O livro O Tigreiro foi publicado em 1997 pelo historiador amazonense Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004). Ele nos apresenta nesse trabalho as origens e o funcionamento do sistema de coleta e eliminação de dejetos humanos e animais entre os séculos XIX e XX. A figura central é o tigreiro, tipo social de origem escrava, indígena ou mestiça, que ficava encarregado do trabalho diário de recolhimento das impurezas produzidas pela cidade. É mais um trabalho de História Social, juntando-se ao aguadeiro, a lavadeira, o arruador, o homem da matraca e o regatão.
No período Colonial, em que Manaus era o Lugar da Barra, o sistema de esgoto era inexistente, se tornando uma realidade apenas na segunda metade do século XIX, com a Província. O lixo doméstico e os excrementos eram recolhidos pelos tigreiros, que com seus barris, carregados na cabeça, despejavam toneladas de impurezas em locais destinados para esse fim: "[...] os esvãos litorâneos, as pontas de terra que eram então as dos Remédios e de São Vicente-de-Fora, ou os baixios da Fortaleza, à causa da corrente" (MONTEIRO, 1997, p. 08). Era costume, também, atirar pelas janelas das casas as águas servidas, o que causava transtorno aos transeuntes, que vez ou outra eram atingidos. Surgem, junto aos tigres, os arrendadores do serviço de coleta, utilizado carros de condução de duas rodas.
Mário Ypiranga afirma que tigre era o nome do barril utilizado no transporte dos excrementos, enquanto tigreiro era o carregador (MONTEIRO, 1997, p. 40). Por outro lado, os escravos ficavam conhecidos como tigres porquê os dejetos, ao escorrerem pelas frestas dos barris, marcavam suas peles, que ficavam listradas.
Mário Ypiranga chama atenção para as formas e meios utilizados por nossos antepassados para satisfazer suas necessidades fisiológicas. As famílias de baixa renda, explica, utilizavam as margens dos igarapés ou as áreas de mata como banheiros. Dizia-se "vou ao mato", "vou na casinha". Por conta desse costume os banheiros passaram a ser construídos não anexos à residência, mas à parte destas. Os utensílios utilizados eram variados e para diferentes classes: "coronel", "capitão", "furriel", iamaru ou jamaru, cabungo, capitari e também bacio e noutra extensão comadre" (MONTEIRO, 1997, p. 14). Os banheiros domésticos, com latrinas e bacio de louça, eram privilégio de poucos. A falta de higiene e o despejo de lixo, fezes e urina nos igarapés eram responsáveis pela insalubridade e o consequente aparecimento de doenças.
No período Provincial, com o aumento das rendas públicas, surgem alguns melhoramentos, como o primeiro esgoto, construído em 1866, que saía da Praça da Imperatriz e ia em direção ao Rio Negro (MONTEIRO, 1997, p. 17). Apesar dessa mudança, o tigreiro continuou atuando com seus barris, indo de casa em casa e de repartição em repartição, sendo uma figura extremamente importante naquele período em que ainda eram dados os primeiros passos na construção de um sistema de esgotos apropriado. Os igarapés e o Rio Negro continuavam sendo o destino dos detritos residenciais.
Do ponto de vista cronológico, Mário Ypiranga, retrocede e avança no tempo, sem limites temporais estabelecidos, o que confere ao trabalho uma característica de ensaio. Por exemplo, ao discorrer sobre algumas ações de administradores públicos do passado, que tentaram sanear a cidade, afirma que mesmo com essas lições antigas as autoridades do presente se mostram ineptas no que tange a urbanização:
"Nos dias atuais as autoridades simplesmente são omissas ao proliferamento de casebres imundos à margem dos igarapés centrais e até dentro deles, ali mesmo onde será despejado o lixo e a matéria fecal dos próprios residentes, de vez que essas construções precárias ficam isoladas do sistema de fornecimento d' água potável e de derivação de esgotos!" (MONTEIRO, 1997, p. 40).
É somente entre o final do século XIX e o início do século XX que Manaus, agora enriquecida pela exportação da borracha, é dotada, pela empresa inglesa Manáos Improvements Limited, concessionária do serviço de águas e esgotos, de um sistema eficiente de eliminação de resíduos residenciais e comerciais. Foram construídas galerias subterrâneas, aterrados igarapés, instalados banheiros públicos, importados carros de limpeza, construído um forno crematório no bairro dos Tócos, no Plano Inclinado, criado um sistema de coleta de lixo eficiente e organizado e os Códigos de Posturas tornaram-se mais rígidos nos artigos sobre a limpeza pública. O autor afirma que "O sistema implantado pela Manaus Improvements era no tempo um dos melhores do mundo, similar ao inglês e australiano no dizer de algumas pessoas credenciadas" (MONTEIRO, 1997, p. 70).
Estudando os orçamentos da cidade entre os anos de 1834 e 1906, mostrou como os gastos com limpeza pública (limpeza de ruas, praças, remoção de lixo, capinação etc) foram evoluindo, iniciando de forma tímida até ganharem grandes proporções entre 1850 e 1900. "Isto basta", afirma, "para exemplificar um critério administrativo, progressivamente firmado no desenvolvimento da cidade, com a aplicação de meios na solução do grave problema de saúde e higiene públicas" (MONTEIRO, 1997, p. 99-114). A Manaus dos tigreiros ficou no passado, apesar de alguns hábitos, como o uso do igarapé como banheiro ou a latrina como sanitário, persistam na cidade e no interior.
O Tigreiro é mais um interessante trabalho de História Social que deve ser lido, pois nos mostra as transformações do sistema de coleta e descarte de lixo na cidade, bem como os personagens ligados à essas atividades.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
MONTEIRO, Mário Ypiranga. O Tigreiro. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1997.
Bastante interessante! Sabe informar onde podemos encontrar exemplares desses livros do Mário Ypiranga? (O aguadeiro,o arruador, o homem da matraca, o tigreiro)
ResponderExcluirRecomendo procurar os livros do Professor Mário Ypiranga nos sebos da Praça da Polícia e no Império Sebo e Antiquário, localizado na rua Luiz Antony.
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