Heródoto e Tucídides, representantes de dois momentos da historiografia helênica.
O presente texto não é de minha autoria, mas uma apreciação crítica sobre as obras de Heródoto e Tucídides feita por Vítor de Azevedo em 1964, para o prefácio da tradução da História de Heródoto.
HERÓDOTO E TUCÍDIDES
Heródoto, vendo em todas as coisas humanas o efeito e a influência do "demonium", revela tendência inteiramente diversas das de um historiógrafo moderno, que coloque os acontecimentos sob a dependência de fatores naturais e econômicos. Coexistem em sua personalidade, juntamente com o cronista atento e minucioso, um teólogo e um poeta. É o que decorre do exame de sua obra. Esta não se limita a explanar o que a experiência ensina, mas também realiza incursões mais ou menos frequentes no extraordinário e no maravilhoso. "A este respeito - comenta o já citado Carlos Otfrido Müller - a obra de Heródoto peca por monotonia: os grandes acontecimentos que narra, as empresas gigantescas dos príncipes, as veleidades da fortuna, as vicissitudes milagrosas, quadram perfeitamente à descrição de estupendos edifícios e outros monumentos portentosos do Oriente, de vários e não raro estranhos costumes de povos, de fenômenos surpreendentes, de produtos e animais raros de remotas comarcas".
Contudo, o mesmo autor abunda nas mesmas advertências de Rawlinson. Ninguém poderá negar que nestes relatos, em que Heródoto endossa coisas que não lhe fora dado ver em suas viagens, foi levado a equívocos pelos informes dos sábios, intérpretes e guias. Mas força é convir que sem essas concessões à mentalidade própria do mundo oriental - tão diferente da brilhante exatidão do mundo helênico - Heródoto não nos teria transmitido grande número de dados preciosos. Nestes, apesar de seu revestimento fantástico, a ciência moderna tem descoberto um bom fundo de verdade. Viajantes, naturalistas, geógrafos e etnógrafos já puderam verificar com surpresa a objetividade de muitas notícias e observações contidas em elocubrações aparentemente fabulosas do velho narrador.
Nascido sob o domínio persa, e numa cidade da Ásia Menor, compreende-se que a sua personalidade participe igualmente - numa mescla que a rigor resume toda uma fase importante do desenvolvimento da civilização antiga - de duas mentalidades fisionomicamente tão diversas, quais sejam a grega e a oriental. De todos os escritores helênicos, é o que mais se assemelha ao tipo asiático por suas tendências e por seu estilo. Não raro, os seus raciocínios e expressões recordam o Antigo Testamento... Por outro lado, coloca na boca dos príncipes do Oriente, em determinadas passagens, ideias que só poderiam germinar no solo da Grécia. Está neste caso, por exemplo, a exaltação da democracia que um deles faz, embora os Persas não conhecessem esse sistema de governo. Há muita ingenuidade no encadear de anedotas e fábulas, mediante as quais pretende explicar muitas medidas políticas, maneira que não corresponde, por exemplo, ao tipo mental de Tucídides.
Aqui chegamos à bifurcação de duas idades. Com Tucídides a historiografia grega se desprende das roupagens características dos logógrafos jônicos, de que Heródoto foi sem dúvida a figura culminante. Mas note-se que tínhamos na nova e ilustre individualidade um ateniense legítimo, nascido no demo de Alimonta, nove anos depois da batalha de Salamina. Os trabalhos de Tucídides derivaram diretamente da tribuna pública, das assembleias políticas e dos tribunais de justiça da Grécia. O "demonium", como causa determinante dos fatos históricos, rola de suas alturas. Em seu lugar se encastela a "ação humana", como resultado do caráter e da situação do indivíduo. A sua temática se prende diretamente ao grande litígio em que são partes das Repúblicas beligerantes, que tem como objeto de disputa a questão candente da hegemonia de Atenas.
Com Tucídides, longe ainda estava a historiografia de atingir as bases científicas do materialismo dialético. Mas de certa maneira ele foi uma antecipação primária da obra que, nesse terreno, a crítica realizou com as descobertas científicas do século XIX e com os largos materiais acumulados, ao longo dos séculos, os quais permitiram o critério de cotejo e o espírito de síntese. A concepção do mundo característica de Tucídides ainda é primitiva, idealista, mas já não fantástica.
Não sem razão, alguns comentadores apontam em Heródoto as qualidades do "romântico", e em Tucídides a configuração do "realista". Mas como aconteceu em outras épocas da humanidade e outros setores da produção intelectual, essa diferença não decorria apenas do temperamento de cada um dos dois historiadores, que a tradição pretende tenham sido amigos em Atenas. Se o primeiro representa uma fase de transição, o segundo já resultou de transformações largamente sedimentadas na evolução do povo helênico. Tucídides é bem o fruto do "século de Péricles", que deu Antífon, na eloquência, Dâmon, na música, Fídias, na escultura, Protágoras, o sutil e ardiloso polemista, Zeno, o inventor da lógica, Cratinos, que sabia temperar o seu sarcasmo com a jovialidade, Eurípedes, o mestre do "pathos", e o mais clássico dos antigos, Sófocles, que elevou a tragédia grega a alturas culminantes.
Mas as restrições que, desta comparação crítica, possam desfavorecer o velho Heródoto, são mais aparentes do que reais. Não se podem exigir de um pioneiro as realizações dos que apareçam depois, montados nos seus ombros, como continuadores de sua obra. Para compreender-se melhor a importância relativa de Heródoto urge que o situemos com mais rigor, comparando-o não tanto com os que o sucederam, mas com os que o antecederam. Só então emergirá da crítica a ideia exata do papel que representou na evolução da historiografia.
VÍTOR DE AZEVEDO, prefácio de História, 1964, p. XXI-XXII
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