazonas, com as sedes em Barra (com o nome de Vila de Manaus), em Luzéia (com o nome de Maués), Barcelos e Ega (com o nome de Tefé). Barra pôde possuir, assim, sua própria Câmara Municipal, adquirindo crescente ascendência política sôbre as demais vilas.

Em 1835, a onda de inquietação revolucionária da Cabanagem alastras-se pelo interior. A 6 de março de 1836, Manaus cai em poder dos cabanos. Seus chefes, Apolinário Maparajuba e Bernardo de Sena, instituem um govêrno cuja dominação se prolongaria em Manaus por seis meses, até 31 de agôsto.

A êsse tempo, a vila havia alcançado um pequeno desenvolvimento. Ouçamos, a respeito, a informação de Ladislau Monteiro Baena, no seu Ensaio corográfico sôbre a província do Pará, publicado em 1839:

"Das casas que êste lugar tem no seu âmbito, a maior parte tem cobertura tecida de ramagem: e com a mesma se acham cobertos o Palácio dos antigos governadores, a Provedoria, o Quartel e os edifícios de uma pequena Ribeira de construção de canoas e batelões. São cobertos de telhas a olaria, o hospital militar, os armazéns da Provedoria, e os dos meios de guerra como armas e pólvora e algumas casas de moradores. Tudo isto forma pequenas ruas e uma praça. Há duas igrejas, uma pequenina e outra é a matriz, cujo orago é Nossa Senhora da Conceição. Ela foi levantada em 1695, pelos missionários carmelitas que então começavam a instituir nas disciplinas da piedade católica os silvícolas do Rio Negro; o governador Manuel da Gama Lôbo d' Almada a reedificou e ampliou.

"A população consta de 347 homens brancos, 327 mulheres brancas, 415 mamelucos, 450 mamelucas, 397 homens baços, 1 020 mulheres da mesma raça, 215 escravos, 164 escravas, 255 mestiços e 206 mulheres desta casta: todos os números de gente livre assomam a 2 809 e os escravos 379. Número de fogos 232" (9).

Em 1840 caiu o último reduto cabano da Mundurucânia. Com a fadiga e a lição dessa longa luta, entrou o Alto Amazonas num período de sossêgo em que pôde refazer-se lentamente dos prejuízos materiais e humanos que dela decorreram. Manaus desenvolveu-se.

A lei n.° 147, de 24 de outubro de 1848, da assembléia da província do Pará, elevou Manaus a novo predicamento, com o nome de cidade da Barra do Rio Negro. Tinha apenas 4 000 habitantes.

O nome de Manaus, posteriormente recuperado, foi substituído por êsse até 1856. Nesse ano, em virtude da lei n.° 68, de 4 de setembro, e cujo projeto fôra da autoria do deputado João Inácio Ribeiro do Carmo, o antigo arraial tornou-se a cidade de Manaus.

Manaus, sede da comarca do Alto Amazonas, ia crescendo mofinamente e sofrendo as conseqüencias da injustiça de não ter sido contemplada. em 1822, com o predicamento, que lhe cabia, de capital de uma das unidades políticas do Império. Sua vez chegaria, como chegou, com a execução da lei de 5 de setembro de 1850, que criou a província do Amazonas.

Em 1848, há um fato a destacar: a fundação do seminário onde se ensinava gramática latina, francês, música e canto.

Manaus, capital da província: Quando foi instalada a nova província, a 1.° de janeiro de 1852, Manaus possuía um pouco mais de 6 000 habitantes, e todo o Amazonas uns 40 000 civilizados, com 7 escolas primárias, na capital. As rendas provinciais, nesse ano, atingiram Cr$ 19 000,00.

Para compreendermos melhor quanto era insignificante a cidade de Manaus, a essa época, leia-se o relatório do seu primeiro presidente, João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha. Esclarece-nos que não existia um edifício público, condigno para o escopo de sua serventia, a começar pela Câmara Municipal, e a respeito nos diz: — "Não há uma casa própria para a Câmara Municipal celebrar suas sessões; e a em que funciona é alugada, insuficiente e pouco decente a uma corporação respeitável". Sôbre a cadeia, esclarece o presidente: "Serve de cadeia um pequeno quarto no Quartel Militar, que pelo seu âmbito estreito, escuro e insalubre, parece mais um ergástulo tormentoso, que casa de detenção". Tratando da igreja matriz: "A falta de igreja matriz, que ficou reduzida a ruínas por um incêndio acidental, é por demais sentida. Serve de matriz a capela de Nossa Senhora dos Remédios, distante do centro da cidade a quase um quarto de légua, para onde, no tempo da cheia, em razão dos rios que entram pela cidade, não há passagem, a não ser em pequenas canoas com iminente risco de perda de vida; ou vindo por uma estrada ainda mal preparada, por onde se rodeia e faz mais distância e com demorada passagem".

Tenreiro Aranha regista, no seu referido relatório, não haver edifício próprio para servir de palácio do govêrno, que funcionava em casa particular, pequena e inadequada para as altas funções de administração pública. Fala de duas pontes de madeira, ambas já bem arruinadas, ligando os bairros de São Vicente ao da Matriz, e êste ao dos Remédios.

Da antiga Fortaleza fundada em 1669 por Mota Falcão, diz: "O forte da capital tem apenas as ruínas das muralhas. O local é o mais impróprio e, ainda que despendessem consideráveis somas para sua reedificação, de utilidade alguma poderia servir" (10).

Uma planta cadastral, levantada em 1852, que aqui juntamos, dá uma idéia do que era Manaus, quando investida dos foros de capital da mais vasta província do Império.

Referem-se a essa época as preciosas indicações de Lourenço da Silva Araújo Amazonas, oficial da Armada que serviu vários anos na região, estudando-a com minúcia e carinho:

"Consta a cidade de uma praça e 16 ruas, pela maior parte curtas e estreitas, e ainda por calçar e iluminar. As casas são cobertas de telha e poucas de sólida fundação; porém são cômodas, espaçosas e desafogadas. Os sobrados são ainda em diminuto número. As lojas carecem de mais gôsto em sua peculiar ostentação. Possui a cidade duas igrejas, a saber: matriz de N. S. da Conceição e a capela de N. S. dos Remédios, ambas de fundação à imitação da dos jesuítas no país, isto é, frágil e destituída de arquitetura; e o que compensa o povo com um trato e asseio que lhe fazem honra. Possui mais um quartel em uma bela praça, um armazém da arrecadação da Fazenda Nacional, uma olaria pertencente à mesma Fazenda Nacional, algumas casas para habitação dos empregados. Já se não apercebem os vestígios do palácio dos governadores (porque sua fundação era a mesma das igrejas jesuíticas), da fábrica de tecidos de algodão e de alguns edifícios de propriedade nacional. Avultam ainda as ruínas da Fortaleza de São José do Rio Negro e do Hospital de São Vicente; entre tudo o que faltou sempre um cais ou rampa para desembarque".

Sôbre a população e seus costumes:

"São em número de 900 brancos e 2 500 mamelucos, 4 080 indígenas, 640 mestiços e 380 escravos, tudo em 900 fogos assaz dispersos. Vestem à moda séria e asseiadamente; as mulheres com gôsto e luxo, realçadas por natural e superior graça. Falam muito bem o português, conquanto também usem muito da língua geral. Passando parte do dia em banhos, torna-se-lhes o asseio uma qualidade inata". Durante a enchente, enquanto estão na cidade, os seus habitantes dedicam-se a "festas de igreja, bailes, jantares e passeios"; no verão espalham-se em trabalhos pelas praias e lagos. "Dão-se a empregos eclesiásticos, civis e militares; e mui assiduamente ao comércio quanto escassamente à agricultura, que não excede de algum algodão e café, além de substâncias alimentares. No que se chama comércio se compreende a pesca do pirarucu, a manipulação de manteigas de tartaruga e peixe boi e a extração de drogas preciosas. Seu principal sustento é tartaruga, peixe e aves, do que tudo há abundância; e carne de gado só aos domingos, e com mais freqüencia no tempo da enchente, quando abunda o gado, descido do Rio Branco" (11).

Entre dezembro de 1850 a novembro de 1851, portanto durante 11 meses, o grande botânico Richard Spruce residiu em Manaus. Entre os episódios que narra dessa estada, valerá colhêr um, como testemunho de um dos aspectos da vida de então: cinco escravos do mesmo proprietário fugiram para o Purus mas foram alcançados e regressaram. Um dêles mostrou-se de tal modo indócil que "se julgou necessário encadeá-lo por uma perna a um poste, no pátio". À noite, atravessando o seu senhor o pátio, o escravo tentou assassiná-lo com uma faca. Frustrada a sua tentativa, encostou o cabo da faca no poste e rasgou o seu próprio ventre. "Na manhã seguinte — conta Spruce — quando eu ia para o banho, seus companheiros de jugo o estavam conduzindo, morto, cosido num saco, para uma canoa, afim de lançá-lo ao meio do rio. Êles estavam rindo e gracejando como se carregassem um cão morto; e o acontecimento não parecia produzir a menor impressão nos vizinhos. Tais são as "belezas do sistema escravagista! ..." (12).

Na mesma ocasião em que Manaus acolheu Spruce, também acolheu outro famoso naturalista, Alfred Wallace, a quem devemos algumas preciosas páginas, acêrca de suas instituições e costumes. Fala-nos das casas, das coisas, dos homens.

Dêstes, por exemplo:

"Os habitantes mais civilizados da Barra dedicam-se todos ao comércio, não havendo ali qualquer outra diversão, se assim podemos considerar, que não seja a de beber e jogar em pequena escala.

A maior parte nunca abre um livro ou trata de empregar o seu tempo em qualquer outra ocupação intelectual.

Por conseguinte, o que nisso poderá inferir, é que se atende mais ao luxo; aos domingos principalmente, todos trajam as suas melhores roupas.

As mulheres vestem-se elegantemente, exibindo lindos vestidos, confeccionados com gases e musselinas francesas".

"Os homens, que passam a semana inteira em mangas de camisa e de chinelos, nos imundos armazéns, trajam, nesse dia, bonitos ternos escuros, chapéu de castor, gravata de setim e finíssimos sapatos de pelica.

Então, conforme é moda ali, é a ocasião própria para fazer visitas, indo uns às casas dos outros, para palestrar, tendo como assunto principal da conversação os escândalos, que se acumularam durante a semana".

Acrescenta que se ouviam na Barra, "diariamente, falatórios a respeito das mais respeitáveis famílias do lugar, os quais dificilmente seriam acreditados pelos habitantes dos piores bairros suspeitos de Londres" (13).

Wallace testemunhou os primeiros dias de vida de Manaus como capital de uma província. Regista a luta para obter uma casa, "o que naquela ocasião era muito difícil de conseguir, pois estavam quase tôdas ocupadas, e os aluguéis de numerosas eram caríssimos". "Isso tinha como principal causa o afluxo de numerosos adventícios e comerciantes, ali chegados em conseqüencia da instalação do novo govêrno na cidade".

Quando Wallace assinalou tais fatos, Manaus atravessava um período de dificuldades. "Desde 5 meses, ali não chegava navio algum, procedente de Belém do Pará, e havia absoluta falta de quase todos os gêneros de primeira necessidade. A farinha de trigo há muito tempo que se havia acabado e, consqüentemente, não havia pão". "Esta falta de gêneros", explica o cientista inglês, "era devida a ter-se perdido, um mês antes, perto da Barra, um navio que vinha de Belém, carregado de provisões" (14).

Por essas referências, é possível imaginar o que fôsse a vida de Manaus, acrescendo ao seus problemas anteriores o do ajustamento à nova condição de capital de uma província do Império.

Quando o presidente da província, Herculano Ferreira Pena, tomou posse, em 1853, de 243 casas no centro urbano, 122 eram cobertas de palha. "Pelas piores casas – informa o conselheiro – paga-se ordinariamente o aluguel mensal de 4 a 6 cruzeiros; pelas melhores, 15 a 25 cruzeiros, havendo algumas de 30 cruzeiros: nenhuma delas se acha desocupada" (15).

Constitui-se, então, a Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, incorporada por Mauá, e que larga influência iria ter para a prosperidade da região. Com o tráfego estabelecido pelos vapôres "Marajó", "Monarca" e "Rio Negro", abertas as linhas do Madeira e do Solimões, assegurada a ligação regular com Belém, Manaus começou a usufruir das vantagens de sua posição.

Em 1860, Manaus recebeu a visita de Belmar, um viajante francês cujas informações sôbre a cidade, pouco mais fazem do que repetir os dados constantes do Dicionário de Araújo Amazonas. E Belmar escreveu, por sua vez, estas palavras de confiança no futuro do pequeno burgo: "A posição de Manaus determinar-lhe-á ser um dia uma das mais importantes cidades do Alto Amazonas. Já é ela o entreposto de todo o comércio de importação e exportação que se faz na imensa bacia do rio Negro, comércio que não pode deixar de adquirir cada dia mais extensão e atividade, à medida que o país se povoe de trabalhadores" (16).

Em 1865, Louis Agassiz e sua luzida comitiva estiveram em Manaus. A narrativa dessa viagem, em grande parte escrita por madame Elizabeth Cary Agassiz, diz-nos largamente da cidade e dos seus arredores, bem como dos habitantes e seus usos.

"Que poderei dizer de Manaus? – indaga. É uma pequena reunião de casas, a metade das quais, prestes a cair em ruínas, e não se pode deixar de sorrir ao vê-las oscilantes decoradas com o nome de edifícios públicos: Tesouraria, Câmara Legislativa, Correios, Alfândega, Presidência. Entretanto, a situação da cidade, na junção do rio Negro, do Amazonas e do Solimões, foi das mais felizes na escolha. Insignificante hoje, Manaus se tornará, sem dúvida, um grande centro de comércio e navegação" (17).

Madame Agassiz, com a autoridade de ser o seu um depoimento feminino, confirma a observação de Maw, há cerca de quarenta anos antes, quanto à vida semi-claustral das senhoras amazonenses. Muitas senhoras, verificou, "passam meses e meses sem sair de suas quatro paredes, sem se mostrar, senão raramente à porta ou à janela; pois, a menos que esperem alguém, estão sempre tão pouco vestidas que vão além da negligência". A mulher, nessa porção do Império, se embota no torpor de uma existência inteiramente vazia e sem objetivo, ou se se revolta contra suas cadeias, a sua infelicidade só é comparável à nulidade de sua vida" (18).

Não obstante tal recolhimento, davam-se bailes e o casal Agassiz teve oportunidade de assistir a um, em homenagem a Aureliano Cândido Tavares Bastos, campeão de abertura dos portos do Amazonas às bandeiras das nações amigas. Não havia carruagens: os convivas, ataviados para a festa atravessavam as ruas enlameadas, a pé, às carreiras, alumiando o caminho com lanternas de mão. Na noite dêsse baile, chegou a notícia da rendição de Uruguaiana. E um outro foi organizado por êsse motivo para a noite seguinte. Agassiz regista o que foi a comoção pública diante de tão desusadas comemorações.

Em 1867, o engenheiro Franz Keller-Leuzinger foi comissionado pelo govêrno imperial para realizar estudos sôbres problemas de transporte no rio Madeira. No livro que escreveu descrevendo sua exploração, também presta o seu depoimento sôbre Manaus. Diz-nos, por exemplo, da dificuldade e desconfôrto do desembarque e depois, como todos os outros, expande a sua exaltação e deslumbramento.

"As ruínas do pequeno forte português, São José da Barra do Rio Negro, – regista – são vistas à esquerda. Mas elas despertam muito menos interêsse que um velho cemitério indígena, recentemente descoberto ao nivelar-se o terreno na vizinhança de suas muralhas. Centenas daquelas urnas de argila vermelha (igaçabas), que os aborígines usam para enterrar seus mortos, são vistas em longas fileiras, e a não grande profundidade da terra. Em várias delas, os restos de ossadas humanas têm sido encontradas, e o seu estado de decomposição mostra que elas são de data bem antiga" (19).

"A despeito de seu pomposo título, capital da província do Amazonas, Manaus é uma cidadezinha insignificante de uns 3 000 habitantes. Ruas sem calçamento e pessimamente niveladas, casas baixas e cabanas de construção a mais primitiva, sem nenhum cuidado de beleza arquitetônica, numerosas vendas de portuguêses, – onde qualquer coisa pode ser conseguida, do vinho de Lisboa e tecidos estampados inglêses ao queijo brasileiro e ao pirarucu sêco; de cosméticos e sabonetes de Paris ao caucho e ao cacau, de espingardas belgas a pontas importadas de arpão – certamente se negam em compor um importante ensemble; enquanto a população, exibindo amostras de tôdas as possíveis misturas de sangue branco, negro e indígena, também nos lembra vigorosamente que estamos no coração do continente sul americano, no verdadeiro centro do vale amazônico, aberto apenas recentemente à civilização e ao comércio". Franz Keller remata a notícia que nos dá de Manaus, falando de como o impressionam de um lado o céu, a vegetação e as águas, e de outro a cordialidade da gente. Tais coisas, diz êle, "tendem a fazer-nos esquecer o desejo de luxos e ter como muito agradável a nossa primeira impressão de Manaus" (20).

Durante o largo interregno que vai daí à proclamação da República pouco se fêz pela princesa do Rio Negro. Os mais notáveis edifícios construídos nesse período foram a matriz e o Colégio Estadual do Amazonas, instalados em 1884, instalados em 1884, pelo presidente Ernesto de Vasconcelos Chaves. A Santa Casa de Misericórdia fôra instalada a 16 de maio de 1880, pelo presidente coronel José Clarindo de Queirós. Ainda não era o edifício que é hoje, remodelado pelo saudoso arquiteto Aloísio Araújo (21).

Um dos poucos melhoramentos integrado naquele período do regime monárquico, não deve ser esquecido: o "Asilo Elisa Souto", mais tarde "Instituto Benjamin Constant", instalado no dia 10 de julho de 1884, em que a província do Amazonas festejava a entrega das últimas cartas de alforria ao reduzido número de seus escravos. Não tinha a amplidão e o confôrto que recebeu já no período republicano.

Mais outros edifícios tinham sido levantados, como o Paço Municipal, o Mercado de Ferro, o Quartel de Artilharia, Cadeia Pública, a Assembléia Legislativa (comprada ao capitalista Custódio Pires Garcia). Nenhum grupo escolar.

Manaus, capital do estado: Manaus havia progredido morosamente. Ao evento do novo regime possuía cêrca de 20 000 habitantes, sem telégrafo, sem telefones, sem bondes, sem água canalizada, sem luz elétrica. Suas rendas eram mesquinhas. Mas o Amazonas teve a felicidade de ver, no comêço do novo regime, valorizada a sua produção de borracha. Suas receitas se duplicavam anualmente. Era mister aplicar êsse dinheiro, satisfazendo os reclamos dos serviços públicos.

Eduardo Gonçalves Ribeiro, o "Pensador", quando governou o estado, pela segunda vez (de 1892 a 1896), foi o grande construtor de Manaus. "A maior parte dos melhoramentos que se realizaram nesta capital e no interior – já escreveu o signatário destas linhas – datam dêsse quatriênio. São justas as palavras daquele governador, a respeito desta capital: "Encontrei uma grande aldeia e fiz dela uma cidade moderna" (22).

O "Pensador" remodelou a cidade. Fêz aterros e desaterros importantes, edifícios escolares, canalização d' água aparelhada de um enorme reservatório, pontes de pedra e de ferro, o Teatro Amazonas, o Palácio da Justiça e outros melhoramentos que foram inaugurados mais tarde. Seus sucessores seguiram-lhe o programa, embora menos intensamente.

Até a gestão Eduardo Ribeiro, o abastecimento de água para a população se fazia por meio de carros-pipas, puxados a boi ou a cavalo, e quase sempre de propriedade de portuguêses, os "aguadeiros", que iam buscar o líquido no igarapé de Manaus, em certa altura, a montante da qual era proibido utilizar as suas águas para banhos ou outras serventias que as pudessem poluir (23).

Entre os grandes aterros então executados, figura o que deu origem à atual avenida Eduardo Ribeiro, a principal da cidade, e que está situada, na sua maior extensão, onde era um enorme pantanal pelo centro da qual corria o igarapé do Espírito Santo. As avenidas Floriano Peixoto e Getúlio Vargas (anteriormente 13 de maio) ocupam o antigo igarapé do Atêrro, assim chamado por causa de um atêrro sobre arcada que o govêrno provincial mandara construir, em frente ao atual Cine Politeama, no caminho da Cachoeirinha hoje avenida 7 de Setembro.

Quem escreve estas linhas, conheceu o centro urbano de Manaus limitado à área que tem pela parte norte, a rua Monsenhor Coutinho, pelo sul o rio Negro, por este a avenida Joaquim Nabuco, por oeste o igarapé de São Vicente. Fora daí ficavam os subúrbios, considerados lugares distantes, como os bairros dos Educandos (hoje Constantinópolis) a Cachoeirinha (arruada pelo prefeito Manuel Uchoa Rodrigues), Campinas, São Raimundo.

A Vila Municipal (hoje Adrianópolis) é recente. Data de 1906. Está situada no antigo terreno pertencente aos herdeiros do capitão de mar e guerra Nuno Álvares de Melo Cardoso, terreno êsse que foi, em parte, desapropriado, traçando-se nêle os lineamentos dos bairros, sob o govêrno municipal do capitão Adolfo Guilherme de Miranda Lisbôa.

Com os trabalhos de planificação da parte central da cidade, muito alterada ficou a topografia, como ainda atestam certos pontos (igreja da Matriz e Remédios, Teatro Amazonas e Palácio da Justiça).

Os primitivos cemitérios de Manaus, inclusive o dos índios, desapareceram. O de Nossa Senhora dos Remédios, que estendia lateralmente e pelos fundos da igreja dêsse nome, possuía, ainda, em 1884, o seu grande "cruzeiro" de madeira, em frente ao atual templo da Loja Maçônica "Amazonas", e na parte sul da rua que aí foi aberta, recebendo o nome de rua da Cruz, mais tarde Leovigildo Coelho. Essa necrópole fôra fechada em 1856, por ordem do presidente Herculano Ferreira Pena, quando assolou a cidade uma epidemia de cólera.

O cemitério de São José, situado no limite sul da praça da Saudade, e aberto nesse ano de 1856, foi fechado ao ser aberto o de S. Raimundo no bairro dêsse nome, e criado para atender aos óbitos oriundos de um surto de varíola que então grassou. O cemitério São José foi demolido, já em nossos dias, e, no local, que se irrigara de tantas lágrimas, construiu-se a bela sede do Atlético Rio Negro Clube...

A atual necrópole de São João Batista foi aberta na gestão Lisboa, tendo sido o primeiro enterramento, nêle realizado, o do grande médico e jornalista Aprígio de Meneses.

Sucessor de Eduardo Ribeiro, o governador Fileto Pires Ferreira teve oportunidade de concluir e inaugurar muitos melhoramentos notáveis. O ano de 1896 foi excepcionalmente feliz a êsse respeito.

Em 1896, a 10 de fevereiro, verificou-se a inauguração da linha telegráfica sub-fluvial. A 1.° de março, dava-se a instalação do Instituto Benjamin Constant, em seu novo prédio. A 5 de julho, eram inaugurada as pontes de alvenaria sôbre os igarapés Manaus e Bittencourt. A 22 de julho, iniciou o tráfego a linha de viação urbana, partindo da praça Tamandaré ao reservatório do Mocó. A 22 de julho, inauguração do serviço de abastecimento d' água. A 15 de outubro (24), inauguração do serviço de iluminação elétrica: ressalvada a prioridade de Campos, Manaus pode orgulhar-se de ser no país precursora de tal melhoramento. E para terminar condignamente êsse ano, a 31 de dezembro, inauguração do Teatro Amazonas.

O pôrto de Manaus, com os seus flutuantes únicos no gênero em tais proporções, foi inaugurado em 1902, na gestão de Silvério Neri.

A administração Constantino Néri deu-nos dois belos edifícios públicos: a Biblioteca Pública e a Penitenciária: além de vários melhoramentos realizados sob a jurisdição municipal.

Entre as aquisições com que posteriormente foi enriquecido o patrimônio da cidade, cumpre destacar a do palacete Scholz, o atual Palácio Rio Negro, que custou apenas Cr$ 200 000,00 em 30 de junho de 1918, govêrno Alcântara Bacelar (25).

E recentemente, no govêrno Álvaro Maia, vários edifícios foram construídos e outros comprados e remodelados para os serviços públicos. Entre os construídos e os rematados convém registar o Instituto de Educação, o Palácio Rio Branco, o Palácio das Municipalidades, a Inspetoria do Tráfego. E não houve grupo escolar que não fôsse ampliado.

Com seus jardins vicejantes e ruas calçadas, com seus belos edifícios, Manaus transformou-se do que era no tempo de Agassiz para ser o que êle predisse: um grande centro de comércio e navegação, com suas instituições científicas e literárias, seus cursos técnicos, com os seus jornais e revistas bem colaborados, suas casas de diversão e, sobretudo, seu espírito de brasilidade, cordialidade e progresso.

Rio, agôsto de 1948.

Prof. Agnelo Bittencourt

NOTAS:

(1) Ch. – M. de La Condamine, Viagem na América Meridional – Trad. de Cândido Mota (filho) – Rio, 1944 – p. 88.

(2) "Apêndice ao Diário da Viagem que, em visita de correição das povoações da capitania de S. José do Rio Negro, fêz o ouvidor e intendente geral da mesma" – In Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, vol. VI.

(3) Ofício de Lôbo D' Almada a Sousa Coutinho, em 4 de abril de 1793 – In Artur César Ferreira Reis, Lôbo D' Almada – um estadista colonial – Manaus, 1940 – p. 212.

(4) Alexandre Rodrigues Ferreira, Diário da Viagem Filosófica pela Capitania de São José do Rio Negro – In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – Tomo 50, 2°. parte, 1887.

(5) J. B. von Spix e C. F. P. von Martius, Viagem pelo Brasil – Trad. de D. Lúcia Lahmeyer – 3.° vo. p. 198.

(6) Idem, p. 212.

(7) Idem, p. 213.

(8) Henry Lister Maw, Narrativa da passagem do Pacífico ao Atlântico através dos Andes nas províncias do norte do Peru, e descendo pelo rio Amazonas até o Pará – Trad. portuguêsa – Liverpool, 1831.

(9) Apud Barão do Marajó, As Regiões Amazônicas – 1895 – p. 392.

(10) Tenreiro Aranha, Relatório – Manaus, 1852.

(11) Lourenço da Silva Araújo e Amazonas, Dicionário Topográfico, Histórico e Descritivo da Comarca do Amazonas – Recife, 1852 – p. 190.

(12) Richard Spruce, Notes of a Botanist on the Amazon and Andes – Edição de Alfred Russel Wallace – Londres, 1908 – Vol. I – p. 241.

(13) A. R. Wallace, Viagens pelo Amazonas e Rio Negro – Trad. de Orlando Tôrres – Edição "Brasiliana" – p. 201.

(14) Idem, p. 483.

(15) Apud Agnello Bittencourt, Corografia do Estado do Amazonas – Manaus, 1925 – p. 273.

(16) A. Belmar, Voyage aux provinces brésiliennes du Pará et des Amazones – Londres, 1861 – p. 175.

(17) Louis Agassiz e Elizabeth Cary Agassiz, Viagem ao Brasil – Trad. de Edgar Sussekind de Mendonça – Edição "Brasiliana" – p. 247.

(18) Idem, p. 336.

(19) Tal cemitério estava localizado, provavelmente, no terreno ao lado do atual Palácio Rio Branco.

(20) Franz Keller, The Amazon And Madeira Rivers – Londres, 1874 – p. 34.

(21) Júlio Uchoa, Santa Casa de Misericórdia – Divulgação do Centro Teixeira de Freitas – Manaus, 1947.

(22) Agnello Bittencourt, ob. cit. – 290.

(23) Quando Agassiz estêve em Manaus, em 1865, os aguadeiros ainda não utilizavam carros e o seu ofício não era como após, costumeiramente fornecido por portuguêses. "Um dos meus grandes prazeres em Manaus – conta o sábio – é, à tarde, ao cair do dia, dirigir os meus passeios para a floresta vizinha e ver desfilarem os "aguadeiros", índios ou negros que passam de volta por um estreito caminho, trazendo na cabeça um grande jarro vermelho de barro, cheio d' água. E' como uma procissão, de tarde de manhã; a água do rio passa por não ser boa para se beber, e, de preferência, a cidade se fornece das pequenas lagoas e riachos da mata" (Ob. cit., 249). O polígrafo e amazonista Mário Ipiranga Monteiro dedicou ao estudo dos aguadeiros um valioso ensaio.

(24) Júlio Uchoa, Apontamentos para a história da iluminação em Manaus – Divulgação do Centro Teixeira de Freitas – Manaus, 1947.

(25) Júlio Uchoa, Palácio Rio Negro – Divulgação do Centro Teixeira de Freitas – Manaus, 1947.


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BITTENCOURT, Agnello. Manaus – sua origem e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Boletim Geográfico - IBGE, v. 7, n. 76, p. 385-395, jul. 1949.

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