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quinta-feira, 1 de junho de 2017

A transição do Feudalismo para o Capitalismo: O debate de Paul Sweezy e Maurice Dobb

Paul Sweezy (1910-2004) e Maurice Dobb (1900-1976).

Paul Sweezy (1910-2004) foi um economista marxista norte-americano, teórico do neomarxismo do imperialismo e da teoria da dependência. Maurice Dobb (1900-1976) foi um economista marxista britânico, crítico da economia planificada socialista.

Paul Sweezy e Maurice Dobb foram dois autores da corrente marxista que se notabilizaram por seus debates acadêmicos em torno da transição do Feudalismo para o Capitalismo, envolvendo questões como a conceituação desse período; a relação da servidão com o Feudalismo e o impacto do comércio no modo de produção feudal. O debate, conhecido como Debate de Transição, pode ser lido em maior profundidade no livro A transição do feudalismo ao capitalismo (1977, Rio de Janeiro, Paz e Terra), organizado por Sweezy com a participação dos autores Rodney Hilton, Maurice Dobb, Kohachiro Takahashi, Georges Lefebvre, Christopher Hill, Giuliano Procacci, Eric Hobsbawm e John Merrington.

De acordo com Paul Sweezy, Dobb define o Feudalismo como "uma servidão na qual o produtor é obrigado mediante o uso da força, independente de suas vontades, de forma a cumprir as exigências econômicas do senhor, exigências que poderiam ser a prestação de serviços ou tributos a serem pagos em dinheiro ou espécie" (SWEEZY, 1977, p. 33). Ao não identificar um "sistema de produção", essa ideia é considerada falha por Sweezy. Esse autor afirma que a servidão não é restrita ao sistema feudal, e que esta pode ser verificada "em diferentes formas de organização econômica em diferentes épocas e em diferentes regiões" (SWEEZY, 1977, p. 33). 

Sweezy afirma que Dobb não define um sistema social, mas uma família dele com foco na servidão. Sweezy sugere que Dobb identifique qual membro dessa família está sendo estudado. Escolher um "membro" parece ser uma forma de evitar generalizações.

Em sua réplica, Maurice Dobb aponta suas discordâncias com Sweezy. Dobb rejeita as primeiras críticas de Sweezy, afirmando que a servidão não está ligada apenas à prestação de serviços compulsórios, "mas à exploração do produtor mediante coação direta político-legal" (SWEEZY, 1977, p. 57). Afirma ainda que, quando Sweezy diz que não houve a identificação de um sistema de produção, este pretende analisar a relação entre produtor e mercado. 

Enquanto Sweezy busca um sistema de produção, Dobb identifica pequenos modos de produção, "no qual o produtor possui os meios de produção, na qualidade de unidade produtora individual" (SWEEZY, 1977, p. 58).

Sobre o impacto do comércio como elemento desestabilizador do "modo de produção feudal", Sweezy defende a tese de que forças externas, o mercado e o comércio, desintegraram o feudalismo, na medida em que centros de comércio passaram a se racionalizar e dividir o trabalho, se opondo "à ineficiência da organização senhorial da produção" (SWEEZY, 1977, p. 42).

Maurice Dobb, por outro lado, defende a tese de que houve uma interação entre duas forças, dando maior ênfase, no entanto, às forças internas. Dobb não nega que o crescimento das cidades mercantis e do comércio influenciaram na desintegração do modo de produção feudal, mas afirma que essa influência refletiu no aumento dos conflitos internos. Por exemplo, como cita Dobb, o crescimento do comércio "acelerou o processo de diferenciação social no pequeno modo de produção" (SWEEZY, 1977, p. 60).

Tese de Sweezy: O economista norte-americano defende que o fator central para a dissolução do Feudalismo e a ascensão do Capitalismo foi a expansão comercial ocorrida entre os séculos XI e XIV, um elemento externo a esse sistema. Essa expansão do comércio impulsionou a produção para a troca, em oposição a produção feudal voltada para o uso. O comércio estimulou o surgimento das cidades, que se tornaram pólos de produção racionalizada e de atração para os servos do campo.

Tese de Dobb: Para o economista inglês Dobb, o fator central da desintegração do Feudalismo foi interno, sendo a pressão dos senhores sobre os servos e os conflitos de classe entre dominadores e dominados suas principais causas.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

Monthly Review
Spartacus Educational

sábado, 6 de maio de 2017

História da América: Análise de documento

Ritual de sacrifício asteca retratado no Codex Magliabechiano (circa 1570).

Trecho de Historia de los indios de Nueva España, de Frei Toríbio Motolinía

Tratado primeiro, capítulo VI – Da festa chamada panquezalizti, e dos sacrifícios e homicídios que nela se faziam; e como tiravam os corações e os ofereciam, e depois comiam os que sacrificavam.

[...]Naqueles dias dos meses acima ditos, em um deles que se chamava panquezalizthi, que era o décimo quarto, o qual era dedicado aos deuses do México, principalmente a dois deles que se diziam ser irmãos e deuses da guerra, poderosos para matar e destruir, vencer e sujeitar; pois neste dia, como páscoa ou festa muito importante, se faziam muitos sacrifícios de sangue, tanto das orelhas como da língua, sendo isso muito comum; outros se sacrificavam dos braços e peitos e outras partes do corpo; mas porque nisto de arrancar um pouco de sangue para lançar nos ídolos, como quem derrama água benta com os dedos , ou jogar o sangue em alguns papéis e oferecê-los das orelhas e da língua era comum a todos em todas as partes; mas das outras partes do corpo cada província tinha o seu costume; uns dos braços, outros dos peitos, e através desses sinais se reconhecia de que províncias eram. Além destes e de outros sacrifícios e cerimônias, eles sacrificavam e matavam muitos da maneira que aqui direi.

Tinham uma pedra grande, de uma braçada de comprimento, e quase um palmo e meio de largura, e um bom palmo de grossura ou de espessura. Metade desta pedra estava enterrada na terra, no alto, em cima dos degraus, diante do altar dos ídolos. Nessa pedra estendiam os desventurados de costas, para os sacrificar, com o peito muito tenso, porque tinham atados os pés e as mãos, e o principal sacerdote dos ídolos e seu lugar-tenente, que eram os que mais comumente sacrificavam, e se algumas vezes haviam muitos a serem sacrificados e estes se cansassem, entravam outros que já eram hábeis no sacrifício e , prontamente, com uma pedra de pedernal com que tiram faíscas, desta pedra faz-se uma grande navalha como ferro de lança, não muito afiada; digo isto porque muitos pensam que eram daquelas navalhas de pedra negra, que há nesta terra, e as fazem com o corte tão fino quanto o de uma navalha, e corta tão docemente como navalha, que logo abrem fendas: com aquela cruel navalha grande, como o peito estava tão tenso, com muita força abriam o desventurado e prontamente lhe tiravam o coração, e o oficial desta maldade jogava o coração em cima do umbral do altar na parte de fora, e ali deixava feita uma mancha de sangue; e caído o coração, ele ainda se mexia um pouco na terra, e logo o colocavam em uma tigela diante do altar. Outras vezes, pegavam o coração e levantavam-no em direção ao sol, e às vezes untavam os lábios dos ídolos com o sangue. Às vezes, os ministros velhos comiam os corações; outras, enterravam-no e logo pegavam o corpo e o jogavam rolando escada abaixo; e chegando embaixo, se o corpo era dos presos de guerra, o que o prendeu, com seus amigos e parentes, levavam-no e preparavam aquela carne humana com outras comidas, e em outro dia faziam festa e o comiam ; o mesmo que o prendeu, se tinha como o fazer, dava naquele dia mantos a seus convidados; e se o sacrificado era escravo, não o jogavam a rodar, mas sim o desciam nos braços, e faziam a mesma festa e convite que ao preso de guerra, ainda que não tanto com o escravo...Quanto aos corações dos que sacrificavam, digo: que após tirar o coração do sacrificado, aquele sacerdote do demônio tomava o coração em suas mãos e o levantava como quem o mostra ao sol, e logo voltava a fazer o mesmo ao ídolo, e o colocava diante de um vaso de madeira pintada, maior que uma tigela, e em outro vaso colhia o sangue e o davam como que de comer ao ídolo principal...

Em outros dias daqueles já nomeados se sacrificavam muitos, ainda que não tanto como na festa já dita; e ninguém pense que nenhum dos que sacrificavam matando-lhes e tirando-lhes coração, ou qualquer outra morte, que não era de sua própria vontade, mas sim à força, e sentiam muito a morte e sua espantosa dor. Os outros sacrifícios de tirar sangue das orelhas ou língua, ou de outras partes, estes eram voluntários quase sempre. Daqueles que assim sacrificavam, tiravam a pele de alguns, em umas partes, dois ou três, em outras, quatro ou cinco, em outras, dez, e no México até doze ou quinze, e vestiam aqueles couros, que pelas costas e em cima dos ombros, deixavam abertos, e vestido o mais justo que podiam, como quem veste colete e calças, dançavam com aquela cruel e espantosa vestimenta; e como todos os sacrificados ou eram escravos ou prisioneiros de guerra, no México, para este dia, guardavam algum prisioneiro de guerra que fosse senhor ou pessoa importante e, a este, esfolavam para vestir o couro dele no grande senhor do México, o qual, vestido com aquele couro, dançava com muita solenidade, pensando que fazia grande serviço ao demônio que naquele dia honravam; e a isto muitos iam ver com grande maravilha porque nos outros povoados não se vestiam os senhores com os couros dos esfolados, mas outros principais. Outro dia, de outra festa, em cada parte sacrificavam uma mulher, e esfolavam-na, e alguém se vestia com o couro dela e dançava com todos os outros do povo; aquele vestido com o couro da mulher e os outros com suas plumagens.

Havia outro dia em que faziam festa ao deus da água. Antes que este dia chegasse, vinte ou trinta dias, compravam um escravo e uma escrava e os faziam morar juntos como casados; e chegado o dia da festa, vestiam o escravo com as roupas e insígnias daquele deus, e a escrava com as da deusa, mulher daquele deus, e assim vestidos dançavam todo aquele dia até à meia-noite quando os sacrificavam; e a estes não os comiam, mas sim os deixavam em uma cova como um depósito que para isto tinham.

(FERNANDES, Luis E. de Oliveira. “Motolinía: o choque espiritual no Novo Mundo”, Ideias: Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Unicamp, ano 11, vol. 1, 2004)


Frei Toríbio de Benavente

Frei Toríbio de Benavente, alcunhado ‘Motolinía”, o pobre, nasceu no final do século XV. Era, portanto, um homem que viveu em um contexto de Renascimento cultural e disputas religiosas. Veio para a Nova Espanha como religioso franciscano, atuando no projeto espanhol de colonização. Sendo um homem do Renascimento e do mundo religioso, tinha conhecimentos de Filosofia e Teologia, o que leva Leandro Karnal a classificá-lo como um autor que transitava entre o intelectual e o religioso. Dentro dessa perspectiva, estava inserido no projeto colonial como um agente que utilizava a cultura como um mecanismo da colonização nativa, de forma que fossem eliminadas práticas e alterados comportamentos que não fosse de encontro com a ordem colonizadora. O texto estudado em questão, Tratado primeiro, capítulo VI – Da festa chamada panquezalizti, e dos sacrifícios e homicídios que nela se faziam; e como tiravam os corações e os ofereciam, e depois comiam os que sacrificavam, foi produzido na segunda metade do século XVI, entre 1540 e 1550. É válido salientar que, além de Toríbio ser um homem de um contexto de Renascimento, ele também vinha de uma Europa cujas estruturas políticas, sociais e urbanas ainda guardavam fortes traços medievais, traços esses fortemente influenciadores nas mentalidades de homens e mulheres. Não é exagero afirmar que a Igreja que veio para a América era medieval, igreja essa que reproduziria no território conquistado doutrinação, conversão e controle através do aparelho religioso. Santo Santiago Matamoros, terror dos ‘sarracenos’ durante a reconquista da Península Ibérica (1492), é transformado em Santiago Mataindios na América, isso em um curto intervalo de tempo entre um processo puramente medieval e outro da era ‘moderna’. O local e os inimigos eram outros, mas a ideia era a mesma: conquistar. Toríbio é um dos vários agentes do processo de introdução dos nativos em uma ordem a eles imposta.

Sobre alteridade e síntese de ideias

Alteridade, a questão do outro, como escreveu Todorov no clássico Conquista da América: a questão do outro (1983). Frei Toríbio escreveu etnograficamente sobre os índios da Nova Espanha, impregnado de uma visão de mundo religiosa. Nesse texto, é possível identificar alguns elementos de uma escrita de alteridade. No início, Toríbio inicia sua narrativa como um tradicional cronista religioso e etnográfico, destacando as principais características das festividades nativas e comparando-as com festejos cristãos. Seria essa alguma tentativa de encontrar semelhanças, mesmo que mínimas, entre duas realidades distintas? Ou apenas um parâmetro eurocêntrico? Aos poucos, alguns termos e observações vão dando o tom de uma narrativa que tem por objetivo, além da documentação, depreciar determinadas práticas. A pessoa que realiza o sacrifício é chamado de “oficial do diabo”. Os deuses eram nomeados “ídolos”, que faz remeter ao “terrível pecado da idolatria”. Outro agente do processo de sacrifício é chamado de “sacerdote do demônio”, numa clássica oposição entre o bem (colonizador, Cristianismo) e o mal (nativo, práticas pagãs). Toríbio dá ênfase que, para o sacrificado, o processo “não era de sua própria vontade, mas sim à força”, e que este “sentia muito a morte e sua espantosa dor”. Os adereços utilizados nos ritos (feitos de pele humana) também eram vistos como cruéis e espantosos. Outra forma de se referir aos deuses ou ídolos era por “demônios”, os quais eram honrados pelos indígenas. Dessa forma, Toríbio buscava em sua escrita etnográfica um meio para facilitar o processo evangelizador. Sua crônica é religiosa e etnográfica, intelectual e eclesiástica, descritiva e crítica. Essas passagens escolhidas para falar sobre uma escrita de alteridade, nos permitem entender a mentalidade por trás conquista.

O título do trabalho de onde foi retirado esse texto, Motolinía: o choque espiritual no Novo Mundo, já nos direciona para uma discussão de caráter cultural. Portanto, esse texto do século XVI, amparado por outras fontes de caráter seriado e quantitativo, nos permite, através de sua problematização, identificar elementos do contexto do processo de colonização da América, seus mecanismos e as mentalidades de seus agentes.

domingo, 16 de abril de 2017

Heródoto e Tucídides: Uma breve apreciação crítica

Heródoto e Tucídides, representantes de dois momentos da historiografia helênica.

O presente texto não é de minha autoria, mas uma apreciação crítica sobre as obras de Heródoto e Tucídides feita por Vítor de Azevedo em 1964, para o prefácio da tradução da História de Heródoto.

HERÓDOTO E TUCÍDIDES

Heródoto, vendo em todas as coisas humanas o efeito e a influência do "demonium", revela tendência inteiramente diversas das de um historiógrafo moderno, que coloque os acontecimentos sob a dependência de fatores naturais e econômicos. Coexistem em sua personalidade, juntamente com o cronista atento e minucioso, um teólogo e um poeta. É o que decorre do exame de sua obra. Esta não se limita a explanar o que a experiência ensina, mas também realiza incursões mais ou menos frequentes no extraordinário e no maravilhoso. "A este respeito - comenta o já citado Carlos Otfrido Müller - a obra de Heródoto peca por monotonia: os grandes acontecimentos que narra, as empresas gigantescas dos príncipes, as veleidades da fortuna, as vicissitudes milagrosas, quadram perfeitamente à descrição de estupendos edifícios e outros monumentos portentosos do Oriente, de vários e não raro estranhos costumes de povos, de fenômenos surpreendentes, de produtos e animais raros de remotas comarcas".

Contudo, o mesmo autor abunda nas mesmas advertências de Rawlinson. Ninguém poderá negar que nestes relatos, em que Heródoto endossa coisas que não lhe fora dado ver em suas viagens, foi levado a equívocos pelos informes dos sábios, intérpretes e guias. Mas força é convir que sem essas concessões à mentalidade própria do mundo oriental - tão diferente da brilhante exatidão do mundo helênico - Heródoto não nos teria transmitido grande número de dados preciosos. Nestes, apesar de seu revestimento fantástico, a ciência moderna tem descoberto um bom fundo de verdade. Viajantes, naturalistas, geógrafos e etnógrafos já puderam verificar com surpresa a objetividade de muitas notícias e observações contidas em elocubrações aparentemente fabulosas do velho narrador.

Nascido sob o domínio persa, e numa cidade da Ásia Menor, compreende-se que a sua personalidade participe igualmente - numa mescla que a rigor resume toda uma fase importante do desenvolvimento da civilização antiga - de duas mentalidades fisionomicamente tão diversas, quais sejam a grega e a oriental. De todos os escritores helênicos, é o que mais se assemelha ao tipo asiático por suas tendências e por seu estilo. Não raro, os seus raciocínios e expressões recordam o Antigo Testamento... Por outro lado, coloca na boca dos príncipes do Oriente, em determinadas passagens, ideias que só poderiam germinar no solo da Grécia. Está neste caso, por exemplo, a exaltação da democracia que um deles faz, embora os Persas não conhecessem esse sistema de governo. Há muita ingenuidade no encadear de anedotas e fábulas, mediante as quais pretende explicar muitas medidas políticas, maneira que não corresponde, por exemplo, ao tipo mental de Tucídides.

Aqui chegamos à bifurcação de duas idades. Com Tucídides a historiografia grega se desprende das roupagens características dos logógrafos jônicos, de que Heródoto foi sem dúvida a figura culminante. Mas note-se que tínhamos na nova e ilustre individualidade um ateniense legítimo, nascido no demo de Alimonta, nove anos depois da batalha de Salamina. Os trabalhos de Tucídides derivaram diretamente da tribuna pública, das assembleias políticas e dos tribunais de justiça da Grécia. O "demonium", como causa determinante dos fatos históricos, rola de suas alturas. Em seu lugar se encastela a "ação humana", como resultado do caráter e da situação do indivíduo. A sua temática se prende diretamente ao grande litígio em que são partes das Repúblicas beligerantes, que tem como objeto de disputa a questão candente da hegemonia de Atenas.

Com Tucídides, longe ainda estava a historiografia de atingir as bases científicas do materialismo dialético. Mas de certa maneira ele foi uma antecipação primária da obra que, nesse terreno, a crítica realizou com as descobertas científicas do século XIX e com os largos materiais acumulados, ao longo dos séculos, os quais permitiram o critério de cotejo e o espírito de síntese.  A concepção do mundo característica de Tucídides ainda é primitiva, idealista, mas já não fantástica.

Não sem razão, alguns comentadores apontam em Heródoto as qualidades do "romântico", e em Tucídides a configuração do "realista". Mas como aconteceu em outras épocas da humanidade e outros setores da produção intelectual, essa diferença não decorria apenas do temperamento de cada um dos dois historiadores, que a tradição pretende tenham sido amigos em Atenas. Se o primeiro representa uma fase de transição, o segundo já resultou de transformações largamente sedimentadas na evolução do povo helênico. Tucídides é bem o fruto do "século de Péricles", que deu Antífon, na eloquência, Dâmon, na música, Fídias, na escultura, Protágoras, o sutil e ardiloso polemista, Zeno, o inventor da lógica, Cratinos, que sabia temperar o seu sarcasmo com a jovialidade, Eurípedes, o mestre do "pathos", e o mais clássico dos antigos, Sófocles, que elevou a tragédia grega a alturas culminantes.

Mas as restrições que, desta comparação crítica, possam desfavorecer o velho Heródoto, são mais aparentes do que reais. Não se podem exigir de um pioneiro as realizações dos que apareçam depois, montados nos seus ombros, como continuadores de sua obra. Para compreender-se melhor a importância relativa de Heródoto urge que o situemos com mais rigor, comparando-o não tanto com os que o sucederam, mas com os que o antecederam. Só então emergirá da crítica a ideia exata do papel que representou na evolução da historiografia.

VÍTOR DE AZEVEDO, prefácio de História, 1964, p. XXI-XXII

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

A atual Decadência da Civilização Ocidental

Massacre dos Inocentes, de Peter Paul Rubens (1611-1612)

Vamos imaginar o Ocidente como uma grande casa, imponente e bem construída. Toda construção de porte elevado se sustenta em sólidos pilares, construídos com materiais resistentes. Essa não é uma construção erguida de um dia para o outro. Ela levou milhares de anos para ser concluída, através de sacrifícios humanos e da formulação de fundamentos morais e éticos duradouros. Uma casa é feita para abrigar pessoas. Imaginemos, agora, que essas pessoas estão, aos poucos, destruindo sua proteção maior, desde a base até o teto. O resultado trágico será a queda da casa e o abandono/morte de seus moradores.

Com essa breve analogia, inicio aqui uma crítica à atual situação do Ocidente, que posso chamar de Decadência da Civilização Ocidental. A crítica irá levar em conta cenas que vemos se tornar cada vez mais frequentes: a perda do valor da vida; a destruição de valores morais e éticos; a ambição pelo poder político dentro das instituições públicas e privadas; o desinteresse pelas artes, leituras e reflexões críticas; o desrespeito aos mais velhos e às pessoas em geral, a destruição de instituições milenares que, mesmo com seus excessos durante a história, sustentam o Ocidente; e o ataque às liberdades individuais. Sabemos da importância e dos benefícios que a manutenção de fundamentos e instituições trazem para diferentes culturas. Não é atoa que temos uma História de mais de 2000 mil anos. O texto poderia ser intitulado A Decadência da Humanidade, mas, como faço parte do Mundo Ocidental, detentor de conhecimento de causa, prefiro não "opinar" em outras regiões do globo, que merecem ter suas particularidades culturais, políticas e econômicas respeitadas.

Por onde começar? Por dois dos pilares mais importantes e sólidos de qualquer civilização: suas manifestações culturais e religiosas. Não temos mais o ócio criativo do qual nossos antepassados desfrutavam. Temos apenas o ócio. Leituras densas e de qualidade ficam de lado, sendo preferíveis leituras rasas, fórmulas prontas, soluções imediatas. Nos tornamos mais sensíveis em relação ao conteúdo de obras e às verdades nuas e cruas do mundo. Recentemente, alunos da prestigiada universidade de Columbia, nos Estados Unidos, pediram a proibição de obras de autores clássicos como Hesíodo, Aristófanes e Ovídio, por abordarem temas como sexualidade, morte, violência e religião. A atual geração se tornou infantil, sem preparo para a dura realidade que é o mundo, realidade essa estudada e declamada pelos autores antigos.

O Cristianismo, sem dúvidas, teve e ainda tem um papel crucial na construção do Ocidente. Só em pensarmos nas Grandes Navegações da Idade Moderna, nas Universidades nascidas no seio das catedrais medievais e na criação do Método Científico, pelas mãos do monge Roger Bacon, vemos como a cristandade é um pilar a ser preservado. Devemos, claro, aprender a separar e reconhecer os pontos positivos e negativos de uma instituição como a Igreja de Roma, uma criação humana, passível de erros. Observamos, nos dias de hoje, como cresce, seja por interesses políticos ou ideológicos, o desejo por apagar as contribuições do Cristianismo na formação da Civilização Ocidental, seja por pessoas sem religião ou de outras crenças. A destruição desse legado teria um resultado desastroso do ponto de vista histórico. Obs: não sigo uma religião e nem tenho crenças em uma ou mais divindades, mas sei reconhecer e dar os devidos créditos para bons trabalhos. Isso lembra uma frase do meu professor de Historiografia Geral: Mesmo com todos os erros do passado, em suas instituições, o Ocidente ainda consegue, diferente de outras regiões, garantir a liberdade de pensamento para seus habitantes. O Cristianismo, para o Ocidente, é outro pilar que deve ser protegido.

O homem foi percebendo, ao passar dos milênios, seja através da auto reflexão ou da contenção dada pela religião, que tirar a vida de seu semelhante é errado. Apenas em guerras, quando sua própria vida está em jogo, é que a defesa se torna necessária. Ainda assim, com tantos ensinamentos morais e éticos, leis, punições severas e privações de liberdade, a vida, a deriva em um mar de subjetividade, é jogada em uma lata de lixo como uma simples embalagem. Como impedir que ela, um bem único, sem retorno quando retirado, não seja descartada?. Uma solução prática não existe: Em conversa com o historiador amazonense Coronel Roberto Mendonça, ele relatou que, durante sua juventude, as pessoas temiam duas instituições e suas figuras: O padre, autoridade religiosa; e o delegado, autoridade civil. Em síntese, o medo seria a fronteira que impediria o homem de cometer crimes, seja por causa da punição temporal ou por causa da punição espiritual.

O poeta romano Petrônio, em sua obra Satíricon (século I d. C.), exclamou: "Que podem as leis se o ouro é o senhor absoluto? E se a pobreza jamais consegue triunfar? E até mesmo aqueles que ostentam o magro alforje dos Cínicos, muitas vezes por belas moedas negociam a verdade. É, pois, um negócio o austero e civil tribunal, e o juiz não faz senão assinar o contrato". Uma denuncia do século I de nossa era parece ser capa de um jornal dos dias atuais. A busca por riquezas e poder avança sem freios dentro das instituições públicas e privadas. Escândalos em monarquias na Europa, em governos na América Latina e em instituições privadas nos fazem repensar na política que vem sendo aplicada no Ocidente. As partes interessadas nas facilidades oferecidas pelo Estado se valem de partidarismos e ideologias, que acabam cegando a coletividade, que prefere defender apenas um lado e esquece que o grupo que lhe rouba é bastante organizado. A política no Ocidente é um pilar que já deveria ter sido demolido e reconstruído, mas por favorecer certos interesses, continua o mesmo.

A formação de uma família, seja ela tradicional ou moderna, patriarcal, nuclear ou matriarcal, deve ser pautada em princípios como a cumplicidade e o respeito entre seus membros. A família Ocidental sobreviveu através de uma hierarquia, no qual os ensinamentos das gerações passadas é transmitido através das palavras dos mais velhos. Infelizmente, temos jovens que bradam por mais direitos e espaço dentre dessa unidade social doméstica, e esquecem de seus deveres. Uma família bem estruturada, sadia, com o cumprimento, entre seus membros, de direitos e deveres, é mais um pilar a ser mantido para o bom andamento e perpetuação da Civilização Ocidental.

O Ocidente vem passando por profundas transformações. Seus valores vem sendo abalados diariamente, seja por acomodação da população, cega por partidarismo, conivência ou ideologia; e pela nocividade que se instalou em suas instituições mais importantes. Nós, habitantes dessa parte do mundo, seja na Europa ou em alguma antiga colônia na América do Sul, Caribe e América do Norte, percebemos como esses abalos estão se tornando cada vez mais negativos. A manutenção e proteção dos pilares Cristianismo, Família, Propriedade, Moral e Ética, Respeito, Cultura e Liberdade permite a sustentação, como foi dito na introdução, de nossa moradia (o Ocidente).

Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos - Euclides da Cunha.



CRÉDITO DA IMAGEM:

commons.wikimedia.org

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Um olhar sobre o século 21



1997, ano do meu nascimento e final do século 20. Com quatro anos, assisti pela televisão, um dos atentados mais marcantes da História: em 11 de setembro de 2001, dois aviões foram lançados por terroristas islâmicos nas duas torres do World Trade Center; um terceiro avião no Pentágono; e um quarto no Estado da Pensilvânia. Morreram cerca de 2977 pessoas, entre funcionários do WTC, passageiros dos aviões sequestrados, funcionários do Pentágono e bombeiros que socorriam as vítimas. A Guerra Santa (Jihad) promovida por radicais islâmicos; o preconceito religioso e étnico contra os árabes, gerado pelo trauma da sociedade americana; e a Guerra ao Terror, investida militar americana contra o terrorismo, marcada pela invasão do Iraque e Afeganistão. Ao meu ver, assim começava o século 21, de forma conturbada e marcado pela guerra.

A primeira resposta dos Estados Unidos ao atentado de 2001 foi a Guerra do Afeganistão, na qual forças americanas, apoiadas pela Força Islâmica Unida e países como a França e Reino Unido, visavam a captura do terrorista Osama bin Laden e outros membros da Al Qaeda e por um fim no regime Talibã. Em 2011 bin Laden foi capturado e morto. Os Estados Unidos, no entanto, tiveram grandes baixas e altos gastos.

Em 2002, os Estados Unidos, sob o comando do presidente George W. Bush, acusavam o Iraque de possuir um poderoso arsenal de armas de destruição em massa. Não só o Iraque, mas também o Irã e a Coréia do Norte, que, nas palavras do presidente, formavam o "Eixo do Mal". Os Estados Unidos estavam planejando invadir o país caso a ONU não tomasse medidas drásticas. A Organização investigou o Iraque, mas não foram encontradas provas a favor da acusação americana. Contrariando a ONU, Os Estados Unidos, com o apoio da Grã-Bretanha, invadiu o Iraque em 2003 e, no mesmo ano, conquistou a capital Bagdá. Mais tarde, ONU legitimou a presença anglo-americana no território. O ditador Saddam Hussein foi capturado em 2003 e condenado por cometer crimes de guerra. Foi enforcado em 2006. Terminada a guerra, com um saldo de 100 mil civis mortos, as forças anglo-americanas não conseguiram provar a presença de armas de destruição em massa no Iraque.

Sabe-se que, além de justificativas militares e investidas contra o terrorismo, os Estados Unidos tinham interesses econômicos, pois o Iraque é rico em reservas de petróleo. O brasileiro Sérgio Vieira de Mello, funcionário da ONU e Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Unidos - e outros 14 funcionários da organização, foram mortos em um atentado em Bagdá, atribuído à Al Qaeda.

A economia mundial também mostrou que era propensa à grandes crises como a que se iniciou em 2008. Depois dos atentados de 11 de setembro, os Estados Unidos passaram a investir maciçamente em material bélico e também estavam importando mais do que exportavam. Com a economia fragilizada e recebendo ajuda financeira do exterior, o governo americano reduziu os juros numa tentativa de incentivar o consumo. Milhões de americanos, alguns considerados de risco (nome sujo), financiaram a compra de imóveis. A situação econômica foi piorando, a inflação aumentou, e os juros tiveram que ser aumentados pelo governo. Os financiamentos, muitas vezes, tinham juros variáveis, fazendo com que pessoas que financiaram com juro baixo tivessem que pagar um juro mais alto.

As pessoas que fizeram os empréstimos ficaram sem condições de pagá-los, o que gerou um efeito dominó: sem o pagamento dos empréstimos, as casas financiadoras ficaram sem dinheiro para pagar os bancos. Em pouco tempo, a Bolsa de Valores foi atingida. Igual a Crise de 1929, os países que mantinham relações econômicas com os Estados Unidos também tiveram suas economias atingidas. Aumento de juros bancários e queda de bolsas se tornaram frequentes na vida desses países.

Neste século, a internet, o celular, computadores multi-uso, DVDs e produtos de última geração estão cada vez mais presentes em nosso cotidiano. Além desses avanços, a descoberta de novos planetas, a maioria deles em condições de abrigar vida;  o Projeto Genoma, criado para desvendar o código genético dos organismos; e melhorias na Medicina e em tratamentos, são avanços técnicos que permitem o intercâmbio de conhecimentos e o aumento da expectativa de vida.

Uma Primavera jamais vista atingiu o Norte da África e o Oriente Médio. Era a Primavera Árabe, uma onda de revoluções e protestos contra governos corruptos e autoritários e a favor de melhores condições de vida. Os primeiros protestos começaram na Tunísia em 2010, e terminaram vitoriosos em 2011, com a deposição do ditador Abidine Ben Ali, que estava no poder desde 1987. A vitória tunisiana influenciou a Líbia, o Egito, a Argélia, a Síria, o Barhein, o Marrocos, o Iêmen, a Jordânia e Omã. Além do governo da Tunísia, também foram derrubados os da Líbia, Egito e Iêmen.

O Brasil ficou marcado pelos Protestos de Junho de 2013. A redes sociais se mostraram poderosos mecanismos de mobilização popular. Mais de 430 cidades, capitais ou interioranas, estiveram envolvidas nesse evento. As causas que motivaram as manifestações foram várias: aumento da tarifa do transporte público; PEC 137, projeto de lei que, se fosse oficializado, tiraria do Ministério Público o poder de investigar crimes; Repressão policial; e gastos vultosos em obras e eventos esportivos. Em meio aos manifestantes que queriam mudanças na "ordem" vigente, existiam pessoas que agiam de forma violenta, depredando o patrimônio público, agredindo pessoas e envolvendo na causa o partidarismo político. Terminados os protestos em julho de 2013, algumas medidas foram tomadas pelos governantes: redução da tarifa do transporte público; Aprovaram o projeto de lei que tornava a corrupção um crime hediondo; e arquivaram a PEC 137.

Século 21. Em um curto espaço de tempo já presenciamos momentos que entraram para a História. Avanços tecnológicos, guerras, invasões de territórios, embates entre Esquerda e Direita, enfraquecimento das religiões dominantes e ascensão de outras, manifestações no Brasil e disputas por territórios. Todos esses eventos em menos de duas décadas. Até 2100, nos surpreenderemos com nossos próprios atos, tanto para o bem quanto para o mal.



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terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Memória Afetiva da Cidade

CIDADE DA MEMÓRIA 

1° semestre de 2002

Por Otoni Moreira de Mesquita

Vista aérea do Centro de Manaus, 1960.

Ainda que aparentemente mergulhado em devaneio nostálgico, justifico esse meu passeio afetivo por uma cidade que mistura o vivido ao imaginado, e ainda que estejamos em outra época acredito ser possível compartilhar, mesmo com aqueles de memória mais recente. Não é preciso ter vivido aquele momento para encantar-se com seus elementos. Senão que validade teria fazer História e como explicaríamos o despertar das paixões pelas antigas civilizações; interesse pelas outras culturas, de que valeriam as reflexões que tentam, mas nem sempre evitam a repetição das mesmas ações equivocadas.

Mas o que me interessa nesse momento, é discutir que elementos despertam o interesse e encantam a imaginação, mantendo em nós a história uma coisa viva. Certamente não são as repetições de datas e nomes dos pontos decorados no grupo escolar. Penso que deve existir um momento ou um ato capaz de atiçar a fantasia e a memória, algo presente no ato de contar a história. Seria a narrativa em si, “o como”, apenas uma questão de talento que pode ser aperfeiçoado, ou algo natural e especial na postura, no timbre da voz, na sensualidade ou afeto contido gesto, não importando “o que” se conte - mentira ou verdade soam com a mesma intensidade. O certo é que há qualquer coisa que vibra e contagia, reverberando e gravado em nossa película interna. Por outro lado, penso que a imaginação é algo em nós guardado, como asas que ao receber um sopro qualquer ganham impulso e podem fazer voar.

Hoje, mesmo a academia, tende a escapar daquela história de narrativa insípida e fria, insossa para digerir, estimulando outras abordagens. A Nova História abre-se num grande leque de possibilidades: são as micros histórias, as questões regionais, situações que se restringiram a pequenos grupos locais e nem por isso deixaram de refletir o todo de uma realidade. A história oral com seus sons e tons, e as imagens trazendo momentos e personagens que já se foram. As idéias, as técnicas, a política. Indo ao tempo remoto ou vindo ao momento recente, tudo pode ser relevante. E como são tantas as lacunas, penso ser urgente recuperar tudo que nos for possível, os mais diversos aspectos da história da nossa cidade, mesmo que recente ou pessoal não importa. Ainda que pequena e aparentemente banal poderá ser algo vibrante e original. O tempo é como um grande incêndio, passa devorando tudo que não fica protegido, não basta reter em nossas memória, é preciso compartilhar, deixando para o futuro.
            
Penso assim por lembrar de significativos momentos passados no 4o ano primário, quando a professora Aurelina, uma gaúcha de longa trança negra nos fazia cantar: o “terra dos Barés, dos igarapés...”, falava dos rios colossais, contava do ciclo áureo da borracha, mostrando diferentes aspectos da cidade, lembrando da riqueza marcada na fachada dos prédios antigos; da instalação da eletricidade e dos bondes como uma novidade que chegou à poucas cidades.

Aqueles momentos não desbotaram, ficaram em mim gravado, e penso que modelaram uma espécie de arquétipo da cidade que fui construindo, misturando ao vivido e ao imaginado. Desde então, carrego e monto uma cidade cuja matéria, pode não corresponder precisamente à verdade que temos na razão. Nesse espaço abstrato, que é bem a cara da gente, guarda-se de tudo, coleções de pequeninos fatos, assim como fragmentos e traços do material. Arquivos que retém o cheiro da chuva no barro, o gosto das suculentas  pitanga do cemitério, o canto triste das cigarras nas pitombeiras do fim do dia. Não é um cenário que pode ser desmontado, ou somente uma montagem de diferentes temporalidades, nem esquema, nem réplica da cidade, são apenas representações, e mesmo que apontem para diferentes direções, funcionam como bússola a nos guiar.

Penso que a lembrança desse fato pode remeter diretamente ao papel assumido pelas narrativas na construção e permanência de mitos e heróis. Ciclicamente eles necessitam ser rememorados, remontados, ganham corpo e vontade, dando sentido à existência, sustentando e fortalecendo a cultura que os gerou. Caso contrário serão apagados e esquecidos como qualquer mortal. Parece-me que somente na circularidade do sistema adotado são capazes de existir essas entidades. Como aplicar isso à cidade? Será que apenas nossas imagens colecionadas e meia dúzia de significados são suficientes para dar sentido e manter viva a alma da cidade?


Otoni Moreira Mesquita nasceu em Autazes-AM, em 27 de junho de 1953. É artista plástico e professor da Universidade Federal do Amazonas. Formado em jornalismo (1979 - UFAM) e em Gravura (1983 - Escola de Belas Artes - UFRJ). É mestre em Artes Visuais e História e Crítica da Arte (1992 - UFRJ). De março de 1997 a dezembro de 1998, atuou como coordenador do Patrimônio Histórico, da Secretaria de Cultura e Estudos Amazônicos. É doutorado em História Social pela UFF, concluido em 2005 com o trabalho O Mito de progresso na refundaçao da cidade de Manaus: 1890/ 1900. Livros publicados: La Belle Vitrine: Manaus entre dois tempos - 1890/1900 (2009) e Manaus: História e arquitetura - 1852/1910 (3 edições. 1997, 1999 e 2006).







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