domingo, 18 de setembro de 2016

Análise da expressão "Invasões Bárbaras"

Saque de Roma pelos Vândalos, em 455 d.C. Pintura de Heinrich Leutemann.

Bárbaro, sinônimo de incivilizado, rude e atrasado. Essa expressão, que nos leva à Idade Média, é consagrada no dia a dia, seja por meio da mídia ou, na maioria das vezes, pela herança etimológica que nos foi deixada. Quando se junta a essa palavra outra, invasões, temos um prato cheio para análises. As invasões bárbaras são pontuadas como uma das causas do declínio da parte Ocidental do Império Romano, como bem vemos no ensino básico e, agora, em mais uma série do canal History. Nos foi repassada através de livros didáticos e até mesmo alguns acadêmicos, uma imagem de violentas incursões de povos de vários lugares da Europa em direção ao Império Romano.

No entanto, não foi bem isso que aconteceu, pelo menos em parte. Jerôme Baschet, medievalista francês autor de A Civilização Feudal: do ano mil à colonização da América (2006), uma síntese de História Medieval para os calouros da UNACH (Universidad Autónoma de Chiapas), analisa essa expressão saindo da tradição de ver apenas o poderio militar bárbaro, dando foco para a organização desses povos e desmistificando alguns pontos de suas relações com Roma.

Baschet faz uma dupla crítica a essa expressão. Primeiro, ele analisa a palavra bárbaro, empregada, primeiramente, para designar os não-gregos e, depois, os não-romanos. A palavra ganhou uma conotação negativa, tornando Roma um modelo de civilização e os não-romanos exemplo de atraso técnico e cultural. Ao entrar em contanto com o Império, esses povos ignoraram elementos essenciais para a cultura urbana de Roma, como a prática da escrita, o Direito e a administração estatal. Mas, em contrapartida, esses povos, organizados em torno de um chefe tribal, tinham suas próprias técnicas, como o artesanato e o trabalho com metais, superior ao dos romanos e frequentemente requisitado pelos mesmos.

Invasões recebe a segunda crítica. O termo, quase que de forma automática, nos faz pensar em violentas incursões militares contra o Império. Elas existiram, claro, e foram bastante violentas, mas, paralelo a elas, existiu um lento processo de infiltração, no qual esses povos germânicos iam se instalando, na maioria das vezes, de forma pacífica. Os grupos menores se favoreciam das práticas artesanais e metalúrgicas, e também prestavam serviços ao exército romano. Grupos maiores faziam acordos com o Império e ganhavam deste o estatuto de Povo Federado, uma associação à Roma, na qual o Estado Romano garantia cidadania, subsídios e proteção em troca de contingentes militares.

Quando o Império entrou em colapso e sua estrutura fiscal desabou, os bárbaros souberam se favorecer com esse problema. As antigas cidades romanas e suas elites, que sofriam cada vez mais com o aumento de impostos, ganham dos reis germânicos privilégios fiscais maiores que o normal, fazendo a antiga estrutura fiscal cair de dentro para fora. O desaparecimento da antiga estrutura fiscal tornou o Ocidente um grupo de regiões sem relação entre si e bastante regionalizado. Os reinos germânicos não conseguem restaurar o imposto e controlar suas terras e as elites locais.

As elites locais das antigas cidades do Império tem seu papel no processo de integração dos povos bárbaros. Para manter suas posições, elas se aliam aos líderes germânicos, realizando casamentos, fundindo linhagens romanas e bárbaras. Os dois lados saem ganhando: os bárbaros, aos poucos, iam se integrando à sociedade romana, muitas vezes ascendendo como membros da aristocracia; enquanto que as antigas elites romanas se militarizaram, protegeram suas posições e passaram a controlar cada vez mais as cidades.

No campo jurídico são misturados elementos do Direito Romano e costumes de origem germânica, caracterizando a ausência de um poder real que possa ser aplicado. O poder do rei germânico emana de sua relação de fidelidade com sua corte, onde seus membros são recompensados com proteção e concessões públicas, numa prática de paternalismo que confunde o público com o privado. Com a ausência de uma estrutura fiscal que garanta o controle das regiões e suas elites; de uma codificação jurídica organizada, Baschet conclui que é impossível considerar estados os reinos germânicos da Alta Idade Média.

Portanto, as Invasões Bárbaras não devem ser vistas ou imaginadas apenas como ações violentas dos povos germânicos, mas também como um processo de infiltração lento, com duração de vários séculos, no qual os líderes dessas tribos souberam se aproveitar das fraquezas internas do Império Romano e se integrar a essa realidade. A fronteira, em certa medida, perde seu caráter de divisão e se torna o lugar das trocas comerciais e culturais, onde são mesclados elementos romanos e germânicos, dando luz a uma nova realidade na Europa, a realidade romano-germânica.


CRÉDITO DA IMAGEM:

commons.wikimedia.org



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