Grupo escultórico da tumba de Santo Inácio de Loyola, em Roma.
O texto a seguir foi originalmente publicado na revista O Cruzeiro em 1964 pelo sociólogo e ensaísta Gilberto Freyre (1900-1987). Nele o autor analisa as representações da arte sacra na África e no Oriente, as formas como as figuras (Santos, Cristos, Nossas Senhoras) são produzidas nessas duas regiões, influenciadas pela cultura local que lhes confere novas formas e significados.
SOCIOLOGIA DA ARTE
Interessante será o estudo do nôvo tratamento artístico que a rêde, levada pelo português do Brasil para a África, recebeu de mãos africanas, como interessante é observar-se como certas formas cristãs de arte, ligadas aos símbolos máximos do Catolicismo, receberam, ou vêm recebendo, no Oriente e na África, um tratamento artístico através do qual se nota a tendência para essas formas se harmonizarem com artes tradicionalmente ligadas à vida, à cultura, à ecologia orientais e africanas. Viajando pelo Oriente e pela África, minha atenção fixou-se em vários desses casos de transculturação.
No Convento de São Francisco de Assis, de Goa, quando lá estive em 1959, mostrou-me o Cônego Costa, no museu lapidário, um conjunto de esculturas cuja base é uma figura nua de feitio oriental, sôbre a qual se apóia a Família Sagrada vestida. Vi um altar indonésio no qual só o símbolo da cruz é, como arte simbólica, adventício: tudo o mais é arte oriental antiga, adaptada a uma nova função. O mesmo é certo de alguns dos paramentos de culto católico, bordados a ouro, que vi na basílica da chamada Velha Goa, com arabescos orientais decorando símbolos católicos.
O que, entretanto, me impressionou particularmente foi o gôsto, da parte de artistas africanos e orientais, em tratarem o Cristo crucificado como um Deus ostensivamente nu ou de tanga, identificado mais com êles, homens, em sua maioria, nus ou de tanga do que com os europeus ou ocidentais, tantas vêzes opressores de nativos ou de gente de côr. O que se nota também num Cristo do Amazonas, admiràvelmente ecológico, que figurou na exposição de Arte Sacra de Lisboa, em 1951.
O mesmo se nota numa Nossa Senhora esculpida em Timor, que vi na mesma exposição: nua da cintura para cima, com o Menino Jesus nu nos braços. Vêem-se no Oriente numerosos santos católicos, de marfim, esculpidos por artistas orientais, em trajos orientais; e até Nossas Senhoras, como a indo-portuguêsa do século XVII, pertencente ao Conde de Nova Goa, surgem-nos em trajos orientais e com o aspecto de mulheres do Oriente.
Diante dessa tendência, saudàvelmente Cristã, da parte de artistas orientais e africanos para com imagens ou símbolos de um sagrado que do plano etnocêntrico, deve ser elevado o mais possível ao cristocêntrico, é de estranhar que no Brasil, país de população em grande parte, se não mestiça, morena, artistas como certos discípulos de Mestre Cândido Portinari insistam em só pintar Cristos, Nossas Senhoras e anjos louros, ruivos, alvos, nórdicos, caucásicos. Temos, é certo, os nossos louros - tantos dêles brasileiríssimos. Êles têm direito a aparecer na nossa arte, as louras a vencer concursos de beleza, os louros a figurar entre os brasileiros mais elegantes. Nada, porém, de, na arte sacra, desprezarmos os morenos, os pardos, os prêtos, para nos fecharmos numa representação exclusivamente arianista do sagrado, como se o próprio Deus dos cristãos devesse ser sempre um Senhor alvo e louro e não um Deus ao mesmo tempo branco e prêto, alvo e moreno, louro e amarelo.
FREYRE, Gilberto. Sociologia da Arte. In: Revista O Cruzeiro, 31 de outubro de 1964, p. 95.
CRÉDITO DA IMAGEM:
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