Mostrando postagens com marcador Passado.. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Passado.. Mostrar todas as postagens

domingo, 22 de abril de 2018

Nossos Combates pela História

'A greve de Youngstown', pintura de 1937 de William Gropper.

Acabo de sair de uma aula que ecoará por um bom tempo em minha mente e acredito que também na de meus amigos de curso. Debatemos, em grupo, um capítulo do livro Combates pela História, do historiador francês Lucien Febvre (1878-1956). Leitura bastante pertinente, pois relaciona-se ao tempo em que vivemos, de constantes ataques à educação e, em especial, às ciências humanas. Ela reacende a chama que, pelos entraves acadêmicos ou por problemas externos, estava se apagando (algo bastante comum na reta final da graduação). Nos vemos diante de um autor apaixonado pelo que fez:

"Amo a história. Se não a amasse não seria historiador. Fazer a vida em duas: consagrar uma à profissão, cumprida sem amor; reservar a outra à satisfação das necessidades profundas - algo de abominável quando a profissão que se escolheu é uma profissão de inteligência. Amo a história - e é por isso que estou feliz por vos falar, hoje, daquilo que amo". (FEBVRE, 1989, p. 28).

Por mais que o que chame nossa atenção seja esse tom romântico, Combates pela História deve ser entendido como uma crítica direcionada à escola Metódica Francesa e seus membros. Na época da produção do texto, 1953, Lucien Febvre há muito era um historiador consagrado nos meios acadêmicos franceses, mas remorava  seus combates teóricos e metodológicos travados ora como aluno, ora como professor, pela renovação do campo histórico.

Essa renovação estava há tempos sendo delineada no horizonte, eclodindo com a Escola dos Annales, fundada por Febvre e seu amigo Marc Bloch (1886-1944). François Simiand (1873-1935), sociólogo francês, já tecia críticas à prática historiográfica empreendida pela Escola Metódica, cujos principais pilares, em síntese, eram a crença na neutralidade do trabalho do historiador; na leitura dos documentos como transmissores do passado tal como este teria ocorrido (que juntando-se ao primeiro pilar levaria à "objetividade histórica"); a atenção às grandes personagens e aos aspectos políticos das nações. Para Simiand, os historiador deveriam estudar aspectos sociais, buscar diálogos entre o presente e o passado, refletir sobre as fontes e buscar aportes teóricos.

As ciências, no geral, vinham passando por uma crise desde o século XIX, crise essa de métodos e teorias. Novas descobertas abalavam antigas estruturas, antigas premissas tomadas como verdadeiras e universais. Ocorreram renovações na Sociologia, na Geografia, na Psicologia e em outras áreas. Diante desse quadro de crise e renovação, Febvre perguntava, sobre os postulados da Escola Metódica, se seriam "[...] nós, historiadores, os únicos a continuar a tê-los como válidos?" (FEBVRE, 1989, p. 39).

A noção de história de Lucien Febvre relaciona-se a essa crise das ciências humanas. O autor faz uma crítica à utilização dos epítetos econômica e social no título da revista que criou com Marc Bloch, afirmando que a utilização desses termos não é uma exclusividade, mas surgiu como uma necessidade, pois desejava-se que a história se irradiasse por outras áreas do conhecimento. Para ele não existe uma história econômica e social. A história é, em suma, completamente social, constituindo-se em um estudo

"[...] das diversas actividades e das diversas criações dos homens de outrora, tomados na sua data, no quadro de sociedades extremamente variadas e contudo comparáveis umas com as outras [...], com as quais encheram a superfície da terra e a sucessão das épocas" (FEBVRE, 1989, p. 30).

Os objetos de estudo da história são os homens, os homens que estão em constante mudança, alterando o meio e as sociedades das quais fazem parte em determinadas épocas. Podemos nos interessar por áreas distintas como a história econômica, a história política, diferentes áreas da vida humana, mas com a condição de "[...] nunca esquecer que elas o põem (o homem) em causa inteiro, sempre - e no âmbito das sociedades que criou" (FEBVRE, 1989, p. 31). Dessa forma, não devemos estudar os aspectos da vida humana de forma isolada, mas antes compreendê-los como parte de um todo da criação dos grupos humanos em diferentes temporalidades.

Três elementos são importantes para compreender a renovação historiográfica empreendida por Febvre: A interdisciplinaridade, a história-problema e a história como conhecimento cientificamente conduzido.

Uma história interdisciplinar mantém contato com outras áreas do conhecimento que tem o homem como objeto de estudo. Febvre afirma que devemos ser geógrafos, juristas, sociólogos e psicólogos, de forma a ampliar os horizontes do historiador. Pede, também, que não fechemos "[...] os olhos ao grande movimento que, à vossa frente, transforma, a uma velocidade vertiginosa, as ciências do universo físico" (FEBVRE, 1989, p. 40). "O problema, diz Febvre, é o começo e o fim de toda a história". Se o historiador não propõe problemas e não formula hipóteses para resolvê-los em suas investigações, ele será um mero produtor de compilações. Por cientificamente conduzido, compreendo que Lucien Febvre apresenta a história problema como até hoje conhecemos, na qual o historiador problematiza os elementos históricos, tece hipóteses, faz críticas aos documentos, reflete as subjetividades das ações humanas, o que difere do anseio de cientificidade dos historiadores metódicos, no sentido puro da palavra, de uma ciência na qual existe um único direcionamento.

Lucien Febvre pede uma coisa que nós, historiadores, às vezes nos esquecemos de fazer: ele pede que vivamos, vivamos academicamente, familiarmente, amorosamente. Somos humanos. Lutemos por nossos ideais, seja escrevendo ou indo para a rua. Lutemos por melhores condições de trabalho, de educação. Por condições dignas de humanidade! Não devemos "separar a ação do pensamento, a vida do historiador da vida do homem" (FEBVRE, 1989, p. 40). Isso vale para qualquer profissão. Lutemos para continuar renovando a historiografia, mantendo um diálogo entre o presente e o passado. É preciso que deixemos de ver a história, enuncia Febvre, "como uma necrópole adormecida, onde só passam sombras despojadas de substância" (FEBVRE, 1989, p. 40). Como os cavaleiros medievais, ainda seguindo as alegorias do historiador francês, devemos penetrar o castelo e despertar com a nossa vida a princesa adormecida (a história).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FEBVRE, Lucien. Viver a História. In: Combates pela História. Lisboa: Editorial Presença, Lda. 1989.

CRÉDITO DA IMAGEM:

http://teachgreatjewishbooks.org

terça-feira, 28 de junho de 2016

Heródoto e Tucídides: Uma breve comparação

Estátuas de Heródoto e Tucídides em frente ao Parlamento Austríaco.

Esse texto é uma pequena comparação entre dois historiadores clássicos da Grécia, Heródoto e Tucídides, e servirá de material de apoio para os estudantes da graduação em História da UFAM e de outras instituições:

Heródoto de Halicarnasso é autor das Histórias, uma série de relatos reunidos em 9 livros, sendo 6 voltados para o desenvolvimento do Império Persa e a descrição dos povos que o formavam; e 3 voltados para os conflitos entre gregos e estrangeiros. Tucídides escreveu sobre a Guerra do Peloponeso, conflito entre atenienses e espartanos, do qual foi protagonista. Enquanto Heródoto volta sua atenção para a descrição de vários aspectos dos lugares que visitou, utilizando conhecimentos de hidrografia, geografia, botânica etc, Tucídides se atém a descrever e procurar as causas de um único evento, nesse caso, a Guerra do Peloponeso.

A obra de Heródoto, ainda que produzida de forma “racional”, ainda possuía um vínculo religioso, diferente da de Tucídides, que não sofre “interferência” divina. Como metodologia, Heródoto utilizou fontes materiais e, principalmente, a observação direta e os relatos de terceiros. Para o exame destas fontes, recorria à análise crítica e, quando não tinha certeza da veracidade destas, ao ceticismo. Tucídides também utilizava informantes (períodos da Guerra do Peloponeso que não vivenciou diretamente), mas sua metodologia é mais complexa, com o objetivo claro de garantir a veracidade de sua narrativa, com a crítica aos documentos, aos discursos e a verificação da verossimilhança entre eles.

A concepção de história de Heródoto é pessimista. As ações do homem são controladas por forças divinas e, em sua narrativa, são feitas menções a oráculos, sonhos e previsões. Heródoto acredita em uma História Cíclica, na qual a sociedade se desenvolve através de ciclos que se repetem de tempos em tempos, e as divindades garantem a manutenção, por meio da punição, da ordem. Tucídides, que narra um evento militar, tem uma concepção de história que valoriza o homem, separando este da visão divina. Decisões políticas, econômicas e militares, decisões humanas, são o motor da história.

Heródoto escreve seus relatos em prosa, simples e direta, mais organizada que a dos logógrafos, com vocabulário simples e sem artifícios retóricos e estilísticos. O dialeto grego utilizado é o jônio. Tucídides tem a escrita mais refinada, no estilo paratático e em prosa. Utiliza o dialeto ático com influência do jônio, uma herança da prosa de Heródoto.

Entre o nascimento de Heródoto e Tucídides existe uma diferença de 35 anos, sendo o segundo autor mais jovem que o primeiro. Ambos, de famílias abastadas, foram exilados por motivos políticos. Heródoto recorreu aos relatos de terceiros e à análise de fontes materiais para construir sua obra. De um mundo ainda impregnado de aspectos míticos, é influenciado por uma visão fatalista da história, controlada por forças que ultrapassam a compreensão humana. Tucídides, protagonista de boa parte do evento que narrou, analisa as fontes e os relatos disponíveis de forma crítica, valorizando os feitos humanos como pano de fundo da história. 

Heródoto, por suas digressões sobre hábitos, costumes e outros aspectos dos lugares e povos que conheceu, é considerado um historiador cultural; enquanto Tucídides, buscando as causas de uma guerra, é um historiador político e militar.


FONTES: 

LÓPEZ, José Antonio Caballero. Inicios y desarrollo de la historiografía griega: mito, política y propaganda. Madrid: Editorial Sintesis, 2006.

CRÉDITO DA IMAGEM:

commons.wikimedia.org


terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Aristóteles e as diferenças entre Poesia e História

Aristóteles representado na pintura A Escola de Atenas, de Rafael Sanzio.

Aristóteles, um dos pais da Filosofia Ocidental, abrangia em seu pensamento conhecimentos em Física, Retórica, Poesia, Ética, Artes, Biologia etc. Nesse texto, especificamente, iremos conhecer um Aristóteles que formulou leis para a arte poética, largamente utilizada por filósofos, dramaturgos e outros intelectuais de sua época. Mas, antes de formular tais leis, era preciso distinguir esse gênero literário de outro também bastante em voga: o gênero histórico. A diferença entre esses dois gêneros é traçada na obra Poética, pioneira na distinção entre o real e o fictício. Para melhor compreendermos, irei utilizar recortes desse livro.

"É claro, depois do que foi dito, que a característica do poeta não é de relatar o passado real, mas antes o passado possível, levando em conta as possibilidades dos acontecimentos segundo as verossimilhanças e a necessidade dos encadeamentos. O historiador e o poeta, com efeito, não diferem pelo fato de um narrar em verso e o outro em prosa - poder-se-ia ter transcrito em versos a obra de Heródoto e ela não seria menos história em verso do que em prosa. A verdadeira distinção é a seguinte: um narra o que aconteceu, o outro aquilo que poderia ter acontecido".

O poeta e o historiador não se distinguem pela forma como escrevem, um em verso e o outro em prosa, respectivamente. O historiador narra eventos que aconteceram, fixo em um tempo, enquanto o poeta escreve sobre aquilo que poderia ter acontecido, tendo liberdade para criar seus eventos, pois este tira a inspiração da natureza e do mundo a sua volta.

"Além disso, a poesia é mais filosófica e de um gênero mais nobre que a história, pois a poesia se eleva até o geral, enquanto que a história não é senão a ciência do particular. O geral, aquilo que este ou aquele tipo de homem faria ou diria segundo toda verossimilhança ou necessidade: é a isto que visa a poesia, embora dando nomes individuais aos personagens. O particular, é o que fez Alcibíades, ou aquilo que lhe aconteceu".

A poesia é produzida seguindo a lógica e um fim específico determinado por seu autor, que como já foi dito, tem a "liberdade criativa". A poesia, que valoriza os sentimentos humanos e as ações destes, pende para o dramático. A narrativa histórica não é determinada pelo historiador, mas sim pelo tempo e uma sequência de eventos nele inseridos. Juntamos a isso o fato de que o historiador narra as ações de Alcibíades no tempo, não importando seus sentimentos.

"Inteiramente diversos são os relatos históricos habituais, nos quais, necessariamente, não se trata de mostrar uma unidade de ação, mas somente uma unidade de tempo, juntando todos os acontecimentos, os quais, num determinado tempo, interessaram um ou mais homens e que não mantêm entre si senão uma relação casual".

O elemento primordial na narrativa histórica é o tempo, no qual estão diferentes eventos, estes sem ligação causal ou fim determinado. A poesia é composta de forma harmônica, para que todos os "fatos" inspirados do poeta tenha uma conexão entre si e componham um todo. Como exemplo temos o poema épico Odisséia, no qual a abordagem é o regresso de Ulisses para Ítaca, que levou cerca de 17 anos, terminando com sua chegada e o restabelecimento da ordem na mesma cidade.

Portanto, percebemos que as diferenças estabelecidas por Aristóteles em sua obra Poética, não se referem à forma da escrita, mas ao pano de fundo e da forma como narram ou relatam cada um dos profissionais dos dois gêneros. O poeta tem a liberdade de criar e imitar o mundo à sua volta. O historiador é rigoroso ao narrar os eventos que já aconteceram e estão fixos no tempo, se possibilidade de alterá-los. A poesia é escrita com o objetivo de proporcionar prazer aos leitores, enquanto o relato histórico é produzido para fins de registro de fatos ou eventos memoráveis, como escreveram autores clássicos como Heródoto e Tucídides.


FONTES:

ARISTÓTELES, Poética, 1451 a 36; 1451b, II; 1459 a 21-24. In: PINSKY, Jaime. 100 textos de História Antiga. 4° ed. São Paulo: Contexto, 1988, p.144.

MACHADO, Ronaldo Silva. História e Poesia na Poética de Aristóteles. Mneme, Revista de Humanidades. Vol I, n.1. - ago/set. de 2000. Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).


CRÉDITO DA IMAGEM:


lounge.obviousmag.org