Ritual de sacrifício asteca retratado no Codex Magliabechiano (circa 1570).
Trecho
de Historia de los indios de Nueva España,
de Frei Toríbio Motolinía
Tratado
primeiro, capítulo VI – Da festa chamada panquezalizti, e dos
sacrifícios e homicídios que nela se faziam; e como tiravam os
corações e os ofereciam, e depois comiam os que sacrificavam.
[...]Naqueles
dias dos meses acima ditos, em um deles que se chamava
panquezalizthi, que era o décimo quarto, o qual era dedicado aos
deuses do México, principalmente a dois deles que se diziam ser
irmãos e deuses da guerra, poderosos para matar e destruir, vencer e
sujeitar; pois neste dia, como páscoa ou festa muito importante, se
faziam muitos sacrifícios de sangue, tanto das orelhas como da
língua, sendo isso muito comum; outros se sacrificavam dos braços e
peitos e outras partes do corpo; mas porque nisto de arrancar um
pouco de sangue para lançar nos ídolos, como quem derrama água
benta com os dedos , ou jogar o sangue em alguns papéis e
oferecê-los das orelhas e da língua era comum a todos em todas as
partes; mas das outras partes do corpo cada província tinha o seu
costume; uns dos braços, outros dos peitos, e através desses sinais
se reconhecia de que províncias eram. Além destes e de outros
sacrifícios e cerimônias, eles sacrificavam e matavam muitos da
maneira que aqui direi.
Tinham
uma pedra grande, de uma braçada de comprimento, e quase um palmo e
meio de largura, e um bom palmo de grossura ou de espessura. Metade
desta pedra estava enterrada na terra, no alto, em cima dos degraus,
diante do altar dos ídolos. Nessa pedra estendiam os desventurados
de costas, para os sacrificar, com o peito muito tenso, porque tinham
atados os pés e as mãos, e o principal sacerdote dos ídolos e seu
lugar-tenente, que eram os que mais comumente sacrificavam, e se
algumas vezes haviam muitos a serem sacrificados e estes se
cansassem, entravam outros que já eram hábeis no sacrifício e ,
prontamente, com uma pedra de pedernal com que tiram faíscas, desta
pedra faz-se uma grande navalha como ferro de lança, não muito
afiada; digo isto porque muitos pensam que eram daquelas navalhas de
pedra negra, que há nesta terra, e as fazem com o corte tão fino
quanto o de uma navalha, e corta tão docemente como navalha, que
logo abrem fendas: com aquela cruel navalha grande, como o peito
estava tão tenso, com muita força abriam o desventurado e
prontamente lhe tiravam o coração, e o oficial desta maldade jogava
o coração em cima do umbral do altar na parte de fora, e ali
deixava feita uma mancha de sangue; e caído o coração, ele ainda
se mexia um pouco na terra, e logo o colocavam em uma tigela diante
do altar. Outras vezes, pegavam o coração e levantavam-no em
direção ao sol, e às vezes untavam os lábios dos ídolos com o
sangue. Às vezes, os ministros velhos comiam os corações; outras,
enterravam-no e logo pegavam o corpo e o jogavam rolando escada
abaixo; e chegando embaixo, se o corpo era dos presos de guerra, o
que o prendeu, com seus amigos e parentes, levavam-no e preparavam
aquela carne humana com outras comidas, e em outro dia faziam festa e
o comiam ; o mesmo que o prendeu, se tinha como o fazer, dava naquele
dia mantos a seus convidados; e se o sacrificado era escravo, não o
jogavam a rodar, mas sim o desciam nos braços, e faziam a mesma
festa e convite que ao preso de guerra, ainda que não tanto com o
escravo...Quanto aos corações dos que sacrificavam, digo: que após
tirar o coração do sacrificado, aquele sacerdote do demônio tomava
o coração em suas mãos e o levantava como quem o mostra ao sol, e
logo voltava a fazer o mesmo ao ídolo, e o colocava diante de um
vaso de madeira pintada, maior que uma tigela, e em outro vaso colhia
o sangue e o davam como que de comer ao ídolo principal...
Em
outros dias daqueles já nomeados se sacrificavam muitos, ainda que
não tanto como na festa já dita; e ninguém pense que nenhum dos
que sacrificavam matando-lhes e tirando-lhes coração, ou qualquer
outra morte, que não era de sua própria vontade, mas sim à força,
e sentiam muito a morte e sua espantosa dor. Os outros sacrifícios
de tirar sangue das orelhas ou língua, ou de outras partes, estes
eram voluntários quase sempre. Daqueles que assim sacrificavam,
tiravam a pele de alguns, em umas partes, dois ou três, em outras,
quatro ou cinco, em outras, dez, e no México até doze ou quinze, e
vestiam aqueles couros, que pelas costas e em cima dos ombros,
deixavam abertos, e vestido o mais justo que podiam, como quem veste
colete e calças, dançavam com aquela cruel e espantosa vestimenta;
e como todos os sacrificados ou eram escravos ou prisioneiros de
guerra, no México, para este dia, guardavam algum prisioneiro de
guerra que fosse senhor ou pessoa importante e, a este, esfolavam
para vestir o couro dele no grande senhor do México, o qual, vestido
com aquele couro, dançava com muita solenidade, pensando que fazia
grande serviço ao demônio que naquele dia honravam; e a isto muitos
iam ver com grande maravilha porque nos outros povoados não se
vestiam os senhores com os couros dos esfolados, mas outros
principais. Outro dia, de outra festa, em cada parte sacrificavam uma
mulher, e esfolavam-na, e alguém se vestia com o couro dela e
dançava com todos os outros do povo; aquele vestido com o couro da
mulher e os outros com suas plumagens.
Havia
outro dia em que faziam festa ao deus da água. Antes que este dia
chegasse, vinte ou trinta dias, compravam um escravo e uma escrava e
os faziam morar juntos como casados; e chegado o dia da festa,
vestiam o escravo com as roupas e insígnias daquele deus, e a
escrava com as da deusa, mulher daquele deus, e assim vestidos
dançavam todo aquele dia até à meia-noite quando os sacrificavam;
e a estes não os comiam, mas sim os deixavam em uma cova como um
depósito que para isto tinham.
(FERNANDES,
Luis E. de Oliveira. “Motolinía: o choque espiritual no Novo
Mundo”, Ideias:
Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Unicamp, ano
11, vol. 1, 2004)
Frei
Toríbio de Benavente
Frei
Toríbio de Benavente, alcunhado ‘Motolinía”, o pobre, nasceu no
final do século XV. Era, portanto, um homem que viveu em um contexto
de Renascimento cultural e disputas religiosas. Veio para a Nova
Espanha como religioso franciscano, atuando no projeto espanhol de
colonização. Sendo um homem do Renascimento e do mundo religioso,
tinha conhecimentos de Filosofia e Teologia, o que leva Leandro
Karnal a classificá-lo como um autor que transitava entre o
intelectual e o religioso. Dentro dessa perspectiva, estava inserido
no projeto colonial como um agente que utilizava a cultura como um
mecanismo da colonização nativa, de forma que fossem eliminadas
práticas e alterados comportamentos
que não fosse de encontro com a ordem colonizadora. O texto
estudado em questão, Tratado
primeiro, capítulo VI – Da festa chamada panquezalizti, e
dos sacrifícios e homicídios que nela se faziam; e como tiravam os
corações e os ofereciam, e depois comiam os que sacrificavam,
foi
produzido na segunda metade do século XVI, entre 1540 e 1550. É
válido salientar que, além de Toríbio ser um homem de um contexto
de Renascimento, ele também vinha de uma Europa cujas estruturas
políticas, sociais e urbanas ainda guardavam fortes traços
medievais, traços esses fortemente influenciadores nas mentalidades
de homens e mulheres. Não é exagero afirmar que a Igreja que veio
para a América era medieval, igreja essa que reproduziria no
território conquistado doutrinação, conversão e controle através
do aparelho religioso. Santo
Santiago Matamoros, terror dos ‘sarracenos’ durante a reconquista
da Península Ibérica (1492), é transformado em Santiago Mataindios
na América, isso em um curto intervalo de tempo entre um processo
puramente medieval e outro da era ‘moderna’. O local e os
inimigos eram outros, mas a ideia era a mesma: conquistar. Toríbio
é um dos vários agentes do
processo de introdução dos nativos em uma ordem a eles imposta.
Sobre
alteridade e síntese de ideias
Alteridade,
a questão do outro, como escreveu Todorov no clássico Conquista
da América: a questão do outro (1983).
Frei
Toríbio escreveu etnograficamente sobre os índios da Nova Espanha,
impregnado de uma visão de mundo religiosa. Nesse texto, é possível
identificar alguns elementos de uma escrita de alteridade. No início,
Toríbio inicia sua narrativa como um tradicional cronista religioso
e etnográfico, destacando as principais características das
festividades nativas e comparando-as com festejos cristãos. Seria
essa alguma tentativa de encontrar semelhanças, mesmo que mínimas,
entre duas realidades distintas? Ou apenas um parâmetro
eurocêntrico? Aos poucos, alguns termos e observações vão dando o
tom de uma narrativa que tem por objetivo, além
da documentação, depreciar determinadas práticas. A pessoa que
realiza o sacrifício é chamado de “oficial
do diabo”.
Os deuses eram nomeados “ídolos”,
que
faz remeter ao “terrível pecado da idolatria”. Outro
agente do processo de sacrifício é chamado de “sacerdote
do demônio”,
numa
clássica oposição entre o bem (colonizador, Cristianismo) e o mal
(nativo, práticas pagãs). Toríbio dá ênfase que, para o
sacrificado, o processo “não
era de sua própria vontade, mas sim à força”, e
que este “sentia
muito a morte e sua espantosa dor”.
Os
adereços utilizados nos ritos (feitos de pele humana) também eram
vistos como cruéis e espantosos. Outra forma de se referir aos
deuses ou ídolos era por “demônios”,
os quais eram honrados pelos indígenas. Dessa forma, Toríbio
buscava em sua escrita etnográfica um meio para facilitar o processo
evangelizador. Sua
crônica é religiosa e etnográfica, intelectual e eclesiástica,
descritiva e crítica. Essas passagens escolhidas para falar sobre
uma escrita de alteridade, nos permitem entender a mentalidade por
trás conquista.
O
título do trabalho de onde foi retirado esse texto, Motolinía:
o choque espiritual no Novo Mundo,
já nos direciona para uma discussão de caráter cultural. Portanto,
esse texto do século XVI, amparado por outras fontes de caráter
seriado e quantitativo, nos permite, através de sua problematização,
identificar elementos do contexto do processo de colonização da
América, seus mecanismos e as mentalidades de seus agentes.
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