quarta-feira, 22 de março de 2017

Caveira de burro

Rua dos Andradas. Manaus, 1987.

Mudar o nome de uma rua é um processo que envolve questões mais complexas do que se pensa, questões históricas, políticas e culturais. Uma, duas, três, quatro ou cinco décadas vivendo em uma rua, que originalmente manteve um único nome, molda o sentimento do morador, que se identifica com ele e resiste às mudanças. Mas, com uma simples “canetada”, uma decisão sem critérios pode transformar-se em um “inferno para o historiador, para o serviço postal, para todo mundo”, como escreveu Mário Ypiranga em Caveira de burro, artigo publicado em 1975 no Jornal do Comércio, no qual o folclorista e historiador critica, de forma bem-humorada e também bastante ácida, as mudanças das nomenclaturas das ruas da cidade, feitas sem nenhuma consulta prévia e com critérios duvidosos; e a urbanização da mesma.

CAVEIRA DE BURRO1

Mário Ypiranga Monteiro, 15/06/1975

Para quem como eu familiarizou-se com a história pitoresca das ruas de Manaus (Roteiro Histórico de Manaus, 1969), a alusão e a crítica a certas incongruências não mais admira. Certa feita um matutino trouxe observação oportuna do edil Damião Ribeiro à anarquia reinante na nomenclatura de certas ruas. O fato não é novo, certamente, mas acreditamos que depois de 1930 para cá a confusão se generalizou de tal maneira que ruas de Manaus existem de que não mais se sabe o nome real, à carência de placas elucidativas. As placas modernas sempre foram um problema pela estupidez com que foram organizadas, sem histórico. Por exemplo, aquele vereador fazia referência às ruas, trechos da de Belém (rua de Marciano Armond); de Leonardo Malcher (de Governador Bacelar); beco da Paciência (rua Universal); bairro da Raiz (de Santo Agostinho); rua de Nhamundá (de Barbosa Rodrigues) e rua de Japurá (do Professor Rayol).

O mau vezo de dar-se nome de santos (às vezes cassados) a ruas e bairros é um fenômeno psicológico que foge a nossa preocupação, mas ao mesmo que os diabólicos promotores de transferências de nomes respeitassem a tradição avoenga, quando ela existe de segres. O bairro dos Tocos, onde nasci, foi idiotamente denominado de Aparecida quando com um pouquinho de senso, respeitando a religião, poderia ficar Nossa Senhora Aparecida dos Tocos, a exemplo da Nossa Senhora do Ó (Portugal), Nossa Senhora de Copacabana ou São José de Apipucos, onde reside o meu excelente amigo Gilberto Freyre, e quejandas toponimais. Respeitava-se a tradição e reverenciava-se o patrono ou matavam-se dois coelhos com uma porrada. Assim, Santo Agostinho da Raiz (ah! O velho igarapé da Raiz onde tomei muito banho) ficaria tão bom como São Geraldo dos Bilhares, sem que ninguém viesse a especular se São Geraldo era dado às caraboias (sic) ou o venerável Santo Agostinho, a quem sempre leio e admiro pela coragem de confessar-se publicamente, tivesse tomado algum banho no local ou tomado chá-de-raiz.

Me assustam esses criadores de situações novas e difíceis para a história da cidade. A bagunça é tal para os lados da Prefeitura e tal a carência de espírito nacionalista que até estrangeiros a quem nada devemos e que nem sabem se Manaus existe, frequentam a onomástica urbana numa concorrência aos bons filhos da terra ou a brasileiros outros que aqui pelejaram e a quem se vem cometendo injustiças clamorosas com o esquecimento. Cândido é quem chamou de Kennedy2 e Roosevelt3 a rua e praça da cidade, apunhalando pelas costas a história nossa.

Quando é que se vai colocar um paradeiro a esse quadro negativo? Quando é que vai aparecer alguém que tome a pelo endireitar essa casa de Orates4? Das plantas de Manaus então nem se fala! É aquela garapa! Nomes adulterados, nomes incompletos, nomes ilegíveis, nomes em duplicata, triplicata, quadriplicata, um inferno para o historiador, para o serviço postal, para todo mundo.

Outro dia houve um desaguisado a respeito do nome a ser dado à ponte nova sobre o igarapé da Cachoeirinha de Manaus, mais conhecido por igarapé dos Educandos. Concorrentes póstumos foram o Cônego Plácido, o meu bom e querido amigo Cônego Plácido, amazonense que dizia haver dinamizado o bairro de Constantinópolis, embora em prejuízo da memória do Dr. Jacques de Sousa Lima, o verdadeiro dinamizador daquele trecho com João Brígido; e o meu caro companheiro de escotismo Ramayana de Chevalier. Candidatos fortes e bem apadrinhados, não há que ver, e todos merecedores de homenagem dessa natureza. Mas parece que os padrinhos se esqueceram de duas coisas: primeiro que existe na Prefeitura de Manaus um projeto muito antigo para a construção daquela ponte, como também para a ponte sobre o igarapé do Teiu, dito de São Raimundo Nonato; segundo, há uma lei federal não revogada, proibindo em todo o território nacional duplicidade de nomenclaturas, toponímias de caráter público. Se a coisa for pra valer, o falecido Rama perderá, pois já foi contemplado em vida com uma rua. E se a nossa colenda Câmara levar a sério o trabalho de revisão dos nomes de ruas, praças, jardins etc., seu Getúlio5 e outros nababos vão ficar no singular, dando a vez para a memorização de gente a quem o Amazonas deve e muito. Isto porque em Manaus o que mais ocorre é essa indisciplina. Apesar de que me estafei para escrever a histórias das ruas e demais logradouros públicos desta minha leal cidade, não há uma simpatia pela ordem neste sujeito. Qualquer cidadão dá nome a um beco, um bairro nascente, sem que a Câmara se ajuíze da irregularidade, quando essa confunde com a cumplicidade. Às vezes, nomes ridículos, fesceninos, ou cheirando a novelas, como é o caso do Coroado.

Quando é que se pretende acabar com essa anarquia? Bairro Alvorada existem dois6! Mas eu creio que o pior problema é o da avenida de Constantino Nery. Na realidade não deveria existir nem este nem o nome João Coelho. A avenida, estrada antigamente, de Epaminondas, para homenagear aquele presidente dinâmico que a mandou rasgar até para além de Flores, isto é, naquele tempo até o bairro da Cachoeira Grande, chamado também de Flores. Esclarecemos que já existe uma homenagem a Constantino Nery, em Constantinópolis, embora este houvesse mandado ampliar a estrada de Epaminondas. O fato mais ridículo que se conhece e que diz respeito à carência de cultura de certos administradores aconteceu no governo Arthur Reis7: ele exigiu que algumas ruas dos bairros de São Francisco-Petrópolis recebessem nomes de presidentes da província. Foi o suficiente para que a colônia dos “puxas” destrambelhasse e andasse catando nomes aí, atordoada e inepta. O resultado é que um cidadão cujo nome completo já estava honrado, aparece noutra rua com a abreviatura! Duas ruas com um mesmo nome porque o raio do pesquisador não dava às gatas, sem saber como descascar o abacaxi.

E as plantas de Manaus? A melhorzinha dos últimos anos é a traçada pelo meu mano, Dr. Aluizio Brasil, não fosse prejudicada pela má leitura de certas ruas. A última, que se apregoa trabalho aerofotogramétrico deixa muito a desejar. E a coisa não para, não se resolve nada, enquanto muito se fala em projetos de urbanismo, alguns tão velhos que já caducaram pela novidade. Prega-se a urbanização da cidade e todos os dias registro o vandalismo da canalha contra a paisagem, o fogo devorando árvores de sombras e até de frutos. Não há uma lei proibitiva do corte de árvores! Mete-se o machado à revelia e vem falar-se patrioticamente em Dia da Árvore! Todos os dias surgem cochichos, numa proliferação de cogumelos. Até em frente do Palácio Rio Negro! Ameaça à saúde pública, ameaça aos nossos foros de civilizados. O historiador que cuida do processo histórico da cidade, vê, anota e arquiva. Manaus cresce em sentido vertical, mas as plantas residenciais continuam naquele asfixiante três por três; a vidraçaria continua sendo implantada por arquitetos que só entendem de arquitetura e não de climatologia; trágico desafio ao prolongamento da existência numa cidade chantada em área de baixa pressão, escassas possibilidades de ventilação, forno do futuro. Os flutuantes começam de aparecer nos igarapés centrais numa imitação suburrina.

Amanhã, quando a história ocupar-se desses maus administradores, aparecerá quem se insurja, esquecidos eles de que os homens públicos devem satisfações ao presente e que seus atos serão julgados pela posteridade.


NOTAS:

1Caveira burro, expressão popular, forte na região Nordeste, para falta de sorte e para algo que nunca dá certo. O burro, animal de pouco valor comercial e inferior ao cavalo, era morto pelos criadores para não gerar custos desnecessários com cuidados e alimentação. Seu corpo era enterrado distante das fazendas, surgindo assim verdadeiros “cemitérios” que ganharam a fama de trazer má sorte. Por isso se diz que um negócio ou pessoa está com “caveira de burro” (azar e infelicidade).
2Avenida Presidente Keneddy, no bairro de Constantinópolis (Educandos).
3Praça Roosevelt, uma das três que formam a Praça Heliodoro Balbi (da Polícia).
4Orates, casa de gente maluca, sem noção, também sinônimo para Hospital psiquiátrico.
5Getúlio Vargas.
6Bairro da Alvorada, na zona Centro-Oeste. O autor se refere à segunda etapa do mesmo.

71964-1967.

CRÉDITO DA IMAGEM:

Manaus de Antigamente

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